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ANO 18 Nº 5 SETEMBRO/2010 TIRAGEM: 20 000 EXEMPLARES E mais... A antiga URSS prometia um progresso jamais visto. A Rússia atual exibe uma retração demográfica inédi- ta em tempos de paz. Pág. 2 Editorial – Um site publicou dados confidenciais sobre a guerra no Afeganistão. O Pen- tágono desafia a Constituição americana e ameaça o site. Pág. 3 As ditaduras abriam a cor- respondência de dissidentes para intimidá-los e reprimi- los. Hoje, elas exigem a cumplicidade das empresas de internet. Pág. 3 Dez anos após a conclusão do Projeto Genoma Humano, nasce a Medicina Genômica. Pág. 4 Ao surgir, há meio século, a pílula anticoncepcional impulsionou a “revolução sexual”, ocupando um lu- gar igualmente importante na política e nos negócios. Pág. 5 O Meio e o Homem – O clima global é um sistema complexo, ainda pouco de- cifrado, em cujo núcleo está o Oceano Pacífico. Pág. 10 Diário de Viagem – A mito- logia da Revolução Cubana ocultou por muito tempo a realidade de Cuba: lá não existe um “paraíso socialista”. Pág. 11 Hugo Chávez enfrenta um obstáculo na sua corrida rumo ao poder perpétuo: as eleições parlamentares. Ele manobra para saltar essa barreira. Pág. 12 A TURQUIA FLERTA COM O ORIENTE A Turquia é o tema do momento em Washington e nas capi- tais europeias. Numa série de lances inesperados, o governo turco enviou duas claras mensagens ao Ocidente. Elas têm um conteúdo comum: a Turquia está olhando em outra direção. Mensagem um: os turcos patrocinaram, junto com o Bra- sil, o acordo tripartite sobre o programa nuclear iraniano. O acerto enfureceu Washington e foi rejeitado pelas demais potências do Conselho de Segurança da ONU. Mensagem dois: os turcos protestaram veementemente contra o ataque israelense a um comboio de navios organiza- do por uma ONG turca que se destinava a romper o blo- queio da Faixa de Gaza. A aliança entre Turquia e Israel se dissolve aos poucos. A conquista de Constantinopla, pelos turco-otomanos, em 1453, inaugurou a Idade Moderna. A Europa definiu sua iden- tidade pela adesão à herança romana e cristã – e por oposição ao Islã. O Império Otomano era o Oriente; a Europa, o Ocidente. O colapso do Império Otomano e o surgimento da atual República da Turquia, em 1923, propiciaram o surgimento de uma ponte entre Ocidente e Oriente. No pós-guerra, a Turquia ingressou na OTAN e candidatou-se a um lugar na Comunidade Europeia (atual União Europeia). Mas a Euro- pa continua, meio século depois, a rejeitar a Turquia. A guerra no espelho dos relatórios confidenciais UCA OU ARAPUCA? Tecnologias do futuro podem recriar terrores do passado na sala de aula Os turcos parecem fartos da rejeição. Um partido islâmico moderado governa a Turquia laica e democrática. Esse governo está dizendo que não esperará indefinidamente às portas da Europa. A ponte erguida entre dois mundos começa a rachar. Vejas as matérias nas págs. 6 a 8 Nacionalismo turco em alta: tensões internas e regionais levam multidões ao protesto nas ruas de Istambul © Bulent Kilic/AFP © Wilson Dias/ABr M ais de 90 mil relatórios militares e de inteligência americanos sobre a guerra no Afeganistão foram parar na internet. A fonte oculta do vazamento situa-se, obviamente, dentro do Pentágono. Os generais ameaçam o site que publicou o material. A Casa Branca teme seus efeitos sobre uma opinião pública cansada da guerra interminável. Não há nenhuma revelação estrondosa. Mas lá se encontra a des- crição detalhada de horrores cotidianos e de ações que devem ser definidas como crimes contra a população civil. Há mais que isso. Os serviços de inteligência americanos acredi- tam que a mais poderosa agência de inteligência do Paquistão parti- cipa quase diretamente da guerra – ao lado do Talebã e da Al-Qaeda. Também acreditam que o Irã decidiu apoiar os inimigos dos Estados Unidos – que são seus próprios inimigos. Pág. 9

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■ ANO 18 ■ Nº 5 ■ SETEMBRO/2010 ■

TIRAGEM: 20 000 EXEMPLARES

E mais...

● A antiga URSS prometiaum progresso jamais visto.A Rússia atual exibe umaretração demográfica inédi-ta em tempos de paz.

Pág. 2

● Editorial – Um site publicoudados confidenciais sobre aguerra no Afeganistão. O Pen-tágono desafia a Constituiçãoamericana e ameaça o site.

Pág. 3

● As ditaduras abriam a cor-respondência de dissidentespara intimidá-los e reprimi-los. Hoje, elas exigem acumplicidade das empresasde internet.

Pág. 3

● Dez anos após a conclusão doProjeto Genoma Humano,nasce a Medicina Genômica.

Pág. 4

● Ao surgir, há meio século,a pílula anticoncepcionalimpulsionou a “revoluçãosexual”, ocupando um lu-gar igualmente importantena política e nos negócios.

Pág. 5

● O Meio e o Homem – Oclima global é um sistemacomplexo, ainda pouco de-cifrado, em cujo núcleo estáo Oceano Pacífico.

Pág. 10

● Diário de Viagem – A mito-logia da Revolução Cubanaocultou por muito tempo arealidade de Cuba: lá nãoexiste um “paraíso socialista”.

Pág. 11

● Hugo Chávez enfrenta umobstáculo na sua corrida rumoao poder perpétuo: as eleiçõesparlamentares. Ele manobrapara saltar essa barreira.

Pág. 12

A TURQUIA FLERTA

COM O ORIENTEATurquia é o tema do momento em Washington e nas capi-

tais europeias. Numa série de lances inesperados, o governoturco enviou duas claras mensagens ao Ocidente. Elas têm umconteúdo comum: a Turquia está olhando em outra direção.

Mensagem um: os turcos patrocinaram, junto com o Bra-sil, o acordo tripartite sobre o programa nuclear iraniano. Oacerto enfureceu Washington e foi rejeitado pelas demaispotências do Conselho de Segurança da ONU.

Mensagem dois: os turcos protestaram veementementecontra o ataque israelense a um comboio de navios organiza-do por uma ONG turca que se destinava a romper o blo-queio da Faixa de Gaza. A aliança entre Turquia e Israel sedissolve aos poucos.

A conquista de Constantinopla, pelos turco-otomanos, em1453, inaugurou a Idade Moderna. A Europa definiu sua iden-tidade pela adesão à herança romana e cristã – e por oposição aoIslã. O Império Otomano era o Oriente; a Europa, o Ocidente.

O colapso do Império Otomano e o surgimento da atualRepública da Turquia, em 1923, propiciaram o surgimentode uma ponte entre Ocidente e Oriente. No pós-guerra, aTurquia ingressou na OTAN e candidatou-se a um lugar naComunidade Europeia (atual União Europeia). Mas a Euro-pa continua, meio século depois, a rejeitar a Turquia.

A guerra no espelho dosrelatórios confidenciaisUCA OU ARAPUCA?

Tecnologias do futuro podem recriarterrores do passado na sala de aula

Os turcos parecem fartos da rejeição. Um partido islâmicomoderado governa a Turquia laica e democrática. Esse governoestá dizendo que não esperará indefinidamente às portas daEuropa. A ponte erguida entre dois mundos começa a rachar.

Vejas as matérias nas págs. 6 a 8

Nacionalismo turco em alta: tensões internas e regionaislevam multidões ao protesto nas ruas de Istambul

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Mais de 90 mil relatórios militares e de inteligência americanos sobrea guerra no Afeganistão foram parar na internet. A fonte oculta dovazamento situa-se, obviamente, dentro do Pentágono. Os generaisameaçam o site que publicou o material. A Casa Branca teme seusefeitos sobre uma opinião pública cansada da guerra interminável.

Não há nenhuma revelação estrondosa. Mas lá se encontra a des-crição detalhada de horrores cotidianos e de ações que devem serdefinidas como crimes contra a população civil.

Há mais que isso. Os serviços de inteligência americanos acredi-tam que a mais poderosa agência de inteligência do Paquistão parti-cipa quase diretamente da guerra – ao lado do Talebã e da Al-Qaeda.Também acreditam que o Irã decidiu apoiar os inimigos dos EstadosUnidos – que são seus próprios inimigos.

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 22010 SETEMBRO

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PANGEA – Edição e Comercialização deMaterial Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,Nelson Bacic Olic (Cartografia).

Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)Revisão: Jaqueline RezendePesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile ShawProjeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise

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www.clubemundo.com.br

E X P E D I E N T E

como acontece em muitos países desenvolvidos da Euro-pa e no Japão. A singularidade russa, sob este aspecto,reside na elevada taxa de mortalidade precoce entre indi-víduos do sexo masculino – um novo fenômeno conhe-cido como “hipermortalidade”. O fenômeno afeta fun-damentalmente indivíduos adultos e consiste numa mor-talidade de três a cinco vezes maior para pessoas do sexomasculino como decorrência do elevado consumo de ál-cool – um terço dos óbitos decorrem da excessiva ingestãode bebidas alcoólicas – e de tabaco, mas também comoefeito das tensões cotidianas geradas pelos graves proble-mas econômicos do país. Atualmente, uma mulher russavive, em média, 12 anos a mais que um homem. Paraagravar o problema, desde 1997 o número de infectadospelo vírus da Aids aumentou quase 400 vezes.

O cenário abrange o fator migratório. Com o fim daUnião Soviética, muitas pessoas de origem russa que vi-viam em outras repúblicas soviéticas retornaram para apátria-mãe. Ao mesmo tempo, milhões de russos deixa-ram o país em busca de melhores condições de vida, prin-cipalmente em países da Europa Ocidental, Estados Uni-dos e Israel. Embora o movimento de saída tenha dimi-nuindo, há indicações de que mais de 5,5 milhões decidadãos russos abandonaram o país desde 1991.

Todavia, dados recentes parecem sinalizar algumasmudanças no quadro dramático da contração demográ-fica. Não é que a população esteja agora crescendo, masque a redução do efetivo demográfico ocorre em ritmomenos intenso. Em 2006, o governo lançou um pro-grama nacional com o objetivo de inverter a tendênciade retração populacional até 2020. Além disso, uma cer-ta estabilidade econômica e a melhoria das condiçõesgerais da economia tiveram um impacto positivo sobre

tualmente, o total de habitantes do planeta se aproxi-ma da cifra de sete bilhões de pessoas. Se forem confir-madas as tendências demográficas, o mundo passará ater cerca de nove bilhões de almas, no horizonte de 2050.Metade dos dois bilhões de pessoas a mais que o mundoganhará nos próximos quarenta anos habitará apenas novepaíses – Índia, Paquistão, Bangladesh, Nigéria, Repúbli-ca Democrática do Congo, Uganda, Etiópia, China eEstados Unidos. Com exceção dos Estados Unidos, queterá um crescimento expressivo por conta da imigração,todos os demais são países pobres ou muito pobres daÁsia e da África.

Há um outro lado da moeda. Cerca de meia centenade países, em sua maioria considerados desenvolvidos,como a Alemanha, Itália e Japão, deverão perder popula-ção até 2050. Mas a Rússia representa um casoemblemático no que diz respeito ao ritmo e à intensida-de do processo de contração demográfica. Os númerossão assustadores. Em 1991, pouco antes da desintegra-ção da União Soviética, a população da Rússia era de quase149 milhões de habitantes, um recorde histórico. No iní-cio de 2010, o contingente populacional do país retroce-dera para 141,9 milhões, uma perda superior a oito mi-lhões em menos de duas décadas. Projeções feitas em 2005indicavam que em 2050 o efetivo demográfico da Rússiaseria pouco superior a 100 milhões de habitantes (veja ográfico). Se isso se confirmar, o país “encolherá” em qua-se um terço. Nunca se viu algo nessas proporções em tem-pos de paz.

A verdadeira sangria populacional deriva de umacombinação de fatores demográficos: queda da natali-dade, aumento da mortalidade e da emigração. Na épo-ca da União Soviética, a maioria dos jovens casava compouco mais de 20 anos e logo tinham filhos. Atual-mente, o casamento e a constituição de família sãoadiados ao máximo. A natalidade foi contida, e mui-to, pelas dificuldades econômicas que se acentuaramno período pós-soviético. Se na era soviética a situa-ção socioeconômica da maioria da população já nãoera boa, com a caótica transição para a economia demercado as condições de vida tornaram-se dramáti-cas: desemprego, rebaixamento dos salários, déficit crô-nico de moradias, aumento do custo de vida e dos ser-viços de saúde. A queda brutal do padrão de vida dapopulação desestimulou a natalidade. Não se sabe se aretomada econômica, na primeira década do novo sé-culo, será suficiente para reverter as tendências demo-gráficas de longo prazo.

A crise populacional se manifesta ainda mais drama-ticamente na expansão das taxas de mortalidade. Mas aelevada mortalidade registrada na Rússia não está ligadaaos efeitos decorrentes do expressivo número de idosos,

HIPERMORTALIDADE EVIDENCIA CRISE

SOCIAL DILACERANTE

"Infelizmente não foi possível localizar os autoresde todas as imagens utilizadas nesta edição.

Teremos prazer em creditar os fotógrafos,caso se manifestem."

RÚSSIA

País pode perder 50 milhões de habitantes em seis décadas, numa trajetória inédita de contração demográficaque ameaça o futuro econômico do país

as taxas de natalidade. Em 2007, re-gistrou-se o maior crescimento danatalidade em um quarto de sécu-lo. Concomitantemente, as taxas demortalidade também apresentaramredução. Previsões feitas em 2005indicavam que, em 2010, a popula-ção total do país seria de 139,3 mi-lhões, mas em janeiro deste ano elaera de 141,9 milhões.

É muito cedo para se afirmar queestá em curso uma reversão positivada grande tendência de contração de-mográfica acelerada. Mas a Rússiaprecisa desesperadamente colocar umfreio na sangria populacional. A per-da de força de trabalho adulta afetao desempenho geral da economia. Aexpansão da parcela de idosos pres-

siona o orçamento público. No fim das contas, uma “eco-nomia emergente”, como se costuma classificar a Rússia,não pode viver com uma demografia “submergente”.

FONTE: ONU

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Evolução demográfica da Rússia(previsão feita em 2005)

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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

SETEMBRO 2010

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NÃO É A PRIMEIRA VEZ. EM 1971, O JORNAL

THE NEW YORK TIMES PUBLICOU UMA SÉRIE DE EX-TRATOS DE DOCUMENTOS MILITARES SECRETOS SOBRE

O ENVOLVIMENTO DOS ESTADOS UNIDOS NO VIETNÃ

ENTRE 1945 E 1967. OS “DOCUMENTOS DO PENTÁ-GONO” TRAZIAM MUITO MAIS NOVIDADES QUE OS “DI-ÁRIOS DA GUERRA NO AFEGANISTÃO, 2004-2010”PUBLICADOS EM JULHO PELO SITE WIKILEAKS (VEJA AMATÉRIA NA PÁG. 9). COMO AGORA, O GOVERNO RE-AGIU FAZENDO ACUSAÇÕES CONTRA A IMPRENSA. HÁ

QUATRO DÉCADAS, O PRESIDENTE RICHARD NIXON,ESTIMULADO PELO ASSESSOR DE SEGURANÇA NACIO-NAL HENRY KISSINGER, TENTOU OBTER DOS TRIBU-NAIS UMA ORDEM DE INTERRUPÇÃO DA PUBLICAÇÃO.HOJE, COMANDANTES MILITARES AMEAÇAM PROCES-SAR O RESPONSÁVEL PELO SITE. NOS DOIS CASOS, O

ARGUMENTO OFICIAL É QUE A SEGURANÇA DEVE TER PRE-CEDÊNCIA SOBRE A LIBERDADE.

THOMAS JEFFERSON, UM DOS PAIS FUNDADORES

DOS ESTADOS UNIDOS, EXPLICOU CELEBREMENTE QUE

“AQUELE QUE TROCA A LIBERDADE PELA SEGURANÇA NÃO

MERECE NENHUMA DELAS E PERDERÁ AS DUAS”. NÃO É (APE-NAS) UMA FRASE DE EFEITO. ELE ESTAVA DISTINGUINDO ASEGURANÇA DO ESTADO DA SEGURANÇA DA SOCIEDADE –E DIZENDO QUE A SEGUNDA SÓ PODE EXISTIR SOBRE O CHÃO

DA LIBERDADE.A FUNÇÃO NÚMERO UM DA IMPRENSA É DESVEN-

DAR AS MENTIRAS OFICIAIS, PARA QUE UMA SOCIEDADE IN-FORMADA POSSA DECIDIR SOBRE O SEU FUTURO. OS “DO-CUMENTOS DO PENTÁGONO” ESCANCARARAM UMA LONGA

HISTÓRIA DE MENTIRAS E AJUDARAM OS AMERICANOS A RE-JEITAR A CONTINUAÇÃO DA GUERRA DO VIETNÃ. ALGUÉM

PODE DIZER QUE AQUELA GUERRA AUMENTOU A SEGU-RANÇA DOS ESTADOS UNIDOS? OS “DIÁRIOS DO AFE-GANISTÃO” TALVEZ TENHAM EFEITO SEMELHANTE, TAL-VEZ NÃO. MAS CONTRIBUEM PARA ACLARAR AS OPÇÕES

POSTAS DIANTE DOS AMERICANOS.UM PORTA-VOZ DO PENTÁGONO CLASSIFICOU

A PUBLICAÇÃO DOS “DIÁRIOS” COMO UM “ATO CRIMI-NOSO” E ADVOGADOS DO GOVERNO ESTUDAM PROCES-SAR OS RESPONSÁVEIS COM BASE NA LEI DE ESPIONA-GEM, DE 1917, QUE PROÍBE A DIVULGAÇÃO NÃO AUTO-RIZADA DE INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA NACIONAL.NO FUNDO, EM NOME DA SEGURANÇA DO ESTADO,ELES QUEREM PASSAR POR CIMA DA PRIMEIRA EMENDA,QUE ASSEGURA AS LIBERDADES DE EXPRESSÃO E DE IM-PRENSA. NÃO É A PRIMEIRA TENTATIVA DE DISSOLVER AHERANÇA DE JEFFERSON.

E D I T O R I A L

ENTRE A LIBERDADE E A SEGURANÇA

mensagens eletrônicas de potenciais dissi-dentes? Como bloquear páginas na redemundial que abordam temas proibidos,como os protestos estudantis na Praça daPaz Celestial, em 1989, ou o movimentopela independência do Tibete? Os chine-ses precisavam da colaboração das gran-des empresas ocidentais de comunicaçõesvia internet. Não foi difícil dobrar os prin-cípios sagrados de empresários que subor-dinam a privacidade de seus clientes aosbalanços contábeis de seus negócios.

O Yahoo entregou ao governo mensa-gens de e-mail trocadas por um dissiden-te. As mensagens foram usadas como pro-vas da acusação no processo movido con-

tra ele, ajudando a condená-lo à prisão. OGoogle encarregou-se de promover a cen-sura na rede, obedecendo à ordem oficialde bloquear milhares de páginas perigo-sas. Bem mais tarde, meses atrás, por ra-zões puramente empresariais, fechou suasoperações na China – e enrolou-se numabandeira hipócrita de defesa da liberdadede expressão. Negócios são negócios, ain-da mais na China...

As ditaduras árabes aprenderam a li-ção chinesa. No início de agosto, a agên-cia governamental saudita de comunica-ções determinou às empresas de telecomu-nicações do país o bloqueio das mensa-gens instantâneas de Blackberry para

Blackberry. A medida perduraria até queas operadoras locais do celular se adaptas-sem à exigência de divulgação dos dadospara o governo. Simultaneamente, o go-verno dos EAU ameaçou bloquear os ser-viços de mensagens, correio eletrônico eacesso à internet dos Blackberry.

A empresa Research in Motion (RIM),fabricante do celular, reagiu com hesita-ção, falando coisas confusas sobre a ne-cessidade de conciliar segurança com pri-vacidade. Era a senha da capitulação, queveio antes de qualquer batalha verdadei-ra. Menos de uma semana depois, a RIMe o reino saudita anunciaram um acordopreliminar. O Blackberry terá um servi-dor em território saudita e oferecerá aogoverno “algum acesso” às comunicaçõesde seus clientes. Um precedente estava cri-ado. Nenhum governo do mundo ouviráuma nítida negativa da RIM.

O Big Brother do romance 1984, deGeorge Orwell, é o ditador de Oceania,um Estado totalitário. Ele sabe de tudo,conhece tudo, vigia a todos. “Big Brotherestá vigiando você” é a sentença repetidaincansavelmente pela máquina de propa-ganda de Oceania. As ditaduras precisamda cooperação das empresas de tecnologiada informação. Nem tanto porque neces-sitam ler as mensagens de todos. O im-portante mesmo é que ninguém esqueçaque pode estar sendo vigiado.

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BLACKBERRY RENDE-SE AO “GRANDE IRMÃO”

Blackberry tem um defeito – um de-feito muito grave, quase irreparável. Ofamoso celular, um aparelhinho que jamaissai do bolso de Barack Obama, criptografaas mensagens e automaticamente as enviapara servidores fora do país. Isso é intole-rável, concluíram autoridades da ArábiaSaudita e dos Emirados Árabes Unidos(EAU), pois impede que elas monitoremas comunicações dos usuários.

Trocar informações fora da esfera deescuta do Estado é uma possibilidade nova,aberta pelas tecnologias digitais recentes. Apalavra virtual, ao contrário da correspon-dência escrita, escorre pelo éter e oculta-seem sofisticados sistemas de criptografia.Como identificar a subversão – e o subver-sivo – nessas condições adversas?

Não são só as ditaduras que tentamviolar a correspondência virtual. Depoisdos atentados do 11 de setembro de 2001,os Estados Unidos de George W. Bush,sob o amparo de leis excepcionais,engajaram-se na produção de sistemas deinterceptação em massa de comunicaçõesvia internet. Mas as ditaduras não perse-guem apenas os traços de comunicaçõesentre supostos terroristas. Elas precisamidentificar os opositores políticos, os dis-sidentes, os que pensam diferente. Acriptografia deve ser um monopólio doEstado, não um bem público.

A China enfrentou os problemas doe-mail e da internet. Como acessar as

As ditaduras precisam dacooperação das empresas de

tecnologia da informação, paraque ninguém esqueça que pode

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OS DEZ ANOS DO GENOMA HUMANO

CIÊNCIA

diplóide de um único indivíduo. Esta sequência é conhe-cida como HuRef e o genoma, no caso, era o do próprioCraig Venter. Hoje, em 2010, estamos vivendo uma novarevolução genômica, alavancada por sequenciadores deDNA de segunda geração, altamente paralelos, 50 mil ve-zes mais rápidos do que os de 2000. As atuais plataformasde sequenciamento das empresas americanas Illumina,Applied Biosystems e Helicos podem ler mais de 30 bi-lhões de pares de base de DNA em um só dia.

Um desses sequenciadores de segunda geração é capazde sequenciar um genoma humano em um só dia, a umcusto de apenas cerca de US$ 6 mil em reagentes! Assim, agenômica pessoal emerge como uma possibilidade con-creta e há perspectivas de que em poucos anos seja possívelsequenciar comercialmente o genoma de qualquer pessoa

Uma década depois do anúncio do sequenciamento do Genoma Humano, delineia-se uma Medicina Genômica capaz de descrever as predisposições individuais para

dezenas de doenças

Sergio Danilo PenaEspecial para Mundo

por cerca de mil dólares. Isto seráde fundamental importância parao campo emergente da medicinagenômica.

Todas as características físi-cas, intelectuais e comportamen-tais de uma pessoa, em um dadomomento, são determinadastanto pelo seu genoma comopela sua história de vida. Nascedaí o paradigma genômico desaúde como o equilíbrio harmô-nico entre genoma e ambiente.O corolário disso é que as doen-ças representam a desarmoniagenoma/ambiente. Realmente,as doenças humanas mais co-muns, incluindo o câncer, aaterosclerose, a hipertensão, asgrandes psicoses são causadaspor múltiplas predisposiçõesgenômicas agindo em interaçãocom fatores ambientais desenca-deantes.

A Medicina Genômica e-merge naturalmente desse para-digma genômico de saúde e do-ença. Conhecendo a intimida-de das variações genômicas quedeterminam as predisposições eresistências individuais huma-nas, é possível manipular o am-

biente (estilo de vida, dieta, adição ou remoção defármacos, frequência de exames clínicos e laboratoriais)de forma a manter o equilíbrio harmônico genoma/am-biente. Atualmente, somos capazes de obter um mapadas predisposições e resistências genéticas de uma pessoapara cerca de cinquenta doenças comuns, estudando va-riações em um milhão de regiões do DNA em microchipsgenômicos.

Em um futuro breve, o sequenciamento genômicototal personalizado oferecerá um mapa genético de mui-to maior resolução, permitindo ao indivíduo, junto comseu médico, ajustar seu estilo de vida ao próprio genomae prevenir o aparecimento das doenças. Então, a Medici-na Genômica finalmente preencherá sua promessa de seruma “medicina da saúde”, evitando doenças e garantin-do a longevidade humana.

Sergio Danilo Pena, médico e geneticista, é ProfessorTitular do Departamento de Bioquímica e Imunologia

da UFMG e colunista da revista Ciência Hoje.Algumas partes deste texto foram publicadas

anteriormente no site Ciência Hoje on-line

Em 26 de junho de 2000 Francis Collins e J. CraigVenter anunciaram, em cerimônia na Casa Branca, coma presença do presidente Bill Clinton, que haviam com-pletado o primeiro rascunho do Genoma Humano. Co-memoramos aqui o décimo aniversário deste evento, fa-zendo uma avaliação do mundo genômico deste então.

Os dois cientistas protagonistas da corrida histórica,que terminou em empate, não poderiam ser mais dife-rentes. Francis Collins, médico-geneticista, na época di-rigia o Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Hu-mano, órgão do governo americano. Craig Venter, biólo-go, enfant-gaté da genômica, era o executivo chefe dacompanhia privada Celera. Os respectivos projetos inde-pendentes refletiam bem as personalidades divergentesdos diretores. O Projeto Público, internacional, sob abatuta de Francis Collins, nos Estados Unidos, e JohnSulston, na Grã-Bretanha, era cuidadoso, meticuloso,elucidando o genoma humano cromossomo por cromos-somo. Já o projeto da Celera era rápido, arriscado, inten-sivo em computação, propondo-se a sequenciar todo ogenoma de uma vez.

Desde o anúncio de 2000, as carreiras dos dois perso-nagens mudaram bastante. Francis Collins continuou afazer pesquisa genômica e dedicou-se adicionalmente atentar uma conciliação entre a religião e a ciência. Atual-mente, é o Diretor do Instituto Nacional de Saúde ame-ricano (NIH), principal órgão de fomento da pesquisabiomédica no país, com orçamento de US$ 31 bilhõesem 2010. Craig Venter foi despedido da Celera em 2002por não ter conseguido montar um plano de negócioslucrativo a partir da sequência do genoma humano. En-tão, fundou o Craig Venter Institute, dedicado à pesqui-sa na nova área de biologia sintética. Recentemente, este-ve em todas as manchetes pela construção de uma bacté-ria primitiva (Mycoplasma mycoides) controlada por umgenoma sintetizado quimicamente em seu laboratório.

O Projeto Genoma Humano público foi iniciado ofi-cialmente em 1989 e custou cerca de US$ 2 bilhões. Es-tima-se que ele tenha usado cerca de 600 sequenciadoresde DNA espalhados em vários laboratórios americanos eem outros países. Por outro lado, a Celera utilizou cercade 300 sequenciadores, todos sob o mesmo teto. O mun-do científico teve de esperar até 2001 para conhecer emdetalhe os resultados do primeiro rascunho do GenomaHumano. Os dados do Projeto Público finalmente apa-receram em onze artigos acompanhados de um númerosemelhante de comentários na edição de 15 de fevereirode 2001 da revista Nature. Os dados da Celera aparece-ram um dia depois, no número de 16 de fevereiro de2001 da revista Science.

O Projeto Genoma Humano só terminou oficialmen-te em abril de 2003, 50 anos após a descoberta seminal daestrutura molecular do DNA por James Watson e FrancisCrick, que havia sido publicada em 25 de abril de 1953 naNature. Entretanto, apenas bem mais tarde ainda, em 2007,descreveu-se a primeira sequência genômica completa

Capa da revista Times de 3 de julho de 2000com o anúncio histórico do primeiro

rascunho do genoma humano

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Meio século atrás, no 18 de agosto de 1960, o mundofoi surpreendido por uma notícia que causaria profun-das transformações culturais, políticas, sociais, religiosase econômicas ao longo das décadas seguintes: a pílulaanticoncepcional estava amplamente disponível para omercado consumidor nos Estados Unidos. É difícil ima-ginar, hoje, o impacto causado por essa notícia. Pela pri-meira vez na história da humanidade, as mulheres tinhamao seu alcance o poder de escolher livremente a práticado sexo como prazer, não mais como sinônimo necessá-rio de “reprodução” ou “família”.

Por essa razão, a pílula é frequentemente associadaaos movimentos libertários e de contracultura que flo-resceram na década de 1960, cujo emblema mais conhe-cido é o Festival de Woodstock. Mas a história da pílulanão é tão simples e risonha assim. Ela tem também umlado bastante sombrio e preocupante.

A pílula anticoncepcional foi criada pelo médicoGregory Pincus e produzida pelo laboratório Searle. Sur-giu com o nome de Enovid, uma dose concentrada dehormônios que evitava a ovulação e, assim, possíveis ca-sos de gravidez. Claro que muito antes disso eram co-nhecidos e praticados diferentes métodos anticoncepcio-nais. Hipócrates (460-377 a.C.), o “pai da medicina”, jásabia que a semente da cenoura selvagem era capaz deprevenir a gravidez. Foi Hipócrates que inventou o pri-meiro dispositivo intra-uterino (DIU) de que se tem no-tícia: ele inseria objetos no útero com a ajuda de um tubode chumbo. Os antigos egípcios utilizavam tampões va-ginais ou tampas feitas de excremento de crocodilo, li-nho e folhas comprimidas que criavam no útero um meioácido, eficaz como espermicida.

Os primeiros preservativos datam dos tempos deRoma antiga, quando eram fabricados a partir da pele,tripas e bexigas de animais, para proteção contra doençassexualmente transmissíveis. As camisinhas de borrachacomeçaram a ser produzidas apenas na segunda metadedo século XIX, graças à invenção do processo devulcanização, pelo inventor americano Charles Goodyear.Contudo, o primeiro preservativo feminino surgiu em1992, com o uso de poliuretano.

Surgiram outros métodos na passagem para o século XX,como o da “tabelinha”, bem como o desenvolvimento demétodos abortivos. Assim, a pílula não foi uma novidadepelo fato de ser um método contraceptivo, mas sim porque,pela primeira vez, qualquer mulher poderia escolher nãoengravidar, de forma bastante discreta, relativamente baratae saudável – embora, no início, fossem registrados muitoscasos graves de distúrbios hormonais, incluindo náuseas,inchaço e dores do corpo – e fora do controle de pais, auto-ridades religiosas, maridos ou amantes. Estava aberta umaavenida para a “revolução sexual” dos anos 1960.

Pincus iniciou as pesquisas que desembocariam nacriação da pílula no começo dos anos 1950, a partir dainsistência de Margaret Sanger, fundadora, em 1914, daLiga Americana de Controle da Natalidade, posterior-

mente transformada na mundialmente conhecida orga-nização Paternidade Planejada (Planned Parenthood). Sãobem conhecidos os componentes libertários e ousadosda personalidade de Sanger, que sempre advogou o direi-to à liberdade sexual. Menos conhecido é o fato de queela era uma eugenista convicta e flertava abertamente como ideário racial de Adolf Hitler.

Sanger estava em linha com ideias muito em voga naépoca. Em 1932, por exemplo, ela lançou o livro A planfor peace (Um plano para a paz), no qual propunha a cri-ação de um departamento no Congresso dos EstadosUnidos para “manter as portas da imigração fechadas àentrada de certos estrangeiros cuja condição seja reco-nhecidamente prejudicial à força da raça, tais como re-tardados mentais e disléxicos, idiotas, lentos, loucos, por-tadores de sífilis, epiléticos, criminosos, prostitutas pro-fissionais e outros nesta classe barrados pela lei de imi-gração de 1924”. E, ainda: “Aplicar uma estrita e rígidapolítica de esterilização e segregação àquele grau da po-pulação cuja prole já seja manchada por algum defeitoou cujas características genéticas passadas de pai para fi-lho sejam tais que traços censuráveis possam ser transmi-tidos aos descendentes.”

A pesquisadora Joana Maria Prado, da UniversidadeFederal de Santa Catarina, estabelece um vínculo diretoentre a invenção da pílula e métodos de controlepopulacional que vinham sendo aplicados desde o séculoXIX, pelas potências coloniais, nas regiões mais pobresdo planeta, principalmente na África e na Ásia. Ela lem-bra que no início dos anos 1950, quando a pílula foidesenvolvida, uma das questões mais discutidas era o te-mor da chamada explosão demográfica. “Acreditava-seque no ano 2000 haveria 8 bilhões de habitantes nomundo, e que esta explosão levaria ao desequilíbrio entreas possibilidades de alimentação e a população da Terra.

E mais, que destes 8 bilhões, 70% seriam afro-asiáticos”.A pílula chegou ao Brasil em 1963 e seu uso foi libe-

rado pela ditadura militar. Entretanto, a novidade foi re-cebida com críticas por parte das militantes feministasidentificadas com as posições da esquerda. O estímuloao uso da pílula era criticado por elas como uma estraté-gia do “imperialismo”. A diferença de perspectiva criouum certo distanciamento entre o discurso feminista pre-dominante no Brasil e aquele articulado nos EstadosUnidos e países europeus, onde a ênfase foi dada ao as-pecto “libertador” da pílula.

Além disso, para muitas ativistas do movimento fe-minista a comercialização e o uso da pílula não respon-dem apenas a um desejo feminino, mas também refle-tem uma rede de interesses que inclui ginecologistas, aindústria farmacêutica e os organismos internacionaisinteressados em controlar a natalidade. Essa rede de inte-resses – afirma a socióloga Daniela Manica, da Unicamp– faz uso de instrumentos de marketing que criam umadeterminada imagem desejável de mulher: a profissionalbem-sucedida, independente, para quem a possibilidadede determinar a época ideal para engravidar é essencial.

Há um certo consenso entre os movimentos feminis-tas de que a pílula, no fim das contas, “libera” a mulherpara enfrentar o mercado masculinizado, não preparadopara conviver com as demandas típicas das mulheres, in-cluindo a gravidez. Seria o caso, portanto, de mudar aprópria forma de existir do mercado – se é que isso pode-ria ser realizado sem uma radical transformação social.Assim, a invenção da pílula, qualquer que tenha sido aintenção de seus idealizadores, incendiou o debate sobrea sexualidade humana e as relações entre homens e mu-lheres: um debate cuja resolução ainda está muito dis-tante de um fim, se é que isso existe.

PÍLULAS DA DISCÓRDIA

CULTURA

A narrativa convencional diz que a pílula anticoncepcional libertou as mulheres. Mas uma outra narrativa associa a pílula a umarede de negócios e a um modo de funcionamento do mercado de trabalho

Com o passardo tempo, a

pílula tornou-se um símboloda “liberação

sexual”feminina; mas,na origem, elafoi produzidapor pesquisasestimuladas

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SUBLIME PORTA FECHADA

litar da Turquia no norte do Chipre, ocorri-da em 1974, depois que a ditadura dos co-ronéis da Grécia – país historicamente ini-migo da Turquia – invadira a ilha, habitadapor gregos (majoritários) e turcos.

O caldo da integração entornou de vezem 1980, quando o Exército – o guardiãoda república laica de Ataturk – tomou opoder em Ancara, levando a CEE a sus-pender o processo. Com o fim da ditadu-ra turca, em 1983, as negociações foramretomadas em 1987, quando o primeiro-ministro Turgut Orzal solicitou a entradado país como membro pleno da CEE. Naépoca os turcos temiam que a expansãoda CEE para a Grécia, Portugal e Espanha– cujos produtos concorriam com os daTurquia – prejudicasse os termos de suastrocas comerciais com os países da CEE.

Os europeus hesitaram. Em primeirolugar, a CEE estava se preparando para oimplantação efetiva do mercado comum,em 1992, e os burocratas de Bruxelas acha-vam temerária a admissão imediata denovos membros – principalmente de eco-nomias defasadas como a da Turquia. Poroutro lado, em matéria de direitos huma-nos, um dos requisitos para a entrada naCEE, a Turquia estava ainda na era

AS AUTORIDADES TURCAS (...) TEM SIDO CUIDADOSAS, EXPLICANDO QUE SEU RENOVADO INTERESSE NO ORIENTE MUÇULMANO NÃO

SIGNIFICA UM RESFRIAMENTO DAS RELAÇÕES COM O OCIDENTE. NO LUGAR DISSO, APRESENTAM A TURQUIA COMO UMA PONTE ÚTIL,UMA PODER REGIONAL PELA PAZ E O MODELO DE UMA DEMOCRACIA COMPATÍVEL COM O ISLÃ. SEUS ALIADOS OCIDENTAIS TÊM,

GERALMENTE, COMPARTILHADO ESSA VISÃO E NÃO SE OPÕEM AO GIRO NA DIREÇÃO ORIENTAL. CONTUDO, TAL INDIFERENÇA BENIGNA

PODE MUDAR, SE MURCHAREM AS CHANCES DE ADESÃO TURCA À UNIÃO EUROPEIA OU SE A TURQUIA FOR VISTA COMO FATOR DE

DEBILITAMENTO DAS TENTATIVAS DE PRESSIONAR O IRÃ.(THE ECONOMIST, “LOOKING EAST AND SOUTH”, 29 DE OUTUBRO DE 2009)

neolítica. A sangrenta repressão da rebe-lião da minoria curda na Anatólia, emmeados da década de 1980, reforçou asdúvidas sobre a capacidade dos turcos deimplementar o respeito às minorias. Semfalar na questão do Chipre – cuja partenorte permanecia ocupada pelos turcos –e das tensões com a Grécia.

O colapso do bloco soviético, ocorridoem 1989, jogou a Turquia novamente parao fim da fila da CEE. Naquele ano, aComissão Europeia adotou medidas paraintensificar a cooperação com Ancara, maspostergou a aceitação da candidatura de ade-são plena dos turcos. Quando a UniãoEuropeia (UE, sucessora da CEE) se reuniuem 1993, em Copenhague (Dinamarca),para uma nova rodada de negociações sobrea expansão do clube, ficou claro que a prio-ridade era a adesão dos países do ex-blocosoviético. Convencida de que a Turquia te-ria dificuldades para democratizar suas ins-tituições, a UE deu ênfase às negociaçõessobre união aduaneira, que entrou em vigorem 1996. Um ano depois, a cúpula deLuxemburgo jogou mais água fria na espe-rança da Turquia de fazer parte da Europa,acrescentando condições adicionais para aaceitação. Mas, por trás de justificativas como

o “veto grego” ou o lento avanço da Turquiaem questões de direitos humanos, estava aapreensão da Alemanha com a imigraçãoturca e as reservas da Itália e da França emrelação às exportações turcas de têxteis e pro-dutos agrícolas.

Mudanças em governos, no final da dé-cada de 1990, deram novo alento ao pro-cesso. A Alemanha, sob a coalizão de so-cial-democratas e verdes que subiu ao po-der em 1998, tornou-se uma defensora doingresso da Turquia na UE. E o novo go-verno turco, liderado pelo AKP – partidoislâmico perseguido pelo secularismo –abraçou firmemente a causa da integraçãoeuropeia e iniciou um processo de refor-mas para permitir o acesso da Turquia naUE. A partir de 2004, a Turquia adotouvárias emendas à Constituição para seadaptar às condições da integração, inclu-sive a abolição da pena de morte e a apro-vação de um novo código penal reprimin-do a tortura e a violência contra as mu-lheres. E a Grécia deu sinais de que pode-ria aceitar a Turquia na UE.

Então, o Chipre voltou a ser o principalobstáculo à aspiração turca de entrar para oclube europeu. Desde 1998, o Estado insularera candidato a integrar a comunidade, na

Desde a fundação da Turquia moderna,em 1923, sobre as cinzas do Império Oto-mano, a elite dirigente turca tenta ligar odestino deste país majoritariamente islâmi-co ao Ocidente, particularmente à Euro-pa, na expectativa de posicionar melhor oseu Estado no concerto das nações. A mo-dernização de Mustafá Kemal Ataturk, ofundador da república, espelhou-se na Eu-ropa das Luzes quando criou Estado laico,adaptou as leis, o alfabeto e o vestuário aospadrões ocidentais e industrializou o país.

Em 1947, logo depois da SegundaGuerra Mundial (1939-1945), a Turquiaaderiu ao Plano Marshall, o projeto ame-ricano de reconstrução econômica da Eu-ropa, e dois anos depois tornou-se mem-bro do Conselho da Europa. Em 1952, osturcos entraram na OTAN, a aliança mi-litar ocidental, e em 1959 solicitaram acondição de membro-associado à entãoComunidade Econômica Europeia (CEE).Quatro anos depois, seria assinado o Acor-do de Ancara, que previa a criação de umaunião alfandegária entre a Turquia e aCEE, e a perspectiva – num futuro incer-to – de ela se tornar membro pleno doclube. Em 1970, o Protocolo Adicionalfixou um prazo de 22 anos de transiçãopara efetivar a união alfandegária.

Mas os países ocidentais, por diferentesrazões, nunca foram muito entusiastas daentrada da Turquia na CEE. Citavam-se asenormes assimetrias entre as sociedades tur-ca e europeia, mas na verdade havia temo-res inconfessáveis, de natureza política, so-cial e cultural. As assimetrias, entretanto,eram reais.

Em primeiro lugar, a economia da Tur-quia baseava-se na industrialização por subs-tituição de importações, o que se chocavacom os objetivos de liberalização do comér-cio com os países da CEE. Em 1978, as pres-sões europeias para o levantamento das bar-reiras alfandegárias turcas levaram o primei-ro-ministro Bulent Ecevit a cancelar a roda-da de negociações prevista para aquele ano.A esse impasse se somava a intervenção mi-

Cláudio CamargoEspecial para Mundo

Roma abriga a sede daIgreja Católica

(o Vaticano) e, desde1995, a maior

mesquita da Europaocidental (foto à esq.),

com 30 mil m2 ecapacidade para 12

mil pessoas. Apesar daaparência de convívioharmônico entre as

duas religiões, a UniãoEuropeia rejeita a

Turquia, antiga sededo Império Otomano

TURQUIAE

UNIÃO EUROPEIA

Os turcos sempre foram para umaúnica direção: a direção do

Ocidente.(Mustafá Kemal Ataturk,

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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

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SOB O SIGNO DE ROMA

“A União Europeia (UE) terá que provar que não é um clube cristão.” Com esse desafio, há cinco anos, o ministro do

Exterior turco Abdullah Gul conseguiu romper o veto para a abertura de negociações com vistas ao ingresso de seu país naUE. A Turquia bate à porta do bloco europeu, sem sucesso, há mais de meio século (veja a matéria na pág. 6). As negociaçõesforam abertas em 2005, mas não avançam – e os turcos começam a olhar em outra direção (veja a matéria na pág. 8). Seráque, no fim das contas, a Europa é mesmo um clube cristão?

Num gesto de natureza simbólica, os arquitetos da Europa do pós-guerra reuniram-se em Roma, não em Paris ou Bruxe-las, para assinar o tratado da Comunidade Europeia (CE), em 1957. Eles estavam dizendo que o seu projeto era umarestauração, não uma invenção, e reivindicavam uma legitimidade de vinte séculos. A “nova Europa” surgia à sombra de umconceito de unidade com raízes no Império Romano e na tradição cristã.

O cristianismo, primeiro banido e perseguido, tornou-se depois a religião oficial do Império Romano. Em torno dele,construiu-se a narrativa medieval sobre a identidade europeia. O sonho da restauração de Roma atormentou a Europadurante séculos, coagulando-se no império de Carlos Magno, no Sacro Império Germânico e na expansão imperial Habsburgo.Cada uma dessas obras geopolíticas foi descrita e justificada em termos religiosos.

O papa sagrava os imperadores. Em nome de Cristo e do papa – e, às vezes, a partir de um apelo papal direto – organiza-ram-se as Cruzadas. Jerusalém converteu-se no espelho externo da Europa. Na Península Ibérica, a longa série de guerras queresultaram na formação da Espanha ganhou o nome de Guerra da Reconquista e consolidou-se o mito da campanhamultissecular contra o invasor muçulmano. Os decretos dos Reis Católicos espanhóis de expulsão de muçulmanos e judeusfiguraram como a última camada de tinta no mito da Reconquista. A “guerra santa” esculpiu o rosto da Europa.

Finalmente, com o encerramento da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e a Paz da Westfália, o espectro de Romapareceu diluir-se no horizonte do passado. No lugar da ideia unitária do império, emergiu a realidade fragmentária doEstado. A Europa seria um palco de nações – e de nacionalismos rivais. O poder universal do papa dava lugar ao poderparticularista dos soberanos. A religião deixava de guiar a política. O tempo das Cruzadas ficava para trás.

Mas Roma não desapareceu de fato. Na Idade Contemporânea, o impulso imperial orientou os projetos unificadores deNapoleão Bonaparte e Adolf Hitler. No século XX, os nacionalismos extremados provocaram os maiores desastres humanosda História. As duas grandes guerras arruinaram a “Europa das nações”, transformando as cidades e os campos em montes deruínas. No fim da segunda hecatombe, em 1945, os exércitos soviético e americano ocupavam a Europa, que logo seriabipartida pela Cortina de Ferro.

O projeto da CE nasceu da falência violenta da “Europa das nações”. Os nacionalismos irrefreados causaram as guerrasmais destruidoras de todos os tempos. Para domesticá-los era preciso compartilhar a soberania – eis a ideia básica que moveuas engrenagens da unificação europeia. Mas o grande edifício se erguia no tempo da Guerra Fria – isto é, contra a UniãoSoviética, do lado ocidental da Cortina de Ferro. Os estadistas franceses e alemães que imaginaram a CE inspiraram-se nomito de Roma. Apenas, dessa vez, a unidade se faria por meio do acordo e do consenso, não pelo recurso à força. Uma novaEuropa surgia de olhos postos na primeira imagem da Europa: uma coleção de povos reunidos em torno do cristianismo.

A imagem da Europa como uma fortaleza cristã cir-cundada pelo mundo muçulmano conspira contra a ade-são da Turquia (veja o mapa). A identidade cristã europeiaestá fincada na imaginação popular. Em 2005, o apoio àadmissão da Turquia girava em torno de 32% na Grã-Bre-tanha, 15% na Alemanha e 11% na França. Nada indicaque os números estejam muito diferentes hoje. Além disso,a imagem da fortaleza cristã orienta a parcela mais impor-tante da elite política da UE.

Há pouco, num discurso odiento em Grenoble, sob opretexto de combater a violência urbana, o presidente fran-cês Nicolas Sarkozy anunciou que proporá uma lei per-mitindo a retirada da nacionalidade francesa dos cida-dãos de origem estrangeira acusados de crimes contra au-toridades públicas. O alvo óbvio de Sarkozy são jovensmuçulmanos dos subúrbios pobres das cidades francesas.Joschka Fischer, ex-ministro do Exterior alemão, disse anosatrás que os opositores do ingresso turco “surfam na ondado racismo”. Ele tem razão, mas faz parte de uma mino-ria política cada vez menos influente.

Abdullah Gul definiu a adesão turca à UE como aoportunidade para uma “aliança entre civilizações”. Quando ele fez essa observação, George W. Bush e seus neoconservadorestocavam os bumbos do “choque de civilizações”. Hoje, nos Estados Unidos, Barack Obama procura se desvencilhar daherança política de seu antecessor. Mas os europeus continuam a enxergar na Turquia a representação de um mundo diferen-te, incompatível com a sua própria história. Infelizmente, apesar dos milhões de muçulmanos que vivem na UE, eles conti-nuam dizendo que a Europa é um “clube cristão”.Cláudio Camargo é jornalista e

sociólogo

expectativa de reunificação. Mas a UE dei-xou claro que, se as negociações fracassassem,a parte grega de Chipre poderia se integrarsozinha ao bloco. Foi o que aconteceu em2004, depois que 75% dos greco-cipriotasvotaram contra a reunificação num plebisci-to. E novo impasse surgiu quando a UE pres-sionou Ancara pela abertura dos portos e ae-roportos turcos ao tráfego do Chipre.

Para piorar, os novos líderes da Alema-nha (Angela Merkel) e da França (NicolasSarkozy) se uniram à Áustria na oposição àadmissão da Turquia como membro plenoda UE e apoiaram a eleição do democrata-cristão belga Herman Van Rompuy para aPresidência do Conselho Europeu. Ele é umdos que vê um “choque de civilizações” entrea Turquia majoritariamente muçulmana e aEuropa “cristã” (veja a matéria ao lado). Ape-nas Grã-Bretanha, Espanha e Itália defendem– por enquanto – a reivindicação turca. “ATurquia foi pressionada repetidas vezes poralguns países europeus, que se recusaram adar a ela a ligação orgânica que ela buscavacomo Ocidente”, disse o secretário de Defesados Estados Unidos, Robert Gates. Ataturkdeve estar se revirando no túmulo.

OCEANOATLÂNTICO

MAR MEDITERRÂNEO

A “fortaleza cristã” europeia e sua “periferia” islâmica

Países de maioria cristã

Países de maioria islâmica Países pertencentesà UE

Israel

LÍBIAARGÉLIA

EGITO

ARÁBIASAUDITA

SÍRIAIRAQUE

IRÃ

100 km

AFEG.

USBEQUISTÃO

CASAQUISTÃO

TURQUIA

SUÉC

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POLÔNIAUCRÂNIA

ROM.

ALEM.

R Ú S S I A

MAR NEGRO

MAR CÁSPIO

MARROCOS

BULG.ESPANHA

FRANÇA

ITÁLIA

TUNÍSIA

TURCOMENISTÃO

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FIN

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O

ISTAMBUL ENCARA ANCARA

Estado turco contemporâneo, comcapital em Ancara, é herdeiro da lenta de-composição do Império Otomano, que noseu auge, no século XVII, compreendiauma área de 12 milhões de km2, equiva-lente a um Brasil e meio. O império es-tendia-se do estreito de Gibraltar, a oeste,até o mar Cáspio e o Golfo Pérsico, a les-te, e desde a fronteira com as atuais Áus-tria e Eslovênia, no norte, até os atuaisSudão e Iêmen, no sul. Sua capital era acidade de Constantinopla, tomada aoImpério Bizantino em 1453 e rebatizadacomo Istambul.

O império congregava gregos, sérvios,búlgaros, romenos, armênios, turcos e ára-bes. A partir de 1517, o sultão otomanoera também o Califa do Islã, e o impériootomano confundia-se com o sonhadoCalifado, a umma ou Estado Islâmico,potencialmente capaz de reunir uma co-munidade mundial de crentes. Única po-tência islâmica capaz de fazer frente aocrescente poderio da Europa Ocidentalentre os séculos XV e XIX, o império de-clinou aceleradamente ao longo do séculoXIX, por um processo que combinou gol-pes desfechados pelas lutas balcânicas pelaindependência, expansão contínua daspotências europeias e corrupção internade governantes e funcionários de sua vas-ta burocracia. A derrota na Primeira Guer-ra Mundial (1914-1918) colocou uma páde cal no império, formalmente dissolvi-do em 1920, pelo Tratado de Sèvres. Oseu território foi partilhado pelas potên-cias vencedoras e o seu coração político-geográfico transformou-se na atual Repú-blica da Turquia.

A partir de então, o país foi sacudidode alto a baixo por reformas ocidentali-zantes preconizadas por Mustafá KemalAtaturk, o primeiro presidente da “novaTurquia”. Eleito em 1923, Ataturk gover-nou até a morte, em 1938, separando areligião do Estado (o islamismo deixou deser religião de estado em 1928), generali-zando a instrução pública e promovendoo que se poderia chamar, simplificadamen-te, de uma modernização dos costumes.

A nova capital, Ancara, erguida no cen-tro asiático do país em substituição a Is-tambul, simbolizou a troca da tradiçãomuçulmana e imperial pelo projeto deedificação de uma nação moderna e laica.

TURQUIA

A mudança da capital foi também umaruptura com a herança bizantina, inscritana cidade europeia debruçada sobre o es-treito de Bósforo. Desde o seu nascimen-to, a Turquia oscilou entre Europa e Ásia.Sua posição geográfica acentuou apendularidade. Com o final da SegundaGuerra Mundial (1939-1945) e a instala-ção da Guerra Fria, o valor geopolítico daTurquia cresceu. Integrado à OTAN desde1949, o país tornou-se o centro nevrálgicoda defesa do Mediterrâneo Oriental e basede mísseis nucleares de médio alcance.

Ataturk almejava uma coesão internaque jamais foi alcançada. A Turquia en-frenta a luta dos curdos (minoria que for-ma cerca de um quinto da população dopaís), cujas correntes políticas mais radi-cais reivindicam o direito a um Estadosoberano. Os curdos são um povo de ori-gem milenária: os seus antepassados habi-tavam as cadeias montanhosas a norte e

O Estado turco oscila entre a Europa e o laicismo, de um lado, e o Oriente Médio e o Islã, de outro. Os aliados da OTAN encaram compreocupação os sinais recentes emitidos pela política externa de Ancara

nordeste da Mesopotâmia e, embora ex-postos a influências culturais e religiosas(por exemplo, abraçaram o islamismo),preservaram seu idioma e seus costumes.Contam hoje cerca de 40 milhões, distri-buídos, sobretudo, na Turquia e no Iraque(principalmente, ao norte do país), mastambém têm presença importante na Síria,no Irã e, em menor número, em algunsoutros países da região. O Partido dos Tra-balhadores Curdos (PKK), fundado em1978, mantém o objetivo estratégico deestabelecer um Curdistão independente.Isso significaria, necessariamente, umrearranjo geopolítico de imensas propor-ções nas áreas envolvidas. É fácil imaginaro acúmulo de tensões que a luta dos curdosproduz na Turquia e nos países vizinhos.

A posição geopolítica estratégica e umalonga folha de bons serviços prestados aosEstados Unidos e às potências europeiassemearam, entre os turcos, esperanças de

sua integração econômica ao espaço euro-peu. Mas as pretensões de Ancara esbar-ram na oposição das forças católicas con-servadoras europeias (inclusive o Vaticanoe as mais importantes lideranças democra-ta-cristãs, como a alemã Angela Merkel e oatual presidente do Conselho Europeu, obelga Herman Van Rompuy), que alimen-tam sentimentos intransponíveis de hosti-lidade e desconfiança, cultivados ao longode séculos de cruzadas e guerras contra osotomanos (veja a matéria na pág. 7). Alémdisso, o exército israelense participa ativa-mente de treinos e manobras no âmbito daOTAN e vários líderes europeus saúdamabertamente o Estado judeu como mem-bro “oficioso” da União Europeia.

O tradicionalismo católico europeuesbarra na perspectiva mais pragmática deWashington e de Londres, que defendema integração da Turquia, como deixou cla-ro, no final de julho, o primeiro-ministrobritânico David Cameron. Do ponto devista de Londres e Washington, Ancara éum aliado precioso contra o regime xiitado Irã, especialmente numa conjunturamarcada pelo fiasco da ocupação do Iraquee do Afeganistão, e pela possibilidade la-tente da regionalização dos conflitos emtodo o Oriente Médio e Ásia central.

Em contrapartida, o veto à Turquiareforça os sentimentos dos grupos fun-damentalistas islâmicos, que sonham coma volta do Califado e recrutam um nú-mero crescente de adeptos irados com aposição intransigente da “Europa cristã”.O recente envio da “flotilha da paz” tur-ca para abastecer os palestinos na Faixade Gaza, que resultou no ataque israe-lense, com saldo de nove mortos, é umreflexo direto dessa situação. O governoturco, mesmo que não queira se distan-ciar dos aliados europeus, não pode ar-car com os custos políticos de suportarem silêncio a humilhação.

Se o ressentimento cristão rejeita aTurquia, o glorioso passado islâmico deIstambul faz sombra sobre a modernaAncara e cobra uma definição do regimeturco. Mais uma vez, nas palavras de KarlMarx no livro O 18 Brumário de LuísBonaparte, “a tradição de todas as gera-ções mortas oprime como um pesadelo océrebro dos vivos”.

Humilhada pela rejeição europeia, Ancara (fotos acima), símbolo darepública Turca, sofre a crítica dos turcos que sonham com a volta do

Califado Otomano, em cuja capital, Istambul, foi construídaa magnífica Mesquita Azul

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DIÁRIOS DA GUERRA SUJA

AFEGANISTÃO

história verdadeira desse material éque isso é a guerra – uma desgraça depoisda outra. É a sucessão de pequenos even-tos, a sequência contínua de mortes decrianças, insurgentes, forças aliadas, o povodesprotegido. Procure pela palavra 'ampu-tação' nesse material, ou 'amputado', eaparecerão dúzias e dúzias de referências.”É assim que Julian Assange define os “Di-ários da Guerra no Afeganistão”, uma im-pressionante coleção de 91 mil relatóriosmilitares sigilosos publicados no seu site,o Wikileaks.

Os relatórios, que cobrem o período de2004 a 2010, foram escritos por funcioná-rios das agências de inteligência e por mili-tares. Cerca de 15 mil relatórios da coleçãotiveram sua publicação adiada, a pedido dafonte que vazou o conjunto para o site, porfazerem referência a detalhes operacionaiscapazes de colocar vidas em risco. Um por-ta-voz do presidente afegão, Hamid Karzai,declarou que ele estava “chocado” com aescala do vazamento, mas também que “amaioria dessas coisas não é novidade”. Arevista britânica The Economist tem a mes-ma impressão: o material “parece ser exten-so em detalhes e curto em revelações”, diag-nosticou num editorial.

De fato, não assoma nenhuma fantás-tica trama oculta nos “Diários da Guerrano Afeganistão”. Contudo, o que impres-siona é a confirmação, por fontes milita-res, de algumas das mais duras avaliaçõescríticas da guerra escritas por analistas in-dependentes.

As táticas operacionais das forças daOTAN no Afeganistão produzem uma su-cessão de crimes de guerra – eis a conclu-são número um emanada do material. Al-guns episódios são especialmente chocan-tes. As forças ocidentais exibiram uma in-clinação irrefreável para o uso de artilhariapesada sobre áreas povoadas nas quais acre-ditavam, certa ou erradamente, que se es-condiam líderes do Talebã ou da Al-Qaeda.As vítimas civis, inclusive crianças, foramtratadas incontáveis vezes como “danoscolaterais”. Assange declarou que “compe-te a um tribunal decidir se algo, no fim dascontas, é um crime de guerra”. Dificilmen-te algum tribunal independente verificaráisso. Mas os documentos vazados ajudama entender os motivos da popularidade queo Talebã conserva entre parcela significati-

va da população civil no sul e no leste doAfeganistão.

As forças guerrilheiras do Talebã têmacesso a sofisticados sistemas de mísseisportáteis antiaéreos – aí está uma segundaconclusão. Isso significa que a organiza-ção fundamentalista afegã conta com umapoio direto, de alto nível, no vizinhoPaquistão ou no outro vizinho, o Irã. Háuma complexa logística de suprimentomilitar em operação. A guerra é um fenô-meno regional, não um evento nacional.

O porta-voz da presidência doPaquistão qualificou o vazamento comouma tentativa de sabotar o novo diálogoestratégico entre seu país e os Estados Uni-dos. Mas alguns responsáveis pelos servi-ços de inteligência americanos estão con-vencidos de que o ISI, a agência de inteli-gência paquistanesa, sustenta a guerrilha doTalebã – eis uma terceira conclusão que saltaaos olhos da leitura dos “Diários”. Diver-sos analistas independentes afirmam isso háanos. O Talebã nasceu nos anos 1990, apartir do ISI e do Jamiat Ulema-e-Islam,um partido fundamentalista paquistanês.

Ele foi originalmente imaginado como uminstrumento do Paquistão para controlaro Afeganistão. Se for verdade que o ISIcontinua a sustentá-lo, então há um con-flito de morte entre o governo paquistanêse o mais poderoso serviço de inteligênciado país.

O general Hamid Gul, ex-chefe do ISI,qualifica o material publicado noWikileaks como “pura ficção, que está sen-do vendido como documentos de inteli-gência”. Mais: “Tudo isso é equivocado. Éexatamente como as informações de espi-onagem deles sobre Saddam Hussein guar-dando armas de destruição em massa noseu armário”. Gul pode ter razão ou não.Assange nunca disse que os relatórios ame-ricanos vazados são precisos ou verdadei-ros, mas apenas que são, de fato, relatóri-os confidenciais americanos. O resultadoé simples: Washington conduz a guerra noAfeganistão com o pressuposto de que háuma divisão crucial no Estado paquistanêse uma parte dele alinha-se ao Talebã.

Os “Diários” sugerem também umaúltima conclusão: na opinião de fontes de

inteligência americanas, o Irã está engajadonuma campanha de armamento e finan-ciamento do Talebã e dos senhores daguerra afegãos aliados à Al-Qaeda. Esta éa principal novidade contida no material.Aqui, as chances de um monumental equí-voco da espionagem americana são bemmaiores do que no caso do ISI.

O Irã xiita sempre encarou o funda-mentalismo sunita do Talebã como umrival e até uma ameaça. Barack Obamainaugurou sua política externa estenden-do a mão para o Irã com diversas finalida-des – entre elas a de obter a colaboraçãode Teerã no esforço de guerra americanono Afeganistão. Poderia o Irã estar reagin-do às pressões e sanções contra seu pro-grama nuclear por meio de um apoio di-reto aos “inimigos do meu inimigo” noAfeganistão, mesmo se eles são tambémseus próprios inimigos?

O vazamento do volumoso materialcausou furor. O Pentágono voltou suas ba-terias contra o Wikileaks (veja o editorial,na pág. 3). O democrata John Kerry, chefedo Comitê de Relações Exteriores do Se-nado americano, afirmou que os relatórios“levantam sérias dúvidas sobre o realismoda política americana para o Afeganistão”.Muitos temem que a divulgação dos hor-rores cotidianos da guerra afegã torne poli-ticamente inviável a continuidade do es-forço militar ocidental, atingindo em cheioum dos eixos da política externa de Oba-ma. A The Economist, pelo contrário, pen-sa que os “Diários” evidenciariam as boaspossibilidades de sucesso das mudanças es-tratégicas adotadas por Obama.

Washington renunciou à estratégia decontraterrorismo (CT), substituindo-apela de contrainsurgência (COIN). CTsignifica concentrar as tropas em áreas se-guras e utilizar o poder aéreo para bom-bardear santuários do inimigo. COIN sig-nifica construir um Estado afegão, ocu-par áreas disputadas e criar condições desegurança para a população civil, ganhan-do apoio popular e isolando os militantesfundamentalistas. CT é uma guerra debaixa intensidade sem fim à vista. COINé uma guerra decisiva, cujo sucesso depen-de de triunfos militares e políticos. Porenquanto, porém, não há sinal de triun-fos em nenhum dos dois terrenos.

Vazamento de pilhas intermináveis de relatórios secretos da guerra afegã descortinam tragédias e crimes em sucessão. O materialtambém agudiza o debate sobre a política e as estratégias americanas na “guerra ao terror”

A divulgação doshorrores da guerra

afegã ameaçainviabilizar o esforço

militar de“pacificar” a região,

um dos eixos dapolítica externa de

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Os rios mais importantes que fluempara o Pacífico têm suas bacias hidrográ-ficas no interior do continente asiático,casos do Hoang Ho, Yang Tse-kiang eSikiang (China) e do Vermelho e Mekong(Vietnã). Na vertente americana do Pací-fico praticamente só desaguam rios depequenas dimensões, fato relacionado àpresença das imponentes cadeias de mon-tanhas das Rochosas e dos Andes, locali-zadas muito próximas à costa.

Tal como ocorre com o Atlântico, oPacífico se estende das altas latitudes doHemisfério Norte às altas latitudes doHemisfério Sul. Assim, suas águas super-ficiais apresentam grandes variações tér-micas. Num mesmo dia, podem serregistradas temperaturas próximas a zerograu no extremo norte e quase 30º C naporção equatorial do oceano.

Correntes marinhas, frias e quentes,cruzam o Pacífico nos dois hemisférios e

são parcialmente responsáveis peloadensamento dos cardumes, exploradoscomercialmente pela indústria pesqueirade vários países. Correntes marinhas fri-as, como a do Peru, contribuem para aexistência de regiões áridas junto à costada América do Sul, como é o caso do de-serto de Atacama.

Recentemente, descobriu-se que, numaregião de calmaria oceânica do Pacífico lo-calizada pouco ao norte do Trópico de Cân-cer e conhecida como Giro do PacíficoNorte, existe uma extensa área de acúmulode lixo sobre as águas. A verdadeira “ilhade lixo” abrange uma superfície que podeter até a extensão dos Estados Unidos, comcerca de 10 metros de profundidade. Ela éformada por vários tipos de detritos sóli-dos, especialmente plásticos. Presume-seque um quinto desses resíduos origina-sede descargas de navios e plataformas pe-trolíferas. O restante seria constituído por

O Oceano Pacífico, mais antigo dosoceanos, origina-se em linha direta doPantalassa, que cercava as terras doPangeia, o continente único ancestral.Com 166 milhões de km2, o Pacífico re-presenta cerca de metade da superfíciedos espaços marítimos do planeta e maisou menos um terço da superfície total daTerra. Suas águas banham mais de qua-renta países da porção ocidental dasAméricas, os da parte oriental da Ásia, osda Oceania, além de inúmeras ilhas e ar-quipélagos que ainda têm o estatuto ge-opolítico de territórios coloniais esemicoloniais (veja o mapa 1).

A bacia do Pacífico é dividida em trêsregiões fisiográficas: a oriental, a central e aocidental. A primeira, situada a leste domeridiano de 150º O, possui uma plata-forma continental abrupta e estreita, pois aregião situa-se na faixa de contato entre asplacas tectônicas do Pacífico, Americana ede Nazca. Daí decorre a existência de cor-dilheiras próximas à costa das Américas quese estendem desde o Alasca até o Chile.

A região ocidental abrange toda a cos-ta leste e sudeste da Ásia, se estendendodesde o noroeste da Rússia até o SudesteAsiático. Esta porção litorânea é bastanterecortada, com a presença de penínsulas egolfos, além de ilhas e arquipélagos. Éneste conjunto insular que se situam oslimites das grandes placas tectônicas (a doPacífico, das Filipinas, a Euro-Asiática e aIndo-Australiana), o que explica a existên-cia de uma faixa com intensa atividade sís-mica e vulcânica. Juntamente com a por-ção ocidental das Américas, o arco formao chamado Círculo de Fogo do Pacífico,onde se encontram mais de 300 vulcõesativos, se verificam frequentes terremotos(e, eventualmente, maremotos) e existemprofundas fossas tectônicas.

A região do Pacífico central corres-ponde a uma área geológica bem maisestável, pois se situa na porção interiorda placa do Pacífico. Nesta área encon-tram-se a maior parte das ilhas daOceania e os territórios da Austrália,Nova Zelândia e Nova Guiné.

NO PACÍFICO, A VALSA DAS ÁGUAS

INFLUENCIA O CLIMA GLOBAL

detritos provenientes dos continentesamericano e asiático.

A porção equatorial do Pacífico, jun-to ao continente americano, é palco dedois fenômenos periódicos interligados,que afetam o clima regional e global, mu-dando os padrões de ventos e os regimesde chuvas nas regiões tropicais e de lati-tudes médias. Tais fenômenos oceano-at-mosféricos são o El Niño e o La Niña. Oprimeiro caracteriza-se por um aqueci-mento acentuado das águas superficiaisdo setor centro-leste do Pacífico, especi-almente em sua faixa equatorial. O fe-nômeno acontece em intervalos médiosde quatro anos e pode persistir de seis aquinze meses. Ele é um dos responsáveispela ocorrência de anos secos ou muitosecos (veja o mapa 2).

Já o La Niña corresponde ao resfria-mento acentuado das águas superficiais,mais ou menos na mesma área em queocorre o El Niño. Quando isso acontece,como neste ano, os ventos alísios mostram-se mais intensos que o normal e as águasfrias estendem-se por uma ampla faixa delargura que vai de mais ou menos 10º delatitude ao longo do Equador, a partir dacosta peruana, até mais ou menos omeridiano de 180º de longitude no Pací-fico Central. Normalmente, o La Niñacomeça e termina num mesmo ano, desa-parecendo no ano seguinte.

Em 2010, o El Niño possibilitou sa-fras recordes nos Estados Unidos e Bra-sil, mas o mundo já está sentindo os efei-tos do La Niña, muito menos “amigá-vel” para a agricultura e a segurança cli-mática dos países da Ásia, Oceania eAméricas – e até mesmo do Brasil, quenão é banhado pelo Pacífico. A safra re-corde de grãos de 2009/2010 não deveráse repetir em 2010/2011, por conta dasanomalias climáticas ocasionadas pelo LaNiña. As previsões são de um verão maisseco no Sul, atraso nas chuvas do Sudes-te e Centro-Oeste, além de precipitaçõesacima da média no Nordeste, prejudican-do o plantio e a colheita.

Nelson Bacic OlicDa Redação de Mundo

Série sobre os oceanos e mares

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OCEANO

Austrália

Américado Norte

Américado Sul

Ásia OCEANOATLÂNTICO

PACÍFICO

Europa

Antártida

Oceania

Ilhas doHawaíOCEANO

ÍNDICOEquador

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cífico no “centro” do mundo

Mais quente

OCEANO

Austrália

África

Américado Norte

Américado Sul

Ásia

Mais chuvoso

Mais seco

Episódiosclimáticos anormais

FONTE: Adaptado de Mendonça, Francisco e Oliveira, Inês M.D. Climatologia: Noções Básicas e Climas do Brasil, S.Paulo, Oficina de Textos. 2007

Europa

OCEANO

ATLÂNTICOPACÍFICO

Repercussões frequentes do El Niño (primeiro semestre do ano)

MAPA 1

MAPA 2

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SETEMBRO 2010

11

A minha relação com Cuba começou em2005 quando estive na Escola Internacio-nal de Cinema e TV (EICTV), em SanAntonio de Los Baños, para estudar cine-matografia. Conhecer a história revoluci-onária de Cuba e estudar cinema era acombinação perfeita de uma viagem pelotempo. As imagens da revolução, coman-dada por Fidel Castro, estão no inconsci-ente de muitos jovens da América Latinae do mundo e, além disso, Che Guevaraera – e continua sendo – um mito. E umdia tudo isso já foi cinema.

Fiquei dois meses na ilha e a maiorparte na EICTV. Conheci muita genteinteressante, de diversos países. Nos finaisde semana viajava para Havana. Conhecium povo muito parecido com o brasilei-ro: alegre, festeiro, miscigenado e religio-so. Meus olhos estavam fascinados poraquela gente e o seu jeito de ser. O cuba-no é um ser “revolucionário”.

Naquela primeira viagem não tive (tal-vez realmente não quisesse ter) o senso crí-tico para observar que estava diante de umaenorme contradição entre o ideal socialistae a qualidade de vida dos cubanos. Hoje,não é preciso nenhuma análise social nementender de economia para afirmar que oEstado cubano está falido. Basta andar pe-las ruas de Havana para constatar isso.

A Revolução Cubana foi um marco naformação política da esquerda latino-ame-ricana. O socialismo castrista poderia, tal-vez, vingar em Cuba, não fosse a derroca-da dos soviéticos. Passados mais de 50anos, o discurso socialista vive uma daspiores crises: a crise de identidade. Mui-tos jovens que não cresceram com o espí-rito da revolução começam a soltar umgrito de descontentamento, ainda tímido,clamando por liberdade de expressão ejustiça social. O regime não esperava queos meios de comunicação, tão usados du-rante a revolução, seriam hoje uma arma“contrarrevolucionária”. O cubano comacesso a internet passou a ser também per-sonagem dessa história. Blogs e mais blogspipocaram no espaço virtual fora de Cuba.

Acabei de chegar de uma segunda via-gem à ilha. Fui, por ironia do destino,convidado pelos cineastas Peppe Siffredie Raphael Botino para “fotografar” odocumentário O Último Discurso, sobre osdissidentes políticos de Cuba. Desta vez,

ANTES DA PÁTRIA,HUMANIDADE E JUSTIÇA

Tiago TambelliEspecial para Mundo

tive a oportunidade de conhecer o outrolado, o dos gusanos (vermes), como sãoconhecidos aqueles que pensam diferen-temente do regime. Falamos comblogueiros, artistas, dissidentes políticos,religiosos e gente do povo. Trouxemos ummaterial cinematográfico com uma visãoplural sobre a realidade cubana atual.

Não tínhamos autorização do gover-no e, assim, trabalhamos de forma clan-destina durante 12 dias. Entramos como

turistas e saímos como turistas.Utilizamos equipamento digitalde pequeno porte. Dos entrevis-tados, há aqueles que queremmatar Fidel com as própriasmãos, há aqueles que sãofidelistas, mas que gostariam deuma transformação social imedi-ata, há aqueles que dizem quetudo não passa de uma grandementira, que “a revolução enve-lheceu e se enfermou”.

Os assuntos que dominaramas entrevistas foram liberdade deexpressão e direitos humanos.Todos esses assuntos não perten-cem ao “cardápio” revolucionáriode Cuba, se assim podemos di-zer. O governo não permite enti-dades não governamentais, im-

prensa independente e opinião contrária.As entrevistas foram feitas na moradia dospersonagens. Entrar e sair da casa de dis-sidentes políticos não é tarefa fácil, poistodos eles são vigiados pela polícia. Con-fesso que esse foi o meu trabalho mais ten-so e paranóico. Nos rostos e nos gestos decada entrevistado ficava impressa a sensa-ção de perigo. Em Cuba costuma-se dizerque há seis milhões de habitantes e ummilhão de policiais.

Pessoas que pensam diferente ou gos-tariam de ser diferente daquilo que o re-gime determina são diretamente classifi-cadas como dissidente político, como pes-soa que não ama a pátria e que é mercená-ria. E, portanto, não merece viver emCuba. Basta saber que os presos de cons-ciência, que foram encarcerados por FidelCastro, durante a “primavera negra” de2003 e que neste momento estão sendolibertados e enviados para fora do país,foram classificados como “desterrados”, ouseja, pessoas sem pátria. Tais presos só con-seguiram a liberdade com a condição desaírem de Cuba – e de terem carimbadono passaporte a frase “volta indetermina-da”. Os presos políticos que não aceita-ram tais condições continuam presos.

Durante a realização do documentário fuiabordado quatro vezes pela polícia por estaracompanhado de um cubano. Em Cuba, es-trangeiro é estrangeiro, e povo é povo. Nãohá mistura e/ou algum tipo de relacionamentoque o Estado permita. O clima de tensão égrande, fora do âmbito turístico. Caminharpelas ruas de Habana Vieja pode ser uma aven-tura para os desavisados. As casas velhas e pré-dios decadentes alimentam, de certa forma, atristeza local.

Para a minha alegria, consegui encon-trar um documento histórico original: oálbum da Revolução Cubana. Compostopor 32 páginas e 268 figurinhas, ele mos-tra a história revolucionária que vai de1952 ao “retorno triunfal de Fidel Castroà Havana”, em 1959. Mais ou menos nomeio do álbum uma página especial: asfigurinhas que identificam os principaislíderes da revolução, entre eles Fidel e RaulCastro, Camilo Cinfuegos e Ernesto“Che” Guevara (veja as fotos). Escutar olado dos chamados gusanos e tomar con-tato com sua realidade me fizeram conhe-cer uma nova Cuba. Mesmo não poden-do se expressar, muitos sonham com osurgimento de uma nova nação inseridano mundo contemporâneo.

Tiago Tambelli é documentarista ediretor de fotografia. Trabalhou nos

documentários Mensageiras da Luz –Parteiras da Amazônia, de Evaldo

Mocarzel, Napepe, de Nadja Marin,Umbabarauma – o doc, de Felipe Briso,

e São Paulo na Lata, de GuilhermeValiengo, Marcelo Mesquita

e Pepe Siffredi

Ícones do mito: Fidel e osheróis da revolução

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CHÁVEZ MANOBRA NA CRISE PARA SALTAR

UMA NOVA BARREIRA

meios de comunicação social já estão em boa parte sobcontrole estatal. As leis eleitorais sofreram “ajustes” demodo a colocar pedras no caminho da oposição.

Pesquisa recente constatou que só 24% são favoráveisa que ele dispute as eleições presidenciais em 2012. Chávezjá disse, no entanto, que será candidato. Impera o condi-cional. O que acontecer nas parlamentares de agora teriaprojeções fortes nas presidenciais. Há hesitações em tirarconclusões desse amontoado de prós e contras em rela-ção a Chávez, talvez porque se ache que, em última ins-tância, o presidente acabará conseguindo ultrapassar maisessa barreira, mas não de forma edificante. Pesquisas tam-bém constatam “exaustão” com a intensa polarizaçãopolítica promovida pelo chavismo.

A dureza do embate pode ser avaliada pelo quadrotraçado pela empresa de pesquisas Hinterlaces. De umeleitorado de 17 milhões, em geral votam entre nove e10 milhões. Entre 4,5 e 5 milhões têm se mostrados fiéisao chavismo. Quatro milhões “têm ficado com firmezano campo da oposição”. Os restantes se definem comoindecisos ou desmotivados. Chávez procura, no mínimo,manter esse quadro. Conseguindo estaria ultrapassadamais uma barreira.

Theodore Petkoff, ex-guerrilheiro e agora respeitáveljornalista venezuelano, diz que em Chávez “convivem ide-alismo e pragmatismo”. O segundo quesito ficou com-provado com o desfecho da crise com a Colômbia emtransição da presidência de Álvaro Uribe para a de JuanManuel Santos. Chávez acolheu de imediato a disposi-ção de Santos de normalizar relações entre os dois países.

erá que existe um “fator militar” no momento vene-zuelano? O embaixador dos Estados Unidos na Venezue-la, Larry Palmer, diplomata de carreira com um currícu-lo de missões de alto nível não diria o que disse em suasabatina no Congresso sem ter informações acuradas. “Osmilitares venezuelanos estão de moral baixa por causa denomeações políticas”, declarou Palmer, o que pode signi-ficar um escorregão diplomático, mas seguramentemuniciado pelo aparato americano de espionagem.

O ministro da Defesa da Venezuela naturalmentecontradisse Palmer. Alguns fatos, no entanto, tem sidorelacionados como indicativos de que algo ocorre nosquartéis venezuelanos. Em seu programa de rádio Alôpresidente, Hugo Chávez anunciou que dará 40% de au-mento aos militares. Dias antes, um general há poucoaposentado queixou-se do que chamou de “cubanização”das forças armadas da Venezuela. Chávez reagiu irado,assegurando que “não se trata disso”. Os militares cuba-nos atuam unicamente como assessores, segundo ele.Ensinam como consertar rádios no interior de tanques,como estocar munições, entre outros.

Outro general, no entanto, Antônio Rivero, que pas-sou à reserva em março, disse que decidiu vestir o pijamadevido a “frustrações com a presença e interferência demilitares cubanos nas forças armadas”. Uma inflação aci-ma dos 30% e desvalorização do peso justificariam o au-mento dado aos militares. Mas não está descartada a su-posição de que se tratou de fazer um “agrado” a eles emtempos politicamente difíceis. As compras de materiaisbélicos (aviões, tanques etc.) seriam outro item de esfor-ço do chavismo – golpista em sua origem e vítima degolpe frustrado – de manter os quartéis na linha.

O salário mínimo também foi aumentado, em parce-las. A última recai neste setembro, junto com as eleiçõesparlamentares. As pesquisas dão conta de um embate duroentre governo e oposição, embora Chávez controle os trêspoderes do Estado. A crise com a Colômbia deve ter con-tribuído para que Chávez ganhasse pontos como de-fensor dos interesses nacionais. Também recomeçam osenvios de alimentos da Colômbia, significando abasteci-mento e preços mais baixos. Mas persistem fatores dedesgastes. A economia deve se retrair em pelo menos 3%,enquanto o resto da América Latina cresce. A aprovaçãode Chávez já chegou a cair a 41%, mas voltou aos 48%,num painel de oscilações.

Resta testar seu grau de vigência em situações adver-sas. O fornecimento de energia elétrica sofre abalos. Con-seguir maioria no parlamento é vital para o projetocontinuísta de Chávez. Desde que a consiga, ele irá paraas eleições presidenciais em 2012 com bom cacife e aideia é ir ganhando eleições até 2021. Com a proximida-de das parlamentares, insufla-se uma “polarização soci-al”, pobres de um lado, o de Chávez, e ricos do outro. Os

O encontro entre ambos aconteceu em Santa Marta, ondeem 1830 morreu Simon Bolívar, o Libertador, cujo lega-do, diz Chávez, inspira seus atos.

Os restos mortais de Bolívar foram inclusive exuma-dos, por determinação de Chávez, com o objetivo de sa-ber se ele morreu de morte natural ou assassinado. Oassunto tétrico logo desapareceu da cena, tal o despropó-sito, mas não o de Bolívar inspirador, 348 anos depois dasua morte. Chávez foi à Santa Marta com a bandeiravenezuelana estampada em sua jaqueta. São parecidas asbandeiras da Venezuela e Colômbia, herança da ambiçãobolivariana de criar uma Grande Colômbia. Depois demuita conversa, Chávez e Santos acertaram virar a pági-na. A declaração mais surpreendente de Chávez, no exer-cício de seu pragmatismo, foi a de que resultou de “deci-são soberana” da Colômbia a abertura de bases em seuterritório a militares americanos.

Antes, segundo Chávez, os acordos militares entre Es-tados Unidos e Colômbia se prestariam para ações contraa Venezuela. Chávez também pediu que a guerrilha co-lombiana das Farc entregue reféns e deponha as armas. Asecretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton,elogiou o desfecho da crise, mas não deu nenhum sinal deque esteja disposta a poupar Chávez, pelo menos por en-quanto. Em seu relatório anual sobre terrorismo, o Depar-tamento de Estado americano acusa Chávez de não coo-perar com os Estados Unidos na luta contra o terrorismo.Consenso de que se tratou de ataque velado a Chávez, acu-sado por Uribe de dar abrigo às Farc.

VENEZUELA

O projeto continuísta do chavismo esbarra na crise econômica interna e no desgasteda imagem do presidente. Mas continua de pé a meta de governar até 2021,

aprofundando a “revolução bolivariana”

Newton CarlosDa Equipe de Colaboradores

Em Caracas,ciclistaspasseiamdiante de

uma pixação“chavista”,

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colombianopor ter

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EstadosUnidos em

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