A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO … · ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA A COMPAIXÃO COMO...
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA
ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA
A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER
Teresina - PI
2014
ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA
A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Orientador: Prof. Dr. Luizir de Oliveira.
Teresina - PI
2014
ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA
A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pelo programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí - UFPI.
BANCA EXAMINADORA
Aprovada por:___/___/___
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Luizir de Oliveira/UFPI (Orientador-Presidente)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior – UECE (Examinador)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Wellistony Carvalho Viana – PPGEE/ICESPI (Examinador)
AGRADECIMENTOS
Agradecimentos especiais ao meu orientador Luizir de Oliveira, pela
confiança e ensinamentos, e aos professores José Iran Nobre de Sena, Vicente de
Paula, Luiz Carlos Rodrigues Cruz Puscas, Alejandro Labale, Ranieri Ribas,
Flamarion Caldeira Ramos, Daniel Arruda, José Airton, Rosilene Pereira, Zoraida
Lopes, Maria Cristina Sparano, Padre Amadeu Matias, Emerson Carlos Valcarenghi,
Jorge Lubenow. Agradeço profundamente ao meu filho Guilherme Bruno de Araújo
Lima, uma pessoa única, que me incentivou e principalmente acreditou que eu
chegaria até o final. Essa pesquisa é fruto da contribuição inestimável de todos.
Aos colegas de estudo, pelas trocas de conhecimento e amizade, em
especial, José Luis Guimarães pelo apoio e ajuda intelectual, Alan, André, Aline
Galvão, Bia, Francisco Reis, Marcos Vaz, Nayara Barros, Claúdia Raquel, Cleide
Couto, Dasto, Dayvidi Magalhães, Francílio do Vale, Medina, Sol, Maria, Marléia
Uchôa, Pedro, Layane Veloso, João Farias, Eliane Rodrigues, Lorena, Vinicius, João
Caetano, Hellen Lopes, Helís Cristine, Elielton, Gilcelane, Márcia Damasceno, Elis,
Enoisa Veras, Fabiana, Francinete, Gardênia, Islânia, Jandira, Janice, Joaquim e
Cintya, Lais, Loise Ana, Luis Gomes, Ramon, Luziane, Sullivan, Mariana, Jaziel,
Ornela Fortes, Wilker Marques, Zélia, Fátima e aos colaboradores da UFPI.
Ao Programa de Bolsas CAPES, pelo apoio financeiro que tornou possível
esta pesquisa.
À minha família, em especial, Vanda Maria de Azevedo, Alan de Azevedo.
RESUMO
Este trabalho apresenta um estudo do fenômeno ético originário no âmbito da filosofia moral schopenhaueriana, ou seja, a compaixão, levando em consideração que Schopenhauer analisa os diferentes modos de agir dos indivíduos, pois para Schopenhauer, é por intermédio das ações humanas que podemos identificar as ações dotadas ou não de valor moral. Podemos reconhecer a compaixão como a única ação dotada de valor moral, pois esta é destituída de qualquer interesse. Desse modo, nosso percurso se deu de forma a elucidar esse fenômeno espontâneo e genuíno e também analisar de que modo ele pode atuar em cada um de nós, visto que é intuitivo e imediato e que o sofrimento é uma chave para se entender o reconhecimento entre os agentes que são dotados de motivações do tipo morais e antimorais na teoria moral de Schopenhauer. Palavras-chave: Schopenhauer. Sofrimento. Compaixão. Reconhecimento.
ABSTRACT
This paper presents a study of the originating ethical phenomenon in the context of Schopenhauer's moral philosophy, namely, compassion, considering that Schopenhauer examines the different modes of action of individuals, as for Schopenhauer, is through human actions that we can identify gifted or not the actions of moral value. We recognize compassion as the only action endowed with moral value, since it is devoid of any interest. Thus, our route took in order to elucidate this spontaneous phenomenon and genuine and also consider how it can work in each of us, as it is intuitive and immediate, and that suffering is a key to understanding the recognition between agents who are endowed with moral motivations and antimoral in moral theory Schopenhauer. Keywords: Schopenhauer, Suffering, Compassion, Recognition.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 8
1. OS ELEMENTOS EPISTÊMICOS E METAFÍSICOS DA FILOSOFIA MORAL SCHOPENHAUERIANA ............................................................................................. 18
1.1. O princípio de razão suficiente .......................................................................... 20
1.1.1. As quatro raízes do princípio de razão suficiente ................................. 24
1.2. Os conceitos de representação e vontade .............................................. 30
1.2.1. Do mundo como representação ........................................................... 30
1.2.2. Do mundo como Vontade ..................................................................... 43
1.3. A doutrina dos caracteres: inteligível, empírico e adquirido .................... 48
2. A SIGNIFICAÇÃO ÉTICA DA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER: AS MOTIVAÇÕES ANTIMORAIS E MORAIS ....................................................... 55
2.1. O egoísmo e a maldade .......................................................................... 57
2.2. A compaixão como fundamento da moral ............................................... 61
2.2.1. A virtude da justiça e da caridade ........................................................ 66
2.3. A abordagem empírica da compaixão ..................................................... 72
2.4. A explicação metafísica do fenômeno da compaixão .............................. 76
3. DO SOFRIMENTO AO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER ...... 85
3.1. O sofrimento do mundo em Schopenhauer ............................................. 86
3.2. Reconhecimento: a metáfora do senhor e do escravo em Hegel ............ 95
3.3. A possibilidade de se pensar uma ética do reconhecimento em Schopenhauer por meio da compaixão .......................................................... 103
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 110
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 115
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INTRODUÇÃO
Na modernidade tentar responder aos questionamentos acerca das
ações humanas não é tarefa fácil. Isso nos remete a pensar a moralidade em
Schopenhauer, tendo em vista que o mesmo tratou do tema da ética, mais
especificamente, da compaixão como um fundamento para a moralidade.
Nossa pretensão é explicar de que maneira o filósofo alemão Arthur
Schopenhauer discorreu sobre as ações humanas e até que ponto elas
interferem em nossas vidas. Isso acarreta, na filosofia de Schopenhauer, a
elaboração de uma reflexão única que trouxe a possibilidade de se pensar uma
ética pautada em um fenômeno ético, espontâneo e genuíno, denominado
compaixão.
A compaixão pode, ao que parece, garantir certa legitimidade para que
se possa compreender que, mesmo por uma via intuitiva, podemos nos
compadecer com outro que sofre. Visto que essa é uma ação moral
desinteressada, livre de quaisquer motivos, a compaixão está no fundamento
schopenhaueriano, pois a ação moral está diretamente ligada ao modo
comportamental dos homens. Para Schopenhauer, entre suas investigações,
aquela voltada para o agir humano é a mais séria dentro do seu arcabouço
teórico. Para ele, suas verificações sobre a natureza humana “[...] afetam de
maneira imediata cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou
indiferente” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353).
Espera-se encontrar nas obras O mundo como vontade e como
representação e Sobre o fundamento da moral a chave para analisar de que
maneira a compaixão pode ser vislumbrada como uma ética do
reconhecimento em Schopenhauer, objetivando estabelecer o ponto de partida
da nossa pesquisa, pois é através da compaixão que se enseja encontrar nos
escritos do filósofo da Vontade a chave de explicação para o enigma do
mundo.
Os escritos de Schopenhauer nos oferecem uma análise
pormenorizada das ações dotadas ou não de valor moral. O itinerário de
Schopenhauer partiu de uma imbricação entre os temas referenciados em sua
obra clássica, O mundo como vontade e como representação, quais sejam:
epistemologia, metafísica, estética e ética. Segundo Schopenhauer, “quando se
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levam em conta os diferentes lados desse pensamento único a ser
comunicado, ele se mostra como aquilo que se nomeou seja Metafísica, seja
Ética, seja Estética” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 19).
Para Schopenhauer seu pensamento deve ser entendido como um
todo coeso, posto que as discussões em torno do seu pensamento único têm
como finalidade oferecer ao leitor o entendimento do mundo, visto sob o prisma
ora da representação, ora da Vontade. Para ele, sua filosofia deve ser
entendida como um pensamento orgânico, no qual cada parte mantém sua
particularidade e ao mesmo tempo integra um projeto unitário maior porque
compõe um todo. Segundo Schopenhauer, para que se entenda seu
pensamento único, deve-se levar em consideração seu projeto filosófico
presente em suas principais obras: O Mundo como vontade e como
representação e Sobre o fundamento da moral, obras primordiais para o
desenvolvimento desta pesquisa.
Seguindo essa linha de pensamento, o filósofo alemão divide O mundo
como vontade e como representação em quatro livros e um apêndice. Nessa
obra são apresentadas as quatro faces distintas da tese. Faz-se necessário
abordar de maneira geral o entendimento do filósofo em relação ao seu
arcabouço teórico. Para isso, seguimos o procedimento do filósofo de
descrever a importância dos quatro livros e do apêndice sobre a crítica à
filosofia kantiana presente em O mundo como vontade e como representação.
No entanto, apesar de discorrermos sobre os quatro livros, o horizonte
da nossa pesquisa gira em torno do livro quatro, uma vez que este trata
especificamente do tema da ética. Nas palavras do próprio Schopenhauer, a
quarta parte é certamente a mais importante, pois é por seu intermédio que
abordamos a importância de se entender seu fundamento único, a compaixão.
Esse fenômeno serviu para fundamentar a problemática ética, na qual
Schopenhauer analisa de modo detido os elementos necessários para se
chegar a esse sentimento genuíno, imediato e espontâneo. Schopenhauer
complementa seu tratado ético com a obra Sobre o fundamento da moral,
publicada em 1839. Na mesma época o autor publica Os dois problemas
fundamentais da ética e um Ensaio sobre a liberdade da vontade. Logo depois,
em 1844, surge a segunda edição de O mundo como vontade e como
representação.
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Seu ensaio Sobre o fundamento da moral é uma obra posterior ao seu
escrito principal O mundo como vontade e como representação, publicada em
1819. Em 1839, ele retoma a tese sobre o fundamento da moral e a apresenta
à Sociedade Real da Dinamarca para apreciação. O referido ensaio tinha como
meta responder sobre a fonte e o fundamento da moral. Para Schopenhauer,
esse trabalho poderia levar ao reconhecimento da inconstância e fragilidade
dos sistemas morais vislumbrados naquela época. Nesse mesmo período,
Schopenhauer aprimorou a tese e apontou a necessidade de se apoiar a ética
em um fundamento que fosse verdadeiro e genuíno, ou seja, a compaixão.
Contudo, mesmo percebendo as fragilidades dos sistemas
precedentes, Schopenhauer sofreu influências do idealismo kantiano e da
teoria platônica. Tais influências tornam-se visíveis em suas obras,
principalmente no que diz respeito à teoria das Ideias platônicas, bem como a
coisa em si kantiana. A última serviu de reflexão para que Schopenhauer
delimitasse a dimensão da Vontade, tendo em vista que o que Kant chamou de
coisa em si, Schopenhauer chamou de Vontade, e o que aquele chamou de
fenômeno, esse chamou de representação. No entanto, mesmo sendo adepto
de alguns conceitos kantianos, Schopenhauer construiu seu próprio
pensamento.
A teoria filosófica de Schopenhauer não toma como pressuposto
nenhuma teoria prescritiva, deontológica ou teleológica. Em sua teoria não
existe apelo a sistemas que prescrevem regras de conduta para os indivíduos,
haja vista que seu pensamento segue uma via analítica e o seu método de
explicação para acessar o enigma do mundo não tem uma finalidade de tornar
homens melhores devido a tais prescrições.
A compaixão (Mitleid) está na base de sua teoria moral, vista como
algo intuitivo e que não precisa de nenhuma explicação racional. Em razão
dessa perspectiva, Schopenhauer rompe com o idealismo clássico vigente na
época, pois o filósofo encara a compaixão como um sentimento espontâneo
que rompe a barreira da individualidade. Mesmo discordando dos sistemas
precedentes, Schopenhauer ainda é considerado o último dos idealistas, visto
que ainda carrega traços de um idealismo transcendental e parte da realidade
fenomênica para explicar o mundo e a realidade na qual estão circunscritos os
indivíduos e, consequentemente, a maneira como os mesmos agem. Desse
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modo, o ponto de partida da teoria schopenhaueriana é o próprio mundo, visto
de dois modos, quais sejam: representação e Vontade. Assim, ele busca
decifrar o mundo partindo do próprio mundo. Para Schopenhauer, a compaixão
é certamente o maior mistério da ética. Para ele, esse sentimento, livre de
qualquer interesse, é a única e verdadeira motivação dotada de valor moral.
Para Schopenhauer, a compaixão é a base de uma ação moralmente
livre e desinteressada. Sendo livre não precisa de nenhuma casuística, pois os
motivos que vem de fora não a afetam. Nesse aspecto, Schopenhauer tenta
ligar teoria e prática. É importante perceber que, em meio ao seu pensamento
único, Schopenhauer faz uma panorâmica acerca dos quatro livros presentes
em sua obra principal, O mundo como vontade e como representação.
Seguindo seu próprio procedimento, faremos uma breve exposição dos quatro
livros presentes na referida obra.
Quando Schopenhauer inicia o seu primeiro livro enunciando que o
mundo é representação, ele já está anunciando o seu ponto de partida sobre
uma explicação unilateral do mundo. Para Schopenhauer, o mundo fenomênico
se constitui a partir das categorias de tempo e de espaço. Ele vê a causalidade
como terceira categoria que, junto com as outras duas, formam as variantes do
princípio de razão suficiente. Schopenhauer utiliza-se do conceito de
representação para mostrar que o horizonte de seu pensamento se refere ao
mundo da vida, mundo este que está circunscrito pelo olhar daquele que
representa, intui, abstrai e conceitua: o sujeito.
Percebe-se que, no primeiro livro de O mundo como vontade e como
representação, existe uma vertente epistemológica na teoria filosófica de
Schopenhauer que está presente nos livros seguintes. Também observamos
que, ao escrever sua tese de doutorado Sobre a raiz quádrupla do princípio de
razão suficiente (1813), em sua primeira versão, o autor trata do conhecimento
e isso pode ser vislumbrado também no primeiro livro de sua obra clássica,
referenciada no inicio desse parágrafo. Existe, ao nosso ver, uma relação de
complementaridade entre essas obras. E ainda podemos observar reflexos de
uma obra na outra, de forma que, para o entendimento da proposta filosófica
de Schopenhauer é necessário um retrocesso à raiz quádrupla, o que será
abordado no primeiro capítulo desta dissertação.
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No segundo livro, Schopenhauer faz sua primeira apreciação sobre o
mundo como Vontade. A partir desse conceito, o autor mostra que a Vontade
como coisa em si se objetiva em fenômenos. De acordo com a filosofia
schopenhaueriana, toda a natureza, passando pelo reino mineral até o animal,
é manifestação do Em-si do mundo. Essa objetivação da Vontade, segundo
Schopenhauer, traz consigo uma luta constante entre os indivíduos, tendo
como finalidade a afirmação da espécie. Isso mostra a importância que
Schopenhauer alude ao tema do corpo tanto do ponto de vista da
representação, como da Vontade1, que é um dos conceitos importantes deste
trabalho, o qual iremos abordar de maneira mais detalhada no primeiro capítulo
desta dissertação. Assim, abordaremos o tema do corpo na medida em que
esse puder contribuir para um melhor entendimento a respeito do conceito de
representação e Vontade.
Para Schopenhauer, o ponto de partida para o conhecimento dá-se por
meio do nosso organismo: é a partir das funções cerebrais que captamos os
dados do mundo exterior e que os sintetizamos na percepção, de forma que
sem os sentidos não seríamos capazes de recolher, através do entendimento,
as categorias necessárias para entender a finitude humana. Para Barboza
(1997, p. 33), “de que adianta um cérebro sem olhos, braços e pernas, ou
braços e pernas e olhos sem cérebro?”, o mundo não poderia existir sem essas
funções, pois quem representa o mundo é o sujeito; Ele diz ainda: “não somos
cabeças de anjo aladas, espíritos vaporosos destituídos de corpo, mas
possuímos intricadas ramificações nervosas e uma central no crânio que as
coordena” (BARBOZA, 1997, p. 33).
Schopenhauer afirma que é por meio do corpo que podemos conhecer
o núcleo da nossa própria essência, assim como a de outros corpos que se
objetivam mediante os atos da Vontade: “A ação do corpo nada mais é senão o
ato da vontade objetivado, isto é, que apareceu na intuição.”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 157). Assim, o corpo é, para Schopenhauer, a
própria vontade manifestada, ímpeto cego que se torna visível através da
vontade de vida (Wille zum Leben).
1 Doravante, o termo Vontade com maiúscula, indica a essência do mundo inteiro, enquanto
que, o termo vontade com minúscula, indica a particularidade de cada indivíduo, isto é, o núcleo de cada individualidade.
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Desse modo, para Schopenhauer, a Vontade é potência que se
manifesta na natureza e desejo que move os homens. Contudo, antes de se
objetivar em variados fenômenos ou na pluralidade dos indivíduos, a Vontade é
considerada por Schopenhauer como imutável, ou seja, não está condicionada
ao tempo, ao espaço, pois, estando fora destas categorias, ela pode ser
considerada como formas de Ideias platônicas. Essas formas são arquétipos
das coisas particulares, ou melhor, essas formas formam um intermédio entre a
Vontade una e a pluralidades dos indivíduos. Para Schopenhauer, a Ideia em
seu primeiro momento é apenas objetidade imediata e por esse motivo é
adequada à coisa em si, sendo nesse momento precisamente Vontade na
medida em que ainda não se tornou representação.
Portanto, aquilo que Platão chamou de eidos ou Ideia, Schopenhauer
irá chamar de primeiro grau da objetivação da Vontade. Assim, o autor faz uma
diferenciação entre os termos objetidade e objetividade. O primeiro termo,
objetidade, está relacionado à Vontade que ainda não se objetivou, ou seja,
não se tornou representação. Por esse motivo ela pode ser comparada à coisa
em si kantiana. Nesse momento, não temos acesso ao seu verdadeiro núcleo.
Quando o autor usa o segundo termo, objetividade, podemos inferir que é por
meio do princípio de razão que é possível conhecer as concreções particulares
dos indivíduos. Esses termos, objetidade e objetividade, serão melhor
esclarecidos quando estivermos desenvolvendo os conceitos de representação
e Vontade, posto que o tema do corpo liga-se diretamente a tais conceitos, pois
o corpo é, para Schopenhauer, um objeto entre objetos, visto também como um
veículo de ligação entre as vontades particulares.
No terceiro livro, Schopenhauer continua sua elaboração filosófica,
mostrando que a Vontade é mediada por meio da percepção, nossa única via
de aproximação à coisa em si se dá por meio da manifestação da Vontade, de
maneira espontânea, imediata, mediada pela intuição, onde se pode de
maneira desinteressada via contemplação estética contemplar aquilo que está
para além dos fenômenos, das aparências, livre de enganos e independente do
princípio de razão suficiente.
Schopenhauer expõe, ainda no terceiro livro, que o objeto a ser
vislumbrado é a experiência estética, que tem como cerne a contemplação das
Ideias como uma atividade fundamental para vislumbrar o belo em suas mais
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variadas formas. Esta experiência estética, que pode ser intuída em sua pureza
por meio da arte, serviu para impactar artistas, músicos, poetas, arquitetos e
escultores. Segundo o autor, “o espectador se funde à natureza e desaparece”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 14). Noutras palavras, a contemplação estética
não se prende a conceitos, abstrações e a representações que são produzidas
pela racionalidade e, como tal, são independentes do princípio de razão.
Portanto, “a Ideia, ao contrário, não se submete a esse princípio; por
conseguinte não lhe cabem pluralidade nem mudança” (SCHOPENHAUER,
2005, p. 236).
No momento da contemplação do belo, o indivíduo liga-se diretamente
ao objeto, e, contemplando este, se livra de sua individualidade e atinge as
Ideias, arquétipos imutáveis, mas isso só acontece em pequenos espasmos de
segundos, onde ambos, contemplador e contemplado, tornam-se um. Nesse
movimento, ambos não se reconhecem, isto é, estão livres em relação aos atos
movidos por motivos. Nesse ponto, o contemplador, se compararmos ao
prisioneiro da caverna de Platão, livra-se das amarras, e sua visão não mais
turvada percebe que existe algo que pode ser vislumbrado para além das
sombras. Esta unidade pode ser comparada à verdadeira Ideia, em contato
com a qual nos tornamos puro sujeito do conhecimento. Assim, para Marie
José Pernin:
Mas Schopenhauer permanece atento ao Platão da contemplação mística, devoto da Unidade, [...] que descreve como as asas da alma se expandem diante de um belo objeto, ao Platão que nos julga aprisionados no mundo com a nossa cumplicidade e que nos propõe a libertação. (PERNIN, 1995, p. 22)
Portanto, é neste ponto que Schopenhauer é adepto da metafísica do
belo, bem como à apreensão da doutrina das Ideias que são propriamente o
objeto da arte. Nesse sentido, a arte seria o primeiro meio de supressão da
vontade de um modo geral, ela nos afasta do mundo fenomênico, mesmo que
temporariamente, considerando que é por meio da contemplação artística que
podemos suspender a individualidade. Negando a vontade, neutralizamos a
torrente do sofrimento. Nesse momento, o querer individual é suspenso em
função de um querer maior e universal.
O quarto livro da obra, em relação aos três primeiros livros, é para o
autor o mais importante. Nele Schopenhauer trata o tema da ética, ou seja, sua
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proposta é descrever o modo de agir dos indivíduos. Esse livro retoma o
mundo como vontade, todavia, passa a descrever o momento da negação ou
afirmação das vontades. Nessa perspectiva, Schopenhauer entra em contato
com a imagem do herói, e, em seguida, com a do asceta, momento de renúncia
e abnegação da vontade. O autor esclarece que essa abordagem não terá
como objetivo analisar ou estabelecer um recurso universal. Contudo, o que
importa é a relação entre a ética e as ações do homem. Nas palavras de
Schopenhauer:
// A última parte de nossa consideração proclama a si mesma como a mais séria de todas, pois concerne às ações do homem, objeto que afeta de maneira imediata cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou indiferente. Muito pelo contrário, referir tudo o mais à ação é tão conforme à natureza do homem, que ele, em toda investigação sistemática, sempre considerará a parte relacionada ao agir como resultado da totalidade do conteúdo da investigação, pelo menos na medida em que este o interessa, e, assim, dedicará a essa parte, mesmo às expensas de outras, a sua mais séria atenção. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353)
Para Schopenhauer, sua investigação sobre as ações humanas segue
em conformidade com seu pensamento único, mas a última parte de sua
investigação não tem como meta prescrever regras de conduta, nem ao menos
falar de um dever ser. Para Schopenhauer, não existe um mandamento, uma
lei universal que determine a maneira como os indivíduos devem agir. Desse
modo, a filosofia para Schopenhauer deve sempre permanecer teórica, deve
manter uma postura contemplativa, não importa qual seja seu objeto de
investigação. Para ele, a filosofia deve sempre inquirir ao invés de prescrever
regras de conduta. Isso mostra que sua doutrina é descritiva e não prescritiva.
Não se deve esperar ou criar expectativas em relação a qualquer sistema
moral, pois esses não podem criar caracteres nobres ou virtuosos. Ao
contrário, Schopenhauer se propõe a mostrar que os nossos atos são espelhos
daquilo que nós mesmos somos, de modo que analisar as ações humanas é
uma forma de tentar entender o próprio homem.
Tendo essas breves considerações em nosso horizonte, estruturamos
nosso trabalho como se segue. No primeiro capítulo, analisamos a tese de
doutorado de Schopenhauer, A quádrupla raiz do princípio de razão suficiente
(1813), tendo em vista que esta obra foi propedêutica para a elaboração de sua
obra máxima, O mundo como vontade e como representação. Em sua tese,
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Schopenhauer discorre acerca da realidade fenomênica e usa as categorias de
tempo, espaço e causalidade para explicar, por meio da representação, a
utilidade do princípio em relação às ciências. Schopenhauer analisa o princípio
de razão e suas quatro raízes distintas, enumerando-as da seguinte maneira:
a) ser; b) conhecer; c) devir e d) agir. A partir de sua tese, Da quádrupla raiz do
princípio de razão suficiente, Schopenhauer segue uma veia epistemológica,
que servirá de embasamento para a elaboração de seu pensamento único, pois
os conceitos de representação e Vontade podem ser melhor entendidos ao se
levar em consideração seu trabalho introdutório.
Na tese, Schopenhauer discorre sobre a raiz do agir que nos guiou por
se tratar do tema da ética apresentado em suas obras O mundo como vontade
e como representação e Sobre o fundamento da moral. Nelas, o autor irá
aprimorar de maneira bem mais detalhada alguns conceitos que foram
trabalhados em sua tese. Seguindo o mesmo itinerário, no primeiro capítulo
apresentamos os tipos de caracteres inteligível, empírico e adquirido. Esses
foram de grande importância para se pensar sobre o que é uma ação dotada
de valor moral e o que são ações que não são dotadas de nenhum valor moral,
ou seja, ações que são motivadas. Schopenhauer considera que o caráter nos
segue do nascimento até a morte. Para o autor, é por meio do caráter que
podemos distinguir a natureza individual de cada ser, uma vez que o tema do
caráter tem fortes imbricações com o modo de agir.
No segundo capítulo, procuramos analisar o percurso da teoria moral
de Schopenhauer sobre a compaixão, ou seja, trabalhamos a compaixão de
maneira mais pormenorizada. Para isso, foi necessário discorrer sobre as
potências antimorais, egoísmo e maldade, tendo em vista que, para o autor,
elas não têm nenhum valor moral. O egoísmo e a maldade, conforme
Schopenhauer, são as duas potências antimorais de maior força. Essas, na
visão de Schopenhauer, turvam os olhos dos indivíduos. Para Schopenhauer, a
única ação que não é motivada é a compaixão e que, portanto, é o que
fundamenta uma ação dotada de valor moral, diferindo-se das potências
antimorais que carregam como axiomas “prejudique a todos se puderes ou aja
somente em benefício próprio”.
Em seguida, abordamos a compaixão como um fenômeno metafísico,
visto que a compaixão aos olhos de Schopenhauer é algo raro e misterioso,
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mas que certamente pode brotar em cada um de nós. Ela é considerada um
enigma, visto que, do ponto de vista da metafísica, vai além do mero fenômeno
da experiência, abarcando todos os seres humanos e animais. O agente
compassivo deve então ir além de todo o individualismo, romper com o véu de
maia e exclamar a fórmula tat tvam asi2, que diz “isto é tu”. Ao pronunciar tal
fórmula, a inseparabilidade entre todos os seres não mais existe, rompe-se
com o véu da ilusão e com o principium individuationis. Nesse momento, não
se faz mais distinção entre eu e o Outro. Surge assim o verdadeiro
reconhecimento que é sentido via sofrimento.
O terceiro e ultimo capítulo inicia-se com a abordagem acerca do
sofrimento, que é de suma importância na teoria schopenhaueriana. O
sofrimento é uma porta de acesso à compaixão e consequentemente ao tema
do reconhecimento. Para Schopenhauer, é por meio do sofrimento que a
compaixão brota em cada um de nós de maneira desinteressada e, em
seguida, liga-se ao reconhecimento, por perceber no Outro ou nos animais
seus sofrimentos.
Em seguida, abordamos o reconhecimento em Hegel, relacionando-o
com a metáfora do senhor e do escravo, elementos necessários para sua
dialética. O reconhecimento em Hegel é um tipo de reconhecimento social, pois
irá servir para marcar traços históricos que, partindo da relação de dominação,
devem ser superados de modo a chegar ao espírito absoluto, ponto de
chegada do reconhecimento social. Esse tipo de reconhecimento tem como
objetivo superar momentos iniciais que, conforme Hegel, são necessários para
que as relações existentes entre dominantes e dominados sejam superadas.
Tal superação ao certo deve chegar ao espírito absoluto. Posto que
nesse momento, o escravo não é mais tutelado. A categoria trabalho lhe deu
garantias para que ele se reconhecesse enquanto sujeito ativo em relação ao
seu senhor. O escravo não é mais visto como coisa e, nesse momento, ele se
torna senhor. Nesse momento, as relações de dominação começam a ser
superadas e surge a sociedade civil, encarregada de abrigar seu povo
garantindo-lhe direitos. A partir dessa relação de mediação, surge o Estado,
2 A expressão “tat tvam asi” foi retirada do livro sagrado dos vedas que significa “isto é tu”.
Explica o rompimento do véu da ilusão (Maia), que insere todos os seres no mesmo macrocosmo.
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soberano, último momento da dialética hegeliana, que abriga e abarca todos os
momentos anteriores, formando assim os processos históricos que movidos por
uma relação dialética compõem o movimento da história.
Em contrapartida, o reconhecimento vislumbrado nesse trabalho tem
outra perspectiva, qual seja: reconhecer o outro indivíduo que sofre por uma via
que é intuitiva e imediata, que conforme Schopenhauer brota em cada um de
nós de modo desinteressado. Este é o fenômeno diário da compaixão. O tipo
de reconhecimento que estamos mostrando é aquele que por meio do
sofrimento o outro se compadece e reconhece esse Outro como se fosse ele
mesmo. É o sofrer com, sofrer junto, e desse modo, a compaixão pode ser
vislumbrada como uma ética do reconhecimento em Schopenhauer.
O reconhecimento implícito em Schopenhauer pelo viés do sofrimento
é diferente do reconhecimento hegeliano. No reconhecimento, tal como vê
Schopenhauer, não há momentos a serem superados, nem um movimento
histórico dialético. O que de fato existe é um “eu” que se compadece e um
“Outro” que sofre. Uma outra diferença, entre o reconhecimento em Hegel e o
reconhecimento em Schopenhauer, é em relação aos animais, pois, para
Hegel, o reconhecimento é entre consciências, e nesse sentido, sendo os
animais desprovidos de consciência, eles não podem ser reconhecidos na
teoria hegeliana. Diferentemente, Schopenhauer que reconhece não só o
sofrimento entre iguais, mas reconhece também o sofrimento dos animais.
Portanto, Schopenhauer foi crítico do sistema hegeliano, tanto do ponto
de vista dialético como do ponto de vista político. Além disso, Schopenhauer
não racionalizou nenhum sistema de pensamento. Embora seu pensamento
seja concebido como unitário, ele segue um via diferente dos seus
contemporâneos, que colocaram a razão como aquela que daria conta de
todas as inquietações e responderia a todos os questionamentos advindos das
incertezas em que passava a humanidade naquela época.
1. OS ELEMENTOS EPISTÊMICOS E METAFÍSICOS DA FILOSOFIA
MORAL SCHOPENHAUERIANA
Este trabalho tem como objetivo analisar a teoria moral
schopenhaueriana por meio das suas obras: O mundo como vontade e como
19
representação (2005), dando ênfase ao livro IV, pois é nele que o autor
apresenta-nos de modo mais amplo as suas considerações acerca do
fenômeno ético, e Sobre o fundamento da moral (2001), escrito em que
Schopenhauer defende a asserção de que a compaixão é o alicerce metafísico
das ações genuinamente morais.
Utilizaremos também como aporte teórico a sua tese de doutorado,
intitulada Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente (1813), pelo
fato das ações humanas também terem sido objeto de estudo de
Schopenhauer quando ele discorre sobre a quarta face do princípio, que
permite com que o sujeito entenda os fenômenos do mundo moral: a raiz do
agir. Esse último conceito permite-nos explicar, a partir da relação entre
motivos e caráter, o porquê de as ações humanas acontecerem por
necessidade e não por liberdade na ótica do “pai do pessimismo”.
A reflexão moral filosófica apresentada por Schopenhauer nas obras
citadas acima nos permitirá compreender em que medida a significação ética
proposta pelo filósofo - mediante o sentimento de compaixão que pode brotar
espontaneamente no sujeito moral ao se deparar com o sofrimento alheio - vê
o outro como uma categoria axiológica fundamental. Nesse sentido, a nossa
investigação irá procurar identificar se a filosofia moral schopenhaueriana pode
ser vista essencialmente como uma ética do reconhecimento, embora tal termo
não faça parte do seu vocabulário filosófico como, por exemplo, o de seu
grande opositor: Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).
É digno de nota que as abordagens contemporâneas que
desenvolveram a problemática da eticidade tendo como fio condutor a ideia de
reconhecimento, como Ricoeur e Axel Honneth, apenas a título de ilustração,
possuem a filosofia hegeliana como ponto de partida para a elaboração de sua
proposta moral. Pelo fato de o autor de A fenomenologia do Espírito ter
abordado o outro como uma peça central de sua ética e de ter sido
inegavelmente o filósofo que aprofundou tal temática, é que destinaremos um
tópico do terceiro capítulo de nosso trabalho à ética de Hegel.
É com base nessa linha de pensamento que acreditamos que a
alternativa proposta pelo autor da metafísica da Vontade pode contribuir para a
nossa ampliação acerca daquilo que se entende por reconhecimento no
escopo da discussão ética contemporânea. Por essas razões é que
20
utilizaremos a reflexão moral filosófica schopenhaueriana com a intenção de
ressignificar metafisicamente o mundo do ethos.
Para tanto, é interessante que esclareçamos inicialmente ao leitor o
que Schopenhauer entende por princípio de razão suficiente, conceito que é
desenvolvido em sua tese de doutoramento, bem como os dois conceitos
constituintes de seu pensamento único, a saber, de que o mundo é Vontade e
Representação. O último ponto que discutiremos neste capítulo diz respeito ao
estudo schopenhaueriano de inspiração kantiana acerca do caráter.
A concatenação dessas noções epistêmicas e metafísicas elencadas
acima nos habilitará depreender um tipo de ação trabalhada na ética de
Schopenhauer: as ações interessadas ou antimorais. Nesse tipo de ação, o
agente, mesmo não promovendo nenhum mal a outrem, não reconhece o outro
como um ser em si mesmo, apropriando-se de uma expressão kantiana, mas
apenas como um meio para atingir o seu interesse particular.
1.1. O princípio de razão suficiente
Em 1813, Schopenhauer escreveu sua tese de doutorado, intitulada A
quádrupla raiz do princípio de razão suficiente; essa escrita ocorreu ainda em
sua fase da juventude, ou seja, cinco anos mais cedo do que sua obra prima
posterior publicada em 1819, O mundo como vontade e como representação.
Essa tese de doutoramento é considerada pelo próprio autor um estudo
propedêutico daquilo que é desenvolvido no primeiro livro de sua obra máxima,
haja vista que os escritos (a tese e o livro I) abordam o aspecto da realidade
que pode ser apreendido pelo sujeito cognoscente, em outras palavras, do
mundo como representação.
O princípio de razão suficiente, na concepção de Schopenhauer
(2008), pode ser considerado como o fundamento de todas as ciências, tendo
em vista que ela (a ciência) é um sistema de conhecimentos que apresenta
conceitualmente um conjunto de verdades encadeadas da realidade
fenomênica, ou seja, do aspecto material do mundo. Assim, tudo aquilo que se
encontra no tempo e no espaço (formas puras de todo objeto) pode ser
apreendido pelo intelecto. A causalidade inteira, que por sua vez refere-se aos
estados de alterações da matéria, está condicionada à atuação deste princípio.
21
Ademais, como reforça Schopenhauer, o princípio de razão suficiente
em relação à noção de causalidade é uma verdade eterna, isto é, todos os
demais princípios estão subordinados àquele, a inteligência, o mundo, e, de
certo modo, tanto os fenômenos da natureza, quanto os fenômenos morais.
Levando em consideração essa linha de pensamento, podemos dizer que as
alterações sofridas pelo lado da realidade constituído de matéria, que são
analisadas pela ciência a partir da relação de causa e efeito, mantém uma
relação de dependência como a atuação do princípio de razão suficiente. Toda
a análise com relação aos átomos e os movimentos, por exemplo, estão
subordinados ao princípio de razão suficiente.
Deve-se ressaltar que essa investigação acerca do princípio, que é
responsável por explicar o porquê das coisas, não é inovação da filosofia
schopenhaueriana. Em sua tese de doutorado, inclusive, há uma apresentação
do modo como os diversos autores da história da filosofia, da Antiguidade
Clássica aos Modernos, trabalharam tal conceito. Em razão da explicação do
princípio schopenhaueriano possuir elo com a crítica que o filósofo alemão fez
às abordagens de outros autores, é que reproduziremos as mesmas avaliações
feitas por Schopenhauer aos filósofos que tornaram o princípio de razão objeto
de estudo.
Platão e Aristóteles teriam apresentado o princípio como uma verdade
evidente por si mesma. Essa conceituação dada pela filosofia platônica e
aristotélica era ingênua e pouco clara3, uma vez que tal definição não
apresentava maiores explicações de como se dava o processo de atuação de
tal princípio na realidade.
De acordo com a filosofia schopenhaueriana, os primeiros filósofos que
efetivamente delimitaram o princípio de razão suficiente com maior clareza
foram Wolff e Leibniz. Os autores em questão determinaram de forma mais
precisa a diferença efetiva do princípio de razão suficiente, haja vista que
ambos deram um estatuto epistemológico ao princípio. Isso significa dizer que
o conhecimento do mundo, seja ele empírico ou racional, pressupõe o
princípio. Para Schopenhauer, Leibniz foi o primeiro que estabeleceu o
3Cf: La cuádruple raiz del principio de razón suficiente. Tradução e prólogo: Eduardo Ovejero y
Maury. Buenos Aires: Editora Losada, 2008, pp. 43-44.
22
princípio de razão suficiente como sendo fundamental para todo conhecimento,
embora este último tenha tomado o princípio no âmbito da física e metafísica.
Leibniz foi o primeiro que formulou o princípio de razão suficiente como um princípio fundamental de todos os conhecimentos e ciências. [...] Em determinadas situações parece indicar a distinção de suas principais significações; porém, não a manifesta expressamente nem a explica com clareza. (SCHOPENHAUER, 2008, p. 57, tradução nossa)
No entanto, Schopenhauer, no § 5 de sua tese de doutorado (2008),
demonstra que o princípio de razão suficiente é uma expressão comum a
muitos conhecimentos dados a priori. Assim, o autor indica a necessidade de
enunciá-lo por meio de uma fórmula, e diz que prefere empregar a wolffiana
como a mais generalizada: “Nihil est sine ratione cur potius sit, quam non sit”,
que se lê: “Nada existe sem uma razão de ser” (SHOPENHAEUR, 2008, p. 41,
tradução nossa).
Se Leibniz foi o primeiro a reconhecer que o princípio é uma peça
fundamental para conhecermos o mundo, para Schopenhauer, Wolff foi o
primeiro filósofo que separou expressamente as duas principais significações
do princípio, a saber, em principium essendi (princípio de ser) e em ratio
essendi (causa). Porém, apesar de tal separação, ele não delimitou de forma
suficiente o princípio de razão suficiente no âmbito da lógica e o restringiu
apenas ao campo ontológico, muito embora Wolff tenha dito “que não se deve
confundir o princípio de razão suficiente do conhecimento com a causa e efeito”
(SCHOPENHAUER, 2008, p. 58).
Em contrapartida, Schopenhauer se afasta de Wolff em relação ao
principium essendi - condição formal de todo e qualquer fenômeno - em
decorrência de ter havido uma determinação incorreta na abordagem wollfiana
no que diz respeito aos “objetos” que são próprios do princípio ontológico
(princípio de razão de ser) com a reação aos objetos que são apreendidos a
partir da relação de causa e efeito (princípio de razão de devir). Wolff, segundo
a perspectiva schopenhaueriana, teria vinculado o vir-a-ser, ou seja, a
mudança, o fluxo e o transitório, com a ratio essendi que, por sua vez, se refere
àquilo que não aceita qualquer mudança, a saber, de tempo e espaço.
Expressando-se em outros termos, ser e devir são princípios distintos, todavia,
Wolff defendeu uma relação equivocada entre ambos.
23
Essa confusão conceitual estabelecida pela filosofia wolffiana, na visão
de Schopenhauer, fez com que os racionalistas que trabalharam com o
princípio de razão suficiente incorressem em dois grandes erros: I – De pensar
que todo juízo para ser verdadeiro precisa sempre de uma razão; II – De
acreditar que toda mudança dos objetos devem ter sempre uma causa.
Com a intenção de evidenciar o equívoco das duas assertivas acima,
Schopenhauer elabora o seguinte questionamento: Por que os lados de um
triângulo são iguais? Em resposta, ele afirma que a igualdade dos ângulos é a
causa da igualdade dos lados. Não se tem nenhuma variação por não se tratar
de nenhum efeito cujas causas devemos investigar.
Nesse sentido, trata-se apenas de um princípio do conhecimento.
Schopenhauer conclui ainda que a igualdade dos ângulos não é a
demonstração da igualdade dos lados, assim como não é a mera razão de um
juízo, ou seja, dos conceitos puros não se deduz que os ângulos são iguais.
Assim, podemos deduzir que o conceito de igualdade dos ângulos não está
contido na igualdade dos lados. Nesse exemplo dos triângulos, não existe
nenhuma relação de necessidade entre conceitos e juízos, somente entre lados
e ângulos, ou seja, a igualdade dos ângulos não é uma razão imediata da
igualdade dos lados, mas somente mediata.
Porém, alerta-nos Schopenhauer, se nos perguntamos por que o
passado é absolutamente irreparável e o futuro inevitável, isso não pode ser
evidente por um encadeamento puramente lógico, ou seja, por meros
conceitos, nem tampouco é obra do princípio de causalidade, pois este
somente impera sobre o movimento das coisas no tempo, não sobre o tempo
mesmo. Isso não se deduz por conceitos, pelo contrário, tal compreensão dá-
se apenas imediata e intuitivamente. Assim, em todos os casos que se aplica o
princípio de razão suficiente, se pode referir o conceito lógico do princípio e sua
consequência natural com a relação de causa e efeito.
Para Schopenhauer, a faculdade cognitiva se manifesta como
sensibilidade exterior e interior (receptividade). A inteligência se decompõe em
sujeito e objeto e nada há fora dessa dimensão, pois todas as representações
são objetos para o sujeito, bem como todos os objetos são representações
daquele que intui. “Ser objeto para o sujeito e ser nossa representação é o
mesmo” (SCHOPENHAUER, 2008, p. 69, tradução nossa). Se no começo do
24
primeiro livro de sua obra, O mundo como vontade e como representação
(2005), o autor afirma que o mundo é representação do sujeito, então existe
pelo menos uma verdade que podemos afirmar a priori: sujeito e objeto formam
uma relação indissociável.
Para Schopenhauer (2008), o princípio de razão suficiente é o mais
geral, pois ele torna o conhecimento mais evidente, servindo, assim, para
fundamentar as representações. Por acreditar que existem tipos distintos de
representação, as intuitivas e as abstratas (que explicaremos quando
estivermos a tratar especificamente do conceito de representação), o filósofo
divide o princípio de razão suficiente em quatro modalidades diferentes e o
delimita em raízes que são: (a) do devir, (b) do conhecer, (c) do ser e (d) do
agir.
É importante salientar que se trata de um mesmo princípio que se
apresenta de modo distinto na realidade fenomênica, dependendo do tipo de
representação que se torna objeto do conhecer humano. Os princípios do agir
e do conhecer possuem uma relevância em especial para a abordagem ética
que estamos a fazer da filosofia schopenhaueriana, em razão de a primeira
explicar “as causas” (motivos) do agir, e de a segunda ser exclusividade dos
homens: o conhecimento abstrato. As ações humanas geralmente seguem a lei
da motivação e os motivos apresentam-se in abstrato nos homens. Daí a
necessidade da exposição do princípio antes de adentramos efetivamente nas
suas considerações morais.
1.1.1. As quatro raízes do princípio de razão suficiente
Na acepção mais geral do princípio de razão suficiente, Schopenhauer
(2008) expõe que tudo que ocorre no mundo material deve ter uma causa ou
um motivo, ou seja, devemos indagar a razão pela qual algo efetivamente
acontece. Podemos dizer, nesse sentido, que tal abordagem é um
questionamento acerca da própria razão do conhecer, tendo em vista que o
conhecimento pergunta pelos porquês do mundo.
Para responder a esse questionamento, Schopenhauer (2008)
apresenta a primeira classe de objetos para o sujeito e a forma como eles se
apresentam para ampliarmos o nosso entendimento acerca do princípio de
25
razão suficiente. Ele toma como ponto de partida a faculdade cognitiva, que
constitui as representações intuitivas, em oposição ao que é meramente
pensado, ou seja, aos conceitos abstratos.
Schopenhauer reformula a epistemologia kantiana e mantêm apenas
tempo e espaço em decorrência de os mesmos explicarem as formas das
representações mediante a sensibilidade interior (tempo) e sensibilidade
exterior (espaço), que mediante a sua atuação simultânea produzem a
causalidade. São essas formas puras da sensibilidade que, dadas
imediatamente ao sujeito, formam o entendimento. As 12 categorias
apresentadas na segunda sessão da Crítica da razão pura, denominada por
Kant de Analítica transcendental, são descartadas pela epistemologia
schopenhaueriana. Nas palavras do filósofo:
Peço, portanto, que atiremos onze categorias janela afora e conservemos tão-somente a de causalidade, porém reconhecendo que sua atividade já é condição da intuição, a qual portanto não é meramente sensual, mas intelectual, e que o objeto assim intuído, o objeto da experiência, é uno com a representação, da qual ainda deve ser distinguida só da coisa-em-si. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 562)
No parágrafo 23 de sua tese, Schopenhauer refuta a demonstração da
aprioridade do conceito de causalidade dada por Kant que expõe a tese da
aplicação universal da lei de causalidade a experiência, vale dizer, do mundo
material. O autor das três críticas apresenta uma distinção entre causalidade e
matéria que, na perspectiva schopenhaueriana, é arbitrária.
Na ótica schopenhaueriana, causalidade e matéria são termos
sinônimos. É necessário que exista uma sucessão em que A é causa e B o
efeito de A, e nunca o contrário, pois B não pode ser causa de A, se assim o
fosse, cairíamos em um círculo vicioso. Para Schopenhauer, “a lei de
causalidade refere-se exclusivamente às mudanças de estado da matéria”
(SCHOPENHAUER, 1988, p. 40, tradução nossa). Isso mostra que a lei de
causalidade refere-se a uma relação entre eventos, ou seja, trata-se do próprio
fazer efeito da matéria. Schopenhauer em Sobre a quádrupla raiz do princípio
de razão suficiente (1813), mais especificamente nos parágrafos 21 e 23, relata
de maneira pormenorizada a lei de causalidade. Em suas palavras:
Pois a independência do conhecimento da causalidade de toda experiência, isto é, sua aprioridade, só pode ser evidenciada a partir
26
da dependência de toda experiência dela; o que, por seu turno, só pode ser demonstrado da maneira aqui indicada, e desenvolvida nas passagens antes citadas, ou seja, o conhecimento da causalidade já está contido na intuição em geral, em cujo domínio reside a experiência; e consiste na referência a priori à experiência, é esta pressuposta como condição e não a pressupõe. Todavia, isso não pode ser demonstrado da maneira ensaiada por Kant, e por mim criticada no ensaio sobre o princípio de razão, § 23. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 55)
Nessa passagem é notório como se dá o alcance da lei de causalidade:
essa tem como característica principal o seu fazer-efeito, no qual há uma
precedência temporal da causa em relação aos seus efeitos, ou seja, o
primeiro dos estados é nomeado causa e o segundo efeito. Para tanto, a
causalidade é definida como categoria espaço-temporal, sinônimo de matéria,
que participa do princípio de razão suficiente. Para Safranski (2011, p. 285):
A categoria da causalidade é, portanto, o autêntico ponto de transição para as coisas e, em consequência, a “condição de todas as experiências” (Bedingung aller Erfahrung). [...] É somente através da categoria de causalidade que nos tornamos capazes de reconhecer os objetos como coisas reais (wirklich), isto é, capaz de realizar (wirkend) uma ação sobre nós mesmos.
Schopenhauer irá delimitar no parágrafo 20 de Sobre a quádrupla raiz
do princípio de razão suficiente (1813) a primeira classe de leitura da realidade
fenomênica e a descreve como “princípio de razão suficiente do devir”
(principium rationis sufficientis fiendi). A este princípio estão submetidas às
representações da realidade de modo objetivo, em referência a toda
experiência.
Desse modo, o princípio de razão suficiente do devir é responsável por
explicar que todos os objetos estão dispostos no tempo e no espaço, estando
sujeitos a mudanças. Isso significa que, quando um ou vários objetos se
apresentam em um novo estado, é necessário que esse tenha sido precedido
por um estado anterior do qual advém uma regularidade. Isso é o que a
filosofia schopenhaueriana chama de sucessão.
Schopenhauer lança mão do seguinte exemplo para esclarecer o que
explicamos acima: se um corpo queima, é necessário que o estado de
combustão tenha sido precedido de outro estado, ou seja, é necessário que o
mesmo tenha entrado em contato com o oxigênio permitindo que essas
circunstâncias produzam necessariamente a combustão.
27
Esse processo é caracterizado como uma mudança de um estado
anterior para um posterior. Tais sucessões percebidas pelo intelecto formam
uma cadeia de acontecimentos. A lei de causalidade, isto é, o fazer-efeito da
matéria, deve carecer de um princípio segundo o qual o aparecimento de um
novo estado é consequência de um estado anterior e assim sucessivamente
até o infinito.
Do mesmo modo, quem compreendeu a figura do princípio de razão que rege o conteúdo daquelas formas // (tempo e espaço), da sua perceptibilidade, isto é, a matéria, portanto a causalidade, também compreendeu a essência inteira da matéria como tal, pois esta é por completo apenas causalidade, do que cada um se convence tão logo reflita sobre isso. O ser da matéria é o seu fazer-efeito. Nenhum outro ser lhe é possível nem sequer pensável. Apenas como fazer-efeito ele preenche o espaço e o tempo. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 49-50)
Portanto, o “fazer-efeito” é a relação entre os estados sucessivos da
matéria em constante permanência, pois a essência da matéria consiste na
unificação do tempo e do espaço, e isso só é possível por meio da causalidade,
“(...) causalidade, matéria, efetividade - é algo uno, e o correlato desse uno é o
entendimento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 590).
Dando continuidade, Schopenhauer denomina a segunda classe de
representações de “princípio da razão suficiente do conhecer” (principium
rationis sufficientis cognoscendi). Essa classe é responsável pela abstração,
uma vez que ela se dá por meio de conceitos na consciência tornando possível
a própria linguagem. Tal princípio é exclusividade dos seres humanos. Os
juízos que emitimos sobre o mundo são derivados do princípio de razão
suficiente do conhecer. Vale ressaltar que Schopenhauer apresenta quatro
tipos de juízos, cuja verdade pode variar.
A primeira verdade disposta é caracterizada como uma verdade lógica
ou formal. Esse primeiro tipo de verdade demonstra que um juízo pode ter por
fundamento outro juízo. Em vista disso, a fundamentação de um juízo por outro
nasce sempre por comparação, conversão, contraposição, ou mesmo por
adjunção de um terceiro juízo. Noutras palavras, para se operar por meio de
silogismos é necessário que um juízo seja o fundamento de outro, tendo como
auxílio um terceiro, pois os mesmos sempre serão relação de conceitos. Por
ser o silogismo apenas um conjunto de regras extraídos do princípio do
28
conhecer que se relacionam entre si, devemos chamar tais juízos bem
concatenados de verdades lógicas.
A segunda verdade, que também pode ser extraída do princípio de
razão suficiente do conhecer, é denominada pelo autor de empírica. Ele (o
juízo) é adquirido por intermédio dos sentidos, por possuir como ponto de apoio
a experiência. Isto comprova que as apreciações conceituais que emitimos
sobre o mundo, a partir da apreensão imediata que o intelecto faz da realidade,
têm sua base na verdade material. Essa verdade, apesar de mediada pelos
sentidos, apoia-se também em conhecimentos abstratos e discursivos, estando
localizada entre a inteligência e a razão. Para Schopenhauer (2005, p. 53),
“toda intuição é intelectual”.
O terceiro tipo de verdade abordado pela filosofia schopenhaueriana é
denominada de transcendental. Trata-se das formas intuitivas residentes na
inteligência e na pura sensibilidade que são as condições de possibilidade de
toda e qualquer experiência possível. Diferentemente de Kant, que postulou na
Crítica da razão pura que as intuições sem conceitos são cegas, Schopenhauer
diria que não há conceitos sem que o sujeito intua primariamente o mundo.
Assim, podemos defender a assertiva que todo e qualquer juízo de verdade
transcendental possui como suporte a experiência. Essa última é determinada
pelas formas a priori do tempo, do espaço e da causalidade.
A última verdade que Schopenhauer descreve nesta seção da Raiz
quádrupla é a verdade metalógica, cujas condições de possibilidade são
formais e que reside, contudo, na razão; ela também pode ser o fundamento de
um juízo. De modo geral, observa-se que todas essas verdades explicitadas
pelo autor são derivadas do princípio de razão suficiente do conhecer.
O terceiro aspecto do princípio de razão suficiente está relacionado
com as formas puras da aritmética e da geometria, denominado de “princípio
de razão suficiente de ser” (principium rationis sufficientis essendi), sendo que,
na aritmética encontramos a noção de tempo e na geometria a noção de
espaço. Nesse ponto, Schopenhauer define a essência do tempo e do espaço
(forma de todo objeto), que podem ser respectivamente entendidas como
sucessão e posição.
No tempo, é necessário que se faça uma relação com o momento
anterior, isto é, aquele momento é condição indispensável para o momento
29
posterior, pois assim sendo, só podemos chegar ao momento seguinte quando
o primeiro desapareceu. Percebemos esse fluxo temporal quando estamos
tratando dos números. Para chegarmos ao número dez, por exemplo, temos,
que ter passado pelo seu antecessor, e assim, sucessivamente. Em
contrapartida, na geometria não encontramos sucessão, mas apenas formas
que se posicionam em um determinado lugar. Ambas as formas são dadas
aprioristicamente ao sujeito para que o seu entendimento apreenda os estados
de alteração da matéria.
O quarto e último aspecto do princípio de razão suficiente relaciona-se
com as ações humanas e seus motivos, pois em todas as resoluções se
pergunta os porquês de um determinado acontecimento moral, ou seja,
pergunta-se pelos motivos que impulsionaram os indivíduos a agirem de uma
determinado modo na relação com os outros humanos em um mundo que lhe é
próprio, o mundo da moralidade. Este princípio recebe a denominação de
“princípio da razão suficiente do agir” (principium rationis sufficientis agendi).
Schopenhauer faz uma interpretação da realidade a partir dos motivos
(circunstâncias externas) e das próprias percepções internas com relação aos
atos volitivos. Dito de outro modo, o princípio de razão suficiente do agir atua
no mundo do ethos para explicar as “causas” externas (os motivos) que,
conectadas ao caráter – conceito que esclareceremos no último tópico deste
capítulo – produzem necessariamente um determinado tipo de ação. Percebe-
se com nitidez que a atuação deste último princípio está ligada ao problema da
ética e seus desdobramentos na teoria moral schopenhaueriana em virtude do
sujeito querente marcar a sua efetividade interna em relação ao seu agir.
Destarte, é por intermédio das quatro raízes do princípio de razão
suficiente que se pode entender a realidade. Trata-se de um princípio soberano
dentro da esfera fenomênica, seja pela atividade perceptiva do sujeito, seja de
um modo prático e científico, seja pra entender as ações humanas. Só duas
coisas escapam de sua jurisdição: ele mesmo, pelo fato de já ser pressuposto
para explicar toda a realidade fenomênica, e a coisa em si. Dada essa
apresentação propedêutica da filosofia schopenhaueriana, no que toca a
exposição do princípio, podemos passar agora para os dois conceitos que são,
segundo Schopenhauer, os dois lados inseparáveis do mundo: Representação
e Vontade.
30
1.2. Os conceitos de representação e vontade
Neste tópico, temos por objetivo analisar os conceitos que juntos
constituem a totalidade do mundo na ótica schopenhaueriana: primeiro, sob o
prisma daquilo que se mostra enquanto imagem ao sujeito, aquilo que está
inserido no tempo e no espaço e na causalidade que, por sua vez, forma o
princípio de razão suficiente, ou seja, apresentaremos o mundo sob a
perspectiva do fenômeno kantiano, noutras palavras, da representação.
No segundo momento, abordaremos o aspecto imaterial e imanente do
mundo, aquilo a que não cabe nenhuma forma, o pulso cego, irracional e
desprovido de finalidade que pode ser encontrado em toda natureza, a saber,
trataremos da Vontade. Trata-se respectivamente do conceito de fenômeno e
coisa em si kantiana, redefinidos sob a ótica da visão de mundo
schopenhaueriana. Faz-se necessário continuarmos a apresentar a
epistemologia do autor de Sobre o fundamento da moral bem como o aspecto
metafísico de seu pensamento, uma vez que é a partir desses pontos que
adentramos aos meandros de sua ética.
1.2.1. Do mundo como Representação
A frase de abertura da obra magna de Schopenhauer diz respeito à sua
primeira grande tese: “o mundo é minha representação”. Trata-se de uma
verdade tão certa e clara. Verdade essa de que todo o mundo se apresenta
para o indivíduo quando o mesmo abre os olhos, embora seja apenas o
homem o único que consegue abstrair essa realidade, que tal assertiva não
necessita de prova. Toda a realidade empírica que aparece enquanto imagem
ao sujeito cognoscente existe apenas enquanto sua representação.
Torna-se-lhe claro e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca a terra. Que o mundo a cercá-lo existe apenas como representação, isto é, tão-somente a outrem, aquele que representa, ou seja, ele mesmo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43)
O mundo que nos cerca existe somente como representação pelo fato
de o sujeito ser o sustentáculo do mundo, posto que a realidade inteira existe
31
em uma relação indissociável com o sujeito: “Tudo o que pertence e pode
pertencer ao mundo está inevitavelmente investido desse estar-condicionado
pelo sujeito, existindo apenas para este. O mundo é representação”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 44).
Segundo essa linha de pensamento, o sujeito é aquele que dá sentido
ao mundo e que deve interagir com os objetos pertencentes a este, pois o
mundo é representação de quem conhece e representa, ou seja, o sujeito.
Portanto, o mundo como representação depende tanto do sujeito, como do
objeto. Estas duas metades são indissociáveis, possuindo sentido uma em
relação à outra. Como afirma Schopenhauer:
Contudo, caso aquele único ser desaparecesse, então o mundo como representação não mais existiria. Tais metades são, em consequência, inseparáveis, mesmo para o pensamento: cada uma delas possui significação e existência apenas por e para a outra; cada uma existe com a outra e desaparece com ela. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 46)
Essa inseparabilidade é necessária para vislumbrar o mundo como
representação e como Vontade, ou seja, é necessário entender que o sujeito
do conhecimento é operante. Só ele possui as três formas puras do
conhecimento – que são dadas a priori, isto é, tempo, espaço e causalidade –
que unidas formam o princípio de razão suficiente. O mundo como
representação existe apenas em relação ao sujeito. Nas palavras de
Schopenhauer:
Aquele que tudo conhece mas não é conhecido por ninguém é o SUJEITO. Este é, por conseguinte, o sustentáculo do mundo, a condição universal e sempre pressuposta de tudo que aparece, de todo objeto, pois tudo o que existe, existe para o sujeito. Cada um encontra-se a si mesmo como esse sujeito, todavia, somente na medida em que conhece, não na medida em que é objeto do conhecimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 45, grifo do autor)
Deve-se ter em mente que o sujeito, aquele que conhece e não é
conhecido por ninguém, apreende toda a realidade empírica por intermédio do
“corpo”. Tal conceito é fundamental para compreendermos as considerações
epistêmicas schopenhauerianas, em razão de haver uma precedência do corpo
sobre o próprio entendimento. Ao discorrermos sobre a apreensão da realidade
fenomênica, a partir das formas puras do objeto (tempo e espaço), já
pressupomos a existência de um corpo que também é considerado objeto,
32
porque também sofre as alterações da matéria como qualquer outro fenômeno.
No entanto, trata-se de um tipo especial de objeto, a saber, objeto imediato.
Neste sentido digo que o corpo é CONHECIDO imediatamente, é OBJETO IMEDIATO. Todavia, aqui não se deve tomar o conceito de objeto no sentido estrito do termo, pois, por meio do conhecimento imediato do corpo, que precede o uso do entendimento e é mera sensação dos sentidos, o corpo mesmo não se dá propriamente como OBJETO, mas, antes, os corpos que fazem efeito sobre ele. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 63, grifos do autor)
Trata-se de um objeto imediato pelo fato de o corpo sentir as próprias
modificações sofridas pelos estados de alterações da matéria, isto é, o seu
fazer-efeito, sem a necessidade de intermediação do entendimento. Nesse
sentido, podemos afirmar que o corpo é o próprio ponto de partida para que o
sujeito intua o mundo, pois “[...] os corpos animais são OBJETOS IMEDIATOS
do sujeito; a intuição de todos os outros objetos é intermediada por eles”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 53, grifos do autor).
É por essas razões mencionadas acima que Schopenhauer apresenta
o corpo como uma condição necessária para que o sujeito possa vir a
representar o mundo à sua volta. Mas o que vem a ser representação na ótica
schopenhaueriana? Ela é tudo que aparece como imagem para o
entendimento. Em outras palavras, trata-se de uma figura que o intelecto capta
de modo imediato quando o indivíduo abre os olhos. É digno de nota que o
conceito de representação possui alguns sinônimos que lhe são correlatos.
Quando Schopenhauer usa termos como objeto, fenômeno e
aparência, por exemplo, devemos ter em mente que é sobre o aspecto
representacional do mundo que o autor está a dissertar. Tal cognoscibilidade é
regida pelo princípio de razão suficiente e suas quatro raízes, já trabalhadas
nos tópicos 1.1 e 1.2 deste trabalho.
Ao se referir ao mundo como representação, Schopenhauer mostra
que existem dois lados essenciais, que são inseparáveis e necessários, um
desses lados é o objeto, cuja forma é dada no tempo e no espaço e que tem
como decorrência a pluralidade. O outro lado é o sujeito que não está
circunscrito nem ao tempo e nem ao espaço, pois é o único que representa o
mundo. Isso mostra que, para Schopenhauer, esses dois lados (sujeito e
objeto) são inseparáveis, isto é, cada uma dessas partes possui existência
somente por e para outra.
33
Segundo Schopenhauer, “onde começa o objeto, termina o sujeito”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 46). Essas partes se limitam imediatamente,
sendo que esse limite pode ser mostrado por meio do tempo, espaço e
causalidade. Tais partes podem ser conhecidas partindo do sujeito, sem o
conhecimento do objeto, uma vez que já se encontram a priori em nossa
consciência4. Não há uma primazia do sujeito para com o objeto e nem do
segundo para com o primeiro. O que existe é uma relação de coexistência
entre ambos para que exista a possibilidade de falarmos em mundo.
Não se pode deixar de evidenciar que Schopenhauer classifica as
representações em dois tipos, a saber, intuitivas e abstratas. As
representações abstratas constituem-se através dos conceitos que só o
homem pode trazer à sua consciência por intermédio da razão; isso é o que
diferencia, na face da terra, os homens dos animais. Já as representações
intuitivas têm como requisito essencial abranger todo o mundo visível, ou a
experiência em sua totalidade ao lado das suas condições de possibilidade.
A diferença capital entre todas as nossas representações é a entre intuitivas e abstratas. Estas últimas constituem apenas UMA classe de representações, os conceitos – que são sobre a face da terra exclusividade do homem, cuja capacidade para formulá-los os distingue dos animais –, e desde sempre foi nomeado Razão [...] Porém, falaremos exclusivamente das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS. Estas abrangem todo o mundo visível, ou a experiência inteira, ao lado de suas condições de possibilidade [...] Intuição que não é como um fantasma, extraído por // repetição da experiência, mas tão independente desta que, ao contrário, a experiência tem que ser pensada como dependente desta, visto que as propriedades do espaço e tempo, conhecidas a priori pela intuição, valem para toda a experiência como leis com as quais, na experiência, tudo tem de concordar. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 47, grifo do autor)
Nesse trecho de O mundo como vontade e como representação
(2005), Schopenhauer remete o leitor ao apêndice dessa obra, intitulado de
Crítica à filosofia kantiana, o qual evidencia o seu grande ponto de discordância
com Kant. Se, para o autor das três críticas, a intuição apreende apenas
impressões difusas da realidade fenomênica, pelo fato de os dados da
realidade necessitarem de conceitos para ser devidamente categorizados
4Schopenhauer afirma que tempo, espaço e causalidade podem ser encontrados e
completamente conhecidos partindo do sujeito, sem o devido conhecimento do objeto, ou seja, na linguagem kantiana, eles residem a priori em nossa consciência. O autor afirma ainda que esse foi um dos méritos de Kant. Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 46.
34
(afinal, as intuições são “cegas”), para Schopenhauer, ao contrário, a intuição é
intelectual.
Não há nenhuma mediação da razão e muito menos a necessidade de
conceitos para que os animais não humanos ou uma criança que ainda não
adquiriu linguagem, por exemplo, possam representar o mundo à sua volta. A
realidade que aparece ao sujeito (seja ele provido de racionalidade ou não) é
imediata. Os conceitos são apenas representações de representações e, sendo
assim, são oriundos das representações intuitivas. Para que os homens
possam categorizar conceitualmente o mundo representacional é condição
necessária que se tenha tido anteriormente representações intuitivas.
Essa diferença conceitual estabelecida entre representações intuitivas
e abstratas que, segundo Schopenhauer, Kant não soube diferenciar, nos
permite compreender uma diferença metodológica na construção da filosofia de
ambos os autores. Enquanto a filosofia kantiana parte do conhecimento
mediato, refletido, dando à razão um tratamento superior ao que é intuído para
a construção de seu edifício filosófico; o filósofo da metafísica da Vontade parte
do conhecimento intuitivo e imediato para fundamentar a sua visão de mundo.
Percebemos ao ler a filosofia schopenhaueriana que o autor reconhece
que uma das mais importantes descobertas de Kant foi ter pensado um
elemento comum a todos os fenômenos, ou seja, tempo e espaço como as
condições de possibilidade de toda experiência possível. Ambas as categorias
supracitadas podem ser pensadas em abstrato por si e separadas do seu
conteúdo. No entanto, tempo e espaço podem ser intuídos de maneira
imediata. A intuição, como bem enfatiza Schopenhauer, não é extraída por
repetições da experiência, mas é independente desta.
Seguindo essa linha de raciocínio, podemos defender a tese de que a
experiência é dependente da intuição. Tempo e espaço, apesar de serem a
forma de todo objeto, também são considerados um tipo especial de
representações pelo fato de existirem por si mesmas. Em razão de essas
categorias serem desprovidas de conteúdo, tais peças do vocabulário
schopenhaueriano são representadas apenas na intuição. Dito de outro modo:
o sujeito não precisa da experiência para tornar a temporalidade e
espacialidade os objetos puros de sua própria representação.
35
Neste sentido, o que marca a diferença entre o kantismo e a filosofia de
Schopenhauer é a questão sobre como ambos concebem o que é a
experiência. Kant leva para dentro da intuição o pensar quando expõe a
assertiva de que um objeto não pode ser representado. “Schopenhauer se
contrapõe à soberania de uma faculdade de pensar, incapaz de conferir
realidade às intuições, que não pode ser, portanto, o autor da experiência”
(CACCIOLA, 1994, p. 36).
Isso mostra que existe uma diferença no método dos dois filósofos, ou
seja, Kant tem como ponto de partida o que é mediato e Schopenhauer, em
oposição, mostra que seu ponto de partida é a intuição. A partir dessa
afirmação, Kant teria transformado o pensamento racional para garantir a
legalidade de todo conhecimento intuitivo. Nas palavras de Cacciola:
Isolado todo o essencial dos conceitos como tais e abstraído do seu conteúdo, para observar, através dessas formas assim encontradas de todo pensamento, o que seria essencial a todo conhecimento intuitivo, por conseguinte ao mundo dos fenômenos em geral; e, porque este seria encontrado a priori, por causa da necessidade daquelas formas de pensamento, seriam então de origem subjetiva e levaria, justamente, aos fins de Kant. (CACCIOLA, 1994, p. 37)
Em relação a isso, Kant teria reduzido a experiência ao conhecimento
abstrato atribuindo à racionalidade um papel que, na perspectiva
schopenhaueriana, é da intuição. Desse modo, Schopenhauer afirma que o
criticismo kantiano teria deixado de lado a experiência como sendo a única
fonte inexaurível do conhecimento em virtude da sobreposição e da
importância que Kant atribuiu aos conceitos advindos da razão.
Todavia, como alerta-nos Schopenhauer, ainda no âmbito da
representação, sujeito e objeto são termos correlatos e, por conseguinte,
constituem a forma da representação. Levando em conta essa perspectiva, ele
critica as teorias filosóficas que defendem a tese de que existe um sujeito
independentemente do objeto ou mesmo um objeto que independa do sujeito.
Entre tais correntes estão o dogmatismo, o ceticismo, o idealismo de seus
contemporâneos (Fiche, Schelling e Hegel) bem como a própria filosofia da
Natureza.
Primeiramente, Schopenhauer tece críticas ao dogmatismo, o qual,
segundo o filósofo, coloca o objeto como causa e o sujeito como efeito
daquele, partindo, portanto, só de uma perspectiva. Isso se deve ao fato de
36
que, para o dogmatismo, a relação causal pressupõe uma distinção entre
sujeito e objeto. Para Schopenhauer, não deve haver uma separação entre
sujeito e objeto como queria o dogmatismo. Na perspectiva schopenhaueriana,
o ceticismo também incorreu no mesmo erro. Segundo Cacciola:
Tanto contra o realismo dogmático quanto contra o ceticismo adverte Schopenhauer que: em primeiro lugar a lei da causalidade não deriva da experiência; em segundo, objeto e representação não se distinguem; e, ainda, que o ser dos objetos é seu próprio agir (Wirken), já que matéria e causalidade são sinônimas. (CACCIOLA, 1994, p. 30)
Schopenhauer também criticou as teorias filosóficas que partiram
apenas do objeto, isto é, as filosofias da natureza em suas quatro modalidades,
que correspondem às classificações do princípio de razão suficiente. Podemos
confirmar essa linha de pensamento no fragmento abaixo:
Assim, pode-se dizer que, da primeira daquelas classes, ou do mundo real, partiram Tales e os jônicos, Demócrito e Epicuro, Giordano Bruno e os materialistas franceses; da segunda, ou dos conceitos abstratos, Espinosa (valer dizer, do conceito de substância, meramente abstrato e que existe unicamente em sua definição) e, anteriormente, os eleatas; da terceira classe, vale dizer, do tempo, por conseguinte dos números, os pitagóricos e a filosofia chinesa do I-Ching; por fim, da quarta classe, isto é, do ato da vontade motivado pelo conhecimento, partiram os escolásticos, que ensinavam uma // criação a partir do nada, mediante o ato da vontade de um ser pessoal extramundano. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 71)
Para Schopenhauer, dentre estas vertentes filosóficas, o Materialismo
é o mais problemático, posto que, nessa perspectiva, a matéria, incluindo
tempo e espaço, adquire, em sentido próprio, uma independência em relação
ao sujeito. Logo, o materialismo se dispõe a partir de um estado primitivo da
matéria, que por sua vez obedece à lei de causalidade. Neste sentido, “o
materialismo é contestado, porque a existência objetiva de que ele parte já está
condicionada como objeto pelo sujeito e nada mais é que representação”
(CACCIOLA, 1994, p. 31). Contudo, para Schopenhauer, o conhecimento que
se dá por uma modificação da matéria é um erro, pois toda matéria pode ser
modificada pelo sujeito enquanto sua representação.
Renuncio à profunda sabedoria contida nesta construção. Ora, como me é vedada por completo a intuição-da-razão, todas as exposições que a pressupõem têm de ser para mim um livro com sete selos. A coisa vai tão longe que (e isso é estranho confessar), no contato com aquelas doutrinas de profunda sabedoria, sempre me dá a impressão
37
de ouvir somente horríveis discursos vazios e, decerto, extremamente tediosos. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 70-71)
Conforme as considerações acima em relação tanto ao dogmatismo
como ao materialismo, Schopenhauer os vê como problemáticos, como já
explicitamos acima. Isso pressupõe que Schopenhauer não aceita tais teorias,
em virtude da matéria não poder ser dada de maneira incondicional e
independente em relação ao sujeito. Como enuncia Christopher Janaway:
A oposição de Schopenhauer ao materialismo decorre diretamente a partir da discussão entre sujeito e objeto. [...] A falsidade inescapável do materialismo consiste [...] principalmente em seu início em uma petição de princípio, ou seja, a partir de pressupostos de que a matéria é uma coisa simples e incondicionalmente dada, algo presente independentemente, e, portanto, na verdade uma coisa em si. (JANAWAY, 1989, pp. 175-176, tradução nossa)
Diante do exposto, a crítica ao materialismo desempenha um papel
importante na teoria schopenhaueriana, tendo em vista que as analises são
unilaterais por levarem em consideração apenas um aspecto da realidade: o
mundo como representação. Porém, sabemos que existe um aspecto da
realidade metafísica que tais filosofias não levaram em consideração, a saber,
a Vontade: “Assim, o pseudodado objetivo, ponto de partida do materialismo,
nada mais é que uma representação” (CACCIOLA, 1994, p. 32). Schopenhauer
usa a mesma distinção para refutar as teorias que partem apenas do sujeito.
A teoria schopenhaueriana se diferencia tanto das teorias que partem
somente do sujeito bem como as que partem apenas dos objetos. É
exatamente esse ponto que faz de Schopenhauer um filósofo crítico para com
o idealismo transcendental bem como para a filosofia da natureza. Em relação
à sua crítica ao idealismo, é necessário situar as vertentes que surgiram depois
do idealismo de Kant, ou seja, os filósofos pós-kantianos. Nessa envergadura
podemos citar Fichte, Schelling e Hegel.
Para Schopenhauer, sujeito e objeto são termos correlatos em virtude
de os olhos do sujeito serem os intermediadores indispensáveis para o
conhecimento: sem sujeito, o mundo não seria concebido. Schopenhauer
enuncia: “pois o mundo é absolutamente representação, e precisa, enquanto
tal, do sujeito que conhece como sustentáculo de sua existência”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 75).
38
Fichte, primeiro e mais importante discípulo de Kant, também foi alvo
de críticas de Schopenhauer. A filosofia fichteana parte de uma refomulação do
criticismo kantiano no que diz respeito ao conceito de coisa em si, trabalhado
pelo seu mestre na Crítica da razão pura, para a formulação de um dos
principais conceitos. Fichte, na visão de Schopenhauer, concebeu que o “Eu”
poderia dar conta de toda a realidade, seja ela espiritual ou material; trata-se
de um “eu” puro, universal, transcendental ou absoluto. Cada individualidade,
ou seja, cada eu empírico em sua particularidade desenvolver-se-ia a partir de
um Eu puro, no qual poderia existir uma divindade infinita.
Tal processo de absolutilização do “eu” faz parte de uma cadeia infinita,
sendo um processo ascendente que não finda, porque caso se findasse
apagar-se-ia a vida dessa divindade infinita e só restaria o nada. Porém, Fichte,
ao propor essa idealidade infinita, justifica por meio do “eu” o mundo material.
Segundo a visão de Schopenhauer, Fichte estaria contrariando a própria teoria
kantiana no que diz respeito à impossibilidade de se falar em Deus, Alma e
Mundo. Noutras palavras, é racionalmente inconcebível dentro de um sistema
de idealismo absoluto que tudo possa ser justificado racionalmente. Desse
modo, Schopenhauer enuncia:
[...] que é a doutrina-do-eu de Fichte e, por consequência, em conformidade com o princípio de razão, faz o objeto ser produzido ou tecido fio a fio a partir do sujeito; e a filosofia da natureza, que, semelhantemente, faz o sujeito surgir aos poucos a partir do objeto mediante o uso de um método denominado construção [...]. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 70)
A contestação schopenhaueriana em relação à doutrina de Fichte é o
fato deste filósofo partir apenas do sujeito. Para Schopenhauer “[...] quando o
sujeito é dado, também é dado de imediato o objeto, e vice-versa”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 78). E ainda:
A filosofia fichtiana, de resto indigna de menção, nos é interessante aqui apenas como real oposição tardiamente surgida ao velho materialismo, que foi a mais consequente filosofia que parte do objeto, como a fichtiana que parte do sujeito. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 79)
Conforme Schopenhauer, Fichte teria colocado o sujeito como algo
essencial, cometendo o mesmo erro dos dogmáticos bem como dos
materialistas que partiram de um único fundamento, seja a partir do sujeito ou a
39
partir do objeto. A crítica schopenhaueriana a Schelling e a Hegel segue a
mesma linha de raciocínio, tendo em vista que ambos os filósofos construíram
os seus sistemas a partir da noção de absoluto.
No entanto, iremos delimitar algumas particularidades do sistema de
Schelling. É importante observar que Schelling assume em seu sistema uma
concepção romântica, pois para ele a natureza é espiritualizada e o espírito
humano atinge a essência do mundo por meio da intuição estética.
Aqui percebemos uma aproximação entre Schopenhauer e Schelling
do que um distanciamento. No entanto, a filosofia da identidade descrita em
sua primeira fase tem um fundamento mais fecundo, esse fundamento é
anterior ao “eu” e ao “não-eu” (referindo-se a Fichte), posto que, o que
Schelling toma como ponto de partida é uma unificação da identidade absoluta,
que se transpõe do eu para o não-eu, para o sujeito, para o objeto, para o
espírito e para a natureza, formando uma unidade indissociável. Essas
considerações aparecem na filosofia da identidade de Schelling, escrito
proveniente da juventude do autor.
Na segunda fase de seus escritos, Schelling aborda o caráter teológico
e coloca Deus em seu sistema como sendo um ser absoluto, a própria auto-
revelação que não se diferencia pelo seu aspecto irracional. Para ele, Deus é a
possibilidade da vontade inconsciente que aspira racionalidade. De acordo com
essa linha de raciocínio, não se pode explicar a passagem de Deus do mundo
ideal ao mundo empírico e contingente por meio de uma proposição lógica,
tendo em vista que ele seria neste caso uma essência heterogênea entre o
perfeito, o temporal, o imutável e o universal.
A passagem de Deus ao mundo ideal só poderá ser explicada por uma
via irracional. Tal mediação só pode ser concebida através de uma concepção
que é explicada mediante um ato irracional da vontade. Por conseguinte, o que
é racional para Schelling é o mundo das ciências, das ideias. Para ele, o
mundo da existência e da realidade é irracional, logo, o primeiro, ou seja, o
mundo das ciências, só é possível através do conhecimento racional, e o
segundo, por ser descrito unicamente tendo como base a experiência.
Segundo Bernadette Siqueira Abrão (2004, p. 343), é necessário que
Schelling diga “que a natureza seja o espírito visível, e o espírito, a natureza
invisível”. Desse modo, Schelling pretende desvincular o “eu” do absoluto,
40
elaborando uma filosofia da identidade, pretendendo, com esta, sanar a
problemática da diferença, tendo em vista que a pluralidade dos seres finitos
será introduzida no recôndito da identidade absoluta, caracterizada por
Schelling como sendo Deus:
Com isso, o que Schelling pretende é solucionar o problema da diferença – a pluralidade dos seres finitos – introduzindo-a no interior da própria identidade absoluta. Esta é agora denominada Deus, que tem nele mesmo a diferença entre sua existência e seu fundamento, sua natureza. Diferença na identidade, esse fundamento se destaca do próprio Deus: é o “fundo sem fundo”, o mundo sensível e finito, o homem e sua liberdade – em suma, o mal. Mas, alcançada essa situação, é possível o bem, isto é, o regresso ao absoluto. (ABRÃO, 2004, p. 345)
Portanto, o sistema de Schelling abarca duas fases. A primeira condiz
com sua filosofia da identidade e a segunda com a sua filosofia da liberdade,
isto é, o espírito, o sujeito e o eu são o princípio de tudo. Desse modo,
Schelling continua adepto do idealismo. É por esse motivo que seu idealismo
pode ser considerado estético, pois a unidade, a identidade profunda entre
natureza e espírito, pode ser apreendida por uma intuição estética expressa
através de uma obra de arte pelo gênio que é o único capaz de captar a
essência da arte e, assim, atingir e revelar a verdadeira realidade absoluta.
Nesse caso, não existe uma separação entre natureza e espírito, objeto e
sujeito, que são unidades de uma multiplicidade.
Como base no que foi acima citado, podemos inferir que em algum
momento Schopenhauer se identifica com o idealismo estético de Schelling em
relação à natureza estética e a não separação entre sujeito e objeto quando se
dá a fruição do belo. Assim, o sistema que parte apenas do sujeito é
inadequado, de onde provém sua crítica a Fichte. Para Schelling, vida e
liberdade constituem a verdadeira realidade. Schelling entende que a filosofia
transcendental e a filosofia da natureza são complementares, pressupondo que
é possível percorrer o caminho nessas duas direções, pois assim pode-se
construir a unidade sujeito-objeto tanto em um polo como em outro.
O terceiro alvo das críticas de Schopenhauer é Hegel. Com ele,
Schopenhauer é mais duro e severo. No prefácio da segunda edição de O
mundo como vontade e como representação, ele aponta que Hegel é um
‘charlatão’, pois, nessa época, brilhava como herói que articulava em sua teoria
aspectos históricos.
41
Para se entender o absoluto hegeliano, é necessário que o espírito
retorne para o em si, para sua autoconsciência, para, posteriormente, desvelar-
se por meio da cultura, da ciência, da religião, da arte e da filosofia. Nesse
sentido, o que consiste o absoluto hegeliano? Para Hegel (1997), o absoluto é
a afirmação dos processos históricos, a razão como eixo central, o Estado
como condição de superação do indivíduo e da sociedade civil: “É assim que
este nosso tratado sobre ciência do Estado nada mais quer representar senão
uma tentativa para conceber o Estado como algo racional em si” (HEGEL,
1997, p. 37). Noutras palavras, essa consideração hegeliana sugere uma
imbricação entre o real e o racional; isto implica que o filósofo considera tanto o
universo espiritual como o natural. Nas palavras de Hegel:
Com efeito o racional, que é sinônimo de Ideia, adquire, ao entrar com a sua realidade na existência exterior, uma riqueza infinita de formas, de aparências e de manifestações, envolve-se, como as sementes, num caroço onde a consciência primeiro se abriga mas que o conceito acaba por penetrar para surpreender a pulsação interna e senti-la bater debaixo da aparência exterior.(HEGEL, 1997, p. 36)
Portanto, a filosofia hegeliana tem um caráter dialético, que está
subordinado à história. Esse é um dos aspectos criticados por Schopenhauer
no sistema hegeliano. O autor de O mundo como vontade e como
representação critica a atitude de Hegel de colocar a razão como princípio
norteador e absoluto que explica o mundo da vida, tomando como base a
historicidade. Para Schopenhauer, a tentativa de legitimar o progresso numa
apreensão totalizante da história de forma sistemática é um erro. Em
concordância com Schopenhauer, Maurício Garcia Chiarello enuncia:
O ardil da razão hegeliana deve ser compreendido como astúcia do próprio sistema de pensamento que justifica racionalmente o mundo, e não como a verdade da realidade cuja história, ao contrário de culminar no Espírito absoluto, continua sendo dominada pela contradição, pelo negativo e pela dor. (CHIARELLO, 2001, p. 188)
Sob esse ponto de vista, Schopenhauer acredita ultrapassar o sistema
hegeliano, uma vez que tal sistema parece reforçar uma ilusão de se pensar
uma vida feliz que abarque a totalidade do sistema, encontrando, assim, a
universalidade do conceito no espírito absoluto.
Em relação aos idealistas Fichte, Schelling e Hegel, iremos colocar
uma citação na íntegra encontrada na obra Fragmentos sobre a história da
42
filosofia, para fins de entender porque Schopenhauer é tão severo com os
filósofos supracitados:
Digno do seu antecessor, Schelling logo seguiu os passos de Fichte, que, no entanto, abandonou, a fim de anunciar sua própria descoberta, a absoluta identidade do subjetivo e do objetivo ou do ideal e do real [...] Schelling foi sucedido por uma criatura filosófica e ministral: HEGEL, que, com propósitos políticos e equivocados, foi qualificado de cima a baixo de grande filósofo. Um charlatão trivial, insípido, repugnante, repulsivo e ignorante, que, com atrevimento sem igual, garatujou loucuras e disparates, divulgados por seus seguidores mercenários como sabedoria imortal e aceitos como tal por néscios, o que deu origem a um perfeito coro de admiração tão completo como nunca se ouvira antes. (SCHOPENHAUER, 2007, pp. 140-141, grifo do autor)
A citação acima é um indicativo forte da crítica de Schopenhauer aos
idealistas alemães, em especial os que já nos referimos acima. Contudo, suas
críticas giram em torno de se priorizar um absoluto, levando em consideração,
a razão. Por conseguinte, a razão, tão priorizada pelos idealistas é, para a
filosofia schopenhaueriana, secundária, sendo, apenas do ponto de vista
representacional, a ‘maquinaria’ própria do humano capaz de criar conceitos.
Schopenhauer, mesmo sendo o último dos idealistas, marca uma
diferença crucial entre a sua filosofia e a de seus contemporâneos no tocante à
importância que os seus contemporâneos deram à racionalidade, à qual
Schopenhauer opõe-se, pois tinha como ponto de partida a própria apreensão
imediata e intuitiva do mundo como representação, uma vez que o mundo, para
existir, deve estar em constante interação com o sujeito: “Eles se limitam
imediatamente: onde começa o objeto termina o sujeito” (SCHOPENHAUER,
2005, p. 46).
Toda a discussão anterior mostrou que, para Schopenhauer, não existe
um sistema que tenha tido êxito partindo somente de um ponto de vista, ora
partindo do sujeito, ora do objeto, ou até mesmo de um absoluto. Essas
explicações anteriores têm sua abordagem dentro do campo da representação.
Nesse sentido, as prerrogativas exigidas pelo autor para a construção de um
sistema filosófico adequado epistemologicamente têm que levar em conta de
que maneira o mundo se apresenta, seja na perspectiva do sujeito ou na do
objeto.
Todavia, como já pontuamos neste trabalho, o aspecto
representacional do mundo constitui apenas um lado da realidade. O próprio
43
autor afirma que sua exposição acerca da realidade fenomênica, apresentada
de maneira isolada no primeiro Iivro de O mundo como vontade e como
representação, é unilateral e arbitrária. É nesse momento que Schopenhauer
anuncia que o mundo também é Vontade, “pois assim como este é, de um
lado, inteiramente REPRESENTAÇÃO, é, de outro, inteiramente VONTADE”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 45, grifos do autor).
Essa exposição do aspecto metafísico do mundo, ou seja, do mundo
enquanto Vontade, servirá como explicação complementar da abordagem que
estamos fazendo das ações humanas, tendo em vista que é importante que se
compreendam os ímpetos irrefreáveis que conduzem o homem no momento do
agir: o querer. A abordagem das inclinações e disposições volitivas dos
indivíduos que, de maneira muito simplificada, diz respeito ao próprio caráter
dos homens (afinal de contas o querer “determina” aquilo que o indivíduo é), é
um elemento fundamental da ética schopenhaueriana.
1.2.2. Do mundo como Vontade
A segunda grande tese schopenhaueriana, que é a sua correspondente
para aquilo que seria a coisa em si kantiana, é de que o mundo em sua
totalidade também é Vontade. Toda a natureza, passando do reino inorgânico
ao orgânico, é apenas um reflexo do Em-si do mundo que se apresenta à
realidade fenomênica de inúmeras e incontáveis formas. Porém, enfatiza
Schopenhauer, a pluralidade que encontramos no aspecto representacional do
mundo não pode ser atribuída à própria Vontade em razão de ela ser alheia às
leis causais da quais os seus fenômenos estão submetidos. Ela (a Vontade)
não está submetida ao princípio de razão suficiente da qual é o seu fenômeno.
Podemos confirmar essa linha de pensamento no trecho abaixo:
De tudo que foi dito segue que a Vontade como coisa-em-si encontra-se fora do domínio do princípio de razão suficiente e suas quatro figuras, e, por conseguinte, é absolutamente sem fundamento, embora cada um de seus fenômenos esteja por inteiro submetido ao princípio de razão. Ela é, pois, livre de toda PLURALIDADE, apesar de seus fenômenos no espaço e no tempo serem inumeráveis. Ela é una, todavia, não no sentido de que um objeto é uno, cuja unidade é conhecida apenas em oposição à pluralidade [..,] a Vontade é una como aquilo que se encontra fora do tempo e do espaço, exterior ao principium individuationis, isto é, da possibilidade de pluralidade. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 171-172, grifos do autor)
44
A Vontade, essa força cega, una e desprovida de finalidade que
permeia toda a natureza, é o aspecto metafísico que marca ontologicamente
todos os seres existentes na natureza. O homem, considerado o grau mais
bem elaborado do substrato do mundo, pelo fato de ser provido de
racionalidade e de conseguir abstrair a realidade para além da imediatez das
representações intuitivas, também é considerado um “animal metafísico”. Por
ser a Vontade a coisa em si kantiana, como bem enfatiza Schopenhauer, e por
ela estar fora das determinações do princípio de razão suficiente em suas
quatro figuras, podemos afirmar que ela (a Vontade) também não pode ser
apreendida pelo intelecto bem com o númeno kantiano.
Porém, o leitor atento poderia fazer o seguinte questionamento: se a
Vontade não pode ser apreendida pelo intelecto humano por não aparecer
como imagem ao sujeito cognoscente, como Schopenhauer chega à conclusão
de que a coisa em si kantiana e a Vontade são sinônimas? Resposta: por meio
do corpo. Se no livro I de O mundo como vontade e como representação, parte
que trabalhamos no tópico 1.3.1 deste trabalho, o corpo foi apresentado como
objeto imediato do conhecimento, agora ele é apresentado como objetidade da
Vontade. Nas palavras do próprio Schopenhauer:
Ao sujeito do conhecimento que entra em cena como indivíduo mediante a sua identidade com o corpo, este corpo é dado de duas maneiras completamente diferentes: uma vez como representação na intuição do entendimento, como objeto entre objetos e submetido às leis destes; outra vez de maneira completamente outra, a saber, como aquilo conhecido imediatamente por cada um e indicado pela palavra VONTADE. Todo ato verdadeiro de sua vontade é simultânea e inevitavelmente também movimento de seu corpo [...] O ato da vontade e ação do corpo não são dois estados diferentes, conhecidos objetivamente e vinculados pelo nexo da causalidade; nem se encontram na relação de causa e efeito; mas são uma única e mesma coisa, apenas dados de duas maneiras totalmente diferentes, uma vez imediatamente e outra na intuição do entendimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 157, grifos do autor)
Nesse olhar metafísico, desenvolvido no livro II de sua obra magna,
Schopenhauer afirma que o corpo é uma espécie de ‘veículo’ no qual as
volições humanas manifestam-se em ações corpóreas imediatas e irrefletidas.
O indivíduo sente os ímpetos (que estão para além de espaço e tempo e da lei
de causalidade) pulsarem desmedidamente através dos órgãos corporais. Com
45
isso se torna possível compreender porque “a Vontade é apreendida, deste
modo, no corpo e através do corpo” (SCHONDORF, 1982, p. 186).
Nesse sentido, o corpo é “vontade” e “representação”; é o elemento
que permite que o indivíduo decifre o “enigma do mundo”. Trata-se de uma
explicação do corpo por duas vias: externa e interna. A primeira diz respeito ao
corpo enquanto objeto que está entre objetos e que sofre as determinações
temporais, espaciais e causais. A segunda refere-se ao ímpeto que, na maior
parte das vezes, conduz as ações humanas: o querer – pois “querer e corpo
são unos ou, ademais de ser representação, o corpo é Vontade” (BARBOZA,
2003, p. 31). É por isso que se pode dizer que a vontade é o conhecimento
apriorístico que o individuo possui do próprio corpo, assim como o corpo é o
conhecimento a posteriori da própria vontade.
Por conseguinte, o corpo, que no livro precedente e no meu ensaio sobre o princípio de razão chamei de OBJETO IMEDIATO, conforme o ponto de vista unilateral (da representação) ali intencionalmente adotado, aqui, de outro ponto de vista, é denominado OBJETIDADE DA VONTADE. Por isso, em certo sentido, também se pode dizer: a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade. (SCHOPENHAUER, 2005, p, 157, grifos do autor)
Pelo fato de os atos da vontade (vontade pensada aqui como mola
impulsora do querer interior) não diferirem dos atos do próprio corpo é que
Schopenhauer defende a tese que o conhecimento que o indivíduo possui de
si, ou seja, da sua própria existência enquanto um organismo vivo é imediato.
Essa compreensão, que é anterior ao próprio principio de razão suficiente, só o
sujeito é capaz de ter. Isso explica o porquê de as ações humanas, quase que
em sua maioria, não reconhecerem o outro no momento de agir, pois este
último será apenas apreendido como “objeto mediato do conhecimento” nunca
como manifestação da coisa em si.
Dito de outro modo, no que diz respeito ao nosso próprio ser, temos a
compreensão completa de que somos vontade e representação. No que diz
respeito ao outro, o nosso entendimento será “unilateral”, tendo em vista que a
apreensão ocorre apenas de maneira mediata, pois “[...] Só ele é ao mesmo
tempo vontade e representação, já os restantes, ao contrário, são meras
representações, vale dizer, meros fantasmas” (SCHOPENHAUER, 2005, p,
161).
46
Porém, como veremos no segundo capítulo deste trabalho, existe a
possibilidade de os indivíduos agirem de maneira desinteressada para com o
outro ser, reconhecendo assim o outro não como uma representação, um
fantasma, mas como uma manifestação da própria Vontade que, assim como
qualquer organismo vivo, pode sentir carência, sofrimento. Tal prática, porém,
só acontece quando o Véu de maia, ou seja, o princípio de razão suficiente,
não mais encobre os olhos daquele que passa a enxergar o mundo como uno,
em outras palavras, como Vontade. As dicotomias sujeito e objeto, eu e outro,
indivíduo e mundo, são suspensas temporariamente quando o agente
reconhece o sofrimento de outrem como seu.
Todavia, voltemos ao ponto da relação da vontade, abordada aqui
como esse pulso cego e irrefreável existente em cada ser existente na
natureza, com os atos do próprio corpo. As manifestações individuadas da
Vontade agem porque o meio externo (a causalidade) atua sobre os corpos
promovendo desconforto, satisfação e dor no organismo vivo.
Enquadra-se nessa linha de raciocínio duas objetivações
particularizadas do em-si do mundo: os animais e os homens. Os primeiros
agem por meio de excitações, tendo em vista que as ações do corpo não
acompanham o conhecimento, os segundos, por sua vez, agem na maior parte
das vezes por motivações pelo fato das ações virem acrescidas de
conhecimento abstrato. Conforme Schopenhauer:
O pássaro de um ano não tem representação alguma dos ovos pra o qual constrói o seu ninho; nem a jovem aranha tem da presa para qual tece uma teia; nem a formiga-leão da formiga para a qual cava um buraco pela primeira vez [...] Nas ações desses animais, bem como em outras, a Vontade é sem dúvidas ativa; porém se trata de uma atividade cega [...] Portanto, tudo aquilo que nele ocorre tem de ocorrer mediante Vontade, embora aqui a Vontade não seja conduzida por conhecimento, não seja determinada por motivos, mas atue cegamente segundo causas, neste caso chamadas EXCITAÇÕES. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 173-174, grifos do autor).
Tal nomenclatura, a saber, a excitação, é usada para explicar os atos
da Vontade nos animais desprovidos de consciência em razão de os mesmos
não terem a capacidade de representar abstratamente a realidade fenomênica.
Nas ações dos animais, a vontade é completamente ativa, tendo em vista que
47
os mesmos irão agir por impulso para manter o seu corpo vivo; porém, trata-se
de um ato cego, desprovido de conhecimento.
Nos seres humanos, ao contrário, embora as suas ações sejam, em
algum momento, movidas por impulsos, as ações acontecem por motivações.
Isso acontece por duas razões: a primeira possui relação com o fato de o
homem ser a única Objetidade da Vontade dotada da faculdade que produz as
representações abstratas, denominada em todos os tempos pelos filósofos da
razão. Isso permite que os seres humanos, ou seja, as manifestações
particularizadas da Vontade possam dissimular, ou seja, mentir, para conseguir
algo que é de seu interesse. Os animais nesse sentido agem apenas por
instinto, nunca por interesse. Tal característica é própria dos seres dotados de
conhecimento.
A segunda razão possui relação com o fato de o homem ser o único
entre os seres da natureza que possui uma individualidade bem constituída por
possuir características que o distinguem dos demais indivíduos da sua própria
espécie. As ações humanas, que podem ser entendidas como as ações da
vontade particular expressas pelo corpo, são produzidas por motivações que
aparecem à consciência do sujeito cognoscente em uma dada circunstância.
Assim, assinala Schopenhauer, cada fenômeno provido de racionalidade
possui uma marca “cravada” pela própria Vontade:
No grau mais alto de objetidade da Vontade, especialmente no homem, vemos aparecer significativamente a individualidade em grande diversidade de caracteres individuais, noutros termos, como personalidade completa, expressa exteriormente por fisionomia individual fortemente acentuada que abarca toda a corporização. Nenhum animal possui uma individualidade assim em alto grau [...] Na espécie humana, ao contrário, cada indivíduo tem de ser estudado e fundamentado por si mesmo [...] Portanto, cada homem deve ser visto como um fenômeno particularmente determinado e característico da Vontade, em certa medida até mesmo como uma Ideia própria. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 193)
Essa ‘Ideia própria’ existente em cada ser humano é o que
Schopenhauer chama de caráter. De maneira bem simplificada, podemos dizer
que o caráter, embora não possa ser absolutamente conhecido, como veremos
adiante, corresponde à vontade particular do indivíduo.
Deve-se ressaltar que o homem, mesmo sendo a manifestação mais
bem elaborada da Vontade, é apenas mais uma ‘peça’ na natureza. E, na ótica
48
schopenhaueriana, toda a natureza é um reflexo do substrato do mundo,
sendo, portanto, representação. Nesse sentido, podemos inferir que o homem,
mesmo sendo provido de caráter, também segue as determinações causais
(mediante as motivações que incitam o seu querer) como qualquer ser
existente no mundo fenomênico. Confirmam isso as palavras do próprio
Schopenhauer:
Ora, assim como cada coisa na natureza tem suas forças e qualidades que reagem de determinada maneira em face de determinada impressão, e constituem o seu caráter, também o homem possui o seu CARÁTER, em virtude do qual os motivos produzem as suas ações com necessidade. Nesse modo mesmo de agir manifesta-se o seu caráter empírico; por seu turno, neste manifesta-se de novo o seu caráter inteligível, a vontade em si, da qual aquele é o fenômeno determinado. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 372-373)
A consequência direta disso é que, no plano das ações humanas, o
indivíduo não age por liberdade, sequer por uma deliberação da sua
consciência (analisando racionalmente os prós e os contras daquilo que a ação
pode acarretar para si ou para outrem), mas por necessidade. Portanto, toda e
qualquer ação humana, pensada no plano individual, sempre será determinada
pelo seu caráter, que se manifestou a partir das circunstâncias dadas, que
atuaram como motivos para que a ação aconteça.
A fim de verticalizar essa discussão, Schopenhauer apresenta-nos, no
livro IV de O mundo como vontade e como representação, uma análise moral
acerca das três faces do caráter: inteligível, empírico e adquirido. Pelo fato de
as ações humanas, na maior parte das vezes, seguirem a lei de motivação é
que o estudo caracterológico schopenhaueriano torna-se uma peça importante
em nossa investigação.
1.3. A doutrina dos caracteres: inteligível, empírico e adquirido
A doutrina dos caracteres em Schopenhauer é de origem kantiana.
Schopenhauer considera que Kant realizou um grande feito quando apresentou
o seu estudo caracterológico, expondo a relação entre liberdade e necessidade
já presentes em suas obras: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática,
bem como na Fundamentação da metafísica dos Costumes. Essas obras foram
importantes para Schopenhauer porque trouxeram fortes contribuições acerca
49
da doutrina dos caracteres. Apesar de o tema da liberdade e o da necessidade
não serem o escopo central de nossa discussão, faremos uma breve ilustração
acerca dos mesmos pela relação direta que tais conceitos possuem com a
noção de caráter, desenvolvida por Schopenhauer, de traços kantianos:
Considero esta doutrina de Kant da coexistência da liberdade com a
necessidade como a maior das realizações da profundeza humana. Ela e a Estética Transcendental são os dois diamantes na coroa da fama kantiana que nunca esmaecerá. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 95)
A partir dessa consideração feita por Kant5 sobre as questões
concernentes à liberdade e à necessidade, Schopenhauer irá delimitar seu
território em relação à doutrina kantiana. Schopenhauer afirma que não existe
liberdade no mundo fenomênico. Para ele, a verdadeira liberdade encontra-se
no âmbito da coisa em si, ou seja, na Vontade. Assim sendo, só a Vontade é
livre, não estando condicionada ao mundo fenomênico. Por ser o homem
apenas mais uma manifestação da Vontade individuada na realidade, ele
também sofre as mesmas determinações causais como todo e qualquer
fenômeno da natureza. Ora, se o homem é um objeto entre outros objetos
presentes no mundo com todas as suas carências, desejos, sempre motivado
por causas exteriores, então onde reside sua liberdade? Schopenhauer opera
nesse sentido com um conceito negativo de liberdade, pois a liberdade só
poderá ser alcançada num aspecto da essencialidade, não circunscrita no
mundo empírico. O mundo tomado como representação está ligado ao princípio
de razão suficiente e à lei de causalidade, estando, por sua vez, inserido no
reino da necessidade. Nesse sentido, o indivíduo encontra-se impossibilitado
de ser livre. É esse determinismo que condiciona o homem a uma não
liberdade. Em relação a esse determinismo, Schopenhauer no parágrafo 55 de
O mundo como vontade e como representação (2005), exemplifica:
5 A questão da liberdade em Kant é bastante ampla, aplicada ao campo da observação da
terceira e quarta antinomia que são para Schopenhauer tautológicas. Em relação à terceira antinomia, Schopenhauer afirma que essa merece uma atenção especial, pois seu objeto é justamente a ideia de liberdade, uma vez que nesse momento Kant se detém a falar da coisa-em-si apenas como pano de fundo. Para Schopenhauer, entretanto, essa explicação kantiana não é compreensível, visto que Kant não relaciona a coisa-em-si com a Vontade, sendo essa a única que terá como pressuposto a liberdade, e ainda mostra que a coisa-em-si Kantiana seria um árvore sem raiz. Cf: O mundo como vontade e como representação. SCHOPENHAUER, 2005, p. 614.
50
Porém aqui se passa como no exemplo de uma vara posta em posição vertical, em relação à qual, tirada de seu equilíbrio e oscilando de um e outro lado, disséssemos sobre ela: “Pode cair para a direita ou para esquerda”. Ora, o “PODE” possui tão-só uma significação subjetiva e em realidade diz “no que tange aos dados conhecidos por nós”. Pois objetivamente a direção da queda já está determinada de um modo necessário, desde o começo da oscilação. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 376, grifo do autor)
Assim, não se pode falar em liberdade no âmbito fenomênico. Se, para
Schopenhauer, só a Vontade é livre, o homem só poderá ser livre quando
participar da Ideia de humanidade. Essa Ideia pode ser comparada à mesma
de Platão como um arquétipo imutável fora da esfera mundana. “[...] as Ideias
eternas platônicas e as coisas-em-si mesmas estão fora do espaço e do
tempo” (CACCIOLA, 1994, p. 102).
Dessa forma, Schopenhauer compartilha dessa imutabilidade para
relatar o aspecto imutável do caráter inteligível, pois esse caráter “deve ser
considerado como um ato extratemporal, indivisível e imutável da Vontade”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 375). Para explicar melhor a sua doutrina do
caráter, Schopenhauer enuncia que cada pessoa possui um caráter inalterado
e constante. É por intermédio dessa assertiva que se passa a discutir a
maneira como o homem representa o mundo e como essas imagens se dão
em graus variados. Na verdade, se existisse um mundo no qual todos agissem
de igual modo, o mundo não seria um devir constante e diferenciado, seria
apenas, ao que parece, totalmente bom ou ruim e não haveria pluralidade nas
ações humanas.
A partir dessa perspectiva, o autor estabelece a diferença entre os
caracteres e começa delimitando o que seria o caráter inteligível. Trata-se de
uma característica única, algo inato, pois, ao nascer, o homem já traz uma
marca deixada pela própria Vontade individuada, uma essência que é imutável.
Como relata Schopenhauer:
O conjunto de seus atos, de acordo com suas manifestações exteriores, determinadas pelos motivos, não poderia acontecer nunca de outro modo, senão de acordo com este caráter individual imutável: como alguém é, assim tem de agir. Por isso, para um indivíduo dado, em cada caso individual dado, é possível simplesmente só uma ação: “operari sequitur esse”. A liberdade não pertence ao caráter empírico, mas tão-somente ao inteligível. O “operari” de um homem dado é determinado, necessariamente, a partir do exterior pelos motivos e a partir do interior pelo seu caráter. Por isso, tudo o que ele faz
51
acontece necessariamente. Mas no seu “esse”, aí está a liberdade. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 96)
Diante do exposto, Schopenhauer transfere a liberdade para a
Vontade. Assim, infere-se que o indivíduo enquanto fenômeno não é livre, visto
que está preso às mesmas leis que sofre toda e qualquer manifestação
fenomênica da Vontade. Dessa forma, não é possível falar em liberdade no
campo representacional, tampouco faz sentido afirmar que o homem é uma
folha de papel em branco ou que seu caráter pode ser moldado com a
experiência. Para Schopenhauer (2005), o caráter inteligível coincide com o ato
originário da Vontade – que é sem fundamento, inalterável, podendo ser
comparado à coisa em si –, ao qual não se tem acesso em razão de não poder
ser representado pela pluralidade em que se manifestam os fenômenos. Ele é
livre de sucessão e não está ligado ao princípio de razão suficiente.
A coisa-em-si que está no seu fundamento, como estando fora do espaço, livre de toda sucessão e da multiplicidade dos atos, é una e imutável. Sua natureza em-si é o caráter inteligível que está presente igualmente em todos os atos do indivíduo e impresso em todos eles. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 94, grifo do autor)
Schopenhauer afirma, em sua obra Sobre o fundamento da moral
(2001), que Kant expôs de modo inapropriado a diferença entre o caráter
inteligível e empírico quando ele explicitou que existe um nexo causal entre
ambos os caracteres. Schopenhauer entende o caráter individual, reconhecido
por sua essência, como aquele que é inato, invariável. Em sua obra
Contestação ao livre arbítrio, Schopenhauer esclarece:
Uma vontade livre, dissemos nós, seria uma vontade que não seria determinada por nenhuma razão, isto é, por nada, visto que qualquer coisa que determine outra é uma razão ou uma causa: uma vontade, cujas manifestações individuais (vontades) brotariam ao acaso e sem qualquer solicitação, independentemente de qualquer ligação causal e de qualquer regra lógica. (SCHOPENHAUER, 2002, pp. 13-14)
Na concepção de Schopenhauer (2005), não existe causalidade no
caráter inteligível, pois ele coincide com a Ideia, como antes já explicitado, ou
mais, especificamente, com o ato da Vontade em si, portanto não se liga a
nenhuma lei de causalidade. Uma questão emblemática surge a partir dessa
constatação, qual seja: a problemática da liberdade.
Para tanto, só adentramos na questão da liberdade para esclarecer a
diferença da concepção do caráter inteligível em Kant e em Schopenhauer, os
52
quais divergem porque Schopenhauer recusa a dedução que Kant fez em
relação ao caráter inteligível, uma vez que o último atrelou o caráter inteligível
como fundamento do sensível, por meio da lei de causalidade. Para
Schopenhauer (segundo Cacciola):
A exposta liberdade transcendental da Vontade não é, de nenhum modo, a causalidade incondicionada de uma causa que a tese afirma, porque uma causa tem de ser essencialmente fenômeno e não alguma coisa toto genere distinta que fique além de todo fenômeno. (CACCIOLA, 1994, p.103)
Schopenhauer refere-se ao caráter inteligível como aquele que tem por
referencial a Vontade e não a razão, já que ele é a manifestação de uma
Vontade livre. Isso mostra que as questões que concernem à doutrina dos
caracteres em Schopenhauer ligam-se diretamente a problemática da
liberdade, deste modo, tudo está interligado em seu pensamento.
Tendo em vista que o caráter inteligível é livre, pois não se submete ao
princípio de razão suficiente, podemos inferir que nele também existe uma
liberdade absoluta. Assim, existem duas possibilidades em que a liberdade é
intransponível, são elas: (a) a Vontade e (b) o caráter inteligível. Nessas
categorias, Schopenhauer mostra que existe uma liberdade para além dos
fenômenos, pois o caráter inteligível é manifestação da Vontade que, por sua
vez, é livre.
Assim, a liberdade, do contrário jamais se mostrando no fenômeno, pois pertence exclusivamente à coisa-em-si, pode neste caso entrar em cena no próprio fenômeno, ao suprimir a essência subjacente ao seu fundamento, embora ele mesmo perdure no tempo; surge daí uma contradição do fenômeno consigo mesmo [...] Que a Vontade enquanto tal seja LIVRE segue-se naturalmente da nossa visão, que a considera como a Coisa-em-si, o conteúdo de qualquer // fenômeno. Este, entretanto, conhecemo-lo como inteiramente submetido ao princípio de razão em suas quatro figuras. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 371-373, grifo do autor)
Ainda em relação ao caráter inteligível, o autor apresenta algumas
particularidades, pois ele é atemporal, livre. Em contrapartida, o caráter
empírico, embora seja um desdobramento do caráter inteligível, apresenta
algumas peculiaridades que são contrárias ao caráter inteligível. O autor
apresenta três particularidades do caráter empírico, que são o fato de ser: (a)
temporal, (b) plural e (c) espacial, ou seja, de estar ligado ao princípio de razão
suficiente. Portanto, o caráter empírico liga-se ao campo fenomênico. Mas,
53
Schopenhauer elucida, esse último caráter é absolutamente determinado pelo
caráter inteligível.
O caráter empírico é absolutamente determinado pelo caráter inteligível, o qual é sem-fundamento, isto é, não está enquanto coisa em si, Vontade, submetido ao princípio de razão (forma do fenômeno). O caráter empírico tem de fornecer no decurso da vida a imagem-cópia do caráter inteligível, e não pode tomar outra direção a não ser aquela que permite a essência deste último. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 224)
O argumento de Schopenhauer em relação ao caráter empírico segue
o mesmo argumento do caráter inteligível, pois o último é a orientação
constante em que se fundamenta o primeiro, segundo o filósofo. Noutras
palavras, já que o caráter empírico é o desdobramento temporal de um ato
extratemporal, portanto, imutável, isso mostra que a nossa conduta moral no
decorrer da vida já é determinada e não se modifica em essência, embora
possa ter uma diversidade de aparências.
Contudo, para Schopenhauer, “o que o homem quer em geral sempre
quererá em particular” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 378). Nesta conjectura, os
acontecimentos que ocorrem ao longo de nossas vidas estão ligados ao
destino de cada um, sendo este o motivo pelo qual nossas ações se dão de
acordo com o nosso caráter inalterado, inteligível. Então, só por meio da
experiência é que podemos aprender a conhecer a nós mesmos, posto que
“[...] nossos atos serão um espelho de nós mesmos” (SCHOPENHAUER, 2005,
p. 390).
Em consequência do caráter, a tendência de algumas pessoas é agir
de maneira boa ou má, e isto é o resultado daquilo que ela carrega em sua
particularidade, ou seja, o modo de agir é o reflexo daquilo que se é em relação
ao seu caráter. Por intermédio da conduta diante da vida, pode-se conhecer a
si mesmo e aos outros; isso ocorre a posteriori por meio da própria experiência
de vida.
Para Schopenhauer, o caráter de cada um se revela nas ações, ou
seja, em cada homem, suas ações são predeterminadas por sua índole, o que
lhe é de mais íntimo, o caráter inteligível e só na sucessão do tempo é que o
caráter empírico se revela e mostra a real essência de cada ser. Assim, o
caráter se revela no agir determinado pela lei de motivação. Em contrapartida,
como testemunho complementar em relação à constância do caráter, pode-se
54
também reconhecer que algumas pessoas são as mesmas, mesmo passados
muitos anos de sua vida, agindo sempre da mesma maneira, sem alteração de
sua conduta.
Schopenhauer (2005) desenvolve em sua teoria o último caráter, o qual
ele chamou de adquirido, este consiste no conhecimento do caráter empírico,
ou seja, no conhecimento da individualidade no tempo. Por intermédio do
caráter adquirido pode-se ter uma melhor compreensão de si mesmo. Apesar
de a Vontade não mudar, pode-se, no decorrer do tempo, melhorar a conduta
por meio desse caráter. Schopenhauer é bastante claro sobre esta questão:
Ao lado do caráter inteligível e do empírico, deve-se ainda mencionar um terceiro, diferente dos dois anteriores, a saber, o CARÁTER ADQUIRIDO, o qual se obtém na vida pelo comércio com o mundo e ao qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou se a censura por não ter. – Talvez se pudesse naturalmente supor que, como o caráter empírico, enquanto fenômeno do inteligível, é inalterável, e, tanto quanto qualquer fenômeno natural, é em si consequente, o homem também sempre teria de aparecer igual a si mesmo e consequente, com o que não seria necessário adquirir artificialmente, por experiência e reflexão, um caráter . Mas não é o caso. Embora sempre sejamos as mesmas pessoas, nem sempre nos compreendemos. Amiúde nos desconhecemos, até que, em certo grau adquirimos autoconhecimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 391, grifo do autor)
O caráter adquirido pode ser entendido como aquele que terá como
prioridade o autoconhecimento, pois este pode favorecer as escolhas do
homem no decorrer da vida por meio de uma reflexão apurada em relação ao
seu modo agir. Expressando-se em outros termos, é como lapidar e
transformar uma essência bruta de uma determinada matéria em algo valioso.
De forma análoga, se estaria moldando as ações e, consequentemente, o
caráter, o que só se faz possível examinando a vida.
Noutras palavras, as experiências que o homem tem em relação ao
mundo da vida, sejam elas boas ou ruins, devem ser avaliadas. Podemos até
entrar no templo de Delfos, consultar uma deusa, pensar a própria conduta
para, então, buscar o autoconhecimento, e quando isso acontece podemos
conhecer melhor a nós mesmos (alusão ao preceito socrático). Nas palavras de
Schopenhauer:
Mas se finalmente aprendemos, então alcançamos o que no mundo se chama caráter, o CARÁTER ADQUIRIDO. Este nada mais é senão o conhecimento mais acabado possível da própria individualidade. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 393-394, grifo do autor)
55
Portanto, a busca pelo autoconhecimento impulsiona a descobrir uma
receita própria e particular para conduzir a vida. Apesar de Schopenhauer
(2005) considerar a razão como secundária, ela é importante, pois se torna um
móvel determinante; isto é, sem a razão, não seriamos capazes de abstrair
conceitos, e, por conseguinte, refletir sobre eles. Este processo de
racionalização não intervém no caráter inato (inteligível), no entanto, pode
auxiliar a manifestação de tal caráter no mundo fenomênico.
É o suficiente sobre o CARÁTER ADQUIRIDO, que é importante não tanto para a ética como para a vida no mundo. Sua discussão, entretanto, deve ser justaposta àquela sobre o caráter inteligível e o caráter empírico, como uma terceira espécie entre eles. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 396, grifo do autor)
Assim, a doutrina dos caracteres é uma porta de acesso para o
entendimento da ética schopenhaueriana, tendo em vista que as ações
interessadas, denominadas pelo autor de antimorais, atuam sobre a
personalidade do indivíduo que, por sua vez, representa o mundo sob as vias
do princípio de razão suficiente do agir. As ações que seguem esse princípio
geralmente são autodirigidas, ou seja, levam em consideração motivações
egoístas que são denominadas pelo autor de antimorais.
Em contrapartida, há um tipo de ação que é desprovida de interesse
particular, a saber, o ato compassivo. Nessa última abordagem, Schopenhauer
traça um caminho que nos permite reconhecer o outro, diminuindo as barreiras
entre o “eu” e o “tu” mediante a capacidade de empatia para com outro ser.
Assim, abordaremos as potências antimorais e morais trabalhadas por
Schopenhauer ao longo de seus escritos filosóficos nos quais a ética é seu
objeto de estudo.
2. A SIGNIFICAÇÃO ÉTICA DA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER: AS
MOTIVAÇÕES ANTIMORAIS E MORAIS
Nesse capítulo iremos adentrar efetivamente no escopo da discussão
ética schopenhaueriana. Agora que sabemos que as ações humanas são
explicadas a partir da relação entre o querer interior do indivíduo (denominado
por Schopenhauer de caráter) e as motivações externas, que aparecem
56
abstratamente na consciência do sujeito cognoscente em uma determinada
circunstância, é interessante que analisemos os tipos de motivações elencadas
pelo autor ao longo de seus escritos em que a moral tornou-se objeto de
estudo.
De acordo com a descrição ética schopenhaueriana, podemos
classificar as ações em antimorais e morais. As primeiras estão submetidas à
atuação do princípio de razão suficiente do agir e levam em consideração
interesses particulares. Mesmo que a ação de um determinado agente não
promova nenhum mal a outrem, ou seja, que o seu ato não “cause” nenhum
dano ao organismo de outro ser, que sente dor e luta diariamente pela
sobrevivência, para Schopenhauer, se a ação for interessada, ela será
desprovida de “propriedades morais”. A base dessas ações é o egoísmo. O
que está em jogo nesse primeiro tipo de motivação, a saber, a egoística e o
próprio bem-estar do indivíduo.
Porém, alerta-nos Schopenhauer, a incapacidade de enxergar o mundo
para além das representações ilusórias impostas pelo princípio de razão
suficiente faz com que os indivíduos tenham a maldade como outra motivação
antimoral. Aqui o agente possui como fim último promover carência, sofrimento
e dor a outro ser, ou seja, o mal alheio é aquilo que impulsiona o indivíduo a
agir.
Em contrapartida, as ações morais (seja por meio da justiça ou da
caridade) possuem apenas a compaixão como fundamento. Isso acontece
porque o interesse particular é suspenso momentaneamente para promover o
bem-estar alheio. No que diz respeito a essas três motivações (duas antimorais
e uma moral), que elencamos acima, Schopenhauer afirma que:
Há em suma apenas três motivações fundamentais das ações humanas, e só por meio do estimulo delas é que agem todos os outros motivos possíveis. Elas são: a) egoísmo, que quer seu próprio bem (é ilimitado); b) maldade, que quer o mal alheio (chega até a mais extrema crueldade); c) compaixão, que quer o bem-estar alheio (chega até a nobreza moral e a generosidade). (SCHOPENHAUER, 2001, p. 137)
É interessante que o leitor compreenda de maneira detalhada as
justificativas filosóficas apresentas por Schopenhauer, no que diz respeito às
motivações (sejam elas antimorais ou morais) que impulsionam o indivíduo a
agir no mundo do ethos, a fim de saber como se dá o processo de
57
reconhecimento do outro no ato moral. Diante disso, faremos a explanação do
egoísmo e da maldade que acompanham cada ser com sua capacidade de
querer o bem-estar de si e o mal-estar do outro, bem como apresentaremos a
ação genuinamente destituída de interesse particular em prol do
reconhecimento do sofrimento alheio: a compaixão.
2.1. O egoísmo e a maldade
Para Schopenhauer, a principal motivação que impulsiona os homens a
agirem no mundo é o egoísmo. Assim como toda e qualquer objetivação da
Vontade provida de corpo, a ação egoística deve ser vista inicialmente como
um impulso natural que possui como finalidade a manutenção da sobrevivência
do organismo, bem como o seu próprio bem-estar. Porém, essa disposição se
apresenta no homem com maior intensidade em razão de os mesmos agirem
por interesse. Os animais, por exemplo, por mais que procurem agir para
manter o seu bem-estar, agem apenas por instinto.
No homem, assinala Schopenhauer, o egoísmo é ilimitado, visto que os
indivíduos querem manter incondicionalmente sua existência, bem como se
livrar de toda dor oriunda da carência e privação do seu querer, pois o homem
quer o maior bem-estar possível resultante sempre da satisfação momentânea
da sua vontade. Essa linha de pensamento é justificada porque intuitivamente o
indivíduo sabe que o mundo é sua representação e que toda a existência do
mundo empírico (que por vezes lhe põe resistência) depende da sobrevivência
do seu corpo. Daí o fato de Schopenhauer defender a tese de que
naturalmente estamos dispostos a ‘aniquilar o mundo’ para satisfazer apenas o
nosso querer interior.
[...] faz, no entanto, de si mesmo o centro do universo antepondo a própria existência e o bem-estar a tudo o mais, sim, do ponto de vista natural está preparado a sacrificar qualquer coisa, até mesmo a aniquilar o mundo, simplesmente para conservar mais um pouco o próprio si-mesmo, esta gota no meio do oceano. Eis aí a mentalidade do EGOÍSMO, o qual é essencial a cada coisa na natureza. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 426-427, grifo do autor)
Essa disposição egoística possui relação direta com o instinto de
sobrevivência existente em cada ser vivo, uma vez que o sujeito sabe que,
para que o mundo exista, ele precisa continuar existindo. Além disso, os
58
homens sabem que todo sofrimento, quer seja físico ou espiritual, é produzido
pela insaciabilidade da vontade. Daí as ações humanas que possuem como
ponto de partida o egoísmo serem interessadas, haja vista que a manutenção
de seu bem-estar está em primeiro plano.
É por essas razões que a filosofia schopenhaueriana defende a
asserção que o egoísmo é dotado de uma fonte inesgotável de ausência de
valor moral, em razão de poder causar todos os tipos de transgressões. Como
bem reforça Schopenhauer, “o egoísta sente-se acuado por fenômenos
estranhos e hostis e toda a sua esperança repousa sobre o seu bem-estar”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 475). Entretanto, segundo o autor, a máxima do
mais profundo egoísmo é oposta à máxima da compaixão, tendo em vista que
essa última possui como motivação ajudar os seres que sofrem. Ao contrário,
para o homem egoísta, se preciso for, ele deve prejudicar a todos para
alcançar o que lhe causa prazer e excitação. Em suas palavras:
Eis por que cada um quer tudo para si, quer tudo possuir, ao menos dominar, e assim deseja aniquilar tudo aquilo que lhe opõe resistência. Acresce ao dito o fato de que, no ser cognoscente, o indivíduo é sustentáculo do sujeito que conhece e este é sustentáculo do mundo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 426)
Para Schopenhauer, o egoísmo é a primeira potência antimoral,
todavia não é a única que a moralidade tem a combater. Quando
Schopenhauer expõe suas convicções sobre o egoísmo, ele as expõe de duas
maneiras: o egoísmo do tipo natural proporcionado pelo nosso ser biológico
que, de certa forma, é necessário à própria sobrevivência; e o egoísmo que
colide com outra vontade como sendo uma afirmação autoegoísta. Em relação
ao egoísmo Schopenhauer esclarece:
O egoísmo, de acordo com a sua natureza, é sem limites: o homem quer conservar incondicionalmente sua existência, a quer incondicionalmente livre da dor à qual também pertence toda penúria e privação, quer a maior soma possível de bem-estar, quer todo o gozo de que é capaz e procura, ainda, desenvolver em si outras aptidões de gozo. Tudo o que se opõe ao esforço de seu egoísmo excita sua má vontade, ira e ódio; procurará aniquilá-lo como a seu inimigo. Quer, o quanto possível, desfrutar tudo. Porém, como isto é impossível, quer pelo menos, dominar tudo. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 121)
Diante disso, cada um quer ser o centro do mundo. Assim, se os
homens fossem capazes de escolher isto, preservar a si mesmos ao invés de
59
preservar o mundo, a tendência seria preservar a si próprio. É por intermédio
dessa escolha que os homens tornam-se capazes de refletir sobre suas ações
e perseguir sua mira de modo planejado.
Assim, no momento em que o autor expõe que o egoísmo é algo
‘colossal’6 (sendo o mundo comandado por esse), o que está em voga em
primeiro plano é sua própria sobrevivência. Entretanto, o egoísta está inclinado
a querer tudo para si e nada para o outro, imperando sua vontade em relação à
vontade de outros indivíduos.
Assim a diferença entre o ‘eu’ e o ‘outro’, torna os outros indivíduos
meras aparições7. Isso sempre foi evidente nos grandes feitos de povos que
tinham como motivação a destruição e o aniquilamento de outros: “Cada um
traz em si o único mundo que conhece e de que se sabe como representação,
e por isso esse mundo é o seu centro” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 122). A
importância que o homem dá a si mesmo como sendo o dono de toda a
realidade mostra que ele não vislumbra o mundo como sendo um grande
macrocosmo no qual estão inseridos todos os seres presentes na natureza.
Diante desse fato surgem as outras potências antimorais:
[...] do egoísmo a avidez, a glutonaria, a intemperança, a luxúria, o interesse próprio, a avareza, a cobiça, a injustiça, a dureza de coração, o orgulho, a vaidade etc., - e do ódio o ciúme, a inveja, a malevolência, a maldade, a alegria maligna, a curiosidade indiscreta, a maledicência, a insolência, a petulância, o ódio, a ira, a traição, o rancor, o espírito de vingança, a crueldade etc. (SCHOPENHAUER, 2001, pp.126-127)
É digno de nota que os homens que agem por motivações egoístas são
capazes de cometer os mais variados crimes, pois estão sempre preparados
para cometer assassinatos, somente para desfrutar de prazeres, gozos,
prestígio. Assim, por exemplo, aconteceu na guerra de Tróia: “Agamenon
sacrifica sua filha; um avaro dá esmolas por puro egoísmo na esperança de um
retorno cem vezes maior, e assim por diante” (SCHOPENHAUER, 2005, p.
217). Tais fatos analisados por Schopenhauer são importantes para entender o
egoísmo, tendo em vista que:
6 Cf. Sobre o fundamento da moral (2001, p. 121).
7 O que chamamos de meras aparições, Schopenhauer chama de fantasmas. Cf:
Schopenhauer, 2001, p. 122.
60
O egoísmo é a primeira e a mais importante potência, embora não seja a única, que a motivação moral tem de combater. Já se vê por aí que o motivo moral, para apresentar-se contra tal opositor, tem de ser algo real, ao invés de uma sutileza aguda ou de uma bolha de sabão apriorística. Entretanto é na guerra que primeiro se reconhece o inimigo. (SCHOPENHAUER, 2001, p.124)
Schopenhauer analisa que o egoísmo se manifesta de variados modos
em todos os seres, mas no homem ele aparece com maior intensidade quando
procura sugar do outro aquilo que ele mesmo deseja, a saber, a vontade,
ímpeto cego, que se sustenta por querer destituir do outro. Isso estabelece
uma relação íntima com a outra potência antimoral denominada de maldade;
essa procura superar o egoísmo, causando injúria e dor a outros indivíduos.
Schopenhauer prossegue sua investigação identificando que o
egoísmo tem uma raiz mais animal, enquanto que a maldade tem uma raiz
mais ‘diabólica’, pois o autor afirma que há sempre uma predominância de uma
ou de outra na natureza humana. Isso se revela com maior clareza quando
Schopenhauer analisa o caráter dos indivíduos, o que foi explicitado no
primeiro capítulo quando tratamos dos caracteres inteligível, empírico e
adquirido.
Em relação à maldade, ela segue o mesmo percurso do egoísmo,
porém de uma maneira mais severa, pois a ação má pode levar o homem para
a mais profunda crueldade, visando não apenas o seu bem-estar, mas o mal-
estar dos outros. Aqui podemos inferir que a máxima da maldade conforme
Schopenhauer é trazer o maior número de prejuízos a outros indivíduos, sendo
que o malévolo vai além do egoísta, satisfazendo-se com o sofrimento alheio. A
malevolência é a segunda potência antimoral que brota das colisões dos
egoísmos. Conforme Schopenhauer:
[...] numa tal pessoa exprime-se uma vontade de vida veemente ao extremo, que muito ultrapassa a afirmação do próprio corpo. Seu conhecimento inteiramente entregue ao princípio de razão e estrito ao principium individuationis, // prende-se à diferença estabelecida por esse último entre a própria pessoa e todas as demais [...] Essas duas características são os elementos básicos do mau caráter. [...] Até mesmo a alegria desinteressada no sofrimento alheio, nascida não somente no mero egoísmo, e que é propriamente a MALDADE, a qual cresce até a CRUELDADE. Para essa o sofrimento alheio não é mais meio para atingir os fins da própria vontade, mas fim em si mesmo. (SCHOPENHAUER, 20005, pp. 462-463, grifos do autor)
É interessante ressaltar que, embora Schopenhauer apresente o
egoísmo e a maldade como motivações antimorais, tendo em vista que em
61
nenhum momento o outro é reconhecido nesses atos, ele não está
estabelecendo nenhuma prescrição ética de como devemos agir para sermos
reconhecidos enquanto autênticos agentes morais. Trata-se apenas de uma
descrição do comportamento humano a partir das possíveis motivações que
levam os indivíduos a agirem no mundo da vida.
As ações que levam em consideração o próprio bem-estar e o
sofrimento alheio, chegando a promover até mesmo danos físicos e psíquicos a
outrem, possuem a mesma explicação epistêmica: o não desprendimento do
princípio de razão suficiente. Enxergar o mundo por essa ótica representacional
ilusória é perceber a realidade apenas do ponto de vista da pluralidade, da
separação entre sujeito e mundo, do distanciamento entre o ‘eu’ e o ‘outro’, da
impossibilidade de reconhecimento de outrem.
Porém, assinala Schopenhauer, esse olhar ilusório que diariamente
lançamos sobre o mundo pode ser rompido quando intuitivamente passamos a
sentir o sofrimento do outro ser como se fosse nosso. Nesse instante, a
individualidade do agente é suprimida momentaneamente pelo fato de o
mesmo possuir como ‘fim último’ da ação apenas o bem alheio. Para o autor de
Sobre o fundamento da moral, isso só ocorre quando o ser humano é tocado
pelo fenômeno da compaixão.
Na visão de mundo schopenhaueriana, essa é a única motivação
genuinamente moral. Para que possamos identificar se existe a possibilidade
ou não de se formular uma ética do reconhecimento em Schopenhauer, faz-se
necessário um esclarecimento detalhado sobre as razões metafísicas que
fazem o autor estabelecer a compaixão como fundamento da moral.
2.2. A compaixão como fundamento da moral
Neste tópico, abordaremos o lado ético de Schopenhauer e suas
considerações concernentes às ações humanas e seus desdobramentos. Para
tanto, devemos considerar que toda a realidade na filosofia schopenhaueriana
é Vontade e representação, não existindo absolutamente nada para além
dessa imanência. Fora dessas perspectivas, nossas percepções da realidade
não teriam uma complementaridade.
62
No capítulo anterior ressaltamos que os conceitos de representação e
Vontade são fundamentais para a explicação da teoria ética schopenhaueriana,
tendo em vista que é por intermédio deles que compreendemos a relação entre
motivos e impulsos, relação essa que permite que nós entendamos a
necessidade de uma ação na realidade. As ações que seguem a lei de
motivação, ou seja, que surgem com a atuação do princípio de razão suficiente
do agir, situam-se no campo empírico, pois partem das experiências de cada
indivíduo descrevendo seu modo de agir, posto que tais indivíduos sentem,
desejam e efetivam seus atos no cotidiano.
No livro Sobre o fundamento da moral8 (2001), Schopenhauer justifica
os meios por ele utilizados para fundar uma ética tendo como fundamento a
compaixão, sendo esse um dos motivos pelos quais Schopenhauer parte da
realidade fenomênica como condição indispensável para analisar tal
fundamento. Isso leva a crer que ele irá abordar detalhadamente certas
motivações que irão delimitar o campo de atuação da compaixão.
Em 1837 foi feito um concurso pela Sociedade Real Dinamarquesa de
Ciências no qual se formulou o seguinte questionamento, “[...] a fonte e o
fundamento da filosofia moral devem ser buscados numa ideia de moralidade
contida na consciência imediata e em outras noções fundamentais que dela
derivam ou em outro princípio do conhecimento”? (SCHOPENHAUER, 2001, p.
52). Então Schopenhauer se inscreveu para participar do referido concurso
tentando apresentar uma resposta, isto é, se a compaixão é possível como um
fundamento que parte da experiência imediata. Para responder essa pergunta,
explica Schopenhauer:
Tendo em vista que a ideia originária da moralidade ou do conceito principal da lei moral suprema surge com uma necessidade que lhe é própria, embora não seja de modo algum lógica, não só na ciência que tem por objetivo expor o conhecimento do ético, mas também na vida real, na qual ela se apresenta, em parte no juízo da consciência sobre nossas próprias ações, em parte em nossos juízos morais sobre o comportamento dos outros –, e tendo em vista, além disso, que vários conceitos morais principais, nascidos daquela ideia e dela inseparáveis, como, por exemplo, o conceito de dever ou de
8 Para esclarecer melhor ao leitor sobre a compaixão como sendo o fundamento da moral, nos
basearemos na obra Sobre o fundamento da moral, edições de 1995/2001, bem como em sua obra O mundo como vontade e como representação (2005), em especial o livro quatro, parágrafos § 66/67, pois consideramos essas obras como basilares para o desenvolvimento do tema. Fundamentaremo-nos também em outros comentadores de Schopenhauer que se debruçam sobre o tema.
63
imputabilidade, fazem-se valer com a mesma necessidade e no mesmo âmbito – e, ainda, que nos caminhos que seguem a pesquisa filosófica de nosso tempo parece muito importante investigar de novo este objeto. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 4)
O sentimento da compaixão surge como fenômeno espontâneo que
extrapola o egoísmo enraizado na vontade. Isso leva o filósofo a crer que a
compaixão é a principal motivação que pode garantir que o homem aja
moralmente. Desse modo, Schopenhauer se compromete em esclarecer,
detidamente, o verdadeiro e genuíno incentivo moral, a compaixão. Em relação
a essas explicações sobre a compaixão, deveremos acompanhar a
caracterização feita por Schopenhauer em dois níveis: (I) um empírico (II) e
outro metafísico. Sobre isso, faremos uma abordagem mais adiante.
Schopenhauer enuncia que é preciso repensar os fundamentos da
moral, visto que as teorias éticas de seu tempo possuem como parâmetros
somente dogmas que não possuem eficácia alguma, haja vista que as
prescrições e regras nascem do conhecimento abstrato produzido pela
racionalidade. A ação genuinamente moral, desprovida de qualquer interesse
particular, ou seja, que não incita o querer, nasce no agente moral a partir de
um conhecimento absolutamente intuitivo, imediato. Essa linha de pensamento
pode ser confirmada no fragmento abaixo:
Uma moral sem fundação, portanto, um simples moralizar, não pode fazer efeito, pois não motiva. Uma moral, entretanto, QUE motiva, só pode fazê-lo atuando sobre o amor próprio. O que, entretanto, nasce daí não tem valor moral algum. Segue-se assim que, mediante moral e conhecimento abstrato em geral, nenhuma virtude autêntica pode fazer efeito, mas esta tem de brotar do conhecimento intuitivo, o qual reconhece no outro indivíduo a mesma essência que a própria. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 468, grifo do autor)
Nesse sentido, a compaixão para Schopenhauer não brota de
conceitos abstratos, dogmas ou prescrições religiosas. Isso seria tratar sua
filosofia sob uma perspectiva puramente conceitual. Embora a filosofia
schopenhaueriana reconheça o valor prático da racionalidade no que diz
respeito a uma melhor compreensão do próprio caráter, como o autor
apresenta no parágrafo 16 de sua obra magna, ela (a racionalidade) não possui
nenhum valor eminentemente moral. Além disso, a razão possui a capacidade
prática de fazer com que o sujeito entenda os melhores meios para se alcançar
o resultado desejado no momento da ação.
64
Em um exemplo da obra Sobre o fundamento da moral, essa linha de
pensamento pode ser confirmada:
Nesse sentido, um experiente jogador de bilhar pode ter apenas no entendimento, só para a intuição imediata, um conhecimento completo das leis de choque dos corpos elásticos entre si, o que lhe é inteiramente suficiente; em contrapartida, apenas quem é versado em mecânica tem o saber propriamente dito daquelas leis, isto é, um conhecimento in abstracto delas. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 105)
Diante do exposto, o saber teórico torna-se necessário na medida em
que avaliamos por meio dos conceitos a maneira pela qual podemos realizar as
nossas ações e, consequentemente, a maneira como agimos em relação a
outros indivíduos. Todavia, a racionalidade possui apenas um papel secundário
nas ações genuinamente compassivas. Se o sentimento da compaixão brota
espontaneamente no momento da ação, o conhecimento teórico que
adquirimos para melhor executar uma ação estará a serviço do próprio
interesse. Nesse sentido, a racionalidade, diferentemente da concepção de
reconhecimento existente na filosofia moral hegeliana, como abordaremos no
terceiro capítulo, para Schopenhauer, não pode ser vista em momento algum
como fundamento das ações morais.
Em contrapartida, Schopenhauer ressalta que o conhecimento intuitivo,
imediato, espontâneo não pode levar os indivíduos à aquisição de resultados
melhores do que aqueles que são obtidos via reflexão. Essas ponderações
servem para ilustrar a diferença do uso teórico e prático da filosofia moral de
Schopenhauer em relação ao uso da razão e do conhecimento intuitivo.
Conforme Schopenhauer:
Por isso homens selvagens e toscos, muito pouco habituados a pensar, realizam diversos exercícios corporais, lutam contra feras, manejam arcos e coisas semelhantes, com uma segurança e rapidez nunca alcançável por um europeu que reflete, justamente porque a ponderação torna o europeu indeciso e hesitante [...]. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 106)
Com essa diferenciação sucinta, Schopenhauer analisa o fenômeno da
compaixão que se manifesta intuitivamente e brota em cada indivíduo de
maneira desinteressada, pois é por meio dela que nós podemos aliviar a dor e
o sofrimento dos outros. Para que um ato seja compassivo é necessário que o
indivíduo desprenda-se das representações ilusórias e intua a própria essência
65
íntima do mundo da qual participam todas as manifestações da Vontade, sejam
seres humanos ou mesmo animais.
Isso é reflexo de uma ‘consciência sentida’ que nos possibilita
participar da dor de outros como se fosse nossa. Essa capacidade que o
agente moral possui de sentir o sofrimento alheio como o seu próprio é uma
prática completamente imediata e intuitiva.
Portanto, a autêntica bondade de disposição, a virtude desinteressada e a pura nobreza não se originam do conhecimento abstrato, embora sem dúvida se originem do conhecimento, a saber, de um conhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou eliminado via raciocínios. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 470-471)
Schopenhauer esclarece que a compaixão não requer nenhum saber
abstrato, pois não pode ser comunicada, tendo em vista que deve brotar em
cada um de maneira natural. Ainda em relação à compaixão, Schopenhauer
aponta para dois níveis da mesma: um negativo e o outro positivo. O primeiro
possui como pressuposto não causar dor e sofrimento para os outros sem que
haja a necessidade de inibir certas motivações antimorais que habitam cada
indivíduo. Já o segundo procura agir diretamente para suprir a carência a fim
de ajudá-lo: “É aqui, portanto, nesta participação imediata que não se apoia em
nenhuma argumentação, nem dela precisa, que está a única clara origem da
caridade” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 160).
Com base nessa linha de raciocínio, podemos examinar que agir
moralmente depende de uma ‘consciência boa’, que nos permite ir de maneira
despretensiosa ao encontro daqueles que sofrem. Noutras palavras, isso só
será possível se esse sentimento for espontâneo. Nesse momento ocorrerá a
supressão do ‘eu’ para agir em favor do outro, pois “só então a situação do
outro, sua precisão, sua necessidade e seu sofrimento tornar-se-ão meus”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 163). Portanto, a compaixão é um canal de
acesso para a saída infindável e desenfreada do curso da Vontade.
Para que ampliemos a nossa compreensão acerca do fundamento da
moral é interessante que o leitor tenha como horizonte as duas virtudes
cardeais abordadas por Schopenhauer que, por sua vez, são desdobramentos
da compaixão: a justiça e a caridade. Isso nos permitirá verticalizar a discussão
acerca das ações morais.
66
2.2.1. A virtude da justiça e da caridade
Para Schopenhauer, a justiça e a caridade são virtudes cardeais por
excelência e ambas tem sua origem na compaixão natural. Isso mostra que
Schopenhauer considera a justiça como uma virtude genuína e livre, embora os
homens, de certa maneira, estejam sempre inclinados à violência e injustiças
das mais diversas formas, estando também propensos a cometer atos injustos
apenas para obter lucros, satisfações, desejos, que podem, ao certo, causar
sofrimento em outros indivíduos.
A virtude da justiça possui um duplo papel, por se tratar de uma ação
espontânea e por também estar ligada à positividade das leis. Assim, a virtude
da justiça serve para inibir algumas atitudes que as pessoas possam cometer,
por exemplo, roubo, assassinato, invasão de propriedade. Essa mesma justiça
é responsável não somente por coibir atos que são infracionários, de acordo
com a lei, mas também atos que por ventura venham a causar danos a outros
indivíduos. Pautados na virtude da justiça, os indivíduos serão mais cautelosos
no que diz respeito a causar algum mal a outras pessoas. Schopenhauer nos
esclarece:
Consequentemente, agredirei tão pouco a propriedade quanto a pessoa do outro, tão pouco causar-lhe-ei sofrimento, seja espiritual, seja corporal, e portanto não me absterei apenas de toda ofensa física, mas também de, por via espiritual, causar-lhe dor, através de humilhação, inquietação, desgosto ou calúnia. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 143)
Noutras palavras, a justiça é um tribunal da consciência, seja de modo
jurídico ou psicológico, ela faz com que possamos racionalizar nossas ações e,
consequentemente, nos impede de agir de maneira errônea com os nossos
semelhantes. Desse modo, a justiça permite-nos refletir sobre as ações
humanas. Para Schopenhauer:
[...] embora princípios e conhecimento abstratos não sejam de modo nenhum a fonte originária ou o primeiro fundamento da moralidade, são indispensáveis para levar uma vida moral. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 144)
Neste ínterim, a reflexão racional serve para que se formulem axiomas
em relação à virtude da justiça, com ‘não matarás’, ‘não causarás dano ao
patrimônio alheio’, ‘não humilharás teus semelhantes’.
67
A injustiça ou o injusto consistem, pois, sempre na ofensa de um outro. Por isso o conceito de injusto é positivo, precedendo o de direito como aquele que é negativo e que indica meramente as ações que se podem exercer sem ofender aos outros, isto é, sem cometer injustiça. (SCHOPENHAUER, 2001, pp. 146-147)
Para Schopenhauer, quando os indivíduos cometem atos injustos,
causando danos a outrem, eles estão se colocando em oposição à compaixão,
pois tais sujeitos visam somente o seu próprio bem-estar. A compaixão, nesse
sentido, segue uma lógica inversa a dos atos injustos. Em relação aos danos
que os indivíduos podem cometer, Schopenhauer cita alguns exemplos, que
podem até ser considerados ‘simplórios’, mas servem para se pensar a
respeito das ações justas e injustas.
Um dos exemplos é referente a um homem que, estando perto da
morte por não ter como se alimentar, resolve roubar um pão. Mesmo que todo
roubo seja considerado injusto, perante a situação de fome e desespero em
que se encontra tal homem, como podemos avaliar sua ação? Para
Schopenhauer essa injustiça é pequena, pois diante de outras injustiças esse
homem faminto não pode ser julgado como um injusto, pelo menos em relação
a esse fato em particular. Como elucida Schopenhauer:
O rico, quando paga seus empregados, age justamente, mas quão pequena é esta justiça diante da de um pobre que devolve espontaneamente ao rico a bolsa de ouro encontrada. A medida dessa diferença tão significativa na quantidade da justiça e da injustiça (em qualidades sempre iguais) não é porém direta e absoluta como a da escala métrica, mas mediata e relativa como a do seno e da tangente. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 150)
Devemos ressaltar que, para o filósofo, a justiça e injustiça estão
sempre relacionadas com atos que causamos a outrem e que, ao certo, podem
ser diferenciados em menor ou maior grau. Nesse sentido, o conceito de
injustiça está ligado ao fato de que quando negamos a justiça estamos de certa
forma, impelidos pela violência. Essa métrica explicada na citação acima é um
recurso para inferir o tamanho do dano que se causa a outra pessoa:
[...] o tamanho da injustiça da minha ação é igual ao tamanho do mal que com ela infligi a outrem, dividida pelo tamanho da vantagem que consegui com ela; e o tamanho da justiça da minha ação é igual ao tamanho da vantagem que me traria o dano de outrem dividido pelo tamanho do prejuízo que ele sofreria com ela. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 150)
68
Schopenhauer, em sua obra O mundo como vontade e como
representação (2005), mais especificamente no parágrafo 63, faz uma
explanação sobre dois tipos de justiça, uma temporal e outra eterna. A
primeira, conforme o autor, tem como locus o Estado, que tem a função de
punir os atos ligados à conduta humana. Isso leva o autor a analisar tal justiça
no âmbito do direito positivo, pois é através das leis que atos injustos são
analisados e julgados, sejam esses físicos ou morais. Portanto, é dever do
Estado punir tais arbitrariedades. Isso se mostra com maior clareza dentro dos
tribunais, cadeias, quando os indivíduos perante a pena ou delito são julgados
e penalizados pelos seus atos. Essa justiça está relacionada à esfera estatal,
pois ”o Estado não passa de uma máquina social que, na melhor das
hipóteses, é capaz de equilibrar o egoísmo coletivo com o interesse coletivo da
sobrevivência” (SAFRANSKI, 2011, p. 421).
Em contrapartida, temos a justiça eterna; essa não pode ser regida
pelas instituições estatais. Noutras palavras, não se encontra no campo
fenomênico. É um tipo de justiça bastante diferente, não pode ser retaliadora e
nem ao menos punitiva, ou seja, não está circunscrita ao tempo. Como afirma
Schopenhauer, “tal justiça eterna efetivamente reside na essência do mundo”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 449); sendo, portanto, independente do Estado,
não pode submeter-se “ao acaso, ao engano, sem ser incerta, oscilante, sem
errar, mas infalível, firme e certa” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 448).
Schopenhauer diz que na justiça dos homens, a terrena, encontramos
casos nos quais as instituições punitivas erram em seus julgamentos, às vezes
oscilam em seus juízos de valor e por essa inconstância podem cometer
graves erros. Assim, se o destino dos homens fosse apenas permeado por
mazelas, privações, desgraças e mortes, então o que seria desses homens se
a justiça eterna não prevalecesse?
Portanto, o mundo é julgado por si mesmo e seu tribunal é ele próprio.
Se fosse cabível, conforme Schopenhauer, que alguém pudesse “colocar toda
penúria do mundo em UM prato da balança, e toda a culpa no outro, o fiel
permaneceria no meio” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 450, grifo do autor).
É pertinente expor que Schopenhauer faz alusão à justiça eterna não
por uma via religiosa, pois o autor se afasta de explicações teológicas,
deontológicas e teleológicas. Schopenhauer apenas cita alguns casos de
69
pessoas que suspenderam a vontade em busca de uma vida mais serena e
apartada da própria individualidade. Nesse caso, as observações feitas por
Schopenhauer em relação a algumas religiões são exemplos hipotéticos e isso
ajuda a expor de maneira mais clara sua visão de mundo como um todo.
Assim, a justiça eterna em Schopenhauer tem seu lugar de destaque
na própria essência do mundo, ou seja, na coisa em si. Ela tem um caráter
metafísico, não considera o mundo dos fenômenos, bem como não alude de
maneira individual ao sofrimento de cada indivíduo. A justiça eterna não está
circunscrita ao mundo fenomênico. Nesse sentido, podemos inferir que essa
justiça não cede espaço para a finitude, nem para os sofrimentos e dores que
atormentam os homens. Para que os indivíduos possam assimilar o que é, de
fato, a justiça eterna na concepção schopenhaueriana é necessário que os
homens se libertem de sua própria individualidade.
O conhecimento vivido da justiça eterna, do fiel da balança que une inseparavelmente o malum culpae ao malum poenae
9 exige uma
elevação completa sobre a individualidade e o princípio que a possibilita. Tal conhecimento, portanto, permanecerá inacessível à maioria dos homens, como o permanecerá o conhecimento puro e distinto da essência de toda virtude. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 453)
Para Schopenhauer, todo o mal que o homem pratica neste mundo
será expiado em uma vida posterior; todos os sofrimentos que o homem imputa
a outros indivíduos ou até mesmo aos animais será experienciado de maneira
igual por ele mesmo. Ainda, segundo o filósofo, são poucos os indivíduos que
conseguem abandonar sua individualidade, para apreender o verdadeiro
significado da justiça eterna.
Schopenhauer faz alusão ao mito da transmigração das almas. O autor
esclarece que os sofrimentos que causamos a outros indivíduos nesta vida
serão expiados em uma vida posterior e que os sofrimentos que causamos a
alguém terão graves consequências quando renascermos. Segundo
Schopenhauer, alguns indivíduos podem renascer de diversas maneiras e isso
irá depender do grau de maldade que porventura eles tenham ocasionado aos
outros em vida. Para Schopenhauer, essas pessoas poderão vir como seres
inferiores, doentes, etc.
9 Esse termo é explicado na nota de rodapé 53 da obra O mundo como vontade e como
representação, p. 453, que significa “mal da culpa” “mal da pena”. Conforme (N. T.).
70
Em contrapartida, esse mito também indica que se os indivíduos
praticam boas ações nessa vida, eles serão recompensados em outra vida,
podendo renascer como homens nobres e excelentes. Para Schopenhauer,
“nunca houve, nem nunca haverá um mito tão intimamente ligado à verdade
filosófica” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 455). O fato de o mito se fundar na
justiça eterna é apenas para clarificar o conteúdo ético e regulador que aquele
(o mito) possui, posto que, em épocas remotas, o homem explicava o mundo
recorrendo a esse tipo de alegoria.
Portanto, apesar de Schopenhauer fazer referências a algumas
religiões, isso não quer dizer, a nosso ver, que ele era um religioso.
Observamos que Schopenhauer era, de fato, um apreciador da sabedoria dos
povos indianos que expressam esses conhecimentos nos Vedas, via
Upanixades10. Isso serviu para ilustrar algumas referências feitas por
Schopenhauer em sua teoria ética.
Por fim, após os esclarecimentos feitos sobre justiça temporal e eterna,
analisaremos a virtude da caridade. A caridade surge também da compaixão e
apesar de não ser devidamente reconhecida por filósofos da antiguidade,
sempre se fez presente em todas as épocas.
A caridade existiu prática e faticamente em todos os tempos. Mas foi trazida à baila teoricamente e estabelecida como a maior de todas, estendendo-se mesmo aos inimigos, em primeiro lugar pelo cristianismo, cujo maior mérito consiste nisto, embora só em relação à Europa. Pois, na Ásia, já a milhares de anos antes, o amor ilimitado do próximo era objeto tanto da doutrina e prescrição quanto da prática, pois os Vedas e Dharma-Sastra, Itihasa e Purana, como também a doutrina de Buda Sakiamuni, não se cansavam de pregá-la. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 159)
Mediante o que foi acima demonstrado, a virtude da caridade sempre
esteve presente em todos os tempos, muito embora os filósofos da antiguidade
não a tenham estabelecido como virtude. Schopenhauer (1995, p. 151) afirmou
sobre Platão que ele “que mais alto se eleva na moral, chegou apenas à justiça
espontânea e desinteressada”. Apesar de existir em todos os lugares, a
10
Não adentraremos nessas questões, que alguns podem entender como míticas ou religiosas, pois, para Schopenhauer, o apelo a tais doutrinas é apenas para ilustrar que através de tais ensinamentos podemos clarificar o nosso pensamento em relação aos seres viventes e não viventes, o que é pronunciado pela fórmula tat twam asi, ou seja, “isto és tu”, de modo que não deve existir nenhuma barreira entre o “eu” e o “não eu”. As Upanixades são escritos védicos que serviram parcialmente de leitura para Schopenhauer, demonstrando a importância de certas religiões orientais.
71
caridade foi trazida teoricamente como a maior de todas as virtudes pelo
cristianismo, aparecendo mais, especificamente, no novo testamento, como
sendo uma virtude eminentemente cristã: “A justiça é o conteúdo ético total do
velho testamento, e a caridade a do novo” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 164).
A caridade é uma virtude que se produz de maneira diferente da virtude
da justiça. Enquanto que, na última, os indivíduos lutam para não causar
nenhum mal a outrem ou para impedir algum ato injusto, na virtude da caridade
o homem é impelido a ajudar seus semelhantes. Essa virtude eminentemente
humana é analisada por Schopenhauer como sendo uma virtude que leva os
indivíduos a ajudarem seus semelhantes de maneira desinteressada.
Isso pressupõe, porém, que eu tenha me identificado com o outro numa certa medida e, consequentemente, que a barreira entre o eu e o não-eu tenha sido, por um momento suprimida. Só então a situação do outro, sua precisão, sua necessidade e seu sofrimento tornar-se-ão meus. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 163)
Para Schopenhauer, a virtude da caridade visa, em primeiro lugar, o
bem-estar alheio de maneira imediata e direta, destituída de qualquer interesse
egoísta, pois quem carrega no peito esse sentimento de ser caritativo é
despertado pelo regozijo interior, que Schopenhauer chamou de “consciência
boa, pacificada e aprovadora” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 160). Isso mostra
que o olhar do caridoso em relação a si mesmo é digno de apreço e reverência.
É importante ressaltar que a virtude da caridade possui um caráter
positivo, diferindo da justiça, porque, na primeira, o sofrimento alheio não serve
apenas como quietivo da nossa vontade para não causarmos danos ao outro,
mas nos impulsiona a agir em favor do outro para suprir a carência e a
necessidade que aquela pessoa possui nas circunstâncias que aparecem de
imediato. O sofrimento e a necessidade alheia assaltam-nos à consciência de
maneira tão intuitiva e imediata que acabamos dispondo de nossas forças
físicas e de nossas capacidades intelectivas para agir em favor do outro.
Dependendo da situação que se configura, arrisca-se a própria vida e se
dispõe a sofrer injustiças para que o outro não as sofra:
O segundo grau em que o processo da compaixão, apesar de ser secreto conforme sua origem, transforma o sofrimento alheio no próprio e, como tal, no meu motivo separa-se nitidamente do primeiro através do caráter positivo das ações que dela surgem. Pois, então, a compaixão não apenas me impele de causar dano a outrem, mas
72
também me impele a ajudá-lo. De acordo com isso, sou movido, em parte porque a minha participação é vivida e profundamente sentida, em parte porque a necessidade alheia é grande e urgente, através daquele motivo puramente moral, a fazer um grande ou pequeno sacrifício a carência ou a necessidade do outro, que pode consistir num esforço em seu favor de minhas forças corporais e espirituais, da minha propriedade, da minha saúde, da minha liberdade, e, até mesmo, da minha vida. (SCHOPENHAUER, 2001, p.152)
Diante do exposto, podemos afirmar que a caridade pode ser
encontrada em uma ação ativa do indivíduo frente à dor e à necessidade que o
outro sofre quando não consegue objetivar o seu querer em face às
circunstâncias que lhe aparecem. Por ser uma prática completamente intuitiva,
tal ação não necessita da razão e de todo o conhecimento que adquirimos
abstratamente com a atuação do princípio de razão. Aqui temos um
desdobramento positivo da compaixão, tendo em vista que o sofrimento do
outro é sentido pelo agente de maneira tão forte que ele chegar a arriscar a sua
própria integridade física para suprir a carência desse outro.
Portanto, é no fenômeno da compaixão que suprimimos a barreira da
individualidade e do egoísmo, embora isso não aconteça a todo instante. É um
ato enigmático da natureza humana e que surge nos corações daqueles que
carregam em si um reconhecimento do outro. Segundo Safranski, “A
compaixão é uma autoexpêriencia da vontade, que se produz em um instante
fugaz, durante o qual essa cessa de afirmar temporariamente sua
individualidade” (SAFRANSKI, 2011, p. 429).
Diante do exposto podemos afirmar que a compaixão, a justiça e a
caridade carregam em si algo de comum e isso é notório, pois aqueles que
trazem em sua natureza essas características estão sempre prontos a ajudar
seus semelhantes, são destituídos de maldade e agem sem nenhum motivo ou
interesse em recompensas futuras.
Para melhor compreendermos a proposta schopenhaueriana é
interessante que voltemos a discutir especificamente o conceito de compaixão,
haja vista que o filósofo apresenta a capacidade de se compadecer com o
sofrimento alheio do ponto de vista empírico, bem como do ponto de vista
metafísico. Deve-se ressaltar que essas duas abordagens não são
antagônicas, mas sim complementares.
2.3. A abordagem empírica da compaixão
73
Adentraremos de fato na proposta ética schopenhaueriana da
compaixão com o intuito de explicar de que forma a compaixão, sendo um
fenômeno, pode influenciar no comportamento humano. Schopenhauer trata a
compaixão em um primeiro momento dento do campo empírico. É por
intermédio desse que o autor irá discorrer de maneira descritiva sobre o seu
modo de ver o mundo sem estabelecer nenhum pressuposto normativo,
nenhuma norma de conduta. A sua tentativa é apenas mostrar como a
compaixão aparece cotidianamente na ação dos indivíduos. A moral da
compaixão aparece como um acontecimento espontâneo que ultrapassa a
individualidade e se funde no reconhecimento do outro via sofrimento, além de
ultrapassar as barreiras do egoísmo e da maldade, como já explicado em um
dos tópicos anteriores.
Assim, reforcemos, a ética de Schopenhauer começa pelo campo
empírico. Nele, o autor investiga primeiro as ações humanas, a compaixão
como o oposto das potências antimorais. Segundo ele, “tanto o ético quanto o
filósofo têm de contentar-se com a explicação e com o esclarecimento do dado,
portanto, com o que é” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 23). Isso mostra que a
compaixão tende a ser confirmada pela experiência.
A verdade agora expressa de que a compaixão é a única motivação não egoísta e a única genuinamente moral é, de um modo estranho e quase incompreensível, paradoxal. Quero por isso tentar mudar as convicções do leitor, demonstrando que ela é confirmada pela experiência e pelas expressões do sentimento geral humano. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 165)
Schopenhauer explica que a compaixão tem sua comprovação na
experiência cotidiana. O filósofo afirma que “A ausência de toda motivação
egoísta é, portanto, o critério de uma ação dotada de valor moral”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 131). Esse critério estabelecido por
Schopenhauer explicita que o único incentivo dotado de valor moral é a ação
compassiva.
Isso pressupõe que a compaixão é real. Por certo, ninguém está isento
de senti-la, até os mais duros de coração podem, em um determinado
momento, ser compassivos. É interessante que se tenha em mente que a
compaixão, segundo a abordagem schopenhaueriana, não pode ser ensinada
74
independentemente da vontade de quem a sente, o ato de agir
compassivamente independe da reflexão ou intelectualidade, pois até o homem
mais rudimentar pode senti-la de forma imediata. Para Schopenhauer, é por
meio da compaixão que podemos nos comover com a dor e o sofrimento de
outrem.
Schopenhauer alerta-nos que, embora algumas pessoas ajam com
bondade, justiça ou benevolência, tais atitudes não provam que estes
indivíduos trouxeram em seu íntimo traços de um verdadeiro e genuíno
fundamento moral, que seria a compaixão. Essa linha de pensamento
confirma-se em razão de os indivíduos não conseguirem apreender os atos
intencionais de um determinado agente no momento da ação.
Nesse sentido, não se pode prever o que de fato impulsionou uma
pessoa a agir de maneira boa ou ruim. Mas existem, contudo, pessoas que “[...]
fazem e renunciam sem ter outro intuito em seu coração que o de ajudar a
outrem cuja necessidade eles veem” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 130). Para
comprovar que a compaixão está inserida no campo empírico, embora seja
algo misterioso e até mesmo difícil de explicar, Schopenhauer esclarece:
Em contrapartida, para despertar a compaixão comprovada como a única fonte de ações altruístas e por isso como a verdadeira base da moralidade, não é preciso nenhum conhecimento abstrato, mas apenas o intuitivo, a mera apreensão do caso concreto, no qual a compaixão logo se revela sem maiores mediações de pensamento [...] Portanto, a autêntica bondade de disposição, a virtude desinteressada e a pura nobreza não se originam do conhecimento abstrato, embora sem dúvida se originem do conhecimento, a saber, de um conhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou eliminado por raciocínios. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 470-471-175)
Schopenhauer aponta para dois graus da compaixão, o primeiro grau
como sendo apenas negativo, que carrega a máxima “não causar injustiça aos
outros”. Esse caráter negativo servirá para inibir que não se cause danos a
outrem. O segundo grau da compaixão é visto como positivo, por meio dele,
podemos reconhecer o sofrimento e a dor de outrem e nos dispomos de certa
maneira a ajudá-los. Isso mostra que, sendo a compaixão um sentimento
imediato, os indivíduos ao participarem das dores e sofrimentos de outros não
podem esperar nenhuma restituição ou recompensa futura. A compaixão é
destituída de qualquer interesse.
75
Desse modo, Schopenhauer identifica toda ação que se desvela sobre
um ato caritativo, na doação de si ao outro, o que, nas palavras do filósofo,
“parece uma sentença paradoxal”, mas que na verdade representa a expressão
máxima de seu pensamento, ou seja, “todo amor (ágape, caritas) é compaixão”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 476). Assim, podemos inferir que, diferentemente
das ações que seguem o princípio de razão suficiente do devir, abordados no
primeiro capítulo deste trabalho, para Schopenhauer toda ação moral é livre de
qualquer motivo que possa causar dano a outrem, pois o ato compassivo é
desinteressado e visa tão somente o bem-estar dos outros seres que sofrem.
Para Schopenhauer, a compaixão é o que está na base de toda ação dotada
de valor moral.
O processo aqui analisado não é sonhado ou apanhado no ar, mas algo bem real e de nenhum modo raro: é o fenômeno diário da compaixão, quer dizer, a participação totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e, portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em que consiste todo o contentamento e todo o bem-estar e felicidade. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 136)
A compaixão é o solo efetivo de uma ação moral. É por seu intermédio
que as pessoas compassivas suprimem a barreira do egoísmo e encontram a
necessidade de reconhecimento do outro como sendo a própria extensão do
seu ‘eu’. Para Schopenhauer esse fenômeno foi descrito em épocas remotas
por intermédio dos atos de caridade. “A compaixão está ainda mais evidente no
fundamento da caridade do que no da justiça” (SCHOPENHAUER, 2001, p.
172), sendo a justiça e a caridade virtudes cardeais11 por excelência que
brotam da compaixão, elas se tornam também evidentes no fenômeno da
compaixão.
Para Schopenhauer, a compaixão (Mitleid) é a joia de sua coroa. Esse
processo por ele analisado não é algo inventado ou imaginado, pelo contrário,
é genuíno, espontâneo. Noutras palavras, a compaixão abre caminho para a
essência última das coisas. A ação genuinamente compassiva permite com
que o sujeito entre em uma unidade com a coisa em si a ponto de o indivíduo
suspender absolutamente, mesmo que seja por um breve momento, a sua
individualidade. Percebemos aqui que a abordagem da compaixão como um
11
Sobre as virtudes justiça e caridade, foi feita uma análise no tópico 2.2.1 desse trabalho.
76
fenômeno cotidiano e natural necessita de um complemento, a saber, de sua
abordagem metafísica, pois a compaixão nos conduz a uma inseparabilidade
dos seres, então a compaixão “não é somente a ratio essendi da moralidade,
bem como a ratio cognoscendi da Vontade” (ROGER, 2013, p. 20).
Nessa perspectiva, o que fizemos foi demonstrar a compaixão como
um fato que se apoia sobre algo que é efetivo e que pode ser analisado por
intermédio do mundo exterior e da consciência humana. Isso não basta para
que o espírito dos homens encontre seu júbilo e regozijo. Assim, Schopenhauer
defende a tese de que o fenômeno da compaixão também deve ser
apresentado sob a perspectiva metafísica, tendo em vista que o princípio de
razão suficiente não consegue explicar – embora possa identificar na realidade
fenomênica os possíveis atos compassivos – o porquê de tais condutas
desinteressadas acontecerem.
Entretanto, vejo muito bem que o espírito humano ainda não encontra aí o seu contentamento e repouso. Como no final de toda pesquisa e de toda ciência real, também aqui o espírito está diante de um fenômeno originário que esclarece tudo o que é compreendido sob ele e o que dele se segue, mas ele próprio permanece inexplicável e apresenta-se como um enigma. Portanto, aqui também coloca-se a exigência de uma metafísica, isto é, de um último esclarecimento do fenômeno originário como tal é, se tomando na sua totalidade, do mundo. (SCHOPENHAUER, 2001, pp. 205-206)
Abordaremos, a seguir, a compaixão sob o ponto de vista metafísico,
pois tal explicação faz-se fundamental e urgente para que a significação da
compaixão se estenda para além do mero fenômeno. Tal abordagem nos abrirá
as portas para identificarmos se a significação ética proposta por
Schopenhauer, a partir da tese que a compaixão é fundamento genuíno da
moralidade, pode ser entendida efetivamente como uma ética do
reconhecimento.
2.4. A explicação metafísica do fenômeno da compaixão
Em sua obra Sobre o fundamento da moral, Schopenhauer procura
esclarecer seu posicionamento de que a compaixão tem como alicerce a
77
metafísica imanente, procurando agora uma explicação para além dos
fenômenos. O próprio autor diz na última parte da obra supracitada que esse
fenômeno por ele explicitado é o suficiente para fundar a ética, sendo algo
efetivo que pode ser demonstrável, seja no mundo exterior ou na consciência
do indivíduo.
Schopenhauer pretende verificar em sua ética que o enigma do mundo
tem que provir do próprio mundo e que a empreitada da metafísica é sobrevoar
a experiência na qual o mundo se apresenta diante dos nossos olhos. Nesse
caso para entender o seu fundamento não é preciso anular a metafísica e sim
redirecioná-la.
Nosso percurso até o presente momento foi demonstrar que a
verdadeira motivação moral, a compaixão, é o baluarte da ética
schopenhaueriana. Pois, sendo a compaixão fato inexplicável, acontece
diariamente e se apresenta em variados lugares e em todas as épocas sem
muita reflexão. Em suas palavras:
Na ética, a necessidade de uma fundamentação metafísica é bem mais urgente, já que os sistemas filosóficos e religiosos concordam em relação ao fato de que a significação ética das ações teria de ter, ao mesmo tempo, uma significação metafísica, quer dizer, ir além do mero fenômeno das coisas e, assim, de toda possibilidade da experiência, estando portanto em íntima relação com toda a existência do mundo e com o destino do homem; pois o último cume a que em geral acede o significado da existência é indubitavelmente o ético. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 206)
Schopenhauer esclarece que deve existir um suporte para fundar a
metafísica como algo urgente, sem interdições em buscar um significado para
além dos fenômenos, ou seja, sua metafísica tem uma relação estreita com a
totalidade da existência do mundo e com o próprio destino do homem. É por
meio dessas explicações que Schopenhauer aponta certos casos expostos ao
longo de suas obras O mundo como vontade e como representação e Sobre o
fundamento da moral.
Como aponta Janaway, “A compaixão é uma coisa boa não apenas
porque tende a reduzir a quantidade de sofrimento no mundo como porque é a
personificação de um quadro metafísico mais verdadeiro” (JANAWAY, 2003, p.
121). E ele continua, afirmando que isso “supõe que a compaixão motive ações
que se têm de realizar como indivíduo com relação a outros indivíduos”
(JANAWAY, 2003, p.123). Noutras palavras, a compaixão só é praticável
78
quando, em certa medida, eu me identifico com as dores e sofrimentos de
outros indivíduos, tendo em vista que a consequência dessa identificação
suprime a barreira existente entre o eu e o não-eu, ou seja, “só se eu partilhar
de seu sofrimento, sentindo-o de certa forma como meu, pode seu bem-estar e
o alívio de sua aflição virem a me motivar”(JANAWAY, 2003, p.121).
Desse modo, atentemos para o caso hipotético sobre o qual
Schopenhauer discorre, no qual ele coloca o experimentum crucis, designado
por ele de uma prova decisiva. Tendo como parâmetro o episódio de dois
jovens, Caio e Tito, que estando ambos apaixonados, cada um por uma jovem,
resolvem mandar seus rivais para o ‘inferno’, ou seja, aniquilar absolutamente a
vontade de vida desses indivíduos. Contudo, ambos, estando prestes a realizar
o crime, desistem depois de uma implacável luta com sua essência interior.
Em relação à desistência de ambos, no que se refere a aniquilar a
existência de outro ser, Schopenhauer afirma que os indivíduos podem ter
cometido a ação por dois motivos distintos: um de maneira interessada e o
outro de maneira desinteressada. Nessa situação hipotética, Schopenhauer
atribui o interesse (ação antimoral) a Caio, e a ação desinteressa (ação moral)
a Tito. Para que os casos possam ficar mais claros, prosseguiremos com as
explicações dos mesmos.
A explicação do primeiro caso é sobre o jovem Caio, a qual deve ser
pensada pelo próprio leitor, pois ele pode ter pautado sua ação no temor a
Deus ou até em algum castigo ou penalidade que poderia sofrer, entre outras
possibilidades. A decisão de Tito, por sua vez, tomou outro rumo: ele sentiu
pena e não teve coragem de cometer tal ato. Assim, disse Tito, “fui tomado por
um ato compassivo e misericordioso”. Desse modo, Schopenhauer lança a
seguinte pergunta: “qual deles é o melhor homem? “[...] Quem foi impedido
pelo motivo mais puro? Onde está de acordo com isso o fundamento da
moral”? (SCHOPENHAUER, 1995, pp.157-158).
No primeiro caso, o de Caio, ele agiu de maneira interesseira, os
motivos que fizeram com que ele desistisse foram relativos a deveres,
prescrições e normas. Tito, ao contrário, desistiu do ato, é o que sugere
Schopenhauer, por pura compaixão: apelou para o seu coração, teve pena e
não teve coragem de praticar tal ato sórdido. O autor diz: “nada revolta mais
profundamente nosso sentimento moral do que a crueldade”
79
(SCHOPENHAUER, 1995, p. 159). Aqui houve a desistência de um ato cruel
pelo fato de a compaixão ser o oposto da crueldade.
Quando por meio do testemunho de alguém, na televisão ou no rádio,
tomamos conhecimento de casos de extrema crueldade, ficamos perplexos.
Destarte, podemos pensar que na história da humanidade sempre existiram
feitos cruéis, ou seja, sempre existiram pessoas que agiram de modo malévolo
e que não carregavam em seu caráter nenhum valor moral. Para
Schopenhauer, a moral do cristianismo é um exemplo claro da falta de
compaixão e os efeitos da religião em relação à moralidade são mínimos.
Schopenhauer exemplifica12:
Mas até mesmo a longa relação de crueldade inumanas que acompanhou o cristianismo poderia se encarregar de fazer prender a balança em desfavor do dele: as crueldades nas inúmeras guerras de religião, as Cruzadas irresponsáveis, o extermínio de uma grande parte dos habitantes originários das Américas e o povoamento desta parte do mundo por escravos negros, condenados a infinitos trabalhos forçados, roubados da África, arrancados sem direito [...] as perseguições aos heréticos, os tribunais da Inquisição que gritam aos céus [...] a execução de dezoito mil holandeses pelo Duque de Alba etc. (SCHOPENHAUER, 1995, pp.161-162)
Para Schopenhauer, nada pode nos deixar tão atônitos quanto a
crueldade de alguns indivíduos. Para ele nada é mais desumano do que a
crueldade. É por esse motivo que a compaixão não precisa ser ensinada, pois
é um sentimento espontâneo e natural que pode brotar no espírito de qualquer
ser humano. Assim, perante as alusões acima, Schopenhauer menciona mais
dois casos de extrema crueldade: o caso de uma mãe que torturou e
assassinou seus próprios filhos e um argelino que feriu um espanhol com
requintes de pura crueldade em uma atitude totalmente contrária à compaixão.
Quando tomamos conhecimento de um ato muito cruel – como, por exemplo, o que agora mesmo os jornais noticiaram de uma mãe que assassinou o filho de quinze anos derramando-lhe óleo na garganta e o filho mais novo, enterrando-o vivo; ou o que nos foi comunicado da Argélia: que, depois de uma briga e uma luta casuais entre um espanhol e um argelino, este sendo mais forte, arrancou o maxilar inferior daquele e levou como troféu, deixando o espanhol vivo -, então seríamos tomados de horror e exclamaríamos: Como é possível fazer algo desse tipo? Qual o sentido dessa pergunta? (SCHOPENHAUER, 2001, p.167)
12
A citação é somente para ilustrar que os casos relacionados aos crimes cometidos durante a era cristã vão de encontro da proposta ética de Schopenhauer em relação ao seu fundamento genuíno, a compaixão. Não adentraremos por esse viés religioso em nosso trabalho.
80
Decerto que essas são apenas amostras entre diversos casos. Em sua
obra Sobre o fundamento da moral (2001), o autor relata vários casos,
compassivos e cruéis, pois para se chegar ao verdadeiro fundamento da moral,
é necessário descrever minuciosamente as ações interessadas e desprovidas
de interesse. Nesse sentido, como podemos entender que uma pessoa, uma
mãe, possa matar seus próprios filhos? Ficamos estarrecidos diante de tal fato,
contudo, são fatos verídicos e sobre os quais, de certa maneira, precisamos
refletir.
Outro exemplo ilustrado por Schopenhauer, em O mundo como
vontade e como representação (2005), é o seguinte: um homem, de nome
Raimundo Lúlio, há anos guardava no peito um forte carinho por uma dama.
Surge então a oportunidade que ele tanto esperava e ele consegue ser
adentrar no quarto daquela mulher amada, que, contudo, estava acometida por
um aterrorizante câncer. Repentinamente, Lúlio entra no quarto cheio de
expectativas quando de repente a dama abre o seu corselete e mostra seu
peito carcomido por um câncer. Ele olha para si e se sente como se estivesse a
‘caminho do inferno’. Diante de tal fato, aquele homem se converteu,
abandonou sua corte e foi se penitenciar no deserto. Esse exemplo serve para
retratar o quanto a compaixão abre espaço para o caminho da abnegação de
todas as nossas vontades.
// Ora, quanto mais veemente a vontade, tanto mais flagrante é o fenômeno de seu conflito, logo, tanto mais intenso é o sofrimento. Um mundo que fosse o fenômeno de uma Vontade incomparavelmente mais veemente que a atual, exibiria sofrimentos tão mais intensos que em verdade, seria um INFERNO. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 501)
Até aqui exemplificamos somente casos que mostram a relação entre
semelhantes. A seguir, iremos retratar outro exemplo13. Esse irá mostrar a
compaixão não somente entre homens, mas também direcionada aos
animais14. Schopenhauer cita o caso que lhe causou profunda tristeza de um
13
Ao exemplificarmos tais casos nos quais o homem age por crueldade ou por compaixão, podemos até parecer repetitivos, mas o próprio Schopenhauer exemplifica de maneira exaustiva esses casos para que o leitor possa compreender o caminho para explicar a compaixão com maior clareza. Embora pareça repetitivo, existe uma preocupação, a nosso ver, de Schopenhauer para que não fiquem lacunas no entendimento da compaixão. 14
Embora nossa pesquisa não se refira diretamente à compaixão para com os animais, iremos retratar um exemplo, somente para mostrar ao leitor que Schopenhauer tinha um grande apreço pelos animais. Esse tema será desenvolvido em outro momento quando
81
caçador entre os anos de 1836 e 1837. Wilhelm Harris saiu para mais uma de
suas caçadas em solo africano, somente para se distrair e gozar dos prazeres
da caça (esse caso foi levado a público em 1838). Esse caçador faz
detidamente todo o relato de sua aventura descrevendo que, depois de ter
matado sua primeira caça, um elefante fêmea, e retornando na manhã seguinte
para procurar pelo cadáver do animal, percebeu que ao seu lado estava o
filhote. Ele veio ao encontro do caçador com um olhar que demonstrava um
sofrer inexplicável. O relato conta que o filhote enlaçou o caçador em sua
tromba pedindo ajuda. Naquele momento os outros elefantes já tinham se
evadido do local.
Assim, Harris relata que, naquele momento, sentiu um remorso terrível,
sentiu como se tivesse cometido um assassinato e, realmente, cometera. Foi a
partir daquele momento que o mesmo foi tomado de súbito por um
arrependimento profundo. Na obra Sobre o fundamento da moral (2001), o
autor comenta “a compaixão para com os animais liga-se tão estritamente com
a bondade de caráter que se pode afirmar confiantemente que quem é cruel
com os animais não pode ser uma boa pessoa” (SCHOPENHAUER, 2001, p.
179). Isso mostra que a compaixão como ato inegável da natureza humana é
estendida também para os animais15.
Nossa explanação, embora sucinta, tem o intuito de esclarecer a
preocupação de Schopenhauer também em relação aos animais. Além disso,
deve-se ressaltar que aqui há o reconhecimento para com o outro ser que
sofre, independentemente de o mesmo ser provido de racionalidade ou não.
Podemos dizer que na filosofia schopenhaueriana não há necessidade de uma
relação entre consciências, como pressupõe Hegel, por exemplo, haja vista
que os seres humanos (únicos dotados de racionalidade) também podem se
compadecer com o sofrimento de outras manifestações da Vontade, como por
exemplo, os animais. A maneira que Schopenhauer inseriu os animais na
prosseguiremos com o estudo das obras de Schopenhauer de maneira mais detalhada, mas, por enquanto, nos atentaremos somente a um exemplo. 15
A título de ilustração, diz Schopenhauer: “Na Ásia, as religiões garantem aos animais proteção suficiente e, por isso, lá ninguém pensa em tais associações, Todavia, também na Europa, desperta cada vez mais o sentido pelo direito dos animais, na medida em que, aos poucos, desvanecem e desaparecem os estranhos conceitos de um mundo animal que veio à existência apenas para a utilidade e o deleite do homem, de acordo com o que se trata os animais como coisas, pois estas são as fontes do tratamento rude e desconsiderado dos animais na Europa” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 180).
82
discussão ética serviu como um passo bastante importante para ultrapassar o
abismo criado entre homens e animais. Ressaltamos que Schopenhauer pode
ter sido um precursor de uma ética voltada para os animais.
Aqui existe mais uma diferença entre a moral kantiana e a moral
schopenhaueriana, pois, para Kant, a moral era destinada apenas para os
homens, por sua capacidade racional de pensar. No entanto, Schopenhauer
estende a moral para os animais, sendo que os casos acima relacionados não
só têm como suporte a experiência empírica, mas também a experiência
metafísica, haja vista que a crueldade estende-se não só aos homens, como
para os seres em geral. É por esse motivo que Schopenhauer alude à
compaixão para com os animais: ele reconhece a mesma essência em cada
ser racional (homem) ou irracional (animal) que sofre.
Para Schopenhauer, todos os seres dotados ou não de racionalidade
têm com suporte a mesma fonte, isto é, a Vontade, então é possível entender
como é possível um homem sentir compaixão por seres não iguais, como os
animais. Para Schopenhauer, o homem não possui um lugar de destaque
frente a outros seres que coabitam a terra. Na visão dele, tal prelúdio errôneo
foi trazido à baila por certas religiões que negam a igualdade entre os seres,
dando ao homem um lugar de relevância em relação aos outros seres que
coabitam o mesmo mundo. Por esse motivo, explicitamos a história de Wilhelm
Harris, o caçador. Portanto, o fundamento metafísico traz em sua essência e
identificação com todos os seres.
Schopenhauer vai além do campo sólido da experiência, pois o autor
entende que a ética precisa de um fundamento metafísico. Para tanto, o que
evidenciamos foi uma alteração no conhecimento a partir do qual o indivíduo
que age eticamente considera o mundo ao seu redor, bem como os seus
semelhantes. Desse modo, a compaixão ilimitada não precisa de uma ampla
sucessão de raciocínios, pois ela se dá subitamente, e de acordo com o autor
“não precisa de nenhuma casuística” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 163).
Para dar-se a compaixão, é então necessária a identificação entre os
indivíduos, que esses ajam levando em consideração que o outro é sua
extensão. Conforme Wilmar Debona (2010, p. 96) “Esse (re)conhecimento de
que o essencial de todos os seres é o mesmo não pode se dar de modo algum
quando situado na multiplicidade das formas do mundo empírico”.
83
Isso demonstra que os agentes quando situados apenas no mundo
empírico, baseando-se somente no conhecimento via raciocínios, não terão
visão macro em relação aos outros seres, ou seja, o homem nesse estado
ainda não apreendeu o essencial, que é perceber que todos os seres possuem
uma mesma essência, ou seja, são manifestações de uma única e mesma
Vontade macrocósmica, isto é, que todos fazem parte de uma mesma cadeia,
sendo esse um dos motivos pelo qual o autor constata que não devemos nos
diferenciar; temos que superar a barreira do princípio de individualidade.
Tendo essa concepção como fundamental, Schopenhauer analisa as
suas vias de acesso empírico e metafísico: a primeira ligada à multiplicidade
dos fenômenos e a segunda existindo como um suplemento, indispensável
para se pensar a verdadeira essência da existência para com todos os seres
de modo geral. Os conhecimentos ora mencionados referem-se aos dois lados
do mundo. Mas o segundo talvez seja o mais admirável de todos, pois é por
intermédio do mesmo que suprimimos a barreira do não reconhecimento.
Aquele que reconhece o sofrer de outros de maneira imediata, como se
fora o nosso próprio sofrimento, é digno de respeito e admiração. É como um
gênio que ao contemplar uma obra de arte esquece toda a sua individualidade,
pois daí já não se sabe quem é sujeito e quem é objeto, uma vez que o homem
que contempla funde-se com o objeto de admiração no momento em que as
relações desaparecem.
Como a teoria ética de Schopenhauer é descritiva, o autor está sempre
retrocedendo para explicar e aclarar melhor seus conceitos, de modo que seu
pensamento é recorrente. Esse retroceder é importante para que o leitor
entenda a organicidade de seu pensamento único, sobre o qual já nos
referimos na introdução do nosso trabalho. A nosso ver, seu intento é
demonstrar aquilo que para certos filósofos precedentes não fora mencionado
de modo autêntico. Schopenhauer foi um pensador que refletiu sobre o mundo
e suas dores e que, ao certo, pôde enunciar um pensamento coerente e
mostrar aos seus leitores os dois lados da moeda e não somente um lado que
carrega em si traços meramente racionais.
Para ilustrar ainda mais a ética de Schopenhauer é interessante que
entendamos a sua exposição em relação ao choro. Na perspectiva
schopenhaueriana, o choro está relacionado ao ato compassivo, tanto em
84
relação à pessoa que sente compaixão, quanto em relação à pessoa que se
reconhece no sofrer de quem desperta o compadecimento.
Diante do exposto, abordaremos a seguir, de maneira sucinta, a
exposição de Schopenhauer a respeito do choro, mais especificamente no
parágrafo 67 de sua obra O mundo como vontade e como representação. O
choro, conforme Schopenhauer, não é de modo algum somente o reflexo de
uma dor sentida: ela primeiro chega ao cérebro para tomarmos conhecimento
da mesma via reflexão.
Assim, no ato da compaixão, o choro muitas vezes é inevitável para
ambos os lados (para quem se compadece e para o alvo desse
compadecimento). Muitas vezes, nós mesmos somos dignos de compaixão
quando expressamos nossos sentimentos em relação à dor do outro, pois, às
vezes, as lágrimas caem e não conseguimos segurá-las. “O CHORO é, por
conseguinte, COMPAIXÃO CONSIGO MESMO ou, a compaixão que retornou
ao seu ponto de partida” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 479, grifos do autor).
Portanto, o choro é um elemento que até as pessoas mais duras de
coração podem demonstrar; ele é sempre visto e sentido em maior grau por
pessoas mais vulneráveis que carregam em si traços de um ser compassivo,
destituído de egoísmo e maldade. Apesar de que algumas pessoas têm uma
predisposição para chorar de forma imediata quando vê outra pessoa sofrer,
esse sentimento é revelado pela compaixão: ela desce até o âmago do ser de
cada pessoa quando sente que a dor do outro compromete os seus próprios
sentimentos.
O choro é um desdobramento da compaixão. Todavia, não só sentimos
compaixão por outros indivíduos; às vezes sentimos por nós mesmos e nos
pegamos chorando. Algumas pessoas choram em virtude de uma dor sofrida
ou quando sofrem um acidente, não em virtude da dor em si, mas de sua
representação. Quando nos compadecemos e de súbito as lágrimas descem e
não mais fazemos distinção entre o ‘eu’ e o ‘outro’, nos colocamos no lugar
daquele que sofre e subitamente começamos a chorar. Essa manifestação
física corporal talvez seja a melhor forma de reconhecer a dor e o sofrimento
de outrem. Em certos casos, sentimos vergonha de chorar na frente de outra
pessoa, mesmo sentindo vontade, o egoísmo nos toma de assalto e
simplesmente nos recusamos em deixar aflorar tal sentimento.
85
O autor cita um exemplo bastante familiar: alguém sofre a perda de um
parente ou pessoa próxima e essa pessoa já tem uma idade avançada ou uma
doença grave. Aquele que sofre a perda é quem cuidava da pessoa que
faleceu e já estava cansada de carregar o fardo por algum tempo. Apesar do
alívio, “[...] ainda assim sua morte é chorada intensamente”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 480).
Nas palavras de Schopenhauer: “Após essa digressão sobre a
identidade entre o amor puro e a compaixão – sendo que o retorno desta última
ao próprio indivíduo ocasiona o sintoma do choro” (SCHOPENHAUER, 2005, p.
480). Observamos que o choro está ligado ao ato compassivo de ambos os
lados: por aquele que sofre e, por conseguinte, por aquele que sente
compaixão; ambos são pegos de súbito por esse sentimento físico. A
compaixão é um fenômeno inexplicável, pois, para o agente compassivo, tudo
lhe é igualmente próximo:
Todos os tormentos alheios que vê e raramente consegue aliviar, todos os tormentos dos quais apenas sabe indiretamente, inclusive os que conhece só como possíveis, fazem efeito sobre o seu espírito como se fossem seus. Não é mais a alternância entre o bem e o mal-estar de sua pessoa que tem diante dos olhos, como no caso do homem ainda envolvido pelo egoísmo, mas ao ver através do principium individuationis, tudo lhe é igualmente próximo // conhece o todo, apreende o seu ser e encontra o mundo entregue a um perecer constante, em esforço vão, em conflito íntimo e sofrimento contínuo. Vê para onde olha, a humanidade e os animais sofredores. Vê um mundo que desaparece. E tudo isso lhe é agora tão próximo quanto para o egoísta a própria pessoa. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481)
Portanto, a compaixão é um elemento que transforma as ações
humanas, agindo de modo operante em relação à dor e ao sofrimento de
outros. O agente compassivo raramente deixa de se colocar no lugar daqueles
que sofrem, pois enxerga que o outro é a extensão de si mesmo, ou seja,
vivencia uma forma de reconhecimento. É por meio da compaixão que
tentaremos demonstrar, em nosso terceiro capítulo, se a mesma é possível
como uma ética do reconhecimento em Schopenhauer.
3. DO SOFRIMENTO AO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER
Com base na exposição metafísico-epistêmica apresentada no primeiro
capítulo, a fim de compreender os aspectos internos (vontade) e externos
86
(motivos) que justificam as ações interessadas ou antimorais, bem como na
exposição do segundo capítulo que teve a intenção de evidenciar a compaixão
como o único fundamento da ação moral, entraremos na questão central deste
trabalho: Na significação ética apresentada a partir da visão de mundo
schopenhaueriana, podemos ou não extrair a categoria do reconhecimento
pelo víeis da compaixão? No ato compassivo, o agente moral reconhece o
outro? Quem é esse outro para Schopenhauer?
Para respondermos tais questionamentos, faz-se necessário
abordarmos pormenorizadamente o problema do sofrimento a partir da
metafísica da Vontade schopenhaueriana, tendo em vista que é por intermédio
do sofrimento de um determinado ser que brota a compaixão no coração dos
homens. Por ser um elemento comum a todos os indivíduos, afinal de contas, o
sofrer brota da insaciabilidade do querer, é que o filósofo identifica o outro
como um ser que sofre.
Além disso, também optamos por destinar um tópico desta nossa
exposição à ética do reconhecimento apresentada por Hegel a partir da
metáfora do senhor e do escravo na Fenomenologia do espírito. Pelo fato de a
categoria do reconhecimento estar explícita na abordagem ética de Hegel e por
esse ser, indubitavelmente, um autor que desenvolveu a problemática em
questão, é que o grande ‘opositor’ de Schopenhauer será devidamente
abordado por nós. Por fim, retornaremos ao tema da compaixão, tendo como
horizonte a problemática do sofrimento, bem como da abordagem do
reconhecimento via Hegel e responderemos se é possível ou não uma ética do
reconhecimento em Schopenhauer a partir de uma compreensão intuitiva
desse fenômeno denominado compaixão.
3.1. O sofrimento do mundo em Schopenhauer
Temos como objetivo, neste capítulo, trabalhar a compaixão como uma
ética do reconhecimento e se é possível estabelecer a partir do sofrimento um
suporte para tal comprovação, tendo em vista que é por meio dessa que
87
reconhecemos o sofrimento de outros indivíduos. Para que possamos verificar
a possibilidade de uma ética da compaixão pelo viés do sofrimento é
necessário traçar o mesmo percurso em torno dos livros O mundo como
vontade e como representação (2005), especificamente o livro IV, e Sobre o
fundamento da moral, assim como em outras obras de comentadores que
porventura possam nos auxiliar em nossa trajetória. Nas obras supracitadas,
Schopenhauer circunscreve de maneira pormenorizada o tema da ética,
expondo a necessidade de se fundamentar uma ética através do seu
fundamento moral, a compaixão.
Schopenhauer afirma que seus esclarecimentos a respeito das ações
humanas se apresentam com maior gravidade em função do teor abordado.
Nesse sentido, o autor ressalta que sua abordagem ao tratar sobre as ações
humanas tem como apoio uma relação direta com a filosofia prática em
oposição à filosofia teórica, a qual ele aborda no decorrer de todo o seu
arcabouço conceitual.
Quando se aborda uma teoria que toma como pressupostos a conduta
do homem, é necessário que o tema da ética seja ressaltado, pois o próprio
termo ‘ética’, em sua etimologia, já pressupõe que o indivíduo tenha um
comportamento moral adequado. Essa adequação se refere tanto ao caráter do
indivíduo quanto às regras de convívio que são pré-estabelecidas em uma
determinada cultura, posto que cada povo carrega traços próprios em relação
ao seu modus vivendi. Noutras palavras, as regras da convivência de cada
povo devem ser aceitas por todos, sendo que, para que haja uma aceitação do
acordo em seu sentido mais amplo, se faz necessário que todas as pessoas
comunguem, de maneira recíproca, das mesmas opiniões e que essa
reciprocidade traga benefícios a todos os que estão inseridos nessa
comunidade. Isso garante um acordo pacífico e não conflituoso entre as
pessoas.
Nesse ponto, ao que parece, já estamos vislumbrando um tipo
específico de reconhecimento, o social. Esse engloba determinadas práticas
sociais, tais como: a cultura, a sociedade, a política, entre outros. Embora o
aspecto prático da filosofia moral de Schopenhauer não seja analisado no
campo social, é importante realçar de modo mais geral a dimensão ética para
88
que então se possa observar com maior cautela a relação entre sofrimento,
reconhecimento e compaixão.
Schopenhauer, no parágrafo 148 de Parerga e Paralipomena, descreve
que o sofrimento é o que temos de mais próximo e imediato em nossas vidas e
se assim não fosse nossa vida seria um contrassenso. O autor mostra que o
sofrimento nos acompanha por toda a nossa trajetória de vida: “Nossa
receptividade para a dor é quase infinita” (SCHOPENHAUER, 1985, p. 216).
Schopenhauer afirma que, apesar de a infelicidade particular ser uma exceção,
a infelicidade em geral constitui a regra. Aqui, o autor aumenta o campo do
sofrimento para o todo, é por esse motivo que iremos de um modo geral
verificar qual a métrica do sofrimento.
Para Schopenhauer o sofrimento é algo positivo em relação a toda
felicidade e satisfação, posto que, via de regra, as alegrias estão bem abaixo e
os sofrimentos bem acima das nossas expectativas. Ao inverter a posição do
sofrimento para aquilo que é positivo e a felicidade como algo negativo,
Schopenhauer criticou vários sistemas metafísicos que declaravam que o mal
era algo de negativo. O autor de O mundo como vontade e como
representação afirma:
A história nos mostra a vida dos povos, e nada encontra a não ser guerras e rebeliões para nos relatar; os anos de paz nos parecem apenas curtas pausas, entre-atos, uma vez aqui e ali. E de igual maneira a vida do indivíduo é uma luta contínua, porém não somente metafórica, com a necessidade ou o tédio, mas também realmente com outros. Por toda parte ele encontra opositor, vive em constante luta, e morre de armas em punho. (SCHOPENHAUER, 1985, p. 217)
Embora Schopenhauer em sua teoria filosófica tenha descrito as ações
humanas de maneira individualizada, visto que o que foi relatado por ele foi o
modo como os indivíduos agem levando em consideração suas motivações
antimorais, tais como egoísmo, maldade, inveja, malevolência (já explicitadas
no segundo capítulo desse trabalho), percebemos que o autor só depois de ter
feito uma panorâmica do mundo de um modo geral, principalmente, em suas
viagens16, as quais serviram também para testemunhar a condição miserável
16
É importante ressaltar, que Schopenhauer viajou por diversos países: França, Holanda, Suíça, Áustria e Inglaterra, em algumas dessas cidades Schopenhauer testemunhou e recolheu relatos de sofrimentos motivados por guerras, e cita a Revolução Francesa como aquela que foi palco das mais horríveis cenas: morte, fuzilamentos em massa, e ainda
89
do ser humano, pôde refletir sobre os acontecimentos, elaborando sua teoria
moral presente em suas obras O mundo como vontade e como representação
e Sobre o fundamento da moral. Segundo Jair Barboza:
No pensamento schopenhaueriano, o essencial das coisas se encontrava na vida individual, nos seus conflitos íntimos, não na abstração chamada povo. O interior da humanidade se revela nas biografias e autobiografias, não nas narrativas históricas repletas de datas de guerra e conquista [contrariamente a Hegel]. “A história nos mostra a humanidade como se nos mostra a visão da natureza a partir de uma alta montanha: vemos muito de uma só vez, amplas extensões, volumosas massas; mas nada se torna nítido, nem é cognoscível segundo toda sua essência propriamente dita. Ao contrário, a vida exposta de uma individualidade mostra o homem tal como se conhecêssemos a natureza ao passearmos por entre suas árvores, plantas, campos e regatos”. (BARBOZA, J, 1997, pp. 21-22, grifo nosso)
Apesar da panorâmica acima citada, Schopenhauer afirma que os
acontecimentos históricos são “sombras pálidas”17. A ordem dos
acontecimentos históricos é um reflexo de um universo originário, submetido a
mudanças, pois a história, ao se dedicar à ordem dos acontecimentos, ou seja,
àquilo que se altera constantemente, não pode, supostamente, ser tomada
como uma ciência verdadeira, porque a contínua transformação de fatos
históricos se modifica ao sabor das circunstâncias. Schopenhauer apesar de
não ser simpático aos acontecimentos históricos, em certa medida, foi tocado
por eles.
Para Schopenhauer, sua filosofia tem o intuito de denunciar as ilusões
múltiplas acerca do mundo. Tocado pelo sofrimento humano, o autor revela o
lado obscuro da vida, pois para ele a raiz das coisas é o mal, alles leben leiden
ist (“toda vida é sofrimento”). Contudo, embora Schopenhauer seja
frequentemente considerado um filósofo pessimista, observamos que seu
pessimismo é marcado somente pelo ponto de vista teórico, visto que ele
transfere esse suposto pessimismo para o lado prático de sua teoria, fundando
assim, uma filosofia do consolo. Isso mostra que Schopenhauer não nega que,
em sua teoria moral, existem momentos que são iluminados, redentores do
viver, que expõem o amor compassivo, a beleza e a santidade. Esses
momentos revelam que os homens podem ascender para um grau mais alto de
acompanhou de perto a conquista de Napoleão sobre a Europa, ou seja, Schopenhauer viu de perto misérias, dores e sofrimentos, mas o autor não era racionalista nem patriótico. 17
Esse termo pode ser comparado às sombras da caverna de Platão.
90
conhecimento, dissolvendo, desse modo, sua individualidade, rompendo com o
véu da ilusão (Maia), pois quando o homem dissolve sua individualidade ele
pode como meta final encontrar uma “união mística” com o todo (BARBOZA, J,
1997, p. 6). Com essa união, a ética schopenhaueriana aborda a essência do
mundo através do sofrimento, visto como mola propulsora para explicar o
mistério no qual vive a humanidade.
Schopenhauer leva em consideração as dores e os sofrimentos que
atingem os homens, visto que o mundo e seus enigmas indicam tanto o lado do
sofrimento, quanto o lado da felicidade, abordando, dessa forma, o caráter de
positividade do sofrimento e a negatividade18 da felicidade. Portanto,
Schopenhauer estabeleceu, em sua ética, uma fusão direta entre os dois polos
sofrimento e compaixão. Para Schopenhauer, as nossas satisfações são
momentâneas, pois acontecem em pequenos intervalos; já o sofrimento segue
o mesmo percurso só que em proporções maiores. Em suas palavras:
Pois todo esforço nasce de uma carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento pelo tempo em que não for satisfeito; nenhuma satisfação, todavia, é duradoura, mas antes sempre é um ponto de partida de um novo esforço, o qual, por sua vez, vemos travado em toda parte de diferentes maneiras, em toda parte lutando, e assim, portanto, sempre como sofrimento: não há nenhum fim último de esforço, portanto, não há nenhuma medida e fim do sofrimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 399)
No homem, o sofrimento se torna mais visível, tendo em vista que esse
é o único capaz de abstrair conceitos, refletir e pensar sobre os acontecimentos
que ocorrem em sua vida e na dos demais. Isso não quer dizer que outros
seres não possam sofrer. Os animais, por meio de suas excitações, também
sofrem, só que a intensidade do seu sofrimento é menor, posto que os animais
não podem abstrair conceitos, nem refletir sobre os mesmos. Para
Schopenhauer, os animais menos complexos tem uma capacidade limitada de
sofrer e sentir dor, por exemplo, os insetos. Apenas nos animais que têm o seu
sistema nervoso completo, os vertebrados, o sofrimento aparece em um grau
mais elevado. Para Schopenhauer, quando a inteligência se desenvolve e a
18
É importante ressaltar que a felicidade só pode ser medida pela ausência de dor, pois só ela tem um caráter negativo, enquanto que a dor tem um caráter positivo. Cf. MÁRQUEZ. P. M. J. Arthur Schopenhauer: Del dolor de La existencia Al cansancio de vivir. Servilla: KRONOS, 2004, p. 77. Tradução nossa.
91
consciência se torna mais elevada, o sofrimento aumenta: “[...] no homem, e
tanto mais, quanto mais ele conhece distintamente, sim, quanto mais
inteligente é. O homem no qual o gênio vive é quem mais sofre”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 400). Essa citação corrobora com a assertiva de
que o gênio, por ser dotado de maior intelectualidade e perceber as coisas com
mais clareza e sensibilidade, tem uma tendência natural ao sofrimento.
O sofrimento, na perspectiva schopenhaueriana, é mais elevado nos
indivíduos devido as suas carências, necessidades e desejos, pois o homem
quer sempre, de modo que na medida em que seu querer aumenta, aumenta
também seu sofrer. Diz Schopenhauer: “quando lhe falta o objeto do querer,
retirado pela rápida e fácil satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 402). Logo, o mundo que nós percebemos é um
mundo de sofrimento e dor. Na concepção de Schopenhauer, os homens são
obrigados a lutar pela sua própria existência. A carência e a falta de meios para
obter determinados fins mobilizam o sofrimento das pessoas. Noutras palavras,
sentimos o peso do sofrimento quando nossas carências, desejos e
necessidades não são satisfeitos. Por isso, a privação dos desejos que não são
satisfeitos é uma forma de sofrer, de modo que “o atingimento de fins nunca faz
que o anseio por fins cesse por completo” (JANAWAY, 2003, p. 127). Essa
insaciabilidade faz com que estejamos sempre em busca de novos desejos, o
que leva a nos sentirmos entediados, posto que estamos sempre empenhados
em sentir novas satisfações.
Esta é a vida da maioria dos homens; eles desejam, sabem que desejam e se empenham pela realização do que desejam com sucesso suficiente para ser protegidos do desespero, bem como fracasso suficiente para preservá-los do tédio e das consequências deste. (JANAWAY, 2003, p. 128)
Assim, toda busca pela felicidade está associada ao sofrimento, devido
à procura incessante do homem pela realização de novos desejos, o que o
torna insaciável: “Imaginar uma existência sem sofrimento é imaginar uma
existência que não é de um indivíduo humano” (JANAWAY, 2003, p. 128). Na
realidade, as carências, os desejos e as necessidades estão atrelados ao
fenômeno da Vontade.
Para Schopenhauer, toda busca de satisfações é caracterizada pelos
atos da Vontade. No homem, ela aparece com maior intensidade, uma vez que
92
o homem luta constantemente pela sua existência, mesmo sabendo que, ao
final, o que lhe resta é a morte, pois “a vida mesma é um mar cheios de
escolhos e arrecifes” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403). O empenho pela
existência e a sociabilidade é o que mantém os homens ocupados tentando
sempre escapar do tédio. Todavia, a vida, na verdade, requer cuidados e
precauções, portanto, é como se estivéssemos à deriva em um barco que a
qualquer momento poderá afundar. Segundo Schopenhauer, “este é o destino
final da custosa viagem e, para ele, pior que todos os escolhos que evitou”
(SCHOPEHAUER, 2005, p. 403). Schopenhauer mostra, assim, que os
indivíduos estão apenas lutando constantemente pela existência, tendo,
entretanto, uma clareza de consciência que ao final serão vencidos.
É notória, na teoria schopenhaueriana, a visão de que os nossos
infortúnios causam sofrimentos e isso faz parte da vida. Em sua obra O mundo
como vontade e como representação (2005), afirma Schopenhauer:
O que mantém todos os viventes ocupados e em movimento é o empenho pela existência. Quando esta lhes é assegurada, não sabem o que fazer com ela. Por conseguinte, a segunda coisa que os coloca em movimento é o empenho para se livrarem do lastro da existência, torná-la não sensível, “matar o tempo”, isto é, escapar ao tédio. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403)
Para Schopenhauer, a manutenção da vida é uma preocupação
humana, já que a maioria dos homens quando se encontram seguros em
relação às misérias e as preocupações e por terem finalmente se livrados de
todos os males que os preocupam, tornam-se um peso para si mesmo. Dessa
forma, os indivíduos percebem cada instante morto como sendo uma
conquista, ou seja, os homens lutam sempre e é de tal manutenção que
depende sua sobrevivência, obtida pelos seus esforços. Isso não quer dizer
“[...] que o tédio é um mal a ser desprezado; por fim ele pinta verdadeiro
desespero no rosto” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403). Assim, o tédio é um
aliado para tornar as pessoas mais sociáveis. Até mesmo o Estado procura
meios para implantar certas medidas que supostamente possam atenuar as
tragédias que assolam a humanidade. Portanto, o homem precisa de panem et
circenese. Por que o homem precisa de pão e circo? A nosso ver, para atenuar
os sofrimentos que afetam o universo humano, já que o sofrimento é algo
93
inerente à própria natureza e quando eliminamos um sofrimento, logo aparece
outra carência e novamente um novo sofrimento19.
As dores da humanidade aparecem de várias maneiras, como
mencionado acima. Apesar de reconhecermos na teoria moral de
Schopenhauer que a dor é inevitável, ela também vem por meio das
eventualidades, dos infortúnios em que ao longo da vida temos que passar.
Portanto, toda satisfação produz saciedade, visto que entre querer alguma
coisa e alcança-la existe um fluxo contínuo que se perpetua sem cessar por
toda a vida dos homens. Nesse sentido, Schopenhauer afirma que a dor é
essencial e inevitável à vida. Por esse motivo, Schopenhauer dá destaque ao
sofrimento humano.
O sofrimento pode nos conduzir a entender as contradições do mundo
e a maneira como agimos quando somos acometidos pela dor, embora na
maioria das vezes o sofrimento seja inevitável, posto que, a Vontade age
cegamente. É pelo intermédio da vontade que em alguns casos não pensamos
nas consequências de nossos atos, mesmo sabendo que a bolha de sabão
pode estourar e, consequentemente, nos remeter novamente a posição inicial,
qual seja, de novamente buscar incessantemente a satisfação de novos
desejos. Segundo Schopenhauer, “só a carência, isto é, a dor nos é dada
imediatamente” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 411).
Se para Schopenhauer a felicidade é de natureza negativa e a dor
positiva, isso significa que nós não podemos encontrar satisfação e
contentamento duradouros, pois a cada desejo satisfeito surgem outros novos
e novamente carência, dor, vazio e tédio.
Os esforços infindáveis para acabar com o sofrimento só conseguem a simples mudança de sua figura, que é originariamente carência, necessidade, preocupação com a conservação da vida. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403)
Assim, Schopenhauer indica que quando mensuramos o sofrimento, ou
seja, quando temos conhecimento de que essa vida não pode conduzir os
homens à satisfação plena, podemos nos apaziguar com nossa existência.
19
Para Schopenhauer, quando nos satisfazemos em intervalos nem muito curtos nem muito longos, nosso sofrimento é reduzido a um grau menor, tornando a vida mais alegre. Isso só acontece na fruição do belo e por intermédio da arte, pois nesse momento nos tornamos puros sujeitos do conhecimento, despidos de qualquer interesse. Nossa existência real é arrancada e o cristalino conhecimento permanece apartado de todo querer.
94
Para Schopenhauer, “[...] o sofrimento é essencial e a satisfação verdadeira é
impossível” (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 410-411).
Na visão de Schopenhauer, as lembranças de episódios tristes que
foram ultrapassados, de algum modo, nos causam prazer. Isso traz à tona um
exemplo exposto no segundo livro De rerum natura por Lucrécio20. Não se deve
negar que o sofrer dos outros às vezes nos propicia certo prazer, no entanto,
esse tipo de prazer encontra-se próximo do egoísmo e da maldade21.
A exposição feita por Schopenhauer acerca do sofrimento é
apresentada de uma maneira singular, visto que, em seus relatos sobre o
sofrimento, o palco principal é o mundo. Para ele, a história da humanidade
mostra como a vida é de fato. Nela, os indivíduos vivem em uma luta perpétua
para assegurar suas existências. Os homens encontram em toda parte
opositores, vivem em constante guerra e, na maioria das vezes, morrem com
suas armas em punho. Em sua obra Parerga e Paralipomena, parágrafo 150,
Schopenhauer relata:
O consolo mais eficaz em toda infelicidade, em todo sofrimento, é observar os outros, que são ainda mais infelizes do que nós: e isto é possível a cada um. Mas o que resulta disto em relação ao todo? Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara - doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura e morte, etc. (SCHOPENHAUER, 1985, p. 217)
O cenário apresentado por Schopenhauer em relação ao sofrimento é
uma via de acesso para tratar do tema da compaixão. É por intermédio do
sofrimento que iremos abordar de que modo a compaixão22 pode ser tratada
como uma ética do reconhecimento. Para isso, faremos uma abordagem geral
sobre o reconhecimento social em Hegel, que, em sua teoria da consciência e
20
Conforme nota de rodapé número 39 de O mundo como vontade e como representação: “Quando o mar está bravo e os ventos açoitam as ondas, / É agradável assistir em terra os esforços dos marinheiros: / Não que nos agrade assistir aos tormentos dos outros, / Mas é um prazer sabermo-nos livre de um mal.” (N.T) Cf. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 412). 21
Para Schopenhauer, egoísmo e maldade são as duas principais potências antimorais que alguns carregam em sua natureza, as quais, em certos casos, levam os homens a sentirem prazer em ver a infelicidade e o sofrimento de outros. 22
Em nosso segundo capítulo, discorremos sobre a compaixão e seus desdobramentos, mas para abordar o nosso problema em relação ao reconhecimento, faz-se necessário um retorno ao conceito de compaixão, pois assim podemos perceber se de fato ela pode ser traduzida como uma ética do reconhecimento via sofrimento.
95
autoconsciência, tratou da relação entre senhor e escravo para analisar de que
modo o reconhecimento se dava nessa relação.
3.2. Reconhecimento: a metáfora do senhor e do escravo em Hegel
Neste tópico pretendemos apresentar de maneira geral o
reconhecimento em Hegel com o objetivo de traçar um paralelo entre a
perspectiva hegeliana acerca do reconhecimento e a schopenhaueriana, que
nos interessa no presente trabalho. Trataremos, para isso, da metáfora do
senhor e do escravo trazida à luz por Hegel. Para se falar em reconhecimento,
será necessário, em primeiro lugar, fazer um retrocesso à história do
reconhecimento a partir de Hegel. Salientamos que o reconhecimento em
Hegel tem como suporte a dialética da autoconsciência presente na obra
Fenomenologia do Espírito, seção A, do capítulo quatro, no quadro de
desenvolvimento da autoconsciência. Tal parte se estende do parágrafo 178 ao
parágrafo 196. Desse modo, nos deteremos apenas na seção supracitada da
referida obra e em alguns comentários que tratam do mesmo tema.
Para Hegel, existem três momentos para explicar a realização do
espírito. Em primeiro lugar, Hegel trata do espírito subjetivo, em seguida do
efetivo e por fim do absoluto. Esses três momentos são importantes para se
entender de que maneira a temática do reconhecimento foi introduzida na
teoria social hegeliana, visto que o reconhecimento, em primeiro lugar, se dá a
partir do tema da consciência e da relação de independência e dependência da
consciência-de-si. Essa primeira explicação do processo de realização do
espírito pode ser aludida com o exemplo da metáfora do senhor e do escravo,
presente na Fenomenologia do Espírito (1999). A partir dessa metáfora, Hegel
irá mostrar como se dá o primeiro momento do reconhecimento que se
desdobra na consciência-de-si e para si. Posto que a palavra ‘sich’ em alemão
é singular e plural ao mesmo tempo, “assim, significa ‘si mesmo, ele mesmo,
ela mesmo, um ao outro’’’ (INWOOD, M, 1997, p. 109). Esses termos nos
servirão como auxílio de forma a ter uma melhor compreensão da relação
senhor e escravo. Parece paradoxal o entendimento que Hegel expõe na sua
dialética da consciência para a autoconsciência, no entanto, ela se faz
necessária para os desdobramentos de sua teoria.
96
Hegel inicia o parágrafo 178 com a seguinte afirmação: a consciência
de si é como algo que é para si e para o outro. Dessa duplicação surge a ideia
de momentos da consciência, ou seja, a consciência de si é dada por algo que
lhe é exterior, ela se perde e suprassume o outro. Esse termo suprassunção
(Aufhebung), segundo Alexandre de Moura Barbosa (2010, p. 72), comporta
três sentidos: a) de negação; b) de conservação e c) de elevação. Nesse ponto
em específico, quando a consciência-de-si suprassume o outro, adquire sua
essência, apropria-se dela e as duas tornam-se una. Assim, a consciência-de-
si retorna para si, libertando o outro ao trazê-lo para si.
No parágrafo 182, Hegel afirma que as duas consciências firmam-se
independentes e separadas, posto que a primeira consciência já possui o
objeto diante de si. Neste momento de independência e separação, entra em
cena a necessidade de um duplo agir, visto que, nesse momento, a
consciência-de-si firma-se como um termo médio que se decompõe nos
extremos. Então, por causa desse duplo agir, as duas consciências se
reconhecem de maneira recíproca.
Partindo desse pressuposto, a consciência-de-si é ser-para-si simples,
pois ela exclui de si todo o outro, sua essência é o seu próprio Eu e nessa
imediatez ela está em um estágio primitivo. O outro é para ela (a consciência
de si) um objeto inessencial, marcado com sinal ainda negativo, pois ela não é
capaz de reconhecer o outro, mas quando o outro se positiva, surgem então
dois indivíduos e, com eles, um duplo agir, da primeira consciência negativa e
da segunda consciência positiva. Entra em cena a luta entre as duas
consciências-de-si e ocorre, nesse momento, um combate de vida e morte
entre a primeira consciência e a segunda.
Esse é o exato momento que surge a relação entre o senhor e o
escravo, posto que o senhor aparece aqui como a vida e o escravo aparece
somente como coisa, ou seja, objeto. Assim, Hegel afirma no parágrafo 190 da
Fenomenologia, que, sendo o senhor uma consciência para si, o escravo é
aquele que irá fazer uma ligação entre o objeto do desejo do senhor, de modo
que o escravo é, para o senhor, uma coisa que irá satisfazer o desejo e o gozo
senhorial. Nesse sentido, o agir do escravo é totalmente destituído de
essência. É pura negação, posto que seu reconhecimento é dado de forma
unilateral e consequentemente desigual, visto que o senhor não o reconhece.
97
Só o contrário que é possível, ou seja, só o escravo reconhece seu senhor. A
consciência do escravo só se afirma como verdade em relação ao seu senhor.
Em contrapartida, no parágrafo 193 da obra em questão, Hegel mostra
que, embora o senhor tenha uma consciência independente em relação ao
escravo, a sua consciência também se configura como consciência escrava. Já
no parágrafo 194, o autor relata que a consciência escrava teme o seu senhor
e o que ele pode lhe fazer. Percebe-se que existe uma relação de subjugação
do escravo em relação ao senhor. Nesse caso, como é possível o escravo
perceber-se enquanto consciência de si, tendo algo de positivo nesta relação
de dependência? A essa pergunta Hegel responde no parágrafo 195 que o
positivo, o escravo, não tem um ser para si, mas ele pode encontrar-se no
trabalho, pois o trabalho é o desejo reprimido que o escravo sente. Nesse
momento, o senhor entra em crise. O que na verdade está em jogo nessa
metáfora entre senhor e escravo é a relação de dependência do escravo em
relação ao senhor. O que resta para o escravo é o sentimento de medo e
angústia que ele sente em relação ao seu senhor. No entanto, a metáfora não
se encerra aqui: o escravo passa a ser reconhecido pelo senhor e torna-se
senhor. A consciência torna-se consciência-de-si.
Todo esse relato da metáfora do senhor e do escravo foi para mostrar
o caminho percorrido por Hegel, na Fenomenologia, para identificar de que
modo o tema da consciência é relevante. A partir desse caminho traçado por
Hegel houve uma constatação histórica no processo de formação do mundo da
cultura. Os momentos retratados por Hegel em relação à metáfora do senhor e
do escravo fazem parte de um movimento dialético, visto que a consciência-de-
si se dá com a reflexão e com a percepção do mundo. No entanto, antes de
Hegel iniciar seu movimento dialético, o que é anterior a ele é o momento de
puro reconhecer, ou seja, a unidade. Essa unidade, contudo, carrega em si
uma determinidade que lhe é colocada à frente, oposta, que irá se desdobrar
em um reconhecimento, posto que, diante da consciência-de-si e para si existe
outra consciência-de-si. Devendo, desse modo, se reconhecerem
reciprocamente. Isso acarreta uma dupla significação: 1) ela perdeu a si
mesma, por isso se encontra numa outra essência, 2) com isto esta
consciência suprassumiu o outro, posto que não enxerga esse outro como
essência, porém é a si mesma que vê no outro. Portanto, o movimento dialético
98
da consciência só é possível a partir do momento em que a consciência
reconhece outra consciência-de-si.
A primeira consciência-de-si não tem diante de si o objeto, como inicialmente é só para o desejo; o que tem é um objeto independente, para si essente, sobre o qual portanto nada pode fazer para si, se o objeto não fizer em si o mesmo que ela nele faz. O movimento é assim, pura e simplesmente, o duplo movimento das duas consciências-de-si. Cada uma vê a outra fazer o que ela faz; cada uma faz o que ela exige – portanto faz somente enquanto a outra faz o mesmo. (HEGEL, 1999, p.127)
A conclusão que Hegel chega e que arremata a citação acima é que o
agir unilateral de uma consciência é inútil, nesse caso o que deve acontecer só
pode ser efetuado por intermédio de ambas as consciências. O que foi
discutido acima mostra que Hegel, em sua obra Fenomenologia do espírito,
funda a problemática da autoconsciência com a problemática do
reconhecimento propriamente dito. Noutras palavras, somente quando da
verificação de uma consciência e outra.
Assim, é necessário que cada consciência leve para a outra a sua
abstração, mas que em um segundo momento cada uma também suplante tal
abstração para que possa ocorrer o agir no outro. Mas, ao que indica, a
problemática do reconhecimento se dá no momento em que as diferenças
entre as consciências terão de ser superadas, logo, o reconhecimento surge na
luta de vida e morte.
No parágrafo 187 da Fenomenologia do Espírito (1999), Hegel afirma
que nesse momento de rivalidade há um agir duplicado, que implica uma luta
entre as duas consciências de si. Neste momento, ocorre um combate de vida
e morte entre consciência e não consciência. Cada uma tende a matar o outro
para ser apenas ser-para-si. Assim, a morte é a negação da outra consciência
que se quer independente. Confirma Hegel:
Devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida [...] O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma outra consciência-de-si independente. Assim como arrisca sua vida, cada um deve tender à morte do outro; pois para ele o Outro não vale mais que ele próprio. (HEGEL, 1999, pp.128-129)
99
Nessa luta entre vida e morte, temos primeiro uma consciência-de-si
ilustrada pela figura do senhor que, mesmo arriscando sua vida, saiu
vencedora e outra cuja vida foi conservada como coisa, a figura do escravo.
Nesse caso, ambos os momentos são desiguais e contrários. Portanto, mesmo
as consciências sendo desiguais, elas são necessárias para se compreender a
relação entre senhor e escravo, posto que existe uma dependência entre as
duas consciências. A primeira consciência, a do senhor, pelo menos em seu
primeiro momento, é independente, a segunda consciência é dependente.
Assim, “uma é o senhor, outra é o escravo” (HEGEL, 1999, p. 130).
Nessa relação de dependência, o senhor se percebe como consciência
mediada por outra, mesmo que a outra consciência, a do escravo, seja
somente uma coisidade. No entanto, essa coisidade que está relacionada com
o escravo se constitui a partir do desejo essencial para o senhor. No parágrafo
190 da Fenomenologia, Hegel afirma que o escravo é aquele que faz o elo
entre o senhor e o objeto de seu desejo, de modo que o senhor, por meio de
sua independência, realiza o desejo não da morte, mas do gozo. É por meio da
categoria trabalho que o senhor deixa o escravo de lado apenas trabalhando.
Vale ressaltar que o trabalho é o instrumento que faz a mediação
dessa relação dialética entre senhor e escravo, por isso, mesmo o escravo
sendo visto como “coisidade”, ele é essencial para o processo de
reconhecimento, mesmo que esse reconhecimento seja uma relação unilateral,
portanto desigual, posto que somente o escravo reconhece o seu senhor, o
escravo, mesmo como objeto inessencial, é essencial para o reconhecimento.
Nas palavras de Hegel:
[...] o que o escravo faz é justamente o agir do senhor, para o qual somente é o ser-para-si, a essência: ele é a pura potência negativa para a qual a coisa é nada, e é também o puro agir essencial nessa relação. O agir do escravo não é um agir puro, mas um agir inessencial. (HEGEL, 1999, p. 131)
Contudo, é necessário discorrer tanto sobre o momento em que o
senhor opera sobre o escravo quanto sobre o momento em que o escravo
opera sobre si mesmo, pois o que o escravo faz sobre si é o que também faz
sobre o outro, de forma que o reconhecimento, como anteriormente enunciado,
é um reconhecimento desigual e unilateral. A consciência sem essência do
escravo se afirma como a verdade do senhorio, mas também a consciência
100
independente do senhor se configura também como uma consciência servil. É
importante ressaltar que a consciência servil teme pelo que o senhor pode lhe
fazer, logo, sente medo e angústia em relação ao opressor, ao senhor
absoluto. Contudo, a partir do momento em que o escravo encontra-se no
trabalho, pois o trabalho é para ele o seu desejo reprimido, seu senhorio entra
em crise. Ainda existe subjugação, mas, a partir dessa circunstância, se abre
uma porta para o tema da liberdade em Hegel, sobre o qual não trataremos em
nosso trabalho.
Segundo Vittorio Hösle (2007), a obra Fenomenologia do Espírito
analisa de modo sumário a autoconscientização do servo. Nela, Hegel mostra
que, para o servo, o senhor é a essência e de certo modo sua autoconsciência,
todavia, na luta de vida e morte, a limitação do servo é abalada (segundo
momento). Na consciência da morte forma-se no servo o primeiro ser para si,
mesmo que apenas em si mesmo. Para Hegel, quando o trabalho, “desejo
refreado”, entra em cena, o servo reconhece a si mesmo e se torna uma
autoconsciência existente para si. Segundo Hösle:
Por meio desse trabalho formativo o servo ganha então pouco a pouco uma superioridade em face de seu senhor, que apenas goza. Ao trabalhar para um outro, ele se eleva “sobre a singularidade egoísta de sua vontade natural e, nesse sentido, está, segundo o seu valor, mais alto que o senhor, preso ao seu egoísmo, vendo no servo apenas sua vontade imediata, reconhecido de modo formal por uma consciência não livre”[...] Não cabe ao senhor poder reconhecer-se em um outro, com isso, porém, ele permanece preso na contradição em favor de cuja suprassunção ele havia partido para a luta pelo reconhecimento, pois o que significa para ele o reconhecimento de um ser humano que ele mesmo não reconhece? A rigor, esse reconhecimento deveria ser para ele até mesmo desagradável, pois quem é reconhecido por um ser inferior é, ele mesmo, inferior. Em todo caso, ele não pode abstrair dessa relação, pois ele é o que é – senhor – apenas por referência ao servo. (HOSLE, 2007, pp. 417-418)
O tema do reconhecimento na Fenomenologia do Espírito se apresenta
ainda de forma embrionária, pois Hegel, ao abordar a metáfora do senhor e do
escravo como processo necessário de um movimento dialético, procurou
superar os momentos iniciais da relação entre senhor e servo, posto que, ao
discorrer sobre a relação de vida e morte, surge um dos momentos
importantes, o agir duplicado. Nesse momento, cada um tende à morte do
outro; a morte é, portanto, a negação da outra consciência-de-si. No entanto,
se ambos continuarem lutando e, em decorrência dessa luta, uma das
101
consciências perecer, a vitória seria inócua e o momento inicial, ou seja, o
retorno à abstração seria apontado.
Retomando a dialética, infere-se que a vida é essencial no processo de
reconhecimento, pois ambas as consciências (do senhor e do escravo) são
necessárias uma a outra, mesmo que o senhor perceba que o outro é apenas
uma coisidade e se relaciona com ele por meio do desejo, a coisa como tal,
neste caso, é ainda essencial. É importante ressaltar que a categoria trabalho é
a mediadora dessa relação dialética, pois o trabalho transforma a servidão em
forma libertadora.
A consciência subjugada ou consciência servil, inessencial, que foi
tratada como coisidade, é o que marca a mediação entre o senhor e o mundo
da vida. Surge então o vencedor da luta, o escravo, pois somente ocorre um
momento dialético, no qual se dá o reconhecimento, mediante a existência
essencial do escravo. Trabalhando, o escravo sabe de seu valor assim como o
senhor sabe dessa condição. Portanto, no final, quem vence a luta é o escravo.
A dominação se apresenta também inversamente, por isso, o escravo torna-se
um ser independente.
Observamos que Hegel elaborou uma teoria social que foi construída
primeiramente com a independência e dependência da consciência-de-si,
surgindo, a partir daí, a temática da dominação e escravidão apresentada em
sua obra da juventude Fenomenologia do Espírito. Nessa, supostamente
ocorreu o primeiro momento do movimento que Hegel caracterizou como
dialético, ponto de partida para a construção de sua teoria social e para o tema
do reconhecimento.
O movimento realizado por Hegel em suas obras da maturidade irá
terminar no Estado, já que, para ele, o Estado é a suprema instância da
eticidade. Hegel irá delimitar a supremacia do Estado em duas obras:
Enciclopédia e Princípios da Filosofia do Direito. Nessas obras, Hegel dá
andamento ao seu projeto maior em relação ao tema do reconhecimento, visto
que o Estado moderno se faz mediante uma grande pluralidade de
reconhecimentos. Portanto, para Hegel, o Estado como uma unidade suprema
deve proporcionar aos seus cidadãos condições de serem reconhecidos
plenamente.
102
Para Hegel, o reconhecimento tem seu primeiro momento na
abstração, mediada pela relação entre senhor e escravo, e, em seguida,
caminha para a sociedade civil para, por último, chegar ao Estado, o qual, para
Hegel, é a síntese dos momentos históricos antes construídos. Na obra
Princípios da Filosofia do Direito, Hegel divide seu sistema em Direito abstrato,
Moralidade subjetiva e Moralidade objetiva. Nessa terceira e última parte,
Hegel faz uma explanação sobre momentos que podemos considerar também
como dialéticos. Ele começa seu percurso tratando do Direito abstrato, que é a
parte que se ocupa do direito dos indivíduos. Nessa parte, Hegel tratou da
família e suas relações parentais, por exemplo, o amor dos pais. Aí já se
vislumbra a primeira forma de reconhecimento, já que os pais reconhecem no
amor a importância dos filhos.
O segundo momento é a passagem da família para a sociedade civil e,
por fim, dessa para o Estado. Desse modo, observamos que a teoria do Estado
em Hegel segue um percurso dialético-histórico bem construído. “É assim que
este nosso tratado sobre ciência do Estado nada mais quer representar senão
uma tentativa de conceber o Estado como algo de racional em si”, diz Hegel
(1997, p. 37). Isso mostra a importância que Hegel concebeu ao Estado, pois,
para Hegel, superior ao Estado somente o espírito absoluto, tendo em vista que
a arte, a religião e a filosofia, nessa ordem que se segue, já pressupõe um
reconhecimento universal por mérito e dádiva do Estado.
As elucidações feitas em relação ao tema do reconhecimento em
Hegel, em sua obra Fenomenologia do Espírito, mais especificamente na parte
que esse trata da dominação e escravidão, serviram como ponto de apoio em
relação à abordagem do tema desse trabalho, o reconhecimento via compaixão
em Schopenhauer; contudo, o caminho percorrido por Hegel em relação ao
reconhecimento segue uma proposta diferente em relação ao reconhecimento
via sofrimento. Para analisar se é possível a compaixão como uma ética do
reconhecimento em Schopenhauer, é necessário analisar as diferenças entre
os dois autores.
Em Hegel, o reconhecimento é trabalhado via dialética e sua teoria
segue um percurso histórico no qual se agregam momentos necessários para
se chegar a uma teoria social do Estado. Já Schopenhauer não trabalha a
categoria reconhecimento de maneira explícita em suas obras, visto que ele
103
não percorre nenhum caminho dialético e nem aborda nenhuma teoria política
e social no âmbito do Estado como a teoria hegeliana. Pelo contrário,
Schopenhauer foi um critico severo de Hegel.
Tentaremos, agora, verificar a possibilidade de se vislumbrar uma ética
do reconhecimento em Schopenhauer por meio da compaixão. O tema da
compaixão foi trabalhado no capítulo II desse trabalho, portanto, o que faremos
nesse último tópico será uma tentativa de mostrar se é ou não possível uma
ética do reconhecimento pelo viés dos atos compassivos.
3.3. A possibilidade de se pensar uma ética do reconhecimento em
Schopenhauer por meio da compaixão
A compaixão foi apresentada por Schopenhauer como fundamento da
moral por meio da obra Sobre o fundamento da moral e da sua obra principal O
mundo como vontade e como representação, em especial, o livro quatro.
Nelas, o autor analisa a compaixão como um sentimento que surge de maneira
imediata e espontânea, ultrapassando o egoísmo da vontade. Para
Schopenhauer, a compaixão é uma motivação moral por excelência.
Segundo o filósofo, a compaixão é um fenômeno misterioso, que,
entretanto, pode ser vivenciado por todos. Até os mais duros de coração
podem, por meio do sofrimento, sentir compaixão por outrem. É por meio do
sofrimento do outro que a compaixão entra em cena. O agente compassivo se
identifica com o outro que sofre em certa medida. A partir do momento que eu
me identifico com o outro, estou consequentemente desfazendo a barreira
entre o eu e o não eu, mesmo que essa supressão seja apenas momentânea.
Essa supressão é necessária para que ocorra o fenômeno da compaixão:
somente quando olho para outrem e vejo o seu sofrimento, mesmo que esse
alguém seja um estranho ou uma pessoa indiferente, é possível que a dor, a
precisão e a necessidade do outro tornem-se meus. Quando isso ocorre, eu já
não vejo nenhuma diferença entre mim e o outro. Percebemos que é por
intermédio do sofrimento que a compaixão entra em cena.
Schopenhauer, em sua obra Sobre o fundamento da moral (2001),
analisa a compaixão de forma mais detalhada. Para um melhor entendimento
sobre a compaixão, Schopenhauer elabora a seguinte pergunta: como é
104
possível que o sofrimento de outra pessoa que não me diz respeito, possa me
levar diretamente a agir, como se fosse para mim o meu próprio motivo? Em
resposta, ele discorre que é por meio da dor de outrem que a compaixão surge
como algo intuitivo, brotando em cada um. Nesse momento, reconhecemos o
sofrer do outro como se fosse o nosso próprio sofrimento. Isso pressupõe que
eu me identifique com esse outro, que sofra com ele. Nas palavras de
Schopenhauer:
[...] embora sua pele não encerre meus nervos. Só por meio disso o seu mal, a sua necessidade tornam-se motivos para mim. Fora disso, só podem ser motivos os meus próprios. Este processo é, eu repito, misterioso, pois é algo que a razão não pode dar conta diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos pela caminho da experiência. E, no entanto, é algo cotidiano. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 163)
A citação acima esclarece que a compaixão é um processo misterioso
por ser um sentimento que brota de maneira intuitiva e que até mesmo os mais
severos e duros de coração podem sentir. É um processo sem muita reflexão,
que pode alcançar qualquer pessoa, seja ela perversa, maldosa ou egoísta. O
agente compassivo socorre, ajuda e ainda se coloca no lugar do outro, sofre
com ele, o reconhece e muitas vezes arrisca sua própria vida quando vê o
outro em perigo.
Desse modo, a compaixão, como um evento espontâneo que
ultrapassa as vontades egoístas, estabelece uma união entre os seres que
sofrem e o agente compassivo. Assim, a barreira da individualidade é
suprimida: o agente compassivo reconhece no outro suas dores e sofrimentos.
Nesse momento, surgem a autêntica bondade, a virtude desinteressada e a
pura nobreza. Schopenhauer aponta que a compaixão se efetiva de dois
modos distintos. O primeiro momento aparece como negativo e pode ser
traduzido como “não causar injustiça aos outros”. Esse primeiro grau da
compaixão inibe as potências antimorais como o egoísmo e a maldade. O
segundo grau da compaixão, que o autor aponta como positivo, é uma ajuda
ativa. Esse grau consiste em um reconhecimento efetivo. Diante desse
reconhecimento, o agente compassivo se coloca no lugar do outro e exerce
uma ação que tem como finalidade ajudar o outro.
A participação direta no sofrimento de alguém de maneira instintiva é a
única fonte verdadeiramente dotada de valor moral. A compaixão desperta em
105
nós um contentamento íntimo, o qual Schopenhauer chama de “consciência
boa, pacificada e aprovadora” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 160). Em
decorrência dessa participação direta, surge também no observador certa
aprovação, respeito e admiração por si mesmo e esse olhar voltado para si faz
com que, em certa medida, ele se torne também um sujeito digno de
admiração.
Portanto, a boa consciência é respaldada pelo reconhecimento
imediato e desinteressado no sofrer de outrem. O indivíduo que reconhece no
outro suas dores e as toma como se fossem suas tem seu coração dilatado.
Isso mostra que a compaixão é capaz de estreitar o abismo que existe entre os
indivíduos. No momento em que um indivíduo com uma boa disposição de
caráter reconhece o outro como sendo igual a si mesmo, ele certamente não
irá causar nenhum dano ou mal a outros, posto que o sofrimento visto em
outros indivíduos o afeta diretamente. Noutras palavras, esse indivíduo irá
restabelecer o seu equilíbrio, renunciará aos gozos e aceitará privações para
aliviar o sofrimento de outrem. A partir daí, não mais existe uma barreira ou um
abismo entre um homem e outro e até mesmo em relação aos animais.
Confirma Schopenhauer:
O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence a um fenômeno passageiro e ilusório; reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo: sim, que ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza, logo, ele também não causará tormento a animal algum. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 473-474, grifos do autor)
Nesse momento de reconhecimento entre homens ou entre homens e
animais a barreira da individualidade foi ultrapassada, o Véu de Maia se torna
transparente. Nesse momento, o homem “reconhece a si mesmo, a sua
vontade, em cada ser, consequentemente também em quem sofre”
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 474). Observamos que o processo que viabiliza o
sentimento da compaixão é o sofrimento. Logo, o sofrimento é o caminho que
conduz o homem a se colocar no lugar de outros seres, pois o que causa o
sofrimento são as carências, as necessidades e os desejos que não são
satisfeitos ao longo de toda uma vida. Por isso, o homem sempre está à mercê
dos infortúnios da vida.
106
Em O Pequeno Tratado das Virtudes Grandes, de André Comte-
Sponville (1995), o autor aborda, no capítulo oito, o tema da compaixão e
coloca o seguinte questionamento: se compadecer é sofrer com, e se todo
sofrimento é ruim, como a compaixão poderia ser boa? Considerando que ela
(a compaixão) opõe-se, por exemplo, à crueldade, à maldade, à indiferença e à
dureza de coração, a compaixão pode ser considerada amável, pelo menos do
ponto de vista da caracterização que encontramos nos dicionários. Sponville
nos diz que o quase sinônimo de compaixão é simpatia, que se diz em grego
do mesmo modo que se diz no latim. Já no italiano, compaixão e piedade são
sinônimas.
Porém alguns críticos nas palavras de Sponville tomaram a compaixão
como algo depreciativo, pois, para tais críticos, a compaixão só aumenta a
quantidade de sofrimento no mundo e é por esse motivo que alguns filósofos a
condenam. Em seu tratado, Sponville cita alguns autores que criticaram a
compaixão, partindo dos estóicos a Hannah Arendt, passando por Spinoza e
por Nietzsche. Sponville cita Spinoza que, em relação à compaixão, se
aproxima dos estóicos. Sponville, apresentando a concepção de Spinoza,
relata que “a piedade, num homem que vive sob a condução da razão, é em si
má e inútil” (SPONVILLE, 1995, p. 119).
Para Sponville, os sábios, na medida do possível, se esforçam em não
se deixarem tocar pela piedade. Em relação a Nietzsche que, mesmo
considerando Schopenhauer como seu educador, não deixou passar em vão o
tema da compaixão, Sponville o cita quando este diz que “viveríamos melhor
sem a piedade, pelo menos os que vivem bem viveriam melhor” (SPONVILLE,
1995, p. 122). Em relação a Nietzsche23, suas críticas em relação à compaixão
podem ser encontradas nas obras Além do Bem e do Mal, Assim falou
Zaratustra, Genealogia da Moral e Humano, demasiado humano. Nessas
obras, Nietzsche trata do tema da compaixão de um modo mais específico.
Contudo, para Sponville, foi Schopenhauer que tratou o tema da
compaixão de maneira bem mais profunda, ao analisar a compaixão como o
23
A referência das obras de Nietzsche citadas nesse trabalho tem apenas o intuito de informar ao leitor que as críticas feitas por ele ao tema da compaixão podem ser encontradas nessas obras. Contudo, não abordaremos o conteúdo das obras citadas. Pretendemos, em um momento posterior, fazer uma interface entre Nietzsche e Schopenhauer em relação ao tema da compaixão.
107
móbil por excelência da moralidade, ou seja, seu fundamento. Uma observação
importante feita por Sponville em relação à compaixão em Schopenhauer foi
que este último tratou da compaixão não somente entre iguais, mas também
em relação aos animais. Nas palavras de André Comte-Sponville:
A compaixão, ao contrário, simpatiza universalmente com tudo o que sofre: se temos deveres para com os animais, como acredito, é antes de tudo por ela, ou nela, e é por isso que a compaixão talvez seja a mais universal de nossas virtudes. (SPONVILLE, 2000, p. 123)
Schopenhauer em Sobre o Fundamento da Moral relata que é apenas
por meio do sofrimento, muito embora ele seja dado como algo externo,
meramente por intermédio da intuição ou por notícia, que se pode por simpatia
sentir a dor e o sofrimento de outros. Isso pressupõe que eu me identifique com
o outro, pois só assim haverá reconhecimento.
A compaixão, no entanto, sempre está ligada à infelicidade, ao
sofrimento. Schopenhauer, como já dissemos, considera que a essência da
vida é o sofrimento. Para que se dê o processo de compaixão, é necessário
entender que, no momento do ato compassivo, eu me identifico com o outro
que sofre, mas essa identificação não faz com que eu sinta a sua dor. É
importante ressaltar que:
[...] ele é o sofredor e não nós: e justo na sua pessoa e não na nossa sentimos sua dor, para nossa perturbação. Sofremos com ele, portanto, nele, e sentimos sua dor como sua e não temos a imaginação de que ela seja nossa. E mesmo, quanto mais feliz for o nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a consciência dele com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a compaixão. (SCHOPENHAUER, 1995, p.133)
No entanto, o fenômeno da compaixão é a maior expressão de uma
motivação não egoísta e a única considerada por Schopenhauer como
genuinamente moral, pois é por meio da compaixão que rompemos com o
principium individuationis e com o véu da ilusão. Para Schopenhauer, esse véu
denominado por ele de Maia, quando rompido, permite que o indivíduo
reconheça a si próprio e se reconheça imediatamente no outro. Confirma
Schopenhauer:
Se aquele Véu de Maia, o principium individuationis, é de tal maneira retirado aos olhos de um homem que este não faz mais diferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481)
108
O principium individuationis é, para Schopenhauer, algo real, visto que
é nele que repousa a diferenciação entre os indivíduos. Mesmo sendo algo
real, cada um pode em algum momento se despir do mesmo, assim como
ultrapassar o véu de Maia. Cada indivíduo carrega em si seu próprio
sustentáculo, ou seja, sua essência, que é o fundamento do seu próprio ser.
Por esse motivo que existem pessoas tão diferentes com traços marcantes e
que, na maioria das vezes, agem movidas pelas suas próprias necessidades,
envoltas numa ilusão que podem encorajar ou coibir certos atos de conduta;
que podem ser: maldosos, egoístas, cruéis ou compassivos. Isso depende
também dos traços de caráter que cada um carrega em si.
Pelo que foi exposto acima, é importante rever a doutrina dos
caracteres em Schopenhauer já enunciadas no segundo capítulo desse
trabalho, mais especificamente no tópico 1.4 do primeiro capítulo. Diante da
doutrina dos caracteres, é importante ressaltar que o homem que carrega em
seu caráter traços de bondade vive num mundo exterior homogêneo. Por isso,
sua relação originária com cada ser é uma relação amigável, tendo em vista
que esse homem bom participa tanto do bem-estar como também do mal-estar
dos seus semelhantes. Então, o que surge dessa participação? Schopenhauer
dirá que surge uma paz interior inabalável: “A partir daí surge a sua profunda
paz interior e aquele humor confiante, tranquilo e satisfeito, em virtude do qual
todos os que lhe estão próximos ficam bem” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 220).
Em contrapartida, o mau caráter não confia na assistência de outros.
Esse é, supostamente, um dos motivos que leva o homem mau a um não
reconhecimento de outros que precisam de ajuda e dele necessitam, já que
sua índole não permite nenhuma forma de assistência para com aqueles que
sofrem. Esse homem de natureza ruim é ainda incapaz de reconhecer a si
mesmo em outro. Schopenhauer nos diz que “é nisto que repousa o caráter
revoltante de toda ingratidão” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 220). Assim, o
homem de bom caráter está sempre em prontidão para prestar ajuda a seus
semelhantes. O homem de má índole, pelo contrário, prioriza a sua
individualidade e isso é o que o torna diferente do bom caráter. Portanto, o
reconhecimento está presente mesmo que implicitamente na teoria moral de
Schopenhauer.
109
Tendo em vista que a compaixão é uma ajuda desinteressada e, ao
mesmo tempo, algo que brota em cada um de nós de maneira intuitiva, visando
exclusivamente a necessidade de outrem, ela, se pesquisada até seu
fundamento último, recai sobre uma ação misteriosa, isto é, uma prática
mística. O homem compassivo, portanto, deve reconhecer no outro sua própria
essência. É por isso que a explicação metafísica do fenômeno da compaixão é
“o maior mistério da ética” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 221).
Para Schopenhauer, o homem que consegue olhar sua própria
essência nos demais seres está livre da sua individualidade e
consequentemente livre do véu da ilusão. Nesse caso, todos os que
conseguem fazer essa operação de catarata conseguem visualizar todos os
seres como aqueles que fazem parte de uma mesma essência. Do contrário,
quando os indivíduos ainda estão amarrados apenas na sua individualidade,
eles não podem ir além do conhecimento abstrato, ainda estão subordinados
ao princípio de razão. Noutras palavras, se os indivíduos não conseguem olhar
para os outros e perceberem que a barreira da individualidade não poderá ser
suprimida, tais indivíduos estão ainda envoltos no Véu de Maia.
Porém, se por algum motivo, o sofrimento de outrem se torna o motivo
das minhas ações, torna-se então notável a identificação estabelecida entre
mim e ele, de modo que a barreira do principium individuationis pode ser
suprimida. Frente a esse fato, observamos que a razão e os conceitos não
podem dar conta desse fenômeno originário que brota em cada um de nós de
modo desinteressado. Contudo, a compaixão busca um reconhecimento
imediato através da dor e do sofrimento de outrem via intuição. O grande
mistério da ética, nas palavras de Schopenhauer, é, de fato, a compaixão. Para
tal comprovação é necessário fazer um retrocesso ao segundo capítulo,
quando elencamos o caso de Caio e Tito, bem como o caso do caçador Harris.
Ambos os casos que foram relatados por Schopenhauer, a nosso ver,
trazem uma marca da compaixão. Em especial, o caso de Tito, pois esse, de
fato, foi tomado pelo sentimento da compaixão, posto que, quando chegou a
hora de mandar seu adversário para o ‘inferno’, ele desistiu de tal feito. O que
fez com que o mesmo desistisse de tal ato foi o sentimento de compaixão que
o mesmo sentiu pelo seu oponente. Em contrapartida, Caio somente desistiu
do crime por pensar que poderia ser castigado, por temor a Deus, entre outras
110
possibilidades. No caso relatado, Schopenhauer pergunta, quem seria o melhor
homem?
No segundo caso, do caçador Harris, a compaixão foi tão efetiva que
ao matar sua caça, um elefante fêmea, e tendo na manhã seguinte voltado ao
lugar do assassinato, ele assustou-se quando viu o filhote no local com um
olhar de profunda tristeza e o pequeno animal enrolou sua tromba no caçador
pedindo socorro. Nesse momento, Harris sentiu uma profunda compaixão e,
daquele momento em diante, não mais saiu para caçar. Esses casos retratam a
importância de se colocar no lugar do outro. Podemos observar que houve um
reconhecimento por parte dos protagonistas dessas histórias. O que mais nos
chamou atenção é que o ato compassivo esteve diretamente ligado ao
sofrimento, pois, somente por meio do sofrimento, é que podemos reconhecer
a dor de outrem, tendo em vista que o sofrimento pode ser o caminho para o
reconhecimento.
As ilustrações acima nos levam a pensar se a compaixão é possível
como uma ética do reconhecimento, visto que, nos casos supracitados, o
sentimento da compaixão foi eficaz. Posto isso, fazemos a pergunta: será que
a compaixão pode ser vislumbrada como uma ética do reconhecimento? Ao
nosso entender e diante dos relatos acima abordados, mesmo que
sumariamente, a compaixão é possível como uma ética do reconhecimento,
tendo em vista que, no momento em que eu me compadeço com o outro, a
individualidade cessa e os indivíduos estão livres do véu da ilusão e
consequentemente do princípio de razão suficiente. Assim, se conseguimos
reconhecer a nós mesmos por meio do sofrimento do outro, podemos nos
tornar agentes morais. Essa visão de Schopenhauer é diferente do
reconhecimento em Hegel, que se dá por meio de uma dialética racional da
consciência sem nenhum apelo ao conhecimento intuitivo. Hegel é
severamente criticado pelo filósofo Schopenhauer por defender que a
racionalidade é a mola propulsora de todo o conhecimento. Em Schopenhauer,
o reconhecimento abrange todos os seres, sejam eles racionais ou irracionais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O propósito deste trabalho foi analisar se é possível a compaixão como
uma ética do reconhecimento em Schopenhauer, tendo em vista que a
compaixão já é para Schopenhauer o fundamento da moral. Buscamos
identificar o percurso percorrido por Schopenhauer, levando em consideração
seu pensamento único presente na obra O mundo como vontade e como
representação. Falamos de pensamento único, pois há uma arquitetônica
coesa na filosofia schopenhaueriana, onde cada uma das suas partes segue
uma simetria e os quatro livros dialogam entre si.
Em seguida, fizemos um percurso através de sua obra Sobre o
fundamento da moral, visto que, nessa, Schopenhauer irá tratar de modo
sumário o tema da compaixão. Ainda foi necessário abordar pontos
importantes do seu primeiro trabalho de Schopenhauer, escrito ainda em sua
juventude, A raiz quádrupla do princípio de razão suficiente, em sua primeira
versão datada de 1813. Essa obra foi uma propedêutica para se entender os
desdobramentos de sua obra principal O mundo como vontade e como
representação.
A obra A raiz quádrupla do princípio de razão suficiente serviu de
embasamento teórico para se entender principalmente o víeis epistemológico
de Schopenhauer, tendo em vista que nessa obra o autor trata de um princípio
que serviu como o mais fundamental para todas as ciências, pois, para
Schopenhauer, as ciências nada mais são que um conjunto de verdades
encandeadas dispostas em quatro modalidades. Para tanto, Schopenhauer
dividiu o referido princípio em quatro raízes, que são: (a) do devir, (b) do
conhecer, (c) do ser e (d) do agir. Essas quatro raízes são apresentadas por
Schopenhauer no decorrer da tese, servindo de suporte para se entender como
o princípio de razão suficiente é importante para as descobertas científicas e
para o agir apresentado por ele em sua última raiz. Trabalhamos também os
conceitos de representação e Vontade, fundamentais para o entendimento
epistêmico e metafísico de seu projeto filosófico. Embora o mundo como
representação seja ligado ao princípio de razão suficiente e o mundo como
Vontade seja apartado desse princípio no que tange a Vontade como coisa em
si, quando as vontades se particularizam, elas também estão atreladas ao
princípio de razão suficiente. Contudo, o mundo para Schopenhauer é
112
representação e Vontade, os quais juntos formam os dois lados da mesma
moeda.
Ainda no mesmo capítulo, de um modo geral, foram citadas as críticas
tecidas por Schopenhauer a Kant, no que se refere a Kant ter dado primazia à
razão. Em contrapartida, Schopenhauer sustentou que a Vontade é primária
em relação à razão, que é secundária. Mesmo tecendo críticas a Kant,
principalmente no apêndice de O mundo como vontade e como representação,
Schopenhauer reconhece que o maior mérito de Kant foi ter distinguido o
fenômeno da coisa em si. Schopenhauer transformou a coisa em si kantiana
em Vontade e o fenômeno em representação. Faremos, agora, uma breve
exposição de que foi trabalhado em cada capítulo.
No primeiro capítulo, ressaltamos a importância de sua epistemologia,
no que tange o princípio de razão e suas quatro raízes. Em seguida,
trabalhamos os conceitos de representação e Vontade, levando em
consideração os dois lados do mundo já enunciados acima e os tipos de
caracteres inteligível, empírico e adquirido. Esse último tópico do primeiro
capítulo faz alusão aos diferentes modos de agir dos indivíduos.
No segundo capítulo, direcionamos nossa atenção às motivações
antimorais (egoísmo e maldade) expostas nas obras O mundo como vontade e
como representação (especialmente o livro quatro) e Sobre o fundamento da
moral. Nesse tópico, discorremos acerca das motivações antimorais ora
referenciadas, tendo em vista que, para Schopenhauer, essas são as
motivações de maior força que a compaixão tende a combater. Seguindo,
tratamos a compaixão como o fundamento da moral para então aludirmos
sobre as virtudes da justiça e da caridade, que, para Schopenhauer, são as
virtudes morais que se desdobram da compaixão. Ainda, nesse capítulo,
discorremos acerca da compaixão então apresentada como um fenômeno
empírico e metafísico.
O fenômeno da compaixão é, para Schopenhauer, considerado como o
maior mistério da ética, pois essa não depende de dogmas, religiões, preceitos.
Vimos que, partindo de alguns axiomas, Schopenhauer chega a identificar a
compaixão como um processo que não é sonhado ou apanhado no ar; é algo
real e não raro, posto que a compaixão é um fenômeno diário que tem como
pano de fundo o impedimento ou supressão de um sofrimento. A compaixão
113
sozinha é encarada por Schopenhauer como a base efetiva de toda justiça livre
e caridade genuína. Somente uma ação que dela surge tem verdadeiro valor
moral. Toda ação que carrega outras motivações externas é destituída de valor
moral.
No terceiro e último capítulo, considerado o mais importante desse
trabalho, prosseguimos com o tema da compaixão, no entanto, atrelado
diretamente ao sofrimento de outrem, pois é por intermédio do sofrimento que
procuramos vislumbrar uma ética do reconhecimento em Schopenhauer. É
necessário esclarecer que Schopenhauer não trabalha este conceito
(reconhecimento) em suas obras. O que se procurou foi tentar observar a
compaixão pelo viés do sofrimento para vislumbrar se é possível uma ética do
reconhecimento seguindo esse itinerário. Portanto, em certa medida, quando
reconhecemos que a dor é o sofrimento de outrem, estamos rompendo com a
barreira da individualidade, denominada por Schopenhauer de Véu de Maia, ou
véu da ilusão, pois, no momento do ato compassivo, estamos suprimindo a
barreira que existe entre o eu e o outro, reconhecendo o outro como extensão
de si mesmo.
Contudo, percebemos, ao longo da pesquisa que, para se tratar do
tema do reconhecimento, seria necessário retornar a Hegel no que se refere à
problemática do reconhecimento. Para isso, discorremos acerca da metáfora
do senhor e do escravo de modo a entender como Hegel entende o tema do
reconhecimento na obra Fenomenologia do espírito, tendo em vista que, nessa
obra, o autor segue uma via dialética para explicar a relação entre dominante e
dominado. Outra motivação que nos levou a retomar o tema do
reconhecimento em Hegel é que o reconhecimento, para esse filósofo, se dá
entre consciências e Schopenhauer vai além, pois, para ele, não só os homens
são dignos de reconhecimento, mas também os animais que, apesar de não
terem consciência, são também dignos de compaixão e reconhecimento.
Percebemos que o reconhecimento em Hegel é somente entre consciências e
não se dá em relação aos animais por ser Hegel um filósofo que vê na
racionalidade toda a veracidade do real, ou seja, do mundo.
Tomamos como ponto de apoio a metáfora do senhor e do escravo, na
qual percebemos que não há nem sofrimento, nem ajuda ativa, nem
compaixão. Hegel, ao tratar sobre o tema do reconhecimento, não aborda a
114
ajuda ativa do senhor em relação ao escravo, ou seja, nessa metáfora, o
senhor não reconhece nenhum tipo de sofrimento no escravo, que é visto como
uma coisidade e não como outro indivíduo que sofre. Noutras palavras, o
escravo está preso ao senhor, é dominado pelo mesmo e não existe nenhuma
possibilidade do senhor sentir compaixão pelo escravo. O tipo de
reconhecimento que existe na filosofia hegeliana segue um percurso diferente
do qual nos propomos analisar. Nesse sentido, nosso percurso foi seguido,
levando em consideração o sofrimento, para se chegar a uma ética do
reconhecimento via sofrimento tendo como suporte a compaixão.
Por fim, procuramos verificar a possibilidade de se pensar uma ética do
reconhecimento aos moldes schopenhauerianos e tentamos descrever alguns
casos que Schopenhauer expôs ao longo de suas obras O mundo como
vontade e como representação e Sobre o fundamento da moral, em especial, o
caso dos jovens Caio e Tito, bem como o caso do caçador Harris. Se tomarmos
esses casos como exemplo, então podemos aferir que, por meio do sofrimento,
a compaixão pode ser vislumbrada como uma ética do reconhecimento em
Schopenhauer.
115
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