A construção do pensamento crítico e reflexivo em crianças das séries iniciais

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A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO E REFLEXIVO EM CRIANÇAS DAS SÉRIES INICIAIS Priscila Almeida Silva 1 RESUMO: O presente trabalho apresenta uma análise sobre questões a serem consideradas acerca dos caminhos que precisam ser percorridos para que se alcance o objetivo de formar cidadãos conscientes, com capacidade de pensar por si mesmos e elaborar sua própria impressão sobre o mundo em volta. A pesquisa é focada nos alunos do primeiro ciclo do ensino fundamental e aborda o desenvolvimento cognitivo característico de tal período, bem como a formação da criança enquanto ser social, que recebe influências e constrói sua personalidade e percepções de mundo, a partir dos contatos interpessoais no grupo em que está inserida. Também são apontadas ideias sobre a importância da escola e da figura do professor no processo de aquisição do pensamento crítico e reflexivo, por parte do aluno. Pretende-se, com esta pesquisa, identificar aspectos relevantes da relação entre o aluno e o universo escolar, para que seja possível o surgimento de uma postura questionadora e autônoma na criança desde as séries iniciais. PALAVRAS-CHAVE: Criança, séries iniciais, pensamento crítico, reflexão, desenvolvimento cognitivo, escola, autonomia. 1 Introdução Este estudo bibliográfico analisa as relações, comportamentos e práticas, existentes no meio escolar, que determinam e possibilitam o processo de construção do pensar e do refletir no aluno do primeiro ciclo da educação básica. Segundo Gadotti, educar equipara-se a conscientizar, ao passo que a criticidade, a dúvida e o questionamento estão presentes nas ações transformadoras do sujeito, pois a partir destas condutas origina-se o novo. Sendo assim, são elementos essenciais à vida, dadas suas constantes mudanças e a necessidade do indivíduo de expressar, conhecer, resistir e reinventar. 1 Especialista em Educação e Sociedade pela Universidade Cidade de São Paulo - UNICID, pós- graduanda (Lato Sensu) em Sócio-Psicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP , graduada em Pedagogia pela Faculdade das Américas - FAM. Possui experiência como docente, atuando com educação infantil e ensino fundamental I. E-mail do autor: [email protected].

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A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO E REFLEXIVO

EM CRIANÇAS DAS SÉRIES INICIAIS

Priscila Almeida Silva1

RESUMO: O presente trabalho apresenta uma análise sobre questões a serem consideradas acerca dos caminhos que precisam ser percorridos para que se alcance o objetivo de formar cidadãos conscientes, com capacidade de pensar por si mesmos e elaborar sua própria impressão sobre o mundo em volta. A pesquisa é focada nos alunos do primeiro ciclo do ensino fundamental e aborda o desenvolvimento cognitivo característico de tal período, bem como a formação da criança enquanto ser social, que recebe influências e constrói sua personalidade e percepções de mundo, a partir dos contatos interpessoais no grupo em que está inserida. Também são apontadas ideias sobre a importância da escola e da figura do professor no processo de aquisição do pensamento crítico e reflexivo, por parte do aluno. Pretende-se, com esta pesquisa, identificar aspectos relevantes da relação entre o aluno e o universo escolar, para que seja possível o surgimento de uma postura questionadora e autônoma na criança desde as séries iniciais. PALAVRAS-CHAVE: Criança, séries iniciais, pensamento crítico, reflexão, desenvolvimento cognitivo, escola, autonomia.

1 Introdução

Este estudo bibliográfico analisa as relações, comportamentos e práticas,

existentes no meio escolar, que determinam e possibilitam o processo de construção

do pensar e do refletir no aluno do primeiro ciclo da educação básica.

Segundo Gadotti, educar equipara-se a conscientizar, ao passo que a

criticidade, a dúvida e o questionamento estão presentes nas ações transformadoras

do sujeito, pois a partir destas condutas origina-se o novo.

Sendo assim, são elementos essenciais à vida, dadas suas constantes

mudanças e a necessidade do indivíduo de expressar, conhecer, resistir e

reinventar.

1 Especialista em Educação e Sociedade pela Universidade Cidade de São Paulo - UNICID, pós-

graduanda (Lato Sensu) em Sócio-Psicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESPSP , graduada em Pedagogia pela Faculdade das Américas - FAM. Possui experiência como docente, atuando com educação infantil e ensino fundamental I. E-mail do autor: [email protected].

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Para que o pensamento crítico e reflexivo seja alcançado, é preciso que,

desde o início da formação do ser, seja cultivado o hábito de conhecer através da

indagação, para que a compreensão do mundo e de si mesmo faça-o ir além do que

está diante dos próprios olhos, podendo, dessa maneira, criar, gerar, construir,

transformar, e não meramente reproduzir.

É importante identificar o que é preciso para que o aluno das séries iniciais

desenvolva a habilidade de receber o conhecimento oferecido pelo professor de

maneira questionadora e crítica, refletindo sobre sua relevância, aplicabilidade e

sentido. Interessa, ainda, compreender quais são as competências e práticas

pedagógicas necessárias para despertar no aluno o desejo de buscar informações,

pesquisar e conhecer o mundo de maneira autônoma e espontânea.

Para conhecer os caminhos que levarão o aluno das séries iniciais à

construção do pensamento crítico e reflexivo, serão explanadas considerações

pertinentes ao desenvolvimento cognitivo da criança entre 6 e 10 anos de idade,

para que se possam entender as transformações e necessidades que ela possui na

fase em que se encontra, nas séries iniciais do ensino básico. Para tanto, serão

consultados e citados Wallon, Vygotsky e Piaget, os quais possuem teorias que

poderão contribuir para a compreensão do assunto tratado.

Serão abordadas, também, ideias sobre a criança enquanto ser no momento

de formação das bases de sua identidade, autonomia e atuação na sociedade.

Ao final serão expostas considerações acerca da educação, analisando a

relação entre o aluno e escola, além da influência do professor no processo de

formação de alunos críticos e reflexivos, bem como a importância desse processo.

2 Aspectos do desenvolvimento cognitivo da criança na fase de 6 a 10 anos

2.1Concepção Walloniana

A criança na fase de 6 a 10 anos encontra-se no que Wallon classifica como

Estágio Categorial, que, em sua teoria, compreende o período dos 6 aos 11 anos.

Nesse momento do desenvolvimento, segundo a concepção de Wallon, a

criança afasta-se do estágio anterior, o personalismo, que dura dos 3 aos 6 anos, e

tem como característica mais marcante a afetividade no desenvolvimento, posto que

a criança está aprendendo a diferenciar o eu do mundo exterior.

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No estágio categorial, Wallon considera que começa a ocorrer uma

estabilidade relativa nos processos regulares da evolução mental. Essa estabilidade

é abalada na adolescência por profundas crises.

Nesse período, a criança continua a se desenvolver, tanto no plano motor como no afetivo, mas as características do comportamento são determinadas principalmente pelo desenvolvimento intelectual, e é nesse domínio que se podem perceber grandes saltos. A criança aprende a se conhecer como pessoa pertencente a diferentes grupos, exercendo papéis e atividades variados. Toma conhecimento de suas possibilidades, adquirindo um conhecimento mais completo e concreto de si mesma. (AMARAL, 2000, p. 52)

Também é nessa etapa que a criança desenvolve a autodisciplina mental, ou

seja, a atenção, a qual possibilita que estímulos não interessantes à atividade a que

se atém, sejam desconsiderados.

No que diz respeito à motricidade, existe mais precisão e habilidade para

adequar o gesto à ação desejada, podendo analisar antecipadamente as

consequências de seu movimento.

A formação de sua personalidade é influenciada pelo meio em que inicia suas

práticas sociais. Cada grupo possui valores, regras e costumes que são adequados

aos meios de convívio social, como a escola, por exemplo: “A escolarização obriga a

criança a deparar com meios variados, com grupos e interesses distintos.” (p. 53).

A criança precisa se habituar aos conflitos de interesse provenientes dessa

interação com o meio, visto que no estágio anterior “o grupo familiar garantia a ela

lugares determinados como de filho, de irmão mais novo ou mais velho, de neto,

enfim, lugares fixos e relações determinadas.” (p. 53).

Dessa forma, será necessário, no ambiente escolar, procurar compreender e

definir seu papel.

Aqui ocorre também o contato com uma ideia mais clara de certo e errado,

que possibilita tomada de decisões e escolhas a partir de análises e ponderações.

Segundo Wallon, no estágio categorial organiza-se uma nova estrutura

mental, que ocorre em duas etapas: a pré-categorial e a categorial.

A etapa pré-categorial, que dura até aproximadamente os 9 anos, ainda tem

como característica o sincretismo, enquanto a etapa categorial que ocorre entre 9 e

10 anos, apresenta a capacidade de formação de categorias e classificações, o que

permite à criança uma possibilidade de ordenar a realidade à sua volta.

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O pensamento pré-categorial e o categorial caracterizam a inteligência

discursiva, que tem como ponto de partida o par, “que sustenta o pensamento

sincrético. É a primeira forma de organização intelectual.” (p. 54).

O pensamento por pares, que ocorre até os 6 anos, consiste na incapacidade

de a criança de admitir a existência da unidade, de forma que para que algo exista é

preciso que haja um par que lhe dê identidade. Nesse pensamento a criança não

distingue as partes do que percebe ao redor. “Ao pensamento sincrético, sucede-se

o pensamento de relações, que possibilitará a explicação da realidade, de maneira

que a criança possa utilizar mais corretamente as ligações lógicas.” (p.56).

Com o surgimento do pensamento categorial, entre os 6 e os 9 anos, a

criança passa a distinguir mais precisamente suas percepções do mundo, pode

nomear, agrupar e comparar itens e fatos.

Entre os 9 e os 10 anos, a criança adquire maior capacidade de análise e

abstração, embora não completa.

2.2 Concepção Vygotskyana

Para Vygotsky, é possível compreender o desenvolvimento humano

considerando a relação indivíduo/sociedade, a origem cultural das funções

psíquicas, a base biológica do funcionamento psicológico, a mediação presente nas

atividades humanas e as características básicas dos processos psicológicos

humanos.

São analisados os aspectos sociogenéticos e ontogenéticos. Nesse cenário

ocorrem as chamadas mediações que se dão por meio de “instrumentos técnicos e

os sistemas de signos, construídos historicamente.” (p. 42).

Tais ferramentas e signos viabilizam a interação dos seres entre si e com o

mundo ao redor e são fornecidos pela cultura na qual o indivíduo está inserido, e

caracterizam a relação do homem com o mundo como indireta.

Vygotsky defende que

(...) um dos principais defeitos da psicologia tradicional é a separação entre os aspectos intelectuais, de um lado, e os volitivos e afetivos, de outro, propondo a consideração da unidade entre esses processos. Coloca que o pensamento tem sua origem na esfera da motivação, a qual inclui inclinações, necessidades, interesses, impulsos, afeto e emoção. Nesta esfera estaria a razão última do pensamento e, assim, uma compreensão completa do pensamento humano só é possível quando se compreende sua base afetivo-volitiva. (OLIVEIRA, 1992, p. 76).

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Considera ainda que a formação da consciência corresponde a um processo

de internalização e constituição da subjetividade e intersubjetividade.

A passagem do nível interpsicológico para o nível intrapsicológico envolve, assim, relações interpessoais densas, mediadas simbolicamente, e não trocas mecânicas limitadas a um patamar meramente intelectual. Envolve também a construção de sujeitos absolutamente únicos, com trajetórias pessoais singulares e experiências particulares em sua relação com o mundo e, fundamentalmente, com as outras pessoas. (OLIVEIRA, 1992, p. 80)

A internalização das funções psicológicas superiores acontece a partir de

determinadas transformações que marcam o desenvolvimento cognitivo da criança,

que passa a realizar internamente operações que antes somente ocorriam de

maneira externa.

É de particular importância para o desenvolvimento dos processos mentais superiores a transformação da atividade que utiliza signos, cuja história e características são ilustradas pelo desenvolvimento da inteligência prática, da atenção voluntária e da memória. (VYGOTSKY, 2007, p. 57)

Posteriormente, ocorre a transformação do processo interpessoal em

processo intrapessoal.

Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas, (interpsicológico), e, depois, no interior da criança (intrapsicológico). (VYGOTSKY, 2007, p. 58)

Esse processo passa por inúmeras transformações provenientes de

acontecimentos ao longo do desenvolvimento e permanece externo por muito tempo

até que se internalize permanentemente, embora o estágio de signos externos seja

o estágio final para certas funções.

2.3 Concepção Piagetiana

Piaget descreve o desenvolvimento humano através de 4 estágios básicos:

Sensório-motor (0 – 2 anos);

Pré-operatório (2 – 7/8 anos);

Operatório-concreto (8 – 11/12 anos);

Operatório-formal (12 anos em diante).

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No período Sensório-motor (0 a 2 anos), começa na criança a construção do

real, em que tudo, a princípio, parece caótico. Suas percepções e movimentos

possibilitam que a criança conheça e passe a, gradualmente, compreender e

dominar tudo ao redor.

No período Pré-operatório (2 a 7/8 anos), aparece a função simbólica ou,

como algumas vezes denomina Piaget, semiótica. Este é o momento em que a

criança adquire a linguagem, porém linguagem e lógica não surgem

simultaneamente. Justamente pela ausência do pensamento lógico, apesar de neste

estágio o pensamento já apresentar tamanha evolução, ainda predomina na criança

o egocentrismo intelectual e social, pois a realidade ao seu redor ainda é concebida

somente a partir de si.

No Período das operações concretas (7 a 11/12 anos), a criança desenvolve

a capacidade de estabelecer relações lógicas e coordenar pensamentos de forma

coerente. As operações deixam de ser necessariamente realizadas apenas no plano

físico, passam a ser realizadas mentalmente.

De acordo com Piaget, a compreensão da reversibilidade e as conservações

operatórias são características de crianças a partir de 7 ou 8 anos de idade, faixa

etária na qual as crianças estão iniciando suas vidas escolares.

Esse processo ocorre até os 12 anos, aproximadamente, e é explicado como

o “sucesso de três grandes construções, cada uma das quais prolonga a anterior,

reconstituindo-a primeiro num plano novo para ultrapassá-la em seguida, cada vez

mais amplamente.” (p. 135).

A teoria de Piaget sugere que neste ponto do desenvolvimento cognitivo,

surjam as noções de conservação, classificação e seriação. “As operações

concretas estabelecem, portanto, muito bem a transição entre a ação e as estruturas

lógicas mais gerais” (p. 91).

É preciso, porém, ressaltar que as operações ainda não se baseiam em

hipóteses, são consideradas concretas porque baseiam-se diretamente nos objetos.

No Período das operações formais (12 anos em diante), a criança, atinge a

abstração do pensamento e passa a ter a habilidade de formular hipóteses, seu

pensamento baseia-se na lógica. Este, segundo Piaget, é o estágio final do

desenvolvimento, que continua sendo aprimorado ao longo da vida do sujeito.

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3 A criança como ser social em formação

Partindo da análise psicológica do desenvolvimento humano, de acordo com

Vygostky, é possível identificar que o meio possui papel indispensável neste

processo. A interação social é um dos fatores que difere a humanidade dos animais:

“A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente

desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia animal para a

psicologia humana.” (p. 58).

Freitag afirma que, para compreender o desenvolvimento de um indivíduo

dentro de uma sociedade, deve-se refletir, principalmente, sobre sua natureza, para

que seja possível analisar o que é inato e o que é resultado de influências externas,

sendo que, para isso, podem-se considerar, pelo menos, duas possibilidades:

Rousseau acredita que a natureza do homem é boa e que uma consciência moral é

desenvolvida espontaneamente. Já Durkheim afirma que o homem possui natureza

egoísta.

Ambos consideram que a sociedade exerce grande influência na formação do

sujeito social, entretanto, de certa forma, também divergem neste aspecto:

Rousseau dirá: no decorrer de sua vida, o homem sofre duas influências negativas: a da sociedade, de origem externa, e a de suas pulsões, de origem interna, que ofuscam a sua percepção do mundo e deturpam suas ações. Para que ele seja capaz de discernir entre o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o injusto, o homem precisa educar sua inteligência, aprimorá-la, a fim de que esta lhe forneça os critérios adequados de avaliação e julgamento. (FREITAG, 2001, p. 35)

Freitag aponta que para Durkheim a sociedade tem uma função diferente no

que diz respeito à formação do indivíduo enquanto sujeito social:

A sociedade, essencialmente boa, cristaliza em suas normas, regras, ordens e proibições, a aura do sagrado, definindo o conteúdo das virtudes, do bem e do mal, do justo e do injusto, do certo e do errado. Essas representações coletivas da sociedade são repassadas aos indivíduos de geração em geração, da mais velha para a mais nova. (FREITAG, 2001, p. 38)

Tais pontos de vista possibilitam uma rica reflexão sobre a importância de

oferecer à criança, que está construindo seu caráter básico ao longo de seus

primeiros anos escolares, um ambiente que apresente referências positivas, posto

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que tanto Rousseau quanto Durkheim percebem a sociedade como fator decisivo no

processo de formação do sujeito.

Embora Rousseau entenda que a sociedade corrompe a essência boa do

homem, Durkheim discorda, afirmando que, na verdade, o homem é condicionado a

ser bom pelas regras da sociedade, em ambos os casos é imprescindível que o

contexto social da criança em desenvolvimento seja o mais saudável possível, para

que ela possa interiorizar boa conduta e exercer controle sobre seus instintos, ou

para que nela seja despertado ou reforçado o que já possui de positivo

naturalmente.

A teoria de Piaget esclarece que:

Aproximadamente, aos sete e oito anos, na medida que se iniciam os processos de equilibração (reversibilidade, associatividade, composição, etc.) das estruturas configuracionais (gestalten) do pensamento, as trocas interpessoais tornam-se condição sine qua non do prosseguimento da maturação. (LIMA, 1984, p. 116).

Piaget afirma que regras sociais não podem ser consideradas todas boas e

que a teoria de Durkheim não incentiva a autonomia, e sim a aceitação incontestada

e impensada sobre as normas.

Este condicionamento, para Piaget, pode ser perigoso à medida que inibe e

invalida o raciocínio individual, podendo gerar movimentos sociais com concepções

e ideais fanáticos e absurdos.

No ser humano, a partir de um certo momento da embriologia mental, as

interações com o meio sociocultural (sociedade e cultura) tornam-se

dominantes (servindo a linguagem de mediador), podendo esta interação

resultar em conformação ou em estímulo à superação do egocentrismo. (LIMA, 1984, p. 116)

Segundo Piaget, “a privação de interações interpessoais pode ser fator de

frenagem, no desenvolvimento mental, a partir do estágio das operações concretas.”

(LIMA, 1984, p. 117).

De acordo com essa afirmação, é possível perceber que também para Piaget

as relações sociais têm grande importância no desenvolvimento do indivíduo. “As

relações interpessoais forçam (ou permitem) a compreensão do ponto de vista do

outro, descongelando o egocentrismo (intuições). Daí a importância da discussão

nas últimas etapas do desenvolvimento.” (LIMA, 1984, p. 117)

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Piaget discorre a respeito do assunto em sua teoria sobre o juízo moral na

criança, onde considera as duas morais na criança e os tipos de relações sociais

existentes.

As relações podem ser, para Piaget, de duas formas. São elas coação e

cooperação:

(...) as relações de coação são contraditórias com o desenvolvimento intelectual das pessoas a elas submetidas. No caso específico das crianças, ela reforça o egocentrismo, que, entre outras coisas, representa justamente a dificuldade de se colocar no ponto de vista do outro e assim estabelecer, com ele, relações de reciprocidade. A coação impede, ou simplesmente não pede, que tal reciprocidade ocorra, e, portanto não possibilita à criança construir as estruturas mentais operatórias necessárias à sua conquista. (LA TAILLE, 1992, p. 59).

É notável que Piaget entende como altamente nocivo o efeito de uma relação

de coação sobre a criança, em especial, pois considera que “no que tange à moral,

na coação, há somente respeito unilateral.” ( LA TAILLE, 1992, p. 59)

De acordo com Piaget, as relações devem ocorrer de forma cooperativa:

As relações de cooperação (co-operação como às vezes escreveu Piaget para sublinhar a etimologia do termo) são simétricas, portanto, regidas pela reciprocidade. São relações constituintes, que pedem, pois, mútuos acordos entre os participantes, uma vez que as regras não são dadas de antemão. Somente com a cooperação, o desenvolvimento intelectual e moral pode ocorrer, pois ele exige que os sujeitos descentrem para poder compreender o ponto de vista alheio. No que tange à moral, da cooperação derivam o respeito mútuo e a autonomia. (LA TAILLE, 1992, p. 59)

Para Rousseau, Durkheim, Piaget e Vygotsky, o indivíduo constitui-se através

de sua interação com o meio, e são os estímulos do meio que interferem na

construção do sujeito.

Apesar de divergências de ideias sobre a essência humana, os três

reconhecem o papel importante que o contexto social exerce sobre aquilo que é

inato do ser humano ou sobre aquilo que a própria sociedade molda, bem como que

dessa interação resulta a formação de um indivíduo.

4 A educação como ferramenta viabilizadora da crítica e da reflexão

Segundo Espósito, a relação entre o aluno e a escola começa a mudar

significativamente a partir de 1982, quando começam a ser inseridas as ideias do

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Construtivismo, no qual a criança passa a ser percebida de uma maneira diferente,

sob uma nova óptica, que considera seus diversos aspectos enquanto indivíduo em

processo de aprendizagem e desenvolvimento de forma geral.

Este é um importante marco, na visão da autora, pois deixa para trás algumas

falhas do ensino clássico, no qual a criança é agente passivo ao receber a

informação oferecida no ambiente escolar. Este modelo é substituído por ideias que

buscam possibilitar à criança a oferta de descobertas e reflexões sobre o

conhecimento.

A preocupação com o respeito às singularidades, necessidades, habilidades e

limitações de cada indivíduo em processo de aprendizagem é um fator diferencial

que marca uma nova perspectiva na educação.

(...) enfatizar a necessidade de a escola acolher e respeitar o pensar daquele que aprende, vendo-o como um sujeito histórico, situado numa cultura multifacetada e complexa. (ESPÓSITO, 2006, P. 31-32)

A partir desse novo modo de ver e lidar com a construção do conhecimento

do educando, também é possível perceber na escola um novo valor no que diz

respeito à socialização do indivíduo, posto que, de acordo com as novas

proposições, não só interessam à escola e à tarefa de aprender suas habilidades e

condições cognitivas, mas também suas características culturais, por exemplo,

tornando a escola um ambiente em que o ser manifesta-se de maneira completa e

deve ser respeitado e orientado também de maneira plena.

Nesse período, livros, cartilhas, métodos de ensino que, até então eram coerentes com a concepção de ensino vigente, cujas bases remontam ao realismo pedagógico, passam a ser vistos, então, como insuficientes, senão desnecessários. Enfatiza-se o contexto sócio-cultural e linguístico da criança, o reconhecimento de seu saber como elemento a ser incorporado no processo, visto como uma construção do conhecimento. (ESPÓSITO, 2006, p. 32)

É neste novo cenário que a criança passa a vivenciar a experiência escolar de

uma maneira mais próxima, de forma que as interações e os contatos possíveis

nesse contexto auxiliem não só na construção do saber, mas no desenvolvimento

como um todo.

A sala de aula coloca-se não apenas como um locus onde se dá o ensino, mas como um dos lugares privilegiados onde se dá o aprender. Introduz-se um novo discurso pedagógico que fala de movimentos, dialéticas, oposições, construções, reconstruções. (ESPÓSITO, 2006, p. 32)

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Educar é uma tarefa que não possui sujeito e objeto, de acordo com Paulo

Freire. Para ele, “quem forma se forma e re-forma o formar e quem é formado forma-

se e forma ao ser formado”. (p. 21)

Não existe, na educação, aquele que só ensine e aquele que só aprenda,

como sugerem os papéis estabelecidos e difundidos de professor e aluno. Paulo

Freire considera que o professor aprende ao ensinar e que o educando ensina ao

aprender, e isso faz da educação um ato muito maior e mais significativo do que a

simples transmissão de conhecimentos que parte de um ser formador para um

agente receptivo passivo.

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade. (FREIRE, 1996, p. 24)

Paulo Freire aponta os hábitos que foram há muito adotados nas relações

entre educadores e educandos e são considerados por muitos a única maneira, ou a

maneira natural, de se educar. A postura do educador em relação ao educando no

que diz respeito ao conteúdo trabalhado é, muitas vezes, opressiva e improdutiva.

Ele afirma que, em relação à educação estática,

(...) o educador aparece como seu indiscutível agente, como seu real sujeito, cuja tarefa é encher os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. (FREIRE, 2005, p. 65-66).

Ensinar de forma descontextualizada e de maneira a colocar o aluno como

objeto de formação leva a uma memorização mecânica e transforma os alunos em

“vasilhas, em recipientes a serem enchidos pelo educador” (p. 66), tornando o

processo da aquisição de conhecimento uma mera situação de exposição e

memorização de informações que Paulo Freire explica:

Na visão bancária da educação, o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro. (FREIRE, 2005, p. 67).

A transferência de valores e conhecimentos não viabiliza reflexões,

problematizações e discussões, dando espaço à absolutização do saber do

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educador e à alienação dos educandos, segundo Freire, que também considera um

erro colocar o educando na condição daquele que nada sabe. Sim, o educando

possui saberes que devem ser respeitados:

(...) pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também (...) discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. (FREIRE, 1996, p. 30)

Repensar as ações e a postura do educador, bem como seu olhar em relação

aos educandos e, principalmente, suas concepções sobre a educação enquanto

instrumento de transformação e intervenção no mundo, é necessário para que se

possa atingir a autonomia dos sujeitos, tanto do educador, quanto do educando.

Para Paulo Freire, tudo se inicia com o respeito mútuo à autonomia e à dignidade.

Fleuri aponta que a educação autoritária é destinada a formar seres sem

capacidade de pensar e agir por si só, ou seja, sem autonomia. Dessa forma, um

professor que não exerce sua autonomia e não respeita a construção da autonomia

do aluno contribui para a alienação e para o condicionamento. “No fundo, o objeto

desta proposta educacional é adaptar as pessoas a uma sociedade em que

predominam as relações de opressão.” (p. 53)

Para exercer a educação autoritária, o professor já não faz mais uso explícito

de violência como nos tempos em que podia manifestá-la fisicamente. Entretanto, “a

chamada, as provas, as notas estão em pleno vigor e são poderosos meios de

controle do pensamento e da atividade dos alunos nas mãos do professor”. (p. 53).

Para contribuir positivamente com a construção da autonomia do educando,

incentivando-o a formar suas próprias opiniões, tirar conclusões, ser questionador e

sempre ter um olhar crítico para o mundo, bem como tomar suas próprias decisões,

o educador precisa ele próprio agir de acordo com tais ideias que constituem sua

autonomia.

De acordo com Gadotti, a educação tem o papel de combater modelos e

ideias pré-definidas e o educador “não é o que cria as contradições e os conflitos.

Ele apenas os revela, isto é, tira os homens da inconsciência. Educar passa a ser

essencialmente conscientizar” (p. 70), especialmente porque para que o sujeito

possa ser autônomo, precisa aprender a analisar fatos ditos inquestionáveis e

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indubitáveis. É imprescindível para a construção da autonomia a inquietação e a

dúvida.

(...) reconhecer que o aparente é sempre uma e apenas uma das faces do real. (...) não se deixar conduzir pelas exterioridades, pelas evidências, pelas potências. Suspeitar é deixar sempre uma porta aberta para uma nova vista; é reconhecer os limites da ação transformadora. (GADOTTI, 1998, p. 69)

É necessário que o educador conduza a aprendizagem apontando caminhos

e provocando reflexões, não apenas dando continuidade ao modelo educacional

arbitrário onde são transmitidos conteúdos programados e engessados, sem

efetivamente proporcionar uma experiência transformadora para educador e

educando.

5 Conclusão

Para Wallon, a criança de 6 a 10 anos (idade escolar em que se encontra no

primeiro ciclo do ensino fundamental) passa por transformações altamente

relevantes no que diz respeito à motricidade e afetividade, entretanto, a mais

significativa evolução é percebida no campo intelectual.

Nesta fase, de acordo com Wallon, a criança está deixando as características

afetivas do estágio anterior para aprimorar seu desenvolvimento na atuação em

diferentes ambientes, considerando que a formação de sua personalidade dá-se a

partir da relação com o mundo em volta.

Tendo em vista este fato, é possível compreender que o aluno está, aos

poucos, deparando-se e aprendendo a lidar com novas linguagens, diferentes

grupos e valores, os quais passam a ser submetidos a avaliações e ponderações

que a criança realiza para compreender seu papel em cada ambiente, inclusive no

escolar. O grau de abstração de seu pensamento evolui, como também a

capacidade de estabelecer comparações e fazer análises cada vez mais complexas,

possibilitando melhor entendimento da realidade.

Vygotsky também considera de determinante importância para o

desenvolvimento do sujeito seu contato com a sociedade, por meio da qual adquire

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ferramentas e signos que medeiam sua relação com o mundo. Essa forma de

interação mediada caracteriza como indireta a relação entre o indivíduo e o mundo.

As operações concretas, explicadas por Piaget, elucidam que a criança de 7 a

11/12 anos desenvolve habilidades que a possibilitam realizar atividades mentais

envolvendo lógica, reversibilidade e elaborando hipóteses, o que demonstra que

está apta a compreender a relatividade dos conteúdos a serem explorados e

conhecidos na escola, bem como formular suas impressões e questionamentos

sobre eles.

Conforme apresentado na pesquisa, Piaget também entende a relação

interpessoal como um fator imprescindível, elementar e de enorme influência no

desenvolvimento humano, pois torna possível a superação do egocentrismo.

Foram apresentadas considerações acerca da Educação no processo de

conscientização do aluno, em que se pôde notar que, ao se construirem estruturas

adequadas, a escola pode significar muito mais para o aluno do que um mero lugar

onde se recebem informações por obrigação ditada por uma convenção social, que

busca promoção vazia de sentido. O ambiente escolar deverá representar um lugar

onde o aluno seja visto, respeitado, ouvido, de forma que todas as ações

pedagógicas se deem com a finalidade de oferecer bases para seu pleno

desenvolvimento pessoal e social.

Essa forma de se relacionar com o mundo, colocando, de certa maneira, em

teste a veracidade e a lógica de todas as coisas, pode ser aplicada em inúmeros

aspectos da vida humana e apresenta-se extremamente importante também no que

tange à Educação. A apreensão de toda forma de conhecimento potencializa-se a

partir dessa relação dialética, da curiosidade e da “desconfiança” na mente do

sujeito, que estará mais aberto a refletir, a conhecer, a compreender e enxergar os

conteúdos de forma ampla e crítica, abandonando a passividade.

O ideal é que o indivíduo consiga levar o pensamento crítico para todas as

áreas da vida, especialmente nas relações humanas em sociedade, onde existem

normas, costumes e valores que precisam ser constantemente repensados e

discutidos, no sentido de aprimorar e otimizar seus efeitos e benefícios para as

pessoas.

É importante o hábito de rever e repensar aquilo que parece estático, fixo e

imutável, para que erros possam ser corrigidos e novas práticas e concepções

possam tomar o lugar daquelas que já não se mostram úteis e viáveis.

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A transformação através do pensamento é prerrogativa do homem, que deve

fazer uso dela para sua própria sobrevivência e convívio social.

Quanto mais cedo o sujeito começar a exercitar suas habilidades de crítica e

reflexão sobre tudo o que constitui o mundo em que vive, maior a possibilidade de

se desenvolver buscando sempre ações conscientes e transformadoras.

O professor possui a importante função de estimulador do questionamento e

da curiosidade do aluno, tendo ele próprio uma postura investigativa sobre o

conhecimento.

A partir das considerações dos autores consultados na presente pesquisa,

percebe-se que, para que seja possível fazer emergir na criança das séries iniciais

um pensamento questionador, curioso e crítico, é preciso compreender e respeitar

suas habilidades cognitivas em desenvolvimento e levar em conta sua condição de

sujeito social em formação.

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