“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos” : um ... · Força para continuar firme...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Literaturas de Língua Portuguesa “A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”: um percurso pelas crônicas de Carlos Drummond de Andrade 1930-1934 Alfredo de Oliveira Lima Belo Horizonte 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Literaturas de Língua Portuguesa

“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”:

um percurso pelas crônicas de Carlos Drummond de

Andrade 1930-1934

Alfredo de Oliveira Lima

Belo Horizonte

2011

Alfredo de Oliveira Lima

“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”:

um percurso pelas crônicas de Carlos Drummond de

Andrade 1930-1934

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty

Belo Horizonte

2011

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Lima, Alfredo de Oliveira L732c “A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”: um percurso pelas

crônicas de Carlos Drummond de Andrade 1930-1934/ Alfredo de Oliveira Lima. Belo Horizonte, 2011.

105f. Orientadora: Ivete Lara Camargos Walty Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Crônicas brasileiras – Crítica e interpretação. 2. Belo Horizonte – 1930-

1934. 3. Modernidade. 4. Andrade, Carlos Drummond, 1902-1987. I. Walty, Ivete Lara Camargos. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-94

Alfredo de Oliveira Lima

“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos” : um percurso pelas crônicas de Carlos Drummond de An drade

1930-1934

Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:

______________________________________________________ Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty (Orientadora) - PUC Minas

______________________________________________________ Profª. Drª. Letícia Malard - UFMG

______________________________________________________ Profª. Drª. Luciana Teixeira de Andrade - PUC Minas

Belo Horizonte, 18 de agosto de 2011.

Aos meus heróis, Papai e Mamãe Às mulheres da minha vida, Cecília e Leandra

Aos belo-horizontinos, com carinho.

AGRADECIMENTOS De forma sincera e reverente, agradeço, primeiramente, à minha orientadora, Profª. Drª.

Ivete Lara Camargos Walty que, com respeito e paciência, ensinou-me a arte de analisar o

texto literário. Professora, muito obrigado por iluminar o meu percurso no universo

acadêmico. Com você, aprendi a desbravar as florestas das letras e a “vender” melhor os

meus textos.

Ao Prof. Dr. Milton do Nascimento, que lá na Graduação me disse: “estou lhe aguardando

no Mestrado”. Muito obrigado por ter apoiado esta trajetória. Da rua aos textos, do silêncio à

Força para continuar firme no caminho.

À Profª. Drª. Melânia Silva Aguiar pelas contribuições no parecer do projeto de pesquisa.

À Leandra, esposa e companheira, pela paciência que teve comigo durante a escrita deste

trabalho.

Agradeço aos diretores e coordenadores do Colégio Santa Maria - Juliana Moreira, Sandra

Cristina, Maria Helena, João Bernardes e Joselene Pimentel - por terem permitido e

compreendido a troca de horários.

Agradeço à amiga Lucy Bastos que incentivou outros olhares para a obra de Carlos

Drummond de Andrade.

Agradeço à Valéria Machado, grande amiga, com quem pude trocar muitas ideias no

decorrer desta empreitada. Todos os apontamentos foram importantes para o

enriquecimento do trabalho.

Aos colegas do Grupo de Pesquisa “Da rua: olhares sobre histórias da literatura brasileira”

que promoveram profícuas discussões, reiterando o meu interesse pela temática da rua.

Muito obrigado pela rica interlocução.

Agradeço aos professores do Programa de Pós-graduação que me despertaram para muitos

caminhos.

Às secretárias Berenice e Vera que sempre nos atenderam com carinho e atenção.

Aos Meninos da Cruz Vermelha que demonstraram agilidade e rapidez na locomoção e

instalação dos recursos audiovisuais.

“ Reconhecer que a cidade que temos e que, para nós, é real, na sua concretude e no seu cotidiano, comporta em si outras cidades que ficaram

no caminho, realizadas ou não, no longo percurso do tempo a que chamamos História.” (PESAVENTO; LEENHARDT)

“No interior da grande cidade de todos está a cidade pequena em que

realmente vivemos.” (SARAMAGO, José)

RESUMO

Planejada para ser uma grande obra da República brasileira, a cidade de Belo

Horizonte nasceu de um audacioso projeto de urbanização e racionalização do

espaço, seguindo modelos urbanos inaugurados pela modernidade. A literatura

registrou configurações da cidade em seu momento de criação no fim do século XIX

e evolução nas décadas iniciais do século seguinte. Exemplo de tais registros são as

narrativas do livro Crônicas 1930-1934, de Carlos Drummond de Andrade, objeto

deste estudo. Pensando nos movimentos sócio-culturais ocorridos na capital mineira

em razão dos processos de modernização, a pesquisa pretende examinar como a

cidade foi representada pelas imagens presentes nas crônicas. Levando-se em

conta a diversidade temática que constitui o corpus, propõe-se um percurso pelos

textos (in)diretamente relacionados ao cotidiano da capital mineira entre os anos de

1930 e 1932. Para tanto, o espaço será tomado como importante operador de

leitura, já que as mudanças trazidas pela modernidade impactaram não só os

espaços físico-geográficos, mas também os político-sociais. Neste estudo, será

considerado, ainda, o papel dos sujeitos textuais e seus lugares de enunciação,

assim como outros recursos textuais utilizados pelo autor, aí incluída a presença de

pseudônimos na assinatura das crônicas.

Palavras-chave : Crônica. Cidade. Literatura. Modernidade. Pseudônimo.

ABSTRACT Planned to be one of the great works of the beginning of the Brazilian republican

period, the city of Belo Horizonte has its origin in an audacious project of urbanization

and rationalization of space according to the urban models introduced by modernity.

Literature registered the configurations of the city at the moment of its birth by the

end of the 19th century as well as its development in the first decades of the 20th

century.This text analyses the chronicles written by Carlos Drummond de Andrade,

published by Minas Gerais newspaper from 1930 to 1934, which are examples of

these literary recordings. It specifically examines how the city was represented by the

images created in the chronicles backed by the social and cultural movements that

took place in Belo Horizonte because of such a process of modernization.

Considering the diversity of themes of the corpus, the proposal is to examine the

chronicles (in) directly related to the day-to-day life of the city between 1930 and

1932. For this analysis, the space will be taken as an important operator of reading.

That’s because of the impacts brought by the modernity changes not only on

geographical spaces, but also on the political and social ones. This work also

examines the role of textual subjects and their places of expression as well as other

textual means used by the author such as pennames to sign the texts.

Key-words: Chronicle. City. Literature. Modernity. Penname

LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 Praça Sete de Setembro (1930) ..............................................................56 FIGURA 2 Av. Afonso Pena vista da Praça da Rodoviária (1930) ............................57 FIGURA 3 MINAS GERAIS.......................................................................................72

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................11 2 A CIDADE E SEUS EMARANHADOS CONCEITUAIS.......... ...............................14 2.1 A cidade como sede da modernidade .............. ...............................................18 2.2. Belo Horizonte: de régua e esquadros.......... .................................................21 2.3 Modernismo em/de Belo Horizonte ................ .................................................26 2.4 Crônica: gênero com outros gêneros............. .................................................31 3 SOBRE AUTORES E PSEUDÔNIMOS...................... ...........................................37 3.1 No território de Antônio Crispim............... .......................................................41 3.2 Crônica e romance: diálogos na cidade.......... ................................................44 3.3 Kodack: um cronista na cidade em instantâneos .. ........................................47 3.4 Representações do verde na Avenida Afonso Pena em 1930.......................54 3.5 Antônio Crispim: na íntima relação com o jornal ...........................................68 4 NO CENÁRIO DE BARBA AZUL ......................... .................................................73 4.1 Barba Azul: outro enunciador da vida urbana.... ............................................77 4.2 Isso aqui não é o Rio de Janeiro............... .......................................................80 4.3 Da conversa com as leitoras aos fios da barba.. ............................................84 5 CONCLUSÃO ........................................ ................................................................95 REFERÊNCIAS.......................................................................................................101

11 1 INTRODUÇÃO

Estudar a cidade e refletir sobre ela é, antes de mais nada, um grande

desafio. Trata-se de um espaço que abarca uma multiplicidade de trajetórias, um

complexo demográfico que permite leituras e interpretações diversas. Mais do que

um campo de pesquisa multifacetado, a cidade é tema, objeto e problema. Um

documento vivo com suas memórias, histórias e paradoxos. É, por excelência, o

lugar do homem e, portanto, lugar de contradições. Não só o homem muda a cidade,

mas, inevitavelmente, a cidade muda o homem. Nesse sentido, mais do que um

instigante tema, a cidade é uma espécie de personagem no cenário dos avanços da

humanidade. O advento da modernidade fortalece o espaço urbano, aí

implementando novas relações político-econômicas e sócio-culturais.

A literatura, em especial o gênero crônica, encena tais relações,

configurando-se como rica fonte de observação das implementações e

transformações impostas pela modernidade.

Estudar as configurações de uma cidade-personagem, no caso, Belo

Horizonte, planejada como cidade moderna em fins do século XIX, nas narrativas do

livro Crônicas 1930-1934, de Carlos Drummond de Andrade (1987), é o objetivo

geral desta pesquisa. Assim, três termos se impõem para o desenvolvimento desse

objetivo: modernidade, cidade e crônica, já que, como bem observou Antonio

Candido, a crônica “é filha do jornal e da era da máquina” (CANDIDO, 1993, p.24).

Os elementos presentes na construção da crônica muito dizem do trabalho

daquele que a escreve, uma vez que ele, na condição de observador, pega o miúdo

e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Mais

do que um observador arguto, o cronista se configura como um comentarista dos

diversos acontecimentos ocorridos em uma determinada época, fazendo com que a

sua produção venha a se constituir uma espécie de documento, um registro.

Pensando nas imbricações entre a espécie literária em questão e a cidade moderna,

esta pesquisa tem como proposta uma leitura crítica do percurso do cronista Carlos

Drummond de Andrade pelas ruas de Belo Horizonte, nos anos de 1930 a 1932.

As crônicas de Carlos Drummond de Andrade, escritas no início da década de

1930 - quando o escritor era redator do jornal Minas Gerais - foram publicadas em

1984 pelo Arquivo Público Mineiro, na sua tradicional revista. Esses textos, do

12 caderno “Notas oficiais” e título “Um minuto, apenas”, foram assinados com os

pseudônimos de Antônio Crispim e Barba Azul. Três anos mais tarde, as narrativas

foram reunidas e organizadas no livro Crônicas 1930-1934 em homenagem ao

poeta, que completava 85 anos.

Todas as narrativas analisadas apresentam, de forma direta e/ou indireta,

flashes do cotidiano da capital mineira. São imagens, impressões que compõem o

espaço de transição entre o tradicional e o moderno nos primeiros anos da década

de 1930. Assim, são as seguintes narrativas selecionadas pela pesquisa: “Bom

viver”, “Kodack”, “Avenida ao sol”, “Amigos do verde” e “Os que partem”, de Antônio

Crispim. E, “Programa”, “Uma xícara de chá”, “Resumo”, “Luzes da cidade”, “Receita

de doce”, “O doce incomível” e “Bilhete à oitava mulher”, de Barba Azul.

(ANDRADE, 1987)

No intuito de melhor delimitar o objeto de pesquisa, optou-se por fazer o

levantamento e a análise dos elementos presentes nas crônicas que permitem

classificar esse gênero como eminentemente moderno. Para realizar tal percurso

escolheu-se a figura do flâneur, tipo estudado por Benjamin (1989), tentando-se

estabelecer uma relação entre essa figura e o cronista. É esse personagem que,

por meio das narrativas, convida o leitor a também percorrer as ruas da cidade

planejada. Nesse viés, será analisado o modo como Carlos Drummond de Andrade ,

sob os pseudônimos Antônio Crispim e Barba Azul, lança um olhar sobre as

transformações físicas e sociais da Belo Horizonte daquele contexto.

O estudo dessa figura e seu cenário é objeto do capítulo “A cidade com seus

emaranhados conceituais” em que são apresentadas as considerações sobre a

temática da cidade por meio de estudos de Barros (2005) e Park (1976) sobre o

traço da multiplicidade que perpassa a esfera urbana. É feita, também, uma

abordagem da cidade no cenário da modernidade, subsidiada pelos estudos de

Walter Benjamin (1989), Pesavento (1999), Bolle (2000) e Massey (2008).

Permeando tal reflexão, encontra-se o conceito relacional de espaço, do geógrafo de

Milton Santos (1997).

No mesmo capítulo são apresentados, ainda, os aspectos históricos e

geográficos que caracterizam Belo Horizonte como cidade moderna, ancorados nos

estudos desenvolvidos por Andrade (2004), Ávila (2008) e Cury (2004). Sobre a

formação do Modernismo na capital mineira, bem como as primeiras publicações

que contribuíram para solidificação da tendência em nosso Estado, o trabalho

13 privilegiou os estudos de Bueno (1982) e Cury (1998). No que se refere à crônica na

sua intrínseca relação com a modernidade, foram utilizados os conceitos de

Arrigucci (1987), Candido (1993), Pereira (1994) e Resende (1993).

No Capítulo 3, “Sobre autores e pseudônimos”, discute-se um pouco a

conceituação de autor/pseudônimo e suas configurações nas crônicas de Carlos

Drummond de Andrade. Em seguida, são apresentadas as análises de cada crônica

assinada por Antônio Crispim, em que se procura investigar as contradições da

cidade de Belo Horizonte, levando-se em conta as transformações ocorridas no

referido espaço urbano. Nesse capítulo, busca-se verificar o modo como o cronista

se relaciona com as mudanças da cidade, considerando as cenas enunciativas de

que faz parte. É então que se introduz um diálogo com Avelino Fóscolo, autor do

primeiro romance que teve a nova cidade como cenário/personagem, A capital

(1903/1979). O trabalho procura evidenciar, pois, as contradições e ambiguidades

que perpassaram o cotidiano da cidade moderna, assim como os aspectos

relacionados aos sentimentos de melancolia e tédio, tão peculiares ao homem

moderno.

No capítulo 4, intitulado “No cenário de Barba Azul”, a pesquisa busca

investigar o perfil desse enunciador da vida urbana da Belo Horizonte dos anos

1930, sob o pseudônimo Barba Azul. Atentou-se, aí, para as discussões do

provincianismo de Belo Horizonte em relação a outras cidades modernas,

especialmente o Rio de Janeiro. Uma outra reflexão empreendida diz respeito às

relações entre o cronista e seus respectivos leitores, considerando-se as estratégias

por ele utilizadas no espaço do texto. Procura-se analisar, ainda, a construção do

pseudônimo diante do público feminino, privilegiando-se o aspecto da

intertextualidade com o conto de Charles Perrault (1997).

O Capítulo 5 apresenta as considerações finais da pesquisa, retomando

algumas reflexões anteriormente apresentadas, no intuito de se pensar o percurso

pelas crônicas de Carlos Drummond de Andrade como uma forma de leitura da

cidade de Belo Horizonte dos anos 1930.

14 2 A CIDADE E SEUS EMARANHADOS CONCEITUAIS

Como se viu, estudar as configurações da cidade moderna, no caso, Belo

Horizonte, planejada como tal em fins do século XIX, nas narrativas do livro Crônicas

1930-1934, de Carlos Drummond de Andrade (1987), é o objetivo geral desta

pesquisa. Levando-se em conta a dimensão dessa temática e seus

desdobramentos, torna-se indispensável demarcar o percurso a ser delineado

pelas/nas crônicas, em sua relação com o jornal, a cidade e a modernidade. Faz-se

necessário, pois, em um primeiro momento, tecer algumas considerações sobre o

conceito de cidade. Assim define o termo cidade, Cunha (1986, p.182): “complexo

demográfico formado, social e economicamente, por uma concentração populacional

não agrícola. Do latim: civitas, civitas-ati: cidadania.”

A etimologia da palavra já contém a relação entre geografia e política, própria

da pólis grega e da civitas latina, em que o direito à cidade traduzia o direito de ser

admitido no número de cidadãos, com o conjunto de suas prerrogativas.

Antônio Houaiss (2002) apresenta 10 acepções para a palavra cidade , o que

demonstra uma estimável diversidade de significados. Dentre essas definições,

talvez a que mais se aproxima do escopo desta pesquisa é a que descreve a cidade

como:

aglomeração humana de certa importância, localizada numa área geográfica circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração direta do solo.(HOUAISS, 2002, p.714).

O substantivo é utilizado aí para designar uma dada entidade político-

administrativa urbanizada. Nessa acepção, observa-se a oposição entre cidade e o

meio agrícola, evidenciando o par campo/cidade. A cidade vai diferenciar-se de vilas

e zonas rurais através de vários critérios, os quais incluem população e densidade

populacional. Na cidade, desse ponto de vista, o homem teria desenvolvido um

modo de vida que permitiu o domínio da natureza e, portanto, sua diferenciação dela

e de outros homens, como observa Barros (2005, p.31-32).

Na modernidade concentram-se, nesse espaço citadino, os bens de

reprodução do capital e a força de trabalho; daí a imagem de centro atrativo por

conter em sua configuração os mais diversos setores ligados às necessidades do

15 homem. A cidade é configurada como o lugar de convergência das grandes

tendências e interesses econômicos, políticos e ideológicos. Por esse viés, a cidade

se desenha como um complexo demográfico, não oposta à natureza, mas em

interação com ela, como se lê num artigo de Robert Park (1976):

[...] a cidade é algo mais do que um amontoado de homens individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde, telefones etc.; algo mais também que uma mera constelação de instituições e dispositivos administrativos – tribunais, hospitais, escolas, polícia e funcionários civis de vários tipos. Antes, a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana. (PARK, 1976, p. 26)

Muda-se, pois, a ideia da relação construída/permitida entre a cidade e a

aglomeração humana que nela habita, ampliando a possibilidade de se definir esse

lugar, sobretudo, como espaço de trocas. Por essas possibilidades é que o vocábulo

traz em seu bojo outras extensões, como cidade-jardim, cidade-estado, cidade-

universitária e cidade-satélite. Dessa forma, não só a imagem da cidade é complexa,

mas sua própria natureza conceitual, o que explicaria a carência de um padrão

mundial que a oriente. A definição varia de país para país, sendo que no Brasil, por

exemplo, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística citado por Amorim,

Andrade e Umbelino (2009):

qualquer comunidade urbana caracterizada como sede de município é considerada uma cidade, independentemente de seu número de habitantes, sendo a parte urbanizada de seus distritos considerados prolongamentos destas cidades.(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA apud AMORIM; ANDRADE; UMBELINO, 2009).

Encontrada nos dicionários como sinônimo de urbe, do latim urbs, polidez, da

pólis grega, “a cidade representa a educação, a cultura, os bons costumes e a

elegância” (GOFF apud BARROS, 2005, p.32). Por isso mesmo, o adjetivo urbano

liga-se a alguém dotado de urbanidade ; afável, civilizado, cortês. Some-se a isso o

fato de que é nas cidades que circulam novas informações, notícias inéditas e as

novas tendências estéticas e filosóficas. Isso porque a cidade é o ambiente em que

se encontram diversos grupos oriundos de diferentes lugares, portadores de

ideologias e visões de mundo distintas. Na cidade ocorre um “cruzamento de

16 trajetórias” (MASSEY, 2008).

Ressalte-se que é no campo semântico da palavra urbe e no contexto da

modernidade que surgirá o Urbanismo e as concepções que hoje temos de cidade.

Segundo Santos (2006):

o Urbanismo nasceu no final do século XIX, para o estudo, da organização e intervenção no espaço urbano, como prática das transformações necessárias à realidade caótica das condições de habitação e salubridade em que viviam os habitantes de grandes cidades europeias, na época da Revolução Industrial. (SANTOS, 2006, p.17)

Já na origem dessa área do conhecimento, nota-se a necessidade de o

homem interferir nos espaços físico e geográfico, tentando apreender a cidade com

o intuito de estudá-la e buscar soluções para os seus problemas, uma vez que ela

se configura como um lugar em transformação. As intensas e inevitáveis mudanças

ocorridas na imagem urbana corroboram a ideia de “organismo em mutação, uma

composição nova em um cenário novo que espera para ser analisado”, como

descreve Lima (2000, p.9).

Se em determinado momento, a cidade apresentou-se como objeto de análise

do Urbanismo, que só veio consolidar-se como ciência no século XX, ela foi e tem

sido alvo de interesse de outras áreas como a Geografia, a Arquitetura, a Sociologia,

não tendo ficado fora do campo das artes, especialmente da Literatura. Como afirma

Pesavento (1999), “a cidade é objeto de múltiplos discursos e olhares, que não se

hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se contradizem, sem, por isso,

serem uns mais verdadeiros ou importantes que os outros.” (PESAVENTO, 1999,

p.9). Em outras palavras, a autora, com intermediação de Morin, propõe que a

cidade é transdisciplinar e por isso mesmo construída como um desafio.

O desafio contido nos emaranhados urbanos encontra-se já na construção

deste espaço. Park (1976) pontua que:

A planta do terreno da maioria das cidades americanas é um tabuleiro de xadrez. A unidade de distância é o quarteirão. Essa forma geométrica sugere que a cidade seja uma construção puramente artificial que possivelmente poderia ser reagrupada como uma casa de blocos. A verdade, entretanto, é que a cidade está enraizada nos hábitos e costumes das pessoas que a habitam. A conseqüência é que a cidade possui uma organização moral bem como uma organização física, e estas duas interagem mutuamente de modos característicos para se moldarem e modificarem uma a outra. É a estrutura da cidade que primeiro nos impressiona por sua vastidão e complexidade visíveis. Mas, não obstante, essa estrutura tem suas bases na natureza humana, de que é uma expressão. (PARK, 1976, p.29)

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Mais do que isso, parte da complexidade intrínseca à configuração da cidade,

sobretudo física, se esclarece à medida que tomamos o espaço como operador de

leitura. Milton Santos (1997), ao conceituar esse objeto da Geografia, evidencia o

caráter de multiplicidade que o atravessa, retrato vário da cidade em si:

[...] O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e que os anima, ou seja, a sociedade em movimento. (SANTOS, 1997, p. 26)

Por esse prisma, inicialmente, dois caminhos se cruzam na concepção do

fenômeno urbano : a cidade física e as relações que a compõem. E é a partir do

encontro desses pólos que se tem o cenário da cidade como um espaço das

possibilidades, das intensas relações de troca, de movimento e de poder.

Configurando-se assim, esse espaço citadino é também multifacetado, pois se

desenha como impossibilidade de ser concebido na sua totalidade. Nesse sentido, a

definição proposta pelo geógrafo contribui para que a cidade seja compreendida em

constante movimento, com seus arranjos e desarranjos. Uma cidade é, na verdade,

muitas cidades em um intenso movimento relacional.

Pensar a cidade, pois, levando-se em conta a abordagem do espaço

relacional, reforça uma palavra-chave presente no estudo dessa temática:

multiplicidade. Talvez seja esse o melhor vocábulo para descortinar os vários

percursos na e da cidade em seus diferentes contextos.

Nesse sentido, há que se recorrer a uma outra geógrafa, Doreen Massey

(2008), quando define o espaço como:

a esfera da possibilidade da existência, da multiplicidade, no sentido da pluralidade contemporânea, como a esfera na qual distintas trajetórias coexistem; como a esfera, portanto, da coexistência da heterogeneidade. Sem espaço, não há multiplicidade; sem multiplicidade, não há espaço. Multiplicidade e espaço são co-constitutivos. Se espaço é, sem dúvida, o produto de inter-relações, então deve estar baseado na existência da pluralidade (MASSEY, 2008, p.29)

Por isso mesmo é que a cidade, espaço múltiplo por excelência, vem se

transformando em tema instigante para as diversas áreas do conhecimento. A esse

respeito, saliente-se, nos estudos de Barros (2005), a afirmação de que “as cidades

são sempre interrogáveis, portadoras de distintas temporalidades e formas

18 expressivas que, sobrepostas ou simultâneas, remetem a um campo múltiplo de

referencialidades”. (BARROS, 2005, p.36). Estudar a cidade é, então, concebê-la

como portadora de vários sentidos e desafios.

2.1 A cidade como sede da modernidade

Estudando a cidade latino-americana em sua relação com a modernidade,

Gorelik assim define esta última:

A modernidade é tomada aqui, então, como o ethos cultural mais geral da época, como os modos de vida e organização social que vem se generalizando e se institucionalizando sem pausa desde sua origem racional-européia nos séculos XV e XVI [...] (GORELIK, apud WALTY, 2010, p. 59).

Trata-se, pois, de transformações ocorridas desde o Renascimento, passando

pela criação dos estados-nação, diretamente relacionados com o desenvolvimento e

fortalecimento do Capitalismo. Desses aspectos, o último foi o que mais marcou o

advento da modernidade, uma vez que se encontra normalmente relacionado à

Revolução Industrial. A partir das transformações resultantes do desenvolvimento do

Capitalismo, pode-se dizer que a modernidade se caracteriza como um estilo, um

modelo de vida ou organização social surgidos na Europa e que devido a sua forte

influência veio a se tornar um modelo mundial.

Nesse novo cenário europeu, o ciclo natural da vida deixa de ser a referência

para se medir o tempo, que passa, cada vez mais, a ser calculado com exatidão

matemática. A esse respeito, Martha D`Angelo (2006) comenta que com a

modernidade,

o tempo como duração perde sua importância diante do tempo mercadoria, representado de modo exemplar no slogan "tempo é dinheiro". O "perder tempo", sobretudo para os moralistas e protestantes, passa a ser visto como pecado. Com a difusão dos relógios a partir de l850, disseminou-se a idéia de pontualidade como "virtude". A dependência do tempo matemático, no início imposta apenas aos pobres, se estendeu a todas as classes sociais; quem não se ajustava a esse ritmo enfrentava a hostilidade social e a ruína econômica. (D`ANGELO, 2006, p. 244).

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Mudanças como esta puderam ser vistas no cotidiano de cidades como

Londres, Paris e Moscou, que foram diretamente transformadas pela Revolução

Industrial. Esse tipo de cidade se apresenta como um fenômeno novo, dimensionado

na metrópole. A respeito da organização industrial, Park (1976) discorre que:

A cidade antiga era principalmente uma fortaleza, um lugar de refúgio em tempo de guerra. A cidade moderna, pelo contrário, é principalmente uma conveniência de comércio, e deve sua existência à praça do mercado em volta da qual foi erigida. A competição industrial e a divisão do trabalho, que provavelmente mais fizeram pelo desenvolvimento dos poderes latentes da humanidade, somente são possíveis sob a condição da existência de mercados, dinheiro e outros expedientes para facilitar os negócios e o comércio. (PARK, 1976, p.36)

Sob o signo do progresso, altera-se o perfil urbano, em função do conjunto de

experiências de seus habitantes, já que a modernidade tem na cidade a sua sede.

Em outras palavras, é no espaço urbano que as ideias propostas pela modernidade

se horizontalizaram. Segundo Teixeira (2007),

a cultura da modernidade é, eminentemente, urbana e comporta duas dimensões indissociáveis: por um lado, a cidade é o sítio da ação social renovadora, da transformação capitalista do mundo, e por outro lado, a cidade torna-se, ela própria, o tema e o sujeito das manifestações culturais e artísticas. Dessa forma, é na correlação modernidade-cidade que encontramos a passagem da idéia da urbe como local onde as coisas acontecem. A metrópole é a forma mais específica da realização da vida moderna. (TEIXEIRA, 2007, p.46)

Desse modo, “a cidade desenha-se numa complexa tessitura humana, uma

construção se impacta sobre a outra em um processo de acumulação, de

condensação e de concentração econômica, política e cultural”, como propõe

Teixeira (2007, p.47).

Num importante estudo sobre Paris, cidade moderna por excelência, ao

apresentar razões que reforçam o traço da modernidade, Sandra Pesavento (1999)

descreve que:

[...] Ao longo do século XIX, Paris experimentaria toda uma gama de transformações ligadas ao desigual desenvolvimento do capitalismo francês: a cidade decuplicou a sua população [...] diversificou-se o parque reprodutivo, redesenhou-se o espaço urbano , e o regime político alternou-se mais de uma vez entre formas monárquicas e republicanas. Nesse contexto francês em transformação, em que formas arcaicas e novas entrechocavam, e valores do progressismo se entrecruzavam com os da tradição, Paris era, por excelência, o teatro desse processo da modernidade. (PESAVENTO, 1999, p.31, grifo nosso).

20

A imagem desse complexo quadro foi objeto de pesquisa do filósofo alemão

Walter Benjamin (1989). Em suas reflexões sobre a modernidade, Benjamin

privilegia a arte, especificamente a literatura. É então que confere uma grande

importância à obra de Baudelaire, por considerá-lo, além de um poeta com grande

sensibilidade para interpretar a vida urbana, uma testemunha dos processos de

modernização que a cidade experimenta, ou, mais do que isso, um personagem de

tais processos.

Na obra Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1989),

Benjamin elege Paris como sede da modernidade e procura entender sua

complexidade, bem como suas contradições. Em seus estudos, o filósofo revela, por

meio dos pequenos acontecimentos cotidianos, o processo de modernização da vida

parisiense, processo que se disseminou em outras cidades que tiveram Paris como

modelo.

Das muitas mudanças trazidas pela Revolução Industrial, a que mais chamou

a atenção foi o crescimento da população, a enorme aglomeração de pessoas nos

centros urbanos, surgindo, daí, o conceito de “multidão.” Sobre essa imagem

significativa no corpo da cidade, Pesavento (1999), comenta:

Só uma metrópole era capaz de proporcionar o bulício da multidão, o anonimato em meio da massa e a magia de um encontro fortuito, tão condizentes com o que poderia ser chamado o turbilhão de mudanças trazido pelo progresso do século. (PESAVENTO, 1999, p.102)

É com a abordagem desse novo fenômeno que Benjamin vai se deter no

comportamento dos ‘tipos’ que transitam em meio à multidão, a exemplo do

fisiognomista e do flâneur, mostrando como, no referido contexto histórico vai se

configurar uma época de panoramas, em que a vida dos moradores da cidade se

alarga concomitantemente às dimensões de uma paisagem que se desdobra diante

do olhar do transeunte. Essa nova cidade, que fazia um convite à circulação,

atividade privilegiada do flâneur, funcionava como um refúgio para essa figura que

se misturava à grande massa. De acordo com Benjamin, “a multidão é o véu,

através do qual a vida familiar acena para o flâneur como fantasmagoria”. Na

multidão a cidade é hora paisagem, ora ninho acolhedor. (BENJAMIN, 1985, p.39).

Para o filósofo, por se encontrar protegido no meio da multidão, o flanêur

observa e decifra o que vê. Nessa esteira, Ferrara (1993) propõe que “a Paris do

21 século XIX, que encanta Benjamin através de Baudelaire, é a cidade da experiência

urbana assumida e, por isso, torna-se a cidade luz que faz do poeta um fisionomista

da imagem urbana”. (FERRARA, 1993, p. 216).

Na visão benjaminiana, o flâneur é como um “emissário do capitalismo”: seu

refúgio são as galerias e magazines, lugares por excelência onde a mercadoria

circula. Por isso mesmo, palavras como transitar , percorrer e deambular legitimam

o lugar ocupado por essa figura na literatura panorâmica. O flâneur possui, por

definição, uma extraordinária mobilidade, percorrendo a metrópole em busca de

sensações sempre novas (BOLLE, 2000, p.367). À sua frente, a cidade se

decompõe em imagens e somente no percurso é que ele (re) vela o arranjo de

fragmentos que a compõem.

Não se pode deixar de mencionar, no entanto, a faceta sombria da

modernidade referente aos segmentos excluídos das “passagens” envidraçadas e

iluminadas: o trapeiro, a prostituta, os boêmios, encarnados na imagem do próprio

poeta. Por isso mesmo, o conceito de progresso que anima o desenvolvimento da

sociedade moderna traz em si um dos paradoxos da modernidade apontados por

Compagnon (1996).

Desse modo, interessa à presente pesquisa levar em consideração os

aspectos aqui apontados em relação ao flâneur, salientando-se que é justamente

esse seu caminhar, seu constante movimento pelas ruas que interessa ao recorte

deste trabalho. Como personagem da modernidade, o flâneur permite uma rica

leitura do espaço urbano. Como ‘tipo’ criado pela/na cidade, suas atitudes e

características vão coincidir com a multiplicidade de imagens que habitam a cidade.

Assim, é levando-se em conta esse atento caminhar que as crônicas de Carlos

Drummond de Andrade serão percorridas, flagrando-se, aí, as configurações da

cidade de Belo Horizonte e as representações que dela faz o cronista.

2.2. Belo Horizonte: de régua e esquadros

Com o advento da república, o Brasil busca entrar compulsoriamente na

modernidade, como bem observa Sevcenko (2003, p.35). O Rio de Janeiro, como

afirma o autor, torna-se “o maior centro comercial do país. Sede do Banco do Brasil,

22 da maior Bolsa de Valores e da maior parte das grandes casas bancárias nacionais

e estrangeiras”, polarizando “também as finanças nacionais”. E continua:

Acrescente-se ainda a esse quadro o fato de essa cidade constituir o maior centro populacional do país, oferecendo às indústrias que ali se instalaram em maior número nesse momento o mais amplo mercado nacional de consumo e de mão-de-obra. (SEVCENKO, 2003, p.39)

Observa-se, pois, que o chamado progresso, que se iniciara com a vinda da

família real para o Rio de Janeiro, ganha nova dimensão, na busca de se fazer da

cidade um centro cosmopolita, tomando como modelo o comportamento europeu,

visto, na época, como o mais moderno e evoluído. Nesse quadro, dá-se o

movimento chamado “Regeneração” em cujo bojo se instala a campanha higienista

e saneadora, que privilegia a burguesia nascente em detrimento dos nativos, dos

pobres e daqueles ligados ao que se considerava sujo e impuro.

Assim se refere Beatriz Resende (1993) ao início desse período:

Rodrigues Alves assumiu o governo em 1902 com um programa intensivo de obras públicas: saneamento e reforma urbana. Para desenvolvê-las o prefeito Pereira Passos e o diretor do Serviço de Saúde Pública, receberiam poderes de ditadores. (RESENDE, 1993, p.39)

Desse modo, o movimento intitulado “Bota-abaixo”, comentado por vários

cronistas da época, pode ser visto como uma metonímia do processo de

modernização da cidade. Os olhares sobre a transformação são ora de louvação

como os de Bilac, ora críticos como o de Lima Barreto, e mesmo as reações

populares como a da revolta da vacina, não impediram a continuidade das reformas.

As drásticas transformações realizadas no Rio de Janeiro, na tentativa de

acompanhar as tendências modernas, mudaram profundamente os padrões culturais

e sociais. A intenção dos engenheiros e arquitetos da época era transformar a

capital carioca em uma “Paris à beira-mar”, em que a população mais abastada

passou a valorizar o requinte e a sofisticação copiados de fora em detrimento da

realidade local.

Na direção dos ideais modernos, como ocorreu com o Rio de Janeiro, Belo

Horizonte nasceu na prancheta, em um molde que procurou enquadrar todos os

aspectos contemplados nos projetos de urbanização e higienização que

transformaram as cidades em produtos da modernidade. Como grande obra da

23 República brasileira, Belo Horizonte foi construída segundo um modo racionalista de

lidar com o espaço, como se observa na minuciosa declaração do engenheiro Aarão

Reis:

As ruas fiz dar a largura de 20 m, necessária para a conveniente arborização, a livre circulação de veículos, o tráfego dos carris e os trabalhos de colocação e reparação das canalizações subterrâneas. Às avenidas fixei largura de 35 m, suficiente para dar-lhes a beleza e o conforto que deverão, de futuro, proporcionar à população. (BARRETO, apud ANDRADE, 2004, p.76)

Como se viu, a construção de Belo Horizonte, com o objetivo de se tornar a

capital política e administrativa, vai ao encontro do espírito moderno que

predominava na época, cuja tendência era o rompimento com a tradição e a

inauguração de um tempo novo. Como aponta Ávila (2008), Belo Horizonte

representou a:

encomenda feita de um plano de construção da nova capital de Minas Gerais, que correspondesse a um anseio geral do país pelo ingresso na modernidade que, embora sentido e propulsionado já pelo Imperador D. Pedro II, grande entusiasta da viação ferroviária e da telefonia, ligava-se inevitavelmente à mudança de regime trazida pela Proclamação da República em 1898. (ÁVILA, 2008, p. 15)

Do projeto arquitetônico inicial à cidade que conhecemos hoje, Belo Horizonte

passou por várias transformações até alcançar a imagem de cidade moderna. Por

isso mesmo, é interessante pensar como se formou a população da cidade.

Seguindo o traço de assepsia empreendido pela modernidade, os primeiros

moradores do antigo Curral D’el Rei foram varridos para localidades vizinhas. Para

que fosse possível levar adiante o projeto de construção, com o aplainamento das

ruas e o alargamento das avenidas, o destino desses antigos moradores também foi

modificado ao serem empurrados para fora desse espaço que se erigia. Dessa

forma, muitas histórias foram apagadas/deixadas de fora para a construção da

cidade moderna.

A nova cidade passou a receber, então, muitas famílias, antes moradoras de

áreas rurais, que, atraídas pela novidade ou em busca de melhores oportunidades

de trabalho, passaram a formar o novo contingente de habitantes da cidade. Uma

das imagens na história de Belo Horizonte que irá permanecer será justamente a da

cidade como espaço dos estudantes e dos funcionários públicos. Não por acaso, um

24 de seus mais conhecidos bairros tem o nome de Funcionários.

O surgimento das primeiras indústrias e a oferta de atividades ligadas não só

a elas como também ao comércio e ao serviço público propiciou a

adaptação/acomodação dos novos habitantes na cidade. Esse contingente de

pessoas vindas do interior para a capital, atraídas principalmente pelos novos meios

de trabalho, fez com que Belo Horizonte se despontasse como espaço de

negociação e trocas.

Na verdade, tudo isso atendia aos anseios da elite burguesa, como se

percebe no tracejado da cidade, delimitado em seu moderno projeto de construção.

Assim o define Ávila (2008):

O projeto de Belo Horizonte é traçado a partir de um xadrez de grandes avenidas que cortam a cidade transversalmente, ao qual se sobrepõe outro tabuleiro, agora em recorte perpendicular, de ruas. O encontro de avenidas resulta em praças, o todo se encontra inserido em um círculo que configura a chamada Avenida do Contorno. (ÁVILA, 2008, p. 17).

Sobre a Avenida do Contorno, antes denominada Avenida 17 de Dezembro, é

importante sublinhar que se trata, talvez, da maior metonímia de organização do

espaço, uma vez que sugeria que o conflito e a desordem ficassem de fora. Essa

avenida marcou o objetivo de racionalidade do espaço imposto pelo esquadro da

modernidade, pois, abraçando toda a área central, o anel estabelecia os limites entre

as zonas urbana e suburbana, privilegiando a área interna. Assim, sob um modelo

excludente, erigia-se uma cidade moderna, com enormes avenidas e passeios

laterais arborizados de quatro metros de largura, ficando o centro livre para o

trânsito de carros. É o que atesta Cury (2004):

As avenidas longas e largas, inspiradas nos bulevares haussmanianos, contrapunham-se às tortuosas e estreitas ruas ouro-pretanas e irradiavam uma perspectiva sem obstáculos para a visão, ligando os pontos extremos da cidade e controlando a circulação das pessoas. A rua organizava a passagem e a paisagem , o espaço da ordem, contraposta à desordem que caracterizava a rua colonial. Becos e ruelas, ornamentos rococós eram coisas do passado colonial. (CURY, 2004, p.20, grifo nosso)

Luciana Andrade (2004) discorre, ainda, sobre as posturas municipais que

contribuíram para dificultar o acesso da população mais pobre à zona urbana. A

autora menciona a situação das prostitutas que tiveram circulação restrita a áreas

mais distantes do centro, além da regulação da atividade de mendicância, do

25 comércio ambulante e do comportamento nos bondes. Em 1925, foi assinado um

decreto regulando o uso dos jardins públicos, das praças e do Parque Municipal,

atitude que discriminava as pessoas, proibindo-as de frequentar tais lugares. Não

podiam ali frequentar:

Pessoas ébrias, alienadas, descalças, indigentes e as que não estiverem decentemente trajadas, e bem assim as que levarem cães e outros animais em liberdade, e volumes excedentes de 30 centímetros de largura por 40 de comprimento. (COLETÂNEA DE POSTURAS MUNICIPAIS DE BELO HORIZONTE, apud ANDRADE, 2004, p.77)

Na edificação da cidade, cada coisa foi colocada em seu devido lugar. Hoje,

pode-se dizer que “esse sonho” de construção foi fortemente influenciado pela

percepção do espaço-dividido, visto como um produto do próprio projeto da

modernidade. Doreen Massey (2008, p.104) ressalta que “dentro da história da

modernidade se desenvolveu uma compreensão hegemônica particular da natureza

do próprio espaço e da relação entre este e a sociedade”. Sobre isso, a estudiosa

diz que:

o que se desenvolveu dentro do projeto da modernidade, em outras palavras, foi o estabelecimento e a (tentativa de) universalização de uma maneira de imaginar o espaço (e a relação sociedade/espaço) que afirmou o constrangimento material de certas formas de organizar o espaço e a relação entre sociedade e espaço. (MASSEY, 2008, p.103)

Dessa forma, ao confrontar as reflexões de Doreen Massey com as

configurações de Belo Horizonte, visualiza-se o signo que orientou o projeto

disciplinador da esfera urbana, uma vez que a modernidade impôs “uma

representação do espaço, uma forma particular de ordenar e organizar o espaço que

se recusava (se recusa) a reconhecer suas multiplicidades, suas fraturas e seu

dinamismo.” (MASSEY, 2008, p.103, grifo nosso). Frise-se que a abordagem da

pesquisadora legitima a ideia de que a cidade é sinônimo de multiplicidade, a

mistura de todas as histórias e não o apagamento de umas para a prevalência de

outras, como se percebe no projeto de Belo Horizonte.

26 2.3 Modernismo em/de Belo Horizonte

Embora inaugurada em 1897, a construção de Belo Horizonte prolongou-se

até o ano de 1905 e somente por volta de 1915 a cidade pôde proporcionar a seus

habitantes condições para o florescimento de uma vida social e intelectual típicas do

meio urbano. Porém, os sérios problemas de energia e a Primeira Guerra Mundial

acabaram por causar crise e recessão. É o que se lê em nota de revista cultural e

literária da época:

Belo Horizonte, oprimida também pela terrível crise financeira que presentemente aflige toda a Nação, debate-se do mesmo modo com outra crise: a crise social. O nosso mundo elegante acha-se desligado e não tem um ponto de reunião. As famílias não se visitam e vivem recolhidas entre as quatro paredes do lar. (ANDRADE, 2004, p.85)

A partir de 1920, no entanto, Belo Horizonte experimentou grande

crescimento e progresso, segundo os parâmetros da época. De acordo com censo

realizado naquele ano, como mostra Luciana Andrade (2004), a indústria adquiriu

certa expressão, o que fez com que a economia sofresse uma visível alteração.

Entre 1920 e 1930, cresce também a população e ampliam-se os meios de

comunicação, prenunciando o surgimento de uma grande metrópole.

Diante da formação populacional e de um considerável atraso em relação às

cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, Belo Horizonte demorou certo tempo para

dar visibilidade à sua produção literária. Isso só foi possível, dentre outros fatores,

com o investimento na imprensa da capital. Por isso mesmo, grande parte dos

escritores desse contexto, em que a literatura modernista demonstrava os seus

primeiros indícios, esteve ligada aos jornais da época.

Considerando o âmbito cultural da cidade, que havia recebido, já em sua

fundação, intelectuais da antiga capital, faz-se necessário atribuir uma atenção

maior à década de vinte. Nesse período, Belo Horizonte assiste a uma considerável

efervescência artística: a formação do grupo de escritores modernistas, a presença

da Caravana Paulista (1924) e as publicações de A Revista (1925) e Leite Criôlo

(1929). Importa, aqui, destacar A Revista, já que nela figura Carlos Drummond de

Andrade como um dos diretores e autor de diversos artigos ao longo de seus

números. Ressalte-se que Carlos Drummond de Andrade apresenta, nessa

27 publicação, algumas marcas que retoma na década seguinte, dentre elas a

utilização do pseudônimo Antônio Crispim. Não se pode deixar de mencionar o fato

de esse autor ter se tornado um dos maiores expoentes do Modernismo no Estado

de Minas Gerais.

Por razões óbvias daquele momento histórico, como a ausência de notícias a

respeito da Semana de Arte Moderna - maior evento do Modernismo - as ideias

difundidas em São Paulo chegaram com certo atraso à capital mineira, permitindo

afirmar que a influência desse polêmico acontecimento não foi imediata, como se

pode comprovar pelos depoimentos do próprio Carlos Drummond de Andrade citado

por Cury (1998) e de Abgar Renault citado por Andrade (2004):

Tanto quanto posso lembrar-me, o pequeno grupo de rapazes mineiros “dados às letras” não tomou conhecimento. Explica-se: só por acaso líamos jornais paulistas, e os do Rio não deram maior importância ao fato, se é que deram alguma. (ANDRADE apud CURY, 1998, p.76)

Da Semana de Arte Moderna propriamente dita nada me resta na memória. Nem creio que esse acontecimento tivesse tido, desde logo, repercussão importante em Belo Horizonte, parecendo-me que o fato, sem embargo da sua significação, não ultrapassou os limites da leitura dos jornais de São Paulo, os quais não tinham, na época, muitos leitores aqui. (RENAULT, apud ANDRADE, 2004, p.90)

Nas palavras de Pedro Nava, “uma das coisas mais importantes para a vida

do nosso grupo foi a visita, logo depois da Semana Santa de 1924, da caravana

paulista” (NAVA, apud ANDRADE, 2004, p.90). Segundo Carlos Drummond de

Andrade, “desse encontro com os modernistas de São Paulo, o nosso modernismo,

até então quase solitário, tirou seiva para se encorpar.” (ANDRADE, apud

ANDRADE, 2004, p.90). Por isso mesmo, também Cury acentua que “a Semana dos

mineiros de Belo Horizonte ocorreria com a vinda dos modernistas de São Paulo a

Minas” (CURY, 1998, p.79).

A caravana, composta por Blaise Cendrars, Godofredo Silva Telles, Tarsila do

Amaral, Mário de Andrade, Olívia Guedes Penteado, Oswald de Andrade e seu filho

Nonê, consistiu numa viagem em que os responsáveis pelo grupo paulista,

“brincando de viajantes”, resolveram apresentar o país, ou parte dele, ao poeta

suíço-francês Cendrars. Assim, visitaram o Rio, as cidades históricas mineiras e

Belo Horizonte. É interessante salientar que esse percurso empreendido pelo grupo

teve importância não só para os escritores que residiam na capital mineira, mas para

28 os participantes da Semana, pois representou o encontro desse último grupo com a

tradição, em especial a arte nas cidades históricas. A esse respeito, diz Silviano

Santiago citado por Cury (1998):

Aqueles poetas estavam todos imbuídos pelos princípios futuristas, tinham confiança na civilização da máquina e do progresso, e de repente viajam em busca do Brasil colonial. Deparam com o passado histórico nacional e com - o que, mais importante para nós - com o primitivo enquanto manifestação do barroco setecentista mineiro. (SANTIAGO, apud CURY, 1998, p.79)

Das ricas contribuições resultantes desse encontro, é imprescindível

mencionar o início da troca de correspondências entre paulistas e mineiros,

sobretudo Mário de Andrade e Drummond, o que foi de enorme importância para a

solidificação e desenvolvimento do Modernismo em Minas Gerais. Essa troca de

ideias entre o maior líder do Modernismo paulista e um dos mais importantes de

Minas, é confirmada pelo próprio Carlos Drummond de Andrade citado por Cury

(1998) em depoimento a Folha de S. Paulo, sessenta anos mais tarde:

Eu, que já tinha tendência para essas coisas, já lia e tinha noção do que fosse o movimento modernista, fiquei completamente conquistado e comecei a me corresponder com Mário. Essa correspondência durou de 1924 até 45. Foi uma coisa deslumbrante na minha vida. Mário não era apenas um orientador literário, um crítico: era um amigo, um companheiro, uma pessoa que se interessava pela minha vida. (ANDRADE, apud CURY, 1998, p. 80-1)

A influência dos paulistas integrantes da caravana, como a de Oswald de

Andrade sobre os escritores mineiros, fortaleceu e inspirou a criação de A Revista,

lançada um ano após a visita deles ao Estado, em 1925.

Segundo Luciana Andrade (2004), “o modernismo belo-horizontino está

intimamente ligado a três instituições: o Diário de Minas, a livraria Francisco Alves e

a Confeitaria Estrela” (ANDRADE, 2004, p.91). A primeira se torna a principal delas

por dois motivos: por ter se configurado como um “ambiente de ensaio” que permitiu

aos aprendizes de jornalistas exercitarem as artes modernas na diversificada

“Coluna Social”, e pelo fato de A Revista ter sido editada na tipografia desse

periódico. Já a livraria Francisco Alves colocava o grupo em contato com os

lançamentos da literatura estrangeira, em parte propícia do dia, como diz o próprio

Carlos Drummond de Andrade: “À tarde passavam pela livraria Francisco Alves, na

Rua da Bahia, assistindo à abertura dos caixotes de novidades francesas [...], que

29 iam de Anatole France e Romain Rolland, passando por Gourmont.” (ANDRADE,

apud ANDRADE, 2004, p.92) A terceira e última instituição, também conhecida

como Café Estrela, era o local onde os integrantes se reuniam para discutir, entre

vários assuntos, a literatura: “Ficávamos ali mostrando desenhos, poemas,

rabiscos”, descreve Carlos Drummond de Andrade. (ANDRADE apud ANDRADE,

2004, p.93). A esses espaços, é pertinente somar e relembrar a importância da Rua

da Bahia, ponto de difusão das ideias modernistas, resumindo metonimicamente a

cidade como o lugar privilegiado de intelectuais, escritores, poetas. Nesse espaço

concentravam-se os cafés, as livrarias, o teatro municipal, tendo sido, por isso

mesmo, palco de atividades políticas, culturais e intelectuais.

A esse respeito Letícia Malard (2005) lembra as palavras de Paulo Mendes

Campos sobre a Rua da Bahia:

É por essa ladeira da nova capital que sobe e desce uma geração de futuros homens das letras, do Direito e da política. A Rua da Bahia era tudo: a livraria, o teatro, o cinema, o café, a confeitaria, o jornal, a mulher que passa. (CAMPOS, apud MALARD, 2005, p.64)

Além desse aspecto, fisicamente a rua da Bahia teve construção estratégica:

era chamada ‘porta de entrada’, porque ligava, em linha reta, a antiga estação

rodoviária e o Palácio da Liberdade, sede do governo mineiro.

O grupo de escritores modernistas mineiros era composto por Pedro Nava,

Martins de Almeida, Mário Casassanta, João Alphonsus, Emílio Moura, Cyro dos

Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Austen Amaro e Alberto Campos. Com

exceção do penúltimo, todos vieram do interior do Estado. Desse elenco, sobre a

mais importante publicação modernista, A Revista, pontifica Pedro Nava: “Sua

aparição, sem dúvida, deve-se à influência da visita da caravana e das sugestões de

Mário de Andrade nas correspondências com Drummond.” (NAVA, apud

ANDRADE,2004, p.93).

A Revista teve apenas três números lançados, sendo o primeiro em julho de

1925, o segundo em agosto do mesmo ano e o terceiro, em janeiro de 1926. Curto

espaço de tempo, mas que deu destaque ao modernismo produzido em nossas

terras, potencializando-o diante do cenário nacional. Ela contou com a colaboração

de grandes nomes da literatura brasileira como Manuel Bandeira, Ronald de

Carvalho, Guilherme de Almeida e Carlos Góes.

30

A publicação era composta essencialmente de três seções. A primeira

compunha-se de poemas, crônicas, trechos de romances e artigos de cunho crítico.

A segunda, “Os livros e as ideias”, dedicava-se às resenhas de obras nacionais e

estrangeiras, geralmente sob o viés modernista. E a última, intitulada “Marginalia”,

trazia pequenas crônicas, informações sobre a cidade e acontecimentos gerais.

Quanto ao conteúdo das publicações, os escritores/intelectuais dedicaram grande

espaço à discussão do nacionalismo literário, com artigos que oscilaram entre a

aceitação e a repulsa do estrangeiro, tendências por vezes presentes num mesmo

texto.

Bueno (1982), em sua profícua pesquisa sobre o modernismo da década de

vinte, ressalta essa oscilação, pontuando que “A Revista representa um momento

privilegiado na história literária de Minas Gerais porque contém em seu espaço

textual dois tipos de retórica: a passadista e a modernista” (BUENO, 1982, p.11)

Referindo-se ao contexto histórico, prossegue:

Através dessa publicação, podemos apreender precisamente o silencioso combate entre dois modos de linguagem correspondentes a duas circunstâncias históricas da década: a dominação das oligarquias rurais e ascensão política das classes médias urbanas. (BUENO, 1982, p.11)

A fim de exemplificar as retóricas, estudadas por Bueno, que se cruzavam

nessa mesma revista, vale a pena reproduzir dois trechos. O primeiro foi retirado do

texto “Momento brasileiro”, de Magalhães Drummond:

Sim, que se há uma incapacidade demonstrada, não é a do brasileiro para constituir uma nacionalidade e, assim, durar na sua terra: é, sim, a incapacidade desses pseudo-sociólogos para sentirem o profundo e profuso, intenso e extenso, formidável e esplendido estuar de vitalidade que, precisamente agora, aí está, por toda a vastidão da terra brasileira, pompeiando em toda a sua seiva e em todo o seu viço, em poderosas e irreprimíveis manifestações criadoras. Ao velho e estafado pregão do irremediável da nossa falência como povo, ao estafado e rangido refrão que proclamava ser o brasileiro indigno da sua terra, vai-se substituindo nos espíritos a certeza de que, se aqui a terra é boa, melhor, muito melhor ainda do que a terra é o homem. (DRUMMOND apud BUENO, 1982, p. 54)

Para Bueno, esse excerto “exemplifica fartamente uma retórica passadista

ortodoxa, cuja função é levar o leitor a aderir a uma postura ufanista diante da

realidade nacional. O texto parece ter sido escrito para a tribuna ou o púlpito [...]”

(BUENO, 1982, p.54).

31

No outro exemplo, depara-se com a introdução de “Poezia e Relijião1”,

assinado por Carlos Drummond de Andrade. Diga-se de passagem, que foi dessa

forma que ele assinou os textos de A Revista:

O espirito relíjiozo vai readquirindo os seus direitos no campo da poezia. Esta afirmação talvez provoque protestos, mas estou certo que também encontrará apoiados (Muito bem! Muito bem!). Não é difícil prová-la. Provo. Não tenho sobre o assunto nenhum ponto de vista sectário. Isto é o essencial. Constato apenas. Confesso que a relijião não faz parte de minhas preocupaçõis abituais. Ainda não cheguei à idade de crer pela segunda e última vez, isto é, definitivamente. Os moços não têm tempo de ser relijíozos; poderão sentir no máximo presentimentos relijiozos. Sua missão natural é destruir os mitos da infância, para reconstruilos mais tarde, na idade madura. Na idade madura o homem regressa à relijião. [...] (ANDRADE, 1925, p.27)

Observa-se, já no título, o aspecto ortográfico que, associado ao conteúdo do

texto, poderia ser chamado de uma escrita escandalosa, dada a época em que foi

publicado. A esse “novo modo de dizer humorístico”, Bueno atribuiu o emprego da

‘retórica modernista de renovação’. Além dessas retóricas, o autor investigou a

‘passadista de transição’ e a ‘modernista de contestação’, exemplificando a última

com a análise da comédia em três atos “Faze de tua dor um poema”, assinada por

Antônio Crispim, pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade, já aqui referido.

Delineava-se assim, em linhas gerais, o contrastante espaço textual de A Revista.

Depois de escrever para os três números deste suplemento modernista,

Carlos Drummond de Andrade assumiu em 1926 o cargo de redator e depois de

redator chefe do Diário de Minas. Em 1929 trocou esse periódico pelo Minas Gerais,

órgão oficial do Estado. Ressalte-se que as crônicas que compõem o corpus deste

trabalho situam-se nesse período da carreira do escritor, momento esse de

solidificação do Modernismo na cidade de Belo Horizonte.

2.4 Crônica: gênero com outros gêneros

Em função do corpus e da linha de trabalho aqui delineados, importa

empreender uma abordagem do gênero crônica, levando em consideração os

1 Diferente do primeiro trecho de A Revista, a reprodução foi fiel, assim como aparece na referida edição, justificando a proposta de seu autor.

32 aspectos conceituais relacionados a tópicos fundamentais desta pesquisa, o que

significa integrar a equação modernidade/cidade/jornal/crônica. Por isso mesmo, faz-

se necessário, neste primeiro momento, uma reflexão mais detalhada sobre a

crônica.

Segundo Cunha (1986, p. 230, grifo nosso), “crônica é uma narração

histórica, feita por ordem cronológica; seção ou coluna de jornal ou de revista, que

trata de assuntos da atualidade.”. Nota-se, nessas duas acepções, que se trata de

um gênero vinculado ao traço histórico, elucidado na etimologia da palavra chronos,

tempo em grego. Nesse sentido, pode-se dizer que a origem da crônica está ligada

ao aspecto temporal de cada organização social.

Embora não seja objetivo específico deste trabalho apresentar um painel

histórico da crônica, é interessante ressaltar que esse gênero passou por algumas

transformações até chegar ao que conhecemos dele hoje. É relevante observar,

também, que essas sucessivas mudanças - no formato, na recepção e na

transposição para o livro - dificultaram uma conceituação mais precisa do gênero.

Desse modo, a definição de crônica vai depender de uma série de fatores, sobretudo

se se pensar em suas primeiras acepções desde a Idade Média, contexto em que

“os cronistas tinham como tarefa registrar pela escrita o que a memória dos tempos

guardava e organizar em narrativa o que os registros esparsos documentavam”

(RESENDE, 1993, p.57). Dessa época até o período denominado modernidade, o

gênero assumiu configurações várias.

Considerando a linha de estudo proposta, a pesquisa irá privilegiar a

investigação do referido gênero no cenário da modernidade, sobretudo com o

advento do Romantismo, cujo contexto nos revela uma imagem da crônica

indissociavelmente ligada à imprensa. Nesse quadro histórico, o jornal é visto como

um espaço de confluência de gêneros textuais. Dos diversos textos que se cruzam

nesse suporte, estão a crônica e o romance.

A íntima relação crônica/romance no espaço do jornal do século XIX deu-se

em razão do tratamento conferido aos textos publicados no rodapé dos periódicos: o

folhetim. Aí eram publicados faits-divers, pequenos contos, anedotas, críticas de arte

em geral e crônicas. O folhetim alcançou todo o seu sucesso quando se descobriu

que nele podia ser inserida uma narrativa ficcional como “romances em fatias”, daí a

denominação romance-folhetim (RESENDE, 1993), coroando, assim, o objetivo

principal desse gênero, criado para tornar os jornais mais acessíveis ao público,

33 como afirma Pereira (1994):

A prática do folhetim nasce de um planejamento jornalístico, cujo objetivo é aumentar o número de leitores dos periódicos. Nessa fase, o folhetim nasce como mercadoria; dá aos jornais o primeiro caráter de “literatura de massa” e a possibilidade de dessacralização da leitura. (PEREIRA, 1994, p.32)

Embora a crônica e o romance-folhetim tenham habitado o mesmo espaço no

jornal, sabe-se que a primeira marcou uma evolução estético-semântica, através de

diversos recursos que o cronista passou a incorporar em seu texto. A crônica, no

jornal impresso, vale-se de diferentes discursos: o estético, o poético, o

cinematográfico, o jornalístico. Tudo isso amplia as relações do gênero com o

público leitor e nos permite afirmar que o cronista vai se “realizar esteticamente no

espaço do jornal”, diferentemente do que ocorre no romance-folhetim, visto como

texto fragmentado, inacabado, cuja realização estética só se daria quando publicado

em livro, na feitura mesma do romance, segundo os moldes editorais. Mesmo

assim, a verdade é que crônica e folhetim trilharam o mesmo caminho dentro do

espaço jornalesco. A esse respeito, Resende (1993) destaca que:

O folhetim se torna entre nós parte fundamental do jornal conforme lição do moderno jornalismo francês. A verdade é que o folhetim, aberto a tudo, se tornara espaço de criação e experimentação, revelando textos de crônicas em suas múltiplas possibilidades como gênero cultivado pelos mais curiosos escritores do Império, como França Júnior e Martins Penna. (RESENDE, 1993, p.67)

De qualquer modo, é preciso ressaltar que a crônica acabou por ganhar força

e autonomia, tendo sido um dos gêneros mais exercitados em nossa literatura no

contexto da modernidade. Voltando, pois, à equação aqui proposta -

modernidade/cidade/jornal/crônica - é preciso retomar a análise empreendida por

Beatriz Resende quando observa que o ressurgimento da crônica, no final do século

XVIII, coincidiu com o momento em que os bens culturais tornaram-se mercadoria, o

que nos leva a estabelecer uma íntima relação da crônica com o jornal e a cidade.

Não é à toa que a estudiosa identifica a crônica como sendo uma: "representação

literária do fragmentário, do ambíguo, do efêmero; como espécie que ao utilizar-se

de sua própria maneira de seralegórica apresenta o presente - que ao ser narrado já

é passado - como ruína". (RESENDE, 1993, p.60)

Esse tratamento conferido à crônica é de fundamental importância para a

34 compreensão da ambiguidade que perpassa os textos que serão analisados nesta

pesquisa. Por meio dessas narrativas, nota-se o aspecto fragmentário da realidade

citadina: de um lado, a intensa busca pelos avanços da industrialização, o sonho de

transitar, por exemplo, num espaço feérico planejado pela racionalidade moderna;

de outro, o registro da perda de alguns costumes que foram consolidados nas

trajetórias empreendidas nesse espaço, numa espécie de resgate da memória. Em

outras palavras, a crônica capta a fusão do antigo com o novo, as imagens do

avanço e do atraso, explicitando o espírito da efemeridade que atravessa esse

momento histórico. Tais aspectos convergem para as sucessivas lacunas vistas e

sentidas pelo homem da cidade ressaltando, assim, as contradições da

modernidade.

Nesse cenário rico e diverso do espaço urbano, “a crônica, justamente pela

sua condição alegórica, fragmentária, que a insere numa tradição de modernidade,

escapa aos esforços classificatórios.” (RESENDE, 1993, p.63). Assim como a

complexa cidade que serve de base para a criação artística, é também a crônica

atravessada por inúmeros elementos do cotidiano, o que dificulta sua precisão

conceitual.

Por isso mesmo, há que se considerar que as alterações ocorridas no

interior/exterior do jornal significaram um redimensionamento nos vários planos dos

gêneros em foco: configuração do folhetim, importância da atividade dos cronistas

em relação aos objetivos do jornal-empresa e as funções desse último diante de um

público cada vez mais heterogêneo. Tais considerações servem para não se perder

de vista o lugar que a crônica ocupou no jornal impresso e sua importante natureza

híbrida de lá para cá.

Tendo em vista a temática desta pesquisa e as configurações do gênero

crônica em suas constantes mudanças, torna-se, pois, relevante averiguar seu papel

na intrínseca relação com o par cidade/modernidade. Nessa perspectiva, o cotidiano

da cidade moderna vai oferecer uma grande variedade/possibilidade de temas ao

cronista, permitindo que o exercício desse gênero venha a se consolidar como um

operador de leitura da modernidade, como já indicado por Resende (1993). Pensada

nesses moldes, a crônica nada mais é que uma narrativa urbana , em diálogo com o

contexto social em que se insere. Para David Arrigucci (1987), os centros urbanos e

sua dinâmica social se tornam o ambiente propício para o desenvolvimento da

atividade dos cronistas que fazem o relato cotidiano. Segundo o autor:

35

A crônica é ela própria um fato moderno , submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à vida moderna , tal como esta se reproduz nas grandes metrópoles do capitalismo industrial e em seus espaços periféricos. (ARRIGUCCI, 1987, p.53, grifo nosso).

A imagem de operador de leitura da cidade moderna atribuída à crônica pode

ser corroborada com as várias estratégias textuais empregadas pelo cronista. A

crônica, assim como a figura do flâneur, é sem dúvida produto da modernidade,

como pontua Arrigucci (1987):

A crônica é um gênero que se situa bem perto do chão, no cotidiano da cidade moderna, e escolhe a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos, para tratar as pequenas coisas que formam a vida diária, onde às vezes encontra a mais alta poesia. (ARRIGUCCI, 1987, p.55)

Trata-se, pois, de um dos gêneros que melhor acompanhou a trajetória das

cidades, como lócus por excelência da modernidade, como observa Barros (2005),

ao dizer que:

A cidade da modernidade e o universo urbano passam por radicais transformações que inauguram um novo modo de vida, uma nova subjetividade, novas experiências e sonhos, necessidades e temores. Tudo ambiguamente novo. Tudo em permanente mudança, a alterar não apenas o cenário, mas a própria construção do imaginário. [...] A cidade é a base sociocultural em que se dá o processo tecno-subjetivo-espacial da modernidade. (BARROS, 2005, p. 46)

O tratamento dado à cidade por Barros (2005) permite visualizar a crônica

como parte desse processo, ajustando-se aos vários ritmos da vida urbana e

ganhando, provavelmente, mais autonomia estética.

No que concerne à evolução da crônica nesse espaço da modernidade, vale

recorrer a Antonio Candido (1993) em estudo do gênero, com atenção especial para

a produção de 30, quando pontua que:

a crônica foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma. (CANDIDO, 1993, p. 25)

36

Outro aspecto apontado por Candido, e retomado por muitos estudiosos do

gênero, é o traço de efemeridade da crônica. Trata-se, pois, de um texto que não

tem pretensões de durar, uma vez que é filho do jornal e da era da máquina, onde

tudo acaba tão depressa (CANDIDO, 1993, p. 24). De certa maneira, a relevância

desse traço se assemelha à fugacidade da vida urbana moderna. Assim, tendo sido

originariamente escrita para o jornal, a publicação da crônica no suporte livro

garantiu a ela uma durabilidade maior do que se pensava, como lembra Antonio

Candido.

Com vista no cenário moderno, cabe perguntar, ainda, em que medida o perfil

do cronista se aproxima daquele que substitui o historiador, como estudado por

Walter Benjamin (1987). Isso porque, para o crítico: "O cronista que narra os

acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a

verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a

história". (BENJAMIN, 1987, p.223)

Guardadas as devidas proporções, o cronista urbano pode também ser um

tipo que registra em seu texto “um tempo saturados de agoras’” (BENJAMIN, 1987,

p.229), rompendo com a linearidade da história tradicional e seu conceito totalizante

e uno de progresso.

Pensando nas diversas configurações da crônica em sua relação com a

História e com as histórias, ocorridas no tempo e no espaço, é que se buscará

investigar as imagens da cidade de Belo Horizonte no início dos anos 1930 nas

crônicas de Carlos Drummond de Andrade.

Para isso, será levado em consideração o jogo enunciativo das crônicas

selecionadas, no intuito de observar o papel dos narradores em sua condição de

enunciadores da vida moderna, aí incluindo a construção dos pseudônimos.

37 3 SOBRE AUTORES E PSEUDÔNIMOS

Em razão da forte presença de pseudônimos na obra de Carlos Drummond de

Andrade, é relevante se ater um pouco mais sobre sua natureza conceitual, bem

como sobre as artimanhas do autor.

Há elementos que apontam para a ideia de que os pseudônimos Antônio

Crispim e Barba Azul são um tipo de personagem, o que pode ser ancorado nos

estudos de Foucault (1992), acerca do autor. Segundo este teórico:

[...] um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc.); ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-los, opô-los a outros textos. [...] o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser, o fato de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse discurso não é discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. (FOUCAULT, 1992, p.44-45)

Foucault (1992) discute que o nome de autor está atrelado não propriamente

a um indivíduo real e exterior que proferiu um discurso, mas a certos tipos de

discursos com códigos específicos, ou seja, aqueles cujo modo de ser, numa

determinada cultura, torna-os providos de uma atribuição de autoria. Dessa forma,

menos que um nome próprio, o autor é uma função característica do modo de

existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma

sociedade.

Ao tratar assim o nome de um autor, o filósofo propõe a ideia de que essa

categoria é uma função, ou o encontro das duas palavras: função-autor . Nesse

sentido, o autor é também sinalizado e definido pelos próprios textos que, por sua

vez, podem remeter não a um indivíduo singular, mas a uma pluralidade de “eus”

ou a várias posições-sujeitos. Uma é a postura do autor que fala em um prefácio,

outra a do que argumenta no corpo de um livro, outra, ainda, a que analisa a

recepção da obra publicada, exemplifica o teórico.

Diante dessa abordagem, podem-se ver no trabalho de Carlos Drummond de

Andrade essas várias posições-sujeito do autor. Daí o cruzamento das múltiplas

vozes em um único personagem; “as contradições” num mesmo plano discursivo. É

38 o autor, aí, um “foco de expressão”, uma espécie de denominador comum a uma

determinada discursividade. (FOUCAULT, 1992, p.47). Pergunta-se, então, se a

noção proposta por Foucault explica o emprego de tantos disfarces na trajetória

jornalístico-literária de Carlos Drummond de Andrade. No âmbito desta pesquisa, tal

abordagem permite visualizar a forma como o jovem escritor, por meio dos

pseudônimos Antônio Crispim e Barba Azul, exerceu a função-autor na feitura das

crônicas em estudo.

Babo (1993), citando Genette, propõe que o pseudônimo, ao lado de ornimato

e anonimato, é um dos três protocolos que determinam a relação nome-de-autor. O

ornimato se dá quando o texto é assinado com o nome próprio do autor; o mais

óbvio refere-se ao anonimato, quando o texto/livro não é assinado e, finalmente, o

pseudônimo, em que o autor assina com um falso nome, emprestado ou inventado .

O tratamento dado a esse último protocolo condiz com a trajetória de Carlos

Drummond de Andrade, por explicar as razões de esse autor haver empregado um

número considerável de pseudônimos2.

Semelhante ao que ocorreu com vários escritores, o uso de pseudônimos

coincidiu com o início da carreira jornalístico-literária de Carlos Drummond de

Andrade. Exemplo disso foi uma pequena crônica sobre Alexandre de Oliveira,

poeta conterrâneo do autor, publicada em abril de 1920 no Diário de Minas. Carlos

Drummond de Andrade assinou esse texto apenas com a inicial C, como nos

informa Augusto Py. (PY apud CURY, 1998, p. 167).

Assim, com vista nos pseudônimos utilizados ao longo da vida artística de

Carlos Drummond de Andrade, não seria demais propor uma espécie de

pseudonímia, parte da onomástica dedicada ao estudo, à teoria e à etimologia dos

falsos nomes. Mas como tal estudo exigiria um fôlego maior, por hora, a pesquisa

opta por Antônio Crispim e Barba Azul, que surgiram no ambiente do jornalismo3.

2 O poeta utilizou Policarpo Quaresma Neto, Paulo de Freitas, Hugo de Figueiredo, Aluízio Fontes, Leandro Sabóia, Belmiro Borba, José Luís, Manoel Fernandes da Rocha, Ney Miranda; e assinou a inicial Y entre tantos outros recursos de camuflagem. 3 Em entrevista concedida à professora Maria Zilda Cury, em 11 de outubro de 1985, Carlos Drummond de Andrade ao falar do cotidiano no interior do Diário de Minas, expõe que ao lado de João Alphonsus e Cyro dos Anjos brincava muito, inventando pseudônimos. (CURY, 1998).

39

Antônio Crispim é o cronista da tenra cidade, que amanhece ainda. Antes de

assinar seus textos no Minas Gerais, deixou sua marca no Diário de Minas e no

suplemento modernista A Revista. A leitura das narrativas por ele assinadas aponta

para a dimensão histórica e literária da capital mineira. Como um arquiteto ou pintor,

ele ficará responsável pela cidade de Belo Horizonte, desenhando-a com palavras,

dando expressão à sua cara e à daqueles que nela habitam. A cidade escrita,

descrita, delineada por ele ajuda a documentar e construir a história de Belo

Horizonte, como aponta Gomes (1998), mas, ao mesmo tempo insere, nessa

história, elementos que provocam sua releitura. Tem-se, pois, um enunciador da

vida urbana.

Nesse sentido, é melhor deixar que o próprio Carlos Drummond de Andrade

fale de sua assinatura como Crispim:

Antônio Crispim foi, voluntariamente, um pseudônimo banal. Gosto de disfarces assim, que criam uma forma de familiaridade com o leitor. Antônio Crispim é um sujeito igual aos outros, sem pretensões de destacar-se. Acho isso simpático. Eu precisava de um nome qualquer para assinar minhas crônicas no MINAS GERAIS, o diário oficial do Estado, para onde me transferi, deixando o Diário. Levei comigo o pseudônimo que já usava nesse. O jornal oficial, mais grave, permitia menos brincadeiras literárias e o tipo de crônica nele praticado por mim já era uma concessão benévola de um diretor generoso, Abílio Machado, seguido depois por Mário Casassanta, outro intelectual de espírito tolerante. (BARBOSA. apud CURY, 1998, p.194-5.)

Como mencionado acima, o poeta utilizou o pseudônimo ainda no jornal do

Partido Republicano Mineiro antes de entrar para o Minas Gerais, o que ocorreu em

1929. Segundo Cury (1998), o disfarce permitia uma maior abrangência da ação

intelectual num meio que cumpria modernizar, atualizar. Antônio Crispim, nas

palavras da pesquisadora, é uma das faces do escritor modernista, personagem de

si mesmo, burlando com humor a identificação possível feita pelo leitor (CURY,

1998, p.195).

A presente afirmação faz com que seja repensada a fala do escritor no trecho

acima. Seria, de fato, um pseudônimo banal? Até que ponto os disfarces de sua

atuação foram captados pelo leitor de sua época? Em que medida o jogo

enunciativo das crônicas permite a noção de familiaridade com o leitor? Antônio

Crispim seria mesmo um nome qualquer? Valeria a pena vagar um pouco sobre

esse jogo.

Diga-se de passagem que há uma boa dose de modéstia na fala do escritor,

40 pois a performance desse pseudônimo coloca o leitor num terreno movediço;

portanto, não se pode concebê-lo com tanta simplicidade, hoje, a começar pelo

nome. A esse respeito, Cury (1998) escreve:

A instância do nome - como, de resto, qualquer parte do discurso - não se apresenta nunca como aleatória, como neutra. Ela se estrutura como parte do discurso, quer por afirmação, quer por negação, indicando traçados, revelando avessos. Assim, os nomes travam diálogo no interior do discurso em que se inserem, tanto em termos do texto tomado no seu sentido específico, como nos contextos da obra, ou da participação intelectual mais ampla de determinado autor ou grupo. (CURY, 1998, p.195-6)

Para a autora, por se tratar de um nome bastante comum, Antônio guarda em

si os sentidos de oposição, de vanguardeiro, de chefe principal. Já Crispim tem

conotação afetivo-familiar que aproxima o leitor, que o “seduz” como a um igual; por

outro lado aponta para a ideia de crispação, de causar espasmo, aspereza no

ambiente em que atuava, assinalou Cury (1998). Nesse sentido, a fusão desses

nomes delineia as artimanhas do personagem.

Na obra Beira-Mar (1978), Pedro Nava escreve que Carlos Drummond de

Andrade, líder do grupo modernista mineiro, lia furiosamente. E desordenadamente.

Tudo servia, como conta Emílio Moura: Anatole, Pascal, Bergson, Quental,

Rimbaud, Ibsen, Materlink. Nava acrescenta a essa fase de efervescência do

Modernismo, a leitura de Wilde por Carlos Drummond de Andrade. Recorrendo a

esse perfil leitor do poeta pode-se, de certa maneira, ampliar o quadro de

abordagens dos pseudônimos. Nesse sentido, Antônio Crispim é concebido como

fruto das leituras literárias do seu jovem criador e se configura então como um

personagem ou a combinação de outros papéis.

Na esteira de personagens teatrais, tem-se, também um lugar ocupado pelo

segundo nome do pseudônimo. De acordo com Barbosa citado por Moura (2007)

(1985), Crispim é um personagem da commedia dell’arte e da antiga comédia

francesa, que representava o criado irrequieto, pretensioso, velhaco e bajulador.

Vestia-se geralmente de negro, e usava espadim e botas (Barbosa, apud MOURA,

2007, p. 93). Dessas características, as que melhor vestem Antônio Crispim são as

de irrequieto e velhaco, aspectos que vão caracterizar, de um modo geral, o escritor

no cenário cultural da capital mineira das décadas de 20 e 30.

Mesmo correndo o risco de cometer um equívoco sobre a pseudonímia

drummondiana, é possível que Antônio Crispim seja o personagem que mais se

41 aproximou do seu criador, em virtude de sua elaboração. Carlos Drummond de

Andrade realizou, através desse pseudônimo, um “jogo imbricado entre disfarce e

personagem” compondo assim suas crônicas, pois há nessas narrativas

referências/dados que permeiam os textos e apontam para o próprio Carlos

Drummond de Andrade, como afirma Moura (2007, p. 94). Exemplo disso são os

traços de erudição livresca, o conhecimento da língua/literatura francesa, referência

ao crítico e pintor André Lhote, entre outros. Moura (2007) assinala ainda que:

Antônio Crispim, enquanto personagem confere ao cronista possibilidades de visão dos acontecimentos circunstanciais, retratando o cotidiano mineiro através do flerte, do footing, do chá dançante, do discurso, do concurso de misses, do clube de sociedade e do bonde operário, expressando-se em forma de tripé ao emitir opiniões do eu escritor (ele próprio), do cronista grave ou ainda mundano. (MOURA, 2007, p.94).

Carlos Drummond de Andrade valeu-se, então, da máscara e suas

possibilidades. E essa foi talvez a mais importante delas no cenário do jornalismo

mineiro. Numa espécie de brincadeira das brincadeiras, o poeta assinou A.C na

crônica de 23/03/1930, intitulada “Do frio que chegou”, sua primeira publicação no

Minas Gerais. Ao assinar A.C, as iniciais do pseudônimo Antônio Crispim, o poeta

coloca o leitor diante de uma dupla camuflagem, como comentou Cury (1998). Tal

atitude é semelhante à do escritor que também assinou as iniciais do seu nome ou

parte dele, C.D e C.D.A, em artigos, crônicas, poemas e tantos gêneros do espaço

jornal.

3.1 No território de Antônio Crispim

As crônicas escolhidas para análise nesta pesquisa foram escritas por Carlos

Drummond de Andrade na época em que o escritor atuava como redator do Minas

Gerais, jornal do órgão oficial de imprensa do Estado. No entanto, a apresentação

das análises respeitará a ordem em que as narrativas aparecem no livro Crônicas

1930-1934, coletânea de narrativas realizada por Hélio Gravatá. Ressalte-se que o

pesquisador organizou essas crônicas para a tradicional Revista do Arquivo Público

Mineiro, em 1984. Três anos mais tarde, tais textos saíram da revista para o livro em

42 estudo, que tinha como objetivo homenagear o poeta que completaria 85 anos. Na

apresentação da obra, consta que Carlos Drummond de Andrade, ao tomar

conhecimento do trabalho realizado por Gravatá, escreveu ao pesquisador:

O Crispim ficou cheio de si, diante de trabalho tão esmerado... E até se emocionou um pouco, diante dos títulos dessas velhas crônicas, trazidas de uma longa viagem no tempo... Tudo ficou inédito em livro, para a maior tranquilidade dos leitores - e para a surpresa do reencontro que você proporciona ao cronista. (GUTIERREZ; SILVA, 1987, p.9).

Em 1930, Carlos Drummond de Andrade, assinando Antônio Crispim, escreve

“Bom viver”, crônica que apresenta algumas cenas da vida cotidiana da cidade.

Cenas essas tão dignas de nota, segundo o cronista, que poderiam ser lidas como

memórias da cidade: “Se o meu amigo Abílio Barreto consentisse, eu acrescentaria

algumas páginas à sua Memória Histórica de Belo Horizonte.” (ANDRADE, 1987,

p.94). E continua:

[...] A esse lugar chamam de Belo Horizonte pela formosura e largueza de seus horizontes, que, entre lobo e cão, se cobrem de vária tinta matizada; o que, porém, não é apreciado pelos nativos, os quais, a essas horas, se vão em busca dos divertimentos frívolos vulgarmente cognominados de cinematógrafos e “footings”. Constituem tais práticas a maior distração dessa gente, de seu natural mui recatada e pacífica; por forma que não há pelo arraial e nem se permitem outros modos ardis de matar o tempo. (ANDRADE, 1987, p.94)

É interessante ressaltar aí a presença do cinematógrafo , visto como

metonímia da modernidade, no que diz respeito às formas de lazer da nova capital.

Mas, por ser o único atrativo da vida noturna se torna fútil, insuficiente. Ao lado dos

footings, esse tipo de entretenimento corrobora a “monotonia tediosa da vida”, já

descrita no romance A Capital, de Avelino Fóscolo (1979), como se verá adiante.

Pelo viés memorialístico do narrador drummondiano, sobretudo quando se

propõe inserir tais cenas nas páginas de um livro histórico sobre a cidade, a crônica

vai se configurar como um retrato dos hábitos e costumes da Belo Horizonte dos

anos 1930: “dormem os moradores de dez horas da noite às sete da manhã”; “em

raiando a aurora, todos se aprestam para a lida cotidiana, tendo a maioria o cuidado

prévio de se purificar com banho geral ou particular”. (ANDRADE, 1987, p.94).

Nessa perspectiva, mencionando também os meios de transporte, no final da tarde,

comenta que “toda a grei se encaminha de novo para os seus penates, valendo-se

43 para isso, da carruagem chamada “táxi”, ou doutra, mais plebéia, que acode pelo

nome de bonde”. (ANDRADE, 1987, p.94). Aliás, a pasmaceira da vida urbana, é

ampliada com as palavras de Antônio Crispim, ao comentar a ausência de

novidades no cenário urbano: “De trezentos em trezentos sóis, mais ou menos, sofre

semelhante norma de vida grave alteração, que põe de catrâmbias os preconceitos

e usanças estabelecidas dês que homem é homem.” (ANDRADE, 1987, p.94)

Ainda sobre o signo da memória proposto pelo narrador, ao sugerir a inserção

da crônica como página de um livro de registros históricos, é interessante pensar a

aproximação desse cronista com aquele conceituado por Benjamin (1987).

A partir dessa concepção, temos a figura do cronista como sendo aquele que

pode construir as bases para novos olhares da História. Ora, sabendo que Abílio

Barreto foi um historiador, percebe-se uma espécie de espelhamento entre os textos

literário e histórico e, consequentemente, um novo olhar sobre a vida urbana de Belo

Horizonte. Na crônica “Bom Viver”, cujo título, no decorrer da narrativa, vai se

contradizendo, desenha-se uma ironia ao cotidiano da capital. Nessa ótica

benjaminiana, o cronista metaforicamente fissura as memórias do historiador, e, a

partir das fendas por ele abertas, revela outras imagens desse espaço, justamente

aquelas que não entrariam na cronologia linear da cidade. Nas palavras de

Benjamim, ele “explode o continuum da história”.

A História da cidade, na concepção crítica de Antônio Crispim, possibilitaria

entrever outras versões da vida idealizada no espírito da modernidade, já que se

trata de “histórias” de Belo Horizonte. Com base nos estudos de Massey (2008), vale

ressaltar que o cronista participa da construção da cidade como espaço de histórias

várias, todas válidas e não só a oficial, o que confirma que são exatamente essas

histórias juntas que constroem a cidade como espaço da multiplicidade.

Por meio do olhar, das miudezas, dos pequenos e raros acontecimentos do

cotidiano, o cronista apresenta a dissonância da cidade presente nas memórias

históricas. Há que se ressaltar, também, que a desarmonia desse espaço, aos olhos

do enunciador, está no espaço textual da narrativa. É o que se observa, por

exemplo, no emprego do vocabulário para a feitura da crônica: penates, ensancha,

azo, motivo, esculápios, catrâmbias e ludopédio . O uso de tal sofisticação

linguística não é recorrente em outras crônicas do autor, podendo-se inferir que

houve uma espécie de desarranjo vocabular na composição desse texto, bem como

no estilo do pseudônimo para, talvez, atender ao objetivo de entrar ironicamente nas

44 páginas históricas do livro-cidade. Dito de outra forma, o cronista, de modo irônico,

“explodiu” a formalidade, o rebuscamento proposto pelo historiador nas memórias da

cidade e, com os estilhaços linguísticos, demonstrou a possibilidade de vislumbrar o

avesso do cotidiano na capital mineira.

Por isso mesmo, vale perguntar a respeito das cores e luzes da modernidade

no corpo da urbe, presente em outros escritos sobre a capital mineira, antes mesmo

das crônicas em pauta. É este o caso do romance de Avelino Fóscolo, A Capital

(1979), publicado em 1903.

A vida urbana da nova capital, descrita na crônica, é então antecipada na

descrição da construção da cidade:

[...] as avenidas solitárias com raros transeuntes morosos e tristonhos; a Piedade sempre com seu panorama monótono de serro imutável; o canal da grande avenida inacabada, obstruído, já em ruínas no alvorecer da existência e por toda a parte, como um sudário imenso, a luz empalidecida do sol coando-se por entre nuvens, afogando em ondas de melancolia a capital - envelhecida ao nascer, com a pacatez das velhas cidades coloniais. (FÓSCOLO, 1979, p.220)

Ao se confrontar imagens de diferentes épocas, percebe-se que a morbidez

descrita no romance tingiu a cidade de modo expressivo na ausência de alterações

culturais, sintonizando-a com o ritmo pacato, lento: a cidade tédio, como a

caracteriza Carlos Drummond de Andrade, anos mais tarde, na crônica:

Nesta pauta, bailando uma vez cada ano e indo aos cinematógrafos toda santa noite - labutando e digerindo nos intervalos - caminha essa gente do berço para a sepultura como o chamado astro-rei descreve a sua trajetória de leste para oeste. (ANDRADE, 1987, p.94)

3.2 Crônica e romance: diálogos na cidade

Considerando as transformações da cidade diante das exigências impostas

pela modernidade é que se delineia o objetivo deste tópico: investigar as imagens da

cidade de Belo Horizonte, no romance A Capital, de Avelino Fóscolo (1979), em

diálogo com a crônica “Bom viver”, de Carlos Drummond de Andrade, que acabou-

se de analisar.

Nesse cenário histórico de modernização do Brasil em fins do século XIX e

45 início do século XX estão, de um lado, autores em sintonia com as novidades

trazidas da Europa para a cidade moderna, a partir de uma nova abordagem do

espaço urbano, e, de outro, escritores que apresentaram esse lugar planejado como

fruto de profundas contradições. A esse segundo grupo pertencem Carlos

Drummond de Andrade e Avelino Fóscolo, autor de A Capital, o primeiro romance

que, segundo Letícia Malard (1987), teve a cidade de Belo Horizonte como cenário.

A autora acrescenta que esse seja “talvez o único romance brasileiro de época em

que uma cidade é personagem de proa” (MALARD, 1987, p.43).

A narrativa desse romance conta a história dos habitantes do antigo Arraial de

Curral Del Rei, que tiveram suas vidas modificadas pela construção da nova capital.

O enredo gira em torno do casal Cunha e Lená que metaforizam o confronto

antigo/moderno. O marido “era um homem ordeiro, levando tudo a esquadro,

conservador, rotineiro, aborrecendo inovações de toda a espécie como prejudiciais,

vendo no bojo do progresso a destruição do passado e em toda a destruição a

ruína.” (FÓSCOLO, 1979, p.83). A esposa “amava o progresso, o movimento, a vida,

almejando uma Capital ideal para o cérebro de Minas: muito grande, impulsionada à

força potente da arte, da indústria, do comércio, erguendo-se soberana da modesta

aldeia” (FÓSCOLO, 1979, p.85). Esses personagens antitéticos, convivendo num

mesmo lar, contribuem para a construção de um olhar mais crítico diante da Belo

Horizonte que se erigia, já que o enredo da narrativa compreende o ano de

inauguração da nova cidade.

Cunha representa, nesse sentido, o atraso aos olhos do projeto de

modernização da cidade tornando-se, assim, representante do conservadorismo dos

antigos moradores. Esses traços do personagem se tornam mais nítidos à medida

que sua vida vai se esgarçando na própria trama do tecido urbano. Paradoxalmente,

Cunha tinha a ambição de obter grandes lucros com a construção da nova capital,

valendo-se do comércio, que acabou não prosperando tão rápido como imaginado.

A trama narrativa corrobora aquela da vida de Cunha e a da capital, como se

pode ver pelas imagens que a povoam: névoas, nuvens, sombras, temores e

desilusões conduzem-no à cegueira e, consequentemente, à morte. Em

contrapartida, Lená transpunha para a construção da capital visões embasadas nos

romances que tanto lia. “Ai! Se o sonho se realizasse, se a ventura lhe sorrisse

ainda, como bendiria a amada cidade de sua mente romântica!” (FÓSCOLO, 1979,

p.85).

46

A imagem que ela deixa transparecer da cidade é o eco do discurso político

empreendido no projeto de modernização:

O olhar da moça divagava no panorama imenso, como um leque, rendilhado de serras, aberto a seus pés e no horizonte do sol poente, rubro de luz, onde um matiz intraduzível se esbatia em coloração áurea, rósea sanguínea, expirando afinal no acidentado dos montes e no azul virginal do céu. Fitava tudo isso com os olhos muito abertos, mas quase sem ver, tendo no imo, no recesso íntimo do cérebro, fotografada vivamente, como que desenrolando-se no espaço, a cidade de seus sonhos, a Capital feérica que a fantasia castelara. (FÓSCOLO, 1979, p.88)

A esse respeito, Letícia Malard (1987) considera que:

As fantasias adúlteras de Lená, nunca realizadas, correm paralelas às fantasias de enriquecimento rápido e ilícito dos construtores, à sombra e sob as bênçãos do poder político instituído. O romance se arma como um libelo contra a corrupção e a especulação comercial e imobiliária que envolviam um fato histórico, a construção da nova capital. Direta ou indiretamente, os primeiros leitores do romance lá estão retratados, fotografias sem nenhum retoque, dedo da ferida do ego, desreconhecimento em espelho de vidro barato que reflete imagens de narciso cego. Reversão de expectativas. (MALARD, 1987, p.43)

A convivência das mentalidades de Lená e Cunha é, metaforicamente, o

desejo de um novo centro urbano, sob a carga luxuosa e ofuscante da modernidade,

e, também, o apagamento da memória do antigo arraial. O confronto moderno/antigo

vai provocar uma sensação de estranhamento, de vazio e de tédio vivido pelos

personagens e:

revelada pela artificialidade da cidade construída dentro de um traçado que impõe percursos, ordenando, não as ruas e a sociedade, mas também o convívio. Esse sentimento é caracterizado por um desenraizamento, o que nos revela que a cidade não é feita somente de um projeto ou de um traçado de ruas, mas de um emaranhado de existências. (NASCIMENTO, 1999, p.68).

Assim, o narrador, numa espécie de indagação da terra prometida, cria a

cidade da ausência. “[...] Nem um teatro, um circo, uma diversão qualquer...”

(FÓSCOLO, 1979, p.133); “[...] cidade destronada da ressonante fama, sem gosto

literário, sem lampejo da arte para iluminar-lhe os dias tétricos” (FÓSCOLO, 1979,

p.204).

No confronto entre esses dois gêneros, crônica e romance, é possível

vislumbrar a cidade que nasceu sob a égide da modernidade, dos sonhos

47 enterrados no processo de terraplanagem. Um espaço planejado no esquadro e na

régua da “ordem e progresso”; esse mesmo espaço que ordenou a “passagem e a

paisagem”. Belo Horizonte, “do berço de suas esperanças ao túmulo de suas

ilusões” (FÓSCOLO, 1979, p. 284).

3.3 Kodack: um cronista na cidade em instantâneos

Considerando com Certeau (1999, p.204) que o percurso imprime movimento

ao mapa, recriando-o, e considerando que a leitura também constrói percursos, a

pesquisa elegeu para análise o texto “Kodack”, publicado em 23/04/1930. Com isso,

pretende-se refletir em que medida essa crônica é marcada pelo viés do flâneur e

por outros elementos ligados à cidade moderna. Tal texto se apresenta como um

quase-passeio do cronista por alguns pontos da capital mineira, recuperando

imagens de ruas e bairros, num processo revelador das singularidades de cada

ambiente retratado. Dessa forma, a leitura do texto, fazendo cruzar os percursos

autorais e os meus, levará em conta o traçado de algumas ruas, de uma avenida e

de bairros, a fim de compreender como a cidade foi apreendida pelo olhar atento do

cronista.

É relevante pontuar que a palavra rua aparece oito vezes no corpo da

crônica; número que, comparado ao tamanho da narrativa, torna-se digno de

atenção. A ênfase a esse espaço apresenta, de certa forma, a dimensão do

percurso empreendido pelo cronista-flâneur. Ao tecer considerações acerca de

algumas ruas da cidade, o cronista deixa transparecer em todo texto o espaço

urbano com suas singularidades. Cada rua, avenida, possui traços próprios,

flagrados pela experiência urbana do narrador. Daí, talvez, a organização da

narrativa em sete blocos com imagens pertinentes a cada lugar:

Eu conheci a rua da Bahia quando ela era feliz. Era feliz e tinha um ar de importância que irritava as outras ruas da cidade. Um dia, parece que a rua da Bahia teve desgosto qualquer e começou a decair. Hoje, a gente olha para ela com um respeito meio irônico e meio triste. Como quem olha para Ouro Preto. (ANDRADE, 1987 p.54)

48

Há, nesse primeiro bloco, uma íntima relação entre o cronista e o espaço

urbano. Nele ocorre uma espécie de atualização da rua da Bahia, pois aquele que a

percorre lhe atribui um passado/ presente, um antes/agora. Entre as marcas desse

tempo, demonstram-se as características da rua: a felicidade, que ficou para trás, e

o brilho de sua visibilidade que desapareceu diante das outras ruas da cidade. Ora,

esse tratamento evidencia o espaço na condição de um personagem que passou por

algumas mudanças aos olhos do cronista. Este, à medida que a descreve, trata-a de

forma humana, contrastando alegria/tristeza, versões contidas nas palavras

desgosto e decair em contraposição à alegria e à importância da rua.

Some-se a esta abordagem o fato de que a rua da Bahia foi um marco

importantíssimo da capital mineira aos olhos dos escritores da época, principalmente

de Carlos Drummond de Andrade , pois era ali que se formava a intelectualidade

mineira; espaço de encontro dos artistas, literatos e de importantes políticos. Ali

ocorriam até mesmo manifestações políticas, ou seja, todo o tipo de acontecimento

que interessava a um intelectual da estirpe dele. Ao dizer que tal rua era feliz e tinha

um ar de importância, o cronista podia também estar se referindo a isso. A

atualidade da rua, nesse sentido, não era sinônimo de satisfação e alegria dos seus

transeuntes.

É interessante ressaltar, também, a comparação com a cidade de Ouro Preto,

antiga capital de Minas. O “respeito meio irônico e meio triste” aponta para a imagem

de uma rua que, no cenário de transformações da modernidade, estaria virando

peça de museu. Sobre esse momento, Maria Zilda Cury (2004) observa que:

"enquanto Belo Horizonte rapidamente mudava de feição, Ouro Preto, a cidade que

historicamente se lhe contrapunha, deveria manter intacta a memória da nação.

Ouro Preto era o passado; Belo Horizonte, o futuro". (CURY, 2004, p. 35).

Em outra direção, por meio do jogo temporal da rua da Bahia em diálogo com

o contraste entre as duas cidades, o cronista belisca a concepção histórica entre

antigo e moderno, misturando-os. E revela imagens que apontam para os aspectos

ambíguos da modernidade.

Já ao falar da Rua Caetés, percebe-se um tratamento mais acolhedor. “Gosto

da rua Caetés, a rua mais interessante da cidade”. (ANDRADE, 1987, p.54). Eis aí a

rua do comércio e das novidades:

49

[...] Rua de bigodes e gritos joviais, de pequeninos arranha-céus e de laranjas amadurecendo em caixotes. Rua de sedas e vitrolas. Elegante. Popular. Nossa. E depois, é também a rua mais camarada de todas: sempre disposta a fazer uma diferença, para você ficar freguês [...] (ANDRADE, 1987, p.54)

Nota-se aí uma espécie de culto ao espaço das cores que se desenhava aos

olhos do cronista. Tendo em vista que nesse período instalaram-se na rua dos

Caetés os comerciantes de origem árabe, síria e libanesa que vendiam produtos de

armarinho, tecidos e enxovais, pode-se afirmar que o cronista construiu um quadro

vivo do referido ambiente. Diferentemente do historiador, o cronista partilha sua

experiência, incorporando na rua seus personagens em sua maneira de ser. A

inserção do discurso indireto livre traz as vozes dos comerciantes em diálogo com os

possíveis fregueses e com os leitores da época: “sempre disposta a fazer uma

diferença, para você ficar freguês [...]". (ANDRADE, 1987, p.54)

Numa leitura mais atenta dessa descrição, percebe-se que as atitudes do

cronista aí se aproximam da figura do flâneur pelo trânsito por um espaço em que a

mercadoria circula por excelência. Depois, pelos signos da modernidade captados

nesse cenário, como a arquitetura dos prédios, as sedas e as vitrolas; expostas nas

montras, que metaforicamente o colocam em contato com o cosmopolitismo. Por

outro lado, o cronista se apropria da rua, misturando elementos do antigo e do novo:

os arranha-céus são pequenos, a elegância vem ao lado daquilo que é popular, as

sedas se contrapõem às laranjas amadurecendo. O cronista traça, então, o perfil de

um espaço acolhedor, convidando o leitor a também perambular pela rua dos

Caetés.

Se por um lado as duas ruas, a da Bahia e a dos Caetés, dialogam no que

concerne ao aspecto de rua-personagem, por outro, a segunda se opõe à primeira

no movimento, no brilho, na relação com os consumidores. Percebe-se, também,

certa ironia do cronista ao comentar que a rua dos Caetés era “camarada” só para a

gente ficar freguês, pois essa prática não significava nenhuma ‘bondade’ dos

comerciantes, mas compreendia parte do jogo capitalista induzindo as pessoas ao

consumo.

O traço dos comentários do cotidiano, que também se relaciona a um convite

à rua dos Caetés, é ampliado num outro bloco do texto que soma mais uma

característica ao viés do flâneur. Trata-se do momento em que o cronista escreve

que “o melhor alfaiate de Minas está instalado na rua Baritina, a três quilômetros da

50 praça 7, lado esquerdo de quem sobe, casinha de porta e janela e uma tabuleta no

alto:" O BELO BRUMIL” (ANDRADE, 1987, p. 54). Tal título é uma referência ao

inglês George Bryan Brummel (1778-1840), mais conhecido como Le Beau

Brummel. Ele foi uma espécie de juiz dos homens da moda na Inglaterra e um amigo

do Príncipe Regente, o futuro Rei George IV. Foi quem pontuou que os homens se

vestissem de modo elegante, incluindo ternos, adornados com uma elaborada

gravata.

Esse trecho, se tomado em confronto com os estudos de Benjamin sobre a

figura do flâneur, reafirma um dos lugares por ele ocupado na cidade moderna, o de

“emissário do capitalismo”. Ao fazer alusão a Brummel, o cronista configura-se mais

uma vez como um enunciador do cenário urbano de Belo Horizonte. Assim,

percorrendo as ruas, o cronista parece fazer propaganda de uma alfaiataria,

indicando a mercadoria ao leitor/consumidor.

Dessa forma, percebe-se um paradoxo, a ambiguidade que ronda o flâneur,

no sentido benjaminiano: ele é emissário do capitalismo, mas reflete sobre as outras

coisas que vê nas miudezas que sai catando ao observar a rua/cidade. Em seus

estudos sobre Baudelaire, Benjamin (1989) aponta as contradições da modernidade;

seu lado feérico, de luzes e ferro, e seu lado obscuro de trapeiros e prostitutas. O

poeta/escritor/literato cultua a mercadoria e isso se dá pelo jogo perverso do

capitalismo; sente-se vislumbrado pelo novo, mas mantém um sentimento de

repulsa a tudo isso, quando empreende suas reflexões acerca da vida e do homem.

Percebe-se que nessa narrativa, o cronista deixa entrever esse paradoxo: ele

percorre as ruas, sente-se atraído pelo mundo da moda quando cita a alfaiataria;

sente-se atraído pela mercadoria quando fala da rua dos Caetés, mas não se afasta

do lado de intelectual moderno que faz críticas ao sistema e à própria modernidade.

Tal traço pode ser conferido no tratamento dado à rua da Bahia, lugar onde os

intelectuais, escritores, poetas se encontravam não só para discutir literatura, mas

para fazer aflorar suas posturas políticas e ideológicas.

Ainda na perspectiva da rua, é importante sinalizar o jogo do olhar proposto

pelo cronista entre um elemento do espaço urbano e os seus frequentadores,

quando comenta, criticamente, “não ter pena dos basbaques que anoitecem no Bar

do Ponto, vendo a vida e as mulheres passarem. Tenho pena é do Bar do Ponto,

que suporta esses basbaques há 33 anos.” (ANDRADE, 1987, p. 54). A relevância

do excerto consiste no eco presente no conceito de flanar estudado por Benjamin

51 (1989), isso porque traz um cronista crítico e reflexivo acerca daquilo que observa,

inclusive de si mesmo. Repare-se que ele sente pena dos basbaques, entre os

quais se encontra, que só observam, ou seja, ele não é complacente com esse tipo

de observador que vê a vida passar como se não houvesse nada para aí vivenciar.

A impressão é de que naquele espaço que os suporta haveria muito mais coisas

para se fazer do que ficar vendo mulheres e a vida passarem.

A única avenida referenciada pelo autor na crônica “Kodack” é a Avenida

João Pinheiro: “Por que será que quando a gente sobe a Avenida João Pinheiro

corrige insensivelmente a dobra do paletó e passa a mão no pescoço, para ver se

não esqueceu a gravata?” (ANDRADE, 1987, p.54). Na dimensão de uma avenida, é

curioso observar o sentido do nome e seu desdobramento. Nessa indagação do

cronista, uma possibilidade surge no percurso pela cidade. Tal questão diz respeito

à pessoa, João Pinheiro - importante político, ligado ao partido republicano, figura de

grande prestígio. A forma de se trajar estaria no respeito àquele que nomeia a

avenida e na direção tomada. A esse ponto deve-se atentar para o emprego do

verbo sobe , uma vez que o final do percurso da avenida é a Praça da Liberdade,

espaço de centralização do poder do Estado. A partir dessa questão, pode-se dizer

que a relevância na perspectiva do flâneur encontra-se aí no olhar para o espaço

na/da avenida. Por meio de uma única pergunta, o cronista conseguiu desenhar sua

imagem e a dos que nela passam, apontando para a Cidade/Estado e seu corpo

administrativo.

Observe-se, ainda, que o cronista tece comentários sobre o lugar ocupado

pelos bairros citados na crônica, evidenciando o par dentro/fora da Avenida do

Contorno. Nesse bloco, ele dá conta das diferenças sociais muito acentuadas na

cidade belo-horizontina: “A vitória de “miss” Carlos Prates é de algum modo a vitória

de Carlos Prates, do bairro desmerecido que até bem pouco a Serra e os

Funcionários não ligavam.” (ANDRADE, 1987, p.54). Percebe-se aí que ele,

indiretamente, mostra que mesmo num bairro simples e ‘feio’, há que se considerar

o fator humano. É do bairro mais pobre e menos favorecido pelas ações políticas

que é eleita a miss, o que acaba por conferir ao bairro um status que não teria do

ponto de vista dos mais elegantes e ricos. Nesse sentido, pode-se afirmar que

Carlos Drummond de Andrade procura evidenciar o componente humano, já que

percebe o jogo capitalista instaurado com a modernidade, que privilegia o objeto em

lugar do sujeito. A zona sul é configurada como o lugar da classe média, registrando

52 sua posição de superioridade diante dos bairros periféricos de Belo Horizonte:

Carlos Prates, Barro Preto, Lagoinha olhando de igual para igual para Santo Antônio, Cidade, Serra. Um dia chegará a vez “miss” Palmital, e desde já fiquem avisados de que o Palmital, é a paisagem mais larga, arejada e bonita de Belo Horizonte. (ANDRADE, 1987, p.54)

Dessa forma, ao citar Carlos Prates, Barreiro, bairros mais pobres e

provincianos, o cronista está exercendo o lado reflexivo, intelectual, diretamente

relacionado ao flâneur benjaminiano, uma vez que critica, nas entrelinhas, as

políticas públicas da cidade.

Além das ruas, avenida e bairros que compunham a cidade, nota-se, em

“Kodack”, uma referência à estrada “que levava ao Barreiro”. Tal metonímia reforça,

mais uma vez, o distanciamento entre o centro e a periferia, reafirmando a

racionalização imposta pela modernidade à construção de Belo Horizonte. Em

outras palavras, aponta-se criticamente para o prestígio dos bairros que estavam

dentro dos moldes de planejamento e a ausência de brilho dos que estavam às

margens.

Pela leitura dos blocos que compõem a narrativa percebe-se que o cronista

passeia como um flâneur, mostrando flashes da cidade que ele capta com seu olhar

atento. Comentando rapidamente sobre vários bairros da cidade, ele a monta como

um mosaico. Com isso, pode-se inferir que o cronista demonstra que a cidade, essa

massa complexa, não pode ser tomada apenas por partes privilegiadas, mas por

todas. Afinal, são todos os bairros, pobres ou ricos, que formam seu corpo. A cidade

é justamente isso: um mosaico, formado de partes disformes, não coincidentes entre

si. É a diversidade, a multiplicidade que a traduz.

Diante disso, importa frisar que o olhar do cronista-flâneur é perspicaz e

atento. Por meio dos seus percursos pelas ruas da cidade, o cronista percebe

detalhes, fissuras, contrastes que um olhar comum não conseguiria captar no

borborinho do dia-a-dia. Ora, nas suas caminhadas, o cronista delineia a natureza

relacional atribuída ao espaço, como propôs Milton Santos (1997), na medida em

que exibe a cidade como um organismo em constantes transformações, flagradas aí

pelo flâneur. Nesse sentido, vale recorrer a Sandra Pesavento, quando cita Ricardo

Boffil:

53

Objeto visual primeiramente, ela (cidade) dá lugar a uma percepção perpetuamente renovada. Para além das forças técnicas e funcionais que a trabalham constantemente em “sous-oeuvre”, é pelo contato sensível direto e constante que nós a vivemos cotidianamente, pelos seus odores, seus barulhos, antes de tudo pela diversidade de seus espaços. [...] A troca de sensações entre o espaço da cidade e os seres que a habitam é a matéria-prima da vida urbana; às vezes dolorosa, jamais neutra, ela molda dia após dia a existência dos citadinos. (BOFILL apud PESAVENTO, 1999, p.33)

Em função disso, faz-se necessário refletir mais detidamente sobre o espaço

da/na narrativa e os elementos que permeiam sua construção, em especial, a

questão do olhar que constrói tanto a cidade, como apontada por Bofill, quanto a

própria narrativa.

Importante se faz retificar o uso da palavra bloco para se referir às partes da

narrativa, já que para a composição de um texto literário que lida com as cenas de

uma cidade moderna nos anos 1930, o vocábulo é insuficiente. O título “Kodack”,

marca de uma máquina fotográfica, permite substituir a palavra bloco por flashes .

Na história da fotografia consta que a Kodack, uma invenção da modernidade,

foi a primeira máquina que podia ser transportada para qualquer lugar com

facilidade. Era pré-carregada com filme suficiente para cem poses. Tal informação

reforça o aspecto do olhar fotográfico muito recorrente no espaço da cidade. Infere-

se que Carlos Drummond de Andrade, com a escrita dessa narrativa, procurou

apreender a cidade, como sinalizado na crônica “Efêmeros no bonde”, publicada no

Diário de Minas, três anos antes. Pode-se dizer que tal ideia foi retomada no trecho

em que o cronista, referindo-se ao passeio de bonde, diz: “A gente se tem uma boa

Kodack no cérebro, ao cabo de certo tempo pega instantâneos maravilhosos”.

(ANDRADE, 2004, p.168)

Ora, nessa perspectiva, o signo do retrato somado ao percurso do cronista

permite captar, no espaço do texto, uma espécie de “ação narrativa” (CERTEAU,

1999). Daí a possibilidade de se imaginar a cena do cronista com a câmera

percorrendo o espaço urbano, dada a fortíssima relação da câmera fotográfica com

os flashes que ele faz da cidade. Logo, é o próprio olhar do cronista que faz as

vezes da câmera, permitindo-lhe, mais do que captar a cidade, construí-la do seu

ponto de vista. É só o olhar nos dois sentidos, órgão humano e percepção mental,

que é capaz de ver além daquilo que está no mapa, traçando um percurso. Nas

palavras do próprio Carlos Drummond de Andrade , depois de certo tempo, ou seja,

para o olhar atento, o cérebro passa a funcionar como uma Kodack. Assim, a

54 relação que o cronista estabelece com a máquina fotográfica aponta para o percurso

mimetizado nos passos do flâneur e os flashes na lente narrativa. Disso, a

configuração de um texto que se estruturou a partir de instantâneos faz-se,

metonimicamente, fotografias de um álbum, a cidade, flagrada na fugacidade da

crônica moderna.

3.4 Representações do verde na Avenida Afonso Pena em 1930

Depois de percorrer algumas ruas de Belo Horizonte através das crônicas de

Carlos Drummond de Andrade, vale deter-se em sua principal avenida, a Afonso

Pena, vista nas duas décadas iniciais do século XX como cartão postal de Belo

Horizonte. Aqui serão analisadas as crônicas “A avenida ao sol” e “Amigos do

verde”, que trazem como foco a Avenida Afonso Pena, a fim de se refletir acerca da

presença do verde na cidade, naquela época, o que lhe confere o epíteto de Cidade

Jardim4.

Ao se retomar a proposta de construção da cidade projetada no seio das

ideias republicanas, cuja circulação de pessoas, bens e mercadorias deveria se

realizar de forma racional, ter-se-á até mesmo as áreas verdes em plena

consonância com o espírito de ‘ordem e progresso’, tão forte na modernidade. Isso

porque a planta de Belo Horizonte, com seu efeito segregacionista, dividindo a

cidade em uma zona urbana e núcleo central, uma zona suburbana e uma área

rural, converge para o conceito de cidade-jardim, sistematizado pelo urbanista inglês

Ebenezer Howard (1850-1928), como afirma Duarte (2007). Para esse arquiteto, a

Cidade Jardim contaria com um número limitado de habitantes, numa área rodeada

por um cinturão agrícola. Assim,

Desejava-se possibilitar uma organicidade maior das funções necessárias às aglomerações humanas, ajuntando valores urbanos e rurais, destacando especialmente a presença do meio natural na própria cidade. Para tanto, idealizava-se uma estrutura política em que as autoridades públicas deveriam ter poderes suficientemente fortes para reunir e manter a terra, planificar a cidade, as construções e oferecer os serviços básicos (MUMFORD, apud DUARTE, 2007, p.27)

4 A temática do verde já havia sido tema dos escritos de Drummond, como no texto A cidade verde, assinado por outro pseudônimo, a inicial Y, publicado no primeiro número do suplemento A Revista, 1925.

55

Dentre os fatores que confirmam a “importação” de ideias, destacam-se a

projeção de uma população com 200 mil habitantes, a centralização do poder

político-administrativo e o planejamento de jardins e praças, ressaltando-se que a

construção das praças foi uma iniciativa que recebeu elogios tanto daqueles dados

como seus célebres moradores quanto de visitantes ilustres. Em 1920, o cronista

João do Rio, em visita à capital, descreveu-a como um “miradouro dos céus”,

arborizada como só o paraíso deveria ser. Quatro anos mais tarde, Mário de

Andrade reverenciou os “coágulos de sombra”, “a luta entre floresta e casas”,

(ANDRADE, apud DUARTE, 2007, p.27).

A grande questão é que o verde, presente nas principais ruas de Belo

Horizonte, funcionou como elemento inaugurador de um sentido comum importante

para os habitantes da capital. Para Duarte (2007, p. 27), “as árvores urbanas foram

investidas do significado de um patrimônio coletivo.”. Provavelmente, foi daí que

nasceu a atribuição de cidade-vergel que, nas palavras de Chachan (1996), era uma

das “mais revividas de que se tem notícia”. (CHACHAM, 1996, p.213).

Nesse sentido, as áreas verdes ajudariam a compor o panorama de cidade

moderna. Só não se pode esquecer, como já mencionado no início deste trabalho, a

vigilância desses espaços de lazer por parte das autoridades locais, uma vez que

um decreto proibia a permanência ou trânsito, nos jardins, praças e parques

públicos, de pessoas alienadas, descalças, indigentes, carregando grandes volumes

ou sem trajes decentes. A beleza do verde estava, pois, reservada para as elites

burguesas.

A Avenida Afonso Pena, planejada como artéria principal, única ligação norte-

sul, recebeu um cuidado especial no que diz respeito ao processo de arborização.

No início do século XX, foram plantados ao longo de sua extensão centenas de

mudas de Fícus benjamina. Trata-se de uma espécie asiática muito empregada na

arborização de cidades brasileiras no alvorecer do século passado (FREYRE apud

DUARTE, 2007, p.28). Segundo o teórico, essa espécie “caracteriza-se por suas

raízes fortes, potentes e expansivas, seus troncos espessos, suas copas generosas

e pela altura de até 20 metros.” Aos olhos dos arquitetos da época, era a árvore

ideal para ornamentar a capital, como aponta Duarte (2007):

Aquelas árvores transformaram a Afonso Pena em um “túnel espesso de

verdura”. Dos cinquenta metros de largura, uma área muito grande era ocupada

56 pelas duas fileiras paralelas de frondosos fícus, com suas raízes espalhadas na

superfície do solo, tornando-o irregular, e suas copas entrelaçando-se e fornecendo

um compacto abrigo de largas sombras aos caminhantes que ali se deixassem ficar

preguiçosos, distraídos de seu destino, transgressores da rapidez que os trajetos

supostamente deveriam ter. (DUARTE, 2007, p.29)

Esse momento da Avenida foi também eternizado em várias fotografias que

privilegiaram determinadas perspectivas, principalmente a de espinha dorsal da

cidade, contribuindo assim para ideia de cartão postal. Dessa maneira, torna-se

indiscutível que o fícus deu notoriedade e fama à capital mineira.

Figura 1: Praça Sete de Setembro (1930) Fonte: FERREIRA, 2010.

57

Figura 2: Av. Afonso Pena vista da Praça da Rodoviária (1930) Fonte: FERREIRA, 2010.

Duarte (2007) frisa, no entanto, que o plantio dessa árvore, privilegiada pelos

urbanistas da época por seu crescimento rápido e por uma estética do exotismo, não

deixava de ser uma contradição dos projetistas. Isso porque o crescimento do fícus,

ao longo das décadas, com o aumento de suas copas e sombras, contribuiu para o

escurecimento da Avenida. Tal efeito contrariava o projeto dos fundadores, uma vez

que, influenciados pela luz da modernidade, eram ávidos por ruas claras e com

grande visibilidade. Não só por isso, pois iluminar as ruas centrais, tornando-as mais

claras e visíveis, era uma forma de vigiar a população marginal. As copas espessas

poderiam deixar a rua mal iluminada, impedindo uma maior fiscalização da polícia,

ou então servindo de abrigo para moradores de rua.

Formava-se, então, a dicotomia inerente ao plantio do fícus, pois, se de um

lado fazia parte do requinte vegetal das ruas de Belo Horizonte, por outro, trouxe os

primeiros problemas para a administração pública ainda nas décadas iniciais do

século XX, demonstrando os efeitos de aclimatação. Em 1930, a prefeitura realizou

a primeira poda de fícus, objetivando “manter as árvores nos limites de uma

58 arborização educada e uniforme”, como consta nos relatórios anuais apresentados

pelos prefeitos 1899-1869, (IMPRENSA OFICIAL apud DUARTE, 2007, p.32). Os

jornais da época comentaram que a reação dos moradores foi intensa.

Lançando seu olhar crítico sobre o mesmo tema, é que Carlos Drummond de

Andrade escreveu as crônicas “A avenida ao sol” e “Amigos do verde”, em que o

fícus é concebido como metonímia do verde da cidade. Antes, porém, de se passar

à leitura dessas narrativas, é necessário mencionar dois aspectos ligados à

produção/recepção desses textos, publicados no Minas Gerais nos dias 6 e 7 de

maio de 1930, respectivamente, e que também foram publicados próximos um do

outro, em páginas subsequentes, no livro-base utilizado como corpus desta

pesquisa. (ANDRADE, 1987).

As duas narrativas configuram-se como leituras cruzadas da primeira poda de

fícus da Avenida Afonso Pena. Essa intercepção resulta de uma espécie de jogo de

vozes emitidas na tessitura das crônicas. O efeito é sugerido pelo tom de bate-papo

a respeito da mudança no corpo da cidade, pois, ao contrário dos outros textos

analisados até aqui, o cronista narra pelo viés do discurso de amigos com quem se

encontra. Nesse sentido, ele poderia ser visto, a princípio, como um emissário das

ruas, alguém que colhe os burburinhos, imagem que pode ser evidenciada na

maneira como inicia o texto “A avenida ao sol”:

Um amigo puxa-me pelo braço e diz: - “Só agora, neste ano da graça de 1930, é que eu fiquei conhecendo realmente a Avenida Afonso Pena, e que doloroso conhecimento! A mesma coisa que sucede quando afinal nos aproximamos de uma mulher esquisita, mil vezes entrevista no borborinho cotidiano e mil vezes desaparecida no mesmo borborinho. (ANDRADE, 1987, p.76)

E finaliza da seguinte forma “[...] Assim falou o meu amigo desapontado .

Amanhã falará outro amigo contente .” (ANDRADE, 1987, p.76, grifo nosso).

O cronista “transpõe” para a página do jornal as considerações de um amigo

e anuncia a posição de outro, a quem ele cedeu a voz na crônica do dia seguinte,

“Amigos do verde”. Confirmando a ideia de textos escritos sob o mesmo fôlego, a

última narrativa se vale da mesma estratégia utilizada no dia anterior:

O meu segundo companheiro falou assim: - Positivamente, não há nada como um lugar comum para ornamentar a vida e encher um tempo que todos dizem ser precioso, mas que em geral se consome procurando o que fazer e como fazê-lo sem muito esforço. (ANDRADE, 1987, p.78)

59

Por meio do discurso desses amigos/companheiros, o cronista contribui para

a (des) construção de imagens da Avenida Afonso Pena do início dos anos 1930 e

de seus ritmos e cores nas primeiras décadas, como se pode ler no trecho acima.

Na crônica “A avenida ao sol”, merece destaque a atribuição de

características femininas à cidade, ou sua fusão em cidade-mulher proposta por

Denise Gomes (1998)5. Trata-se de uma cidade com várias nuances que se

espelham nas fases da vida de uma mulher, da juventude à velhice, do mistério à

falta de elegância. A comparação entre mulher e cidade será a tônica dessa

narrativa, percebida no começo da fala do personagem-amigo do cronista:

Só agora, neste ano da graça de 1930, é que eu fiquei conhecendo realmente a Avenida Afonso Pena, e que doloroso conhecimento! A mesma coisa que sucede quando afinal nos aproximamos de uma mulher esquisita, mil vezes entrevista no borborinho cotidiano e mil vezes desaparecida no mesmo borborinho. Os instantâneos que nos haviam ficado de encontros entre uma porta de auto e uma porta de sorveteria, ou na claridade bruscamente extinta de uma noite de cinema, guardavam, por exemplo, a graça de um incomparável sorriso. (ANDRADE, 1987, p.76)

É interessante a nova visão que o personagem possui da avenida descrita. A

palavra realmente aponta para a possibilidade de ser uma pessoa vinda de outra

cidade, o que coincide com a história de Carlos Drummond de Andrade que,

semelhante ao que ocorria com grande parte da população, mudou-se com a família

para a capital no ano de 1920. Nesse período, como já apontado, a cidade já

contava com um aspecto verde considerável, pois as mudas de fícus foram

plantadas no início do século. De certa forma, a cidade-vergel imperou até a data de

publicação da crônica e consolidou-se numa espécie de símbolo. Para aquele que

veio de fora, tornava-se difícil recuperar a arquitetura da Afonso Pena depois da

poda dessas árvores. E dessa incapacidade nasce talvez o diálogo desse espaço

com a mulher esquisita . Figura essa que surge e desaparece inúmeras vezes nas

fofocas do dia.

5 Das leituras selecionadas para embasar a presente análise, destacamos a dissertação de Denise Gomes - “Belzonte, Belorizonte, bolorizonte, Belorizontem ou literatura: esse objeto de desejo.” – que no terceiro capítulo de sua pesquisa, intitulado La Donna è Mobile, discute o tratamento feminino conferido à capital mineira. Nessa parte do trabalho, Gomes debruça sobre as facetas da cidade amada/amante/mulher/mãe/madrasta/filha a partir de algumas narrativas do livro Crônicas 1930-1934. Considerando-se a profícua análise desenvolvida pela pesquisadora, algumas de suas ideias foram aqui compartilhadas.

60

No jogo comparativo entre mulher e cidade, o emprego do verbo no pretérito

reforça uma importante metonímia para leitura do centro urbano no cenário da

modernidade: instantâneos , que, por sua vez, traz outras metonímias no bojo dos

avanços tecnológicos, como cinema e automóvel. Ora, referindo-se ao passado

recente da urbe, o personagem-amigo do cronista lista os flashes captados de

determinados pontos da cidade, tomada como uma mulher com sorriso singular.

Trata-se da mulher vista de vários ângulos pelos transeuntes. De um lado, a bela

mulher, metáfora da cidade jardim: “Como sorria bem aquela senhora. Que sorriso

tão fino, tão inteligente. Assim, nem a Gioconda.” (ANDRADE, 1987, p.76); de outro,

a visita à cidade dada como um “doloroso conhecimento”.

A referência à Gioconda, mais conhecida como Mona Lisa, é

indiscutivelmente o maior argumento para o perfil cidade-mulher apontado por

Gomes (1998). Para legitimar tal defesa, faz-se necessário uma breve reflexão

acerca dessa figura. Como se sabe, A Mona Lisa (1503), de Leonardo da Vinci, é

um dos quadros mais famosos do mundo. A repercussão dessa obra está ligada a

uma série de fatores que vão desde as estratégias utilizadas por seu criador, até as

inúmeras leituras da mulher nela representada.

Essa tela de Da Vinci incorpora uma conquista da pintura de sua época, a

técnica da perspectiva. É que, no período anterior ao Renascimento, as telas, de um

modo geral, não apresentavam profundidade, isto é, as figuras eram retratadas

sobre planos fixos e vazios. Já nesse quadro, há, ao fundo, um cenário natural que

se desdobra em vários planos, passando ao espectador a noção de profundidade.

Tal recurso técnico converge para uma melhor visualização daquele que se tornou

um quadro intrigante em todos os sentidos. Parte do mistério contido nessa pintura

se relaciona ao olhar, ao meio-sorriso, à postura, à posição das mãos de Mona Lisa.

Todos esses aspectos e outros associados ao quadro mais famoso de Da Vinci

contribuíram para a construção de um dos símbolos universais da feminilidade.

A comparação dessa personagem com a cidade de Belo Horizonte reforça,

então, toda a carga de mistério e beleza ofertados pela nova capital.

Coincidentemente, quando se pensa em perspectiva na construção dessa obra, de

uma forma ou de outra, pode-se pensar, também, na arquitetura da capital mineira,

uma vez que essa técnica foi obtida com os avanços dos estudos de geometria.

Elementos da área das ciências exatas foram bastante empregados nos projetos

61 urbanísticos da modernidade. O Viaduto Santa Teresa, dentre outros panoramas

que permitem captar a noção de profundidade, é um bom exemplo do emprego da

perspectiva no corpo da urbe. Dessa forma, pode-se dizer que a referência ao texto

pictórico não se dá apenas no plano temático, mas também no estético.

Do outro lado do encantamento, a drástica transformação aos olhos do

personagem-amigo: "Eis que um dia o acaso ríspido ou um moço prestante nos

põem frente a frente com o animal maravilhoso e verificamos (com que dor

verificamos) que o sorriso desencantado daquela senhora era uma ruga".

(ANDRADE, 1987, p.76).

Curiosamente, o personagem não revela o responsável pelas ações de poda

das árvores, mas deixa, na sutileza das palavras, o humor contido, sobretudo, na

imagem do vinco na pele urbana. À frente, ele, desconfiado, indaga: “O sorriso

desencantado da Avenida Afonso Pena era, não sei bem se as suas árvores ou se a

miserável arquitetura que essas árvores escondiam. De qualquer maneira era um

“bluff”.” (ANDRADE, 1987, p.76). É interessante observar como a repetição de

vocábulos com certo teor melancólico vai desenhando esse personagem como um

ser completamente deslocado, insatisfeito. O verde funcionou até ali como uma

espécie de maquiagem? Um pó para encobrir a pele irregular? Diante dessas

possíveis perguntas sugeridas pelo personagem, a pesquisa toma emprestado o

título da outra crônica, um “amigo do verde” com o intuito de esboçar melhor esse

sujeito que está com a fala em todo o texto.

O personagem-amigo, ao divagar sobre o verde reinante no passado da

Avenida, oferece imagens diversas daquele cartão postal. Observe-se, por exemplo,

a seguinte passagem: “quantas vezes, das alturas do bonde do Cruzeiro, nesse

Olimpo em disponibilidade que é a Serra, eu cravei olhos famintos nessa massa de

folhas e luzes que formava a perspectiva da larga rua central.” (ANDRADE, 1987,

p.76). A respeito dessa imagem, veja-se que Gomes (1998) lança uma luz sobre o

erotismo com que é entalhada toda crônica: a pesquisadora analisa que as copas

das árvores levam à visão do púbis da mulher amada, verde como o desejo recatado

e encoberto da namorada. A transformação estética da avenida evoca a indecisão

em que se encontra o personagem, pois ele padece ao perceber que, às vezes, quer

a essa cidade. De outra feita, não mais a deseja. Ele tenta explicar que a mulher que

tanto idealizava vestida não era aquela, que, hoje, desnuda-se ímpia aos olhos de

todos, como observa Gomes (1998, p. 52).

62

A desilusão do “amigo do verde” é ampliada quando confessa seu sentimento

em relação à avenida, afirmando: "[...] que havia nesse sonho confuso um pouco ou

muito de literatura. Em todo caso, literatura provocada pela massa verde que se

inseria na grande artéria e fazia dela uma rua e um caminho ao mesmo tempo".

(ANDRADE, 1987, p.76)

No delírio do personagem-amigo causado pelo verde, nota-se uma espécie de

confirmação do poder de atração contido na avenida, mesmo na sua nova

roupagem: “O túnel espesso de verdura de antigamente cedera lugar a um desenho

menos compacto e vegetalmente mais policiado, mas ainda assim, intensamente

sugestivo.” (ANDRADE, 1987, p.76). Esse único trecho, no meio de tantas

lembranças, atualiza a nova configuração da Afonso Pena. É como se o

personagem pedisse licença ao leitor para abrir um parênteses, a fim de sugerir uma

pequena esperança de que aquele espaço, assim como outras ruas da cidade,

voltaria ao seu estado vergel. Afinal, tratava-se apenas da primeira poda de fícus

realizada pela prefeitura.

Para “muita gente, à proporção que marchava o desbaste, crescia a desilusão

e a capital parecia perder seu encanto”, noticiava o Estado de Minas, do final do mês

de abril do mesmo ano (DUARTE, 2007). Longe de imaginar os desdobramentos

daquela atitude racional da política local, eternizava-se na memória dos seus

habitantes a atmosfera de suntuosidade conferida às suas ruas, em plena sintonia

com outras cidades modernas. A impressão que o personagem-amigo possuía de

Belo Horizonte convida o leitor a um passeio. E é assim que ele descreve a Av.

Afonso Pena: “a avenida me aparecia misteriosa como a Índia, com a reta dos

troncos misturando bazares, “flirts”, vitrinas, bares, casas bancárias, tudo isso

animado e povoado pelo múltiplo animal humano.” (ANDRADE, 1987, p.76). Dessa

forma, o que se lê aí é a combinação idealizada por Howard, o arquiteto inglês que

criou o projeto de cidade-jardim. O espelhamento entre a proposta do cientista e a

imagem fantástica criada pelo personagem se afinam, resultando em uma harmonia

fiel aos desígnios da modernidade.

No entanto, a conformidade insistia em permanecer apenas na imaginação

dessas pessoas, pois, ao término da fala do “amigo do verde”, acompanha-se a

dissonância causada pela “destruição” do verde, anunciada na primeira parte da

crônica:

63

Podaram as árvores e verificou-se que a Avenida não tinha mistério nenhum. Era uma rua como as outras, com os mesmos sobradinhos e as mesmas casinhas térreas das outras, apenas com um espaço maior entre uma e outra fileira de casinhas e sobradinhos. E mesmo essa particularidade não é sua, é de todas as avenidas de Belo Horizonte. (ANDRADE, 1987, p.76)

A carência de mistério da Avenida se reforça com o emprego de vocábulos

repetidos e no diminutivo, sugerindo uma imagem de inferioridade e círculo comum:

mesmos sobradinhos , mesmas casinhas . No próprio espaço do texto, o desenho

de imagens monótonas amplia a desilusão do personagem. A sensação é de que,

após seu depoimento acerca da mudança da Afonso Pena, a capital como um todo

sofreria com a ausência de um ritmo, afinal, aí “temos uma Gioconda sem mistério,

ou sem sorriso, o que é a mesma coisa”. (ANDRADE, 1987, p.76).

Ressalte-se que, ao desconstruir a ideia de mistério, de charme da Avenida

Afonso Pena, o cronista, de certa forma, destila, no próprio texto, um quê de

melancolia, sentimento tão comum aos escritores que experimentaram a

modernidade, como foi demonstrado por Walter Benjamin (1989), ao estudar a obra

de Baudelaire. Percebe-se, nessas narrativas, certo pessimismo e desgosto. Um

traço melancólico diante das coisas antigas que vão se perdendo em detrimento dos

novos projetos da modernidade. Essa ideia de tradição e ruptura, parte dos

paradoxos da modernidade (COMPAGNON, 1996), foi acentuada por Octavio Paz,

que diz:

A tradição moderna apaga as oposições entre o antigo e o contemporâneo e entre o distante e o próximo. O ácido que dissolve todas essas oposições é a crítica. Só que a palavra crítica tem demasiasdas ressonâncias intelectuais e daí preferir-se acoplá-la com outra palavra: paixão. A união entre paixão e crítica ressalta o caráter paradoxal de nosso culto ao moderno. (PAZ, 1984, p.21)

Esse jogo entre tradição e ruptura, paixão e crítica, reforça-se na continuação

da leitura. Na crônica do dia seguinte, o segundo companheiro do cronista enceta

uma crítica ao cotidiano da cidade, bulindo com o mesmo tema. Primeiramente, ele

discorre sobre as configurações do lugar comum , expressão recorrente no corpo da

pequena crônica, e suas implicações. Aos poucos, a ironia incorpora os resquícios

filosóficos:

64

Positivamente, não há nada como um lugar comum para ornamentar a vida e encher um tempo que todos dizem ser precioso, mas que em geral se consome procurando o que fazer e como fazê-lo sem muito esforço. O lugar comum não acrescenta nada ao nosso patrimônio intelectual, o que é já uma garantia de estabilidade. Também não lhe tira nada. Com duas ou três verdades estabelecidas , um homem é muito mais feliz do que, por exemplo, procurando identificar um novo metalóide ou as causas primarias da revolução russa. Uma verdade estabelecida regulariza as funções digestivas e dá certa obesidade amável ao espírito. Os espíritos, como os homens, querem-se gordos; do contrário, não merecem respeito. (ANDRADE, 1987, p.78, grifo nosso)

É nesse tom, sob o sopro da retórica irônica, que o companheiro do dia 07/05

inicia a defesa do seu ponto de vista. Nas duas primeiras linhas, ele toca num ponto

crítico do cotidiano da capital mineira: a carência de atividades de lazer. Em seguida,

como num jogo, posiciona-se para depois enunciar um olhar diferente do “amigo do

verde” sobre o tema em foco. Com sutileza e disfarce, o personagem diz:

[...] eu respeito profundamente o cavalheiro gordo que achou intolerável a Avenida Afonso Pena depois que mão piedosa lhe podou as demasias vegetais. Respeito e compreendo, mas não resisto à tentação de dizer que ele se nutre de lugares-comuns . A beleza das ruas atulhadas de verdura é um repousante lugar comum . (ANDRADE, 1987, p.78, grifo nosso)

A cena enunciativa em que esse personagem se refere ao “gordo amigo do

verde” permite uma reflexão acerca do lugar que os interlocutores ocupam no

espaço da crônica, sobretudo por quem ela é assinada. A maneira de expor as

considerações do verde leva a se perguntar de que lugar fala o personagem da

crônica “Amigos do verde”, e, também a quem fala. Essas simples perguntas ajudam

na compreensão das artimanhas do cronista. É o que se percebe no trecho a seguir:

"[...] Ficou resolvido (por unanimidade) que é bonito plantar uma árvore em frente de

uma casa; e como parágrafo único desse artigo, deliberou-se que essa árvore seria

a mais ramalhada e inconveniente possível". (ANDRADE, 1987, p.78)

As questões permitem um outro ângulo do discurso. O que está posto numa

frase afirmativa é digno de uma indagação se pensada no quadro argumentativo em

que esse enunciador se encontra. Na verdade, ele, criticamente, chama a atenção

do “amigo do verde” e assim infere-se uma significativa alteração do período com a

presença de um Não no início do excerto e um ponto de interrogação ao final: "Não

ficou resolvido (por unanimidade) que é bonito plantar uma árvore em frente de uma

casa; e como parágrafo único desse artigo, deliberou-se que essa árvore seria a

mais ramalhada e inconveniente possível?"

65

A análise dessa cena enunciativa contribui para a compreensão do não dito.

Aí tem-se um reflexo do discurso político-ecológico6 da cidade, quando foi

determinada a ação de plantar árvores diante das casas, e sua atualização na fala

do personagem. Trata-se de uma situação em que um relembra ao outro o que

“ficou resolvido”. Mais adiante, ele exemplifica: “[...] uma “poinciana régia” ou uma

“fícus benjamina”, capaz de abalar bem os alicerces das casas e, provavelmente,

até o obelisco da Praça 7.” (ANDRADE, 1987, p.78). Ao empregar essas espécies de

plantas, o personagem deixa entrever a faceta irônica que vai perpassar todo texto,

pois na atualização do discurso de embelezamento da cidade, ele implicitamente

questiona o desconhecimento, por parte dos arquitetos, da beleza destruidora dos

fícus plantados no começo do século XX. Pode-se perguntar, pois, se a crônica não

acabaria por se colocar como as raízes dos fícus que abalam a superfície da cidade.

O efeito irônico vai ganhando força à medida que o personagem emprega as

interrogações e o deslocamento de vozes. Será que ele se dispõe a ocupar um lugar

no discurso oficial da prefeitura? Ou simula fazer parte da turma do “deixa

acontecer”?

Amigos do verde, porque lamentais a perda de folhagem verificada em uma artéria da cidade, quando há tanto verde aí, nesses campos afora, e tão mal aproveitado?... Deixem a Prefeitura realizar, com sossego, a poda indispensável. Nem é uma destruição: simples desbaste de cabeleireiro discreto. (ANDRADE, 1987, p.78)

A esse respeito, é interessante de se pensar no verbo “podar”, que significa

retirar os excessos, limpar. Como bem demonstrou Machado (2009):

Com a poda dos fícus, a avenida ficaria mais visível, facilitando o controle da população que teria acesso ao centro da cidade. Sutilmente o cronista ainda aponta que a poda não foi realizada em locais mais periféricos ao centro, para os quais não havia a preocupação com a limpeza ou com o controle. (MACHADO, 2009, p.82)

Ao retomar considerações do personagem da crônica “A avenida ao sol” e a

insatisfação dos moradores da cidade com a poda dos fícus, percebe-se que não se

trata de uma ação tão simples assim. Importa salientar que, aí, o cronista transpõe

para o seu texto os frequentes burburinhos acerca da mudança que enfrentava o

6 Ressalte-se que o presente termo não era empregado na época.

66 espaço urbano.

No viés da primeira narrativa, a mulher mais uma vez recebe atenção no

tratamento conferido à cidade e adiciona um teor humorístico à critica que atravessa

toda crônica. É o que se nota quando o personagem ordena: "Reparem, agora,

como ficou a Avenida sem pardais e sem lagartas, batida de sol, alegre como uma

garota de 15 anos. Uma garota feia? A feiúra das garotas de 15 anos não é

irremediável". (ANDRADE, 1987, p.78).

Assim, ele desenha a avenida da supressão, espaço do sem e retoma o título

da narrativa do dia anterior, elucidando-o: “A avenida ao sol”.

Na configuração da cidade-mulher, o espaço urbano vai se redimensionar,

quando o personagem comenta a necessidade da maquiagem no rosto da garota de

15 anos: “[...] E foi bom que se lhe aparassem os cabelos: o rosto que apareceu

mostrou necessitar de massagens. Ponhamos em prática os mandamentos da

estética facial, ou da arquitetura de Le Corbusier". (ANDRADE, 1987, p.78).

Em se tratando do quadro histórico de uma cidade, Belo Horizonte, assim

como a mulher feia, era ainda jovem e só por isso já tinha sua graça, o que

corrobora o estudo de Gomes (1998). O personagem demonstra ter esperança em

relação à cidade-mulher, pois essa “já ganhou em saúde, e vai ganhar a beleza” e

profetiza: “A menina vai ficar perturbadora”, portanto, tratava-se de uma questão de

tempo.

É interessante pensar, também, que as duas crônicas representam o par

antigo/moderno, contido no interessante jogo que Carlos Drummond de Andrade faz

nessas narrativas: em uma, ele quer o tradicional, lamenta a perda daquilo que é já

tradição, que traz segurança, tranquilidade. Na outra, critica essa postura que aceita

a tradição e não o novo, lançando, implicitamente, uma pergunta: quem disse que o

novo também não é bonito? Nesse sentido, há um paradoxo na concepção do

próprio cronista: a posição ambígua que ele apresenta entre ficar ligado ao

tradicional e aceitar o novo.

No percurso empreendido por essas narrativas, cresce a importância da figura

de Crispim para a compreensão de algumas imagens da cidade de Belo Horizonte,

em especial, nos dois últimos textos. Procurar entender um pouco mais o lugar

ocupado por esse pseudônimo e as estratégias que Carlos Drummond de Andrade

utilizou por meio dele, amplia a lente de leitura das transformações ocorridas na

esfera urbana.

67

Ao introduzir a leitura das crônicas “A avenida ao sol” e “Amigos do verde”,

mencionou-se que esses textos foram narrados pelo discurso dos companheiros

daquele que assinou as narrativas, daí a utilização de personagem-amigo. Porém, o

percurso pelo espaço das crônicas em confronto com as artimanhas do pseudônimo

revela outras facetas. Ora, o emprego dos vocábulos amigo e companheiro é uma

estratégia de aproximação do leitor. Bem perto dele, o cronista pode falar o que

quer, como quiser, no tom que lhe parecer mais conveniente por meio de outra voz.

Iniciar as narrativas com o uso das palavras amigo e companheiro funcionou como

um chamativo, uma espécie de isca para o leitor. Atitude que confirma o traço

familiar apontado por Cury (1998), muito afinado com o diminutivo sonoro contido

em Crispim . É como se o pseudônimo do autor, que é também personagem,

atiçasse o leitor para uma espécie de “sessão comentários” a respeito da poda de

fícus. Só que, ao fazer cruzar essas considerações, em contato com a crispação do

discurso, percebem-se as ironias, os deslocamentos do ponto de vista sobre as

transformações na imagem da Avenida Afonso Pena.

A partir disso, compreende-se que não é a fala de um amigo do cronista que

vai resultar em todos esses efeitos de sentido, mas um conjunto de vozes sociais

que a atravessam. Nesse sentido, não interessa perguntar aqui de que lado está o

cronista, pois ele está em todos os lugares, ora criticando a ação da prefeitura, ora

endossando-a. Com o “espírito lúdico de brincadeira7”, o pseudônimo condensa e

emite, através da crônica, as opiniões a respeito do caso em voga. Para tanto,

simula algumas posturas contrárias e favoráveis às mudanças na esfera urbana,

criando um jogo do é/não é, tudo permeado com uma boa dose de comicidade. Por

isso mesmo, ratifica-se a percepção de Crispim como um personagem da commedia

dell’arte e da antiga comédia francesa, que representava o criado irrequieto,

pretensioso, velhaco e bajulador. (Barbosa, apud MOURA, 2007, p. 93), traços que

vão caracterizar, de um modo geral, o escritor no cenário cultural da capital mineira

das décadas de 20 e 30.

7 Trata-se de uma expressão do próprio Drummond ao comentar o emprego do pseudônimo Manoel Fernandes da Rocha em seu texto de estreia no jornal Diário de Minas.

68 3.5 Antônio Crispim: na íntima relação com o jornal

Carlos Drummond de Andrade, como se viu, entrou em contato com o meio

jornalístico muito cedo. Antes de completar 20 anos, publicou seus primeiros

trabalhos no Diário de Minas. Para quem disse que “o jornal é a crônica da vida da

gente”, muito se pode esperar da relação entre ambos. Isso se refere tanto ao

espaço dos periódicos - visto como um rico laboratório de exercício da escrita - como

à folha de papel em si. Sobre essa última, Drummond de Andrade confessa que o

jornal sempre o fascinou muito e que desde garotinho gostava de lê-lo8. Em razão

desse encanto pelo suporte textual, pode-se dizer que a carreira do escritor foi

fortemente influenciada pelos periódicos. Ele escreveu para os jornais críticas,

notas, contos, ensaios, poemas, artigos e, claro, as crônicas. Das várias funções

percebidas no interior desses periódicos, interessa, aqui a imagem de leitor que se

delineia em alguns textos do livro Crônicas 1930-1934, de 1987.

Em visita ao arquivo do Minas Gerais9, onde as crônicas foram primeiramente

publicadas, foi possível perceber a configuração do caderno no qual Carlos

Drummond de Andrade escrevia. No confronto dessa publicação com aquela

organizada pela Revista do Arquivo Público Mineiro, em 1984, a relação do cronista

com o espaço do jornal se torna mais clara para o leitor desses textos. É o que se

pode acompanhar na narrativa transcrita a seguir.

Os que partem Na estação, encontraram-se os dois cortejos. Um era do moço mineiro que ia para a Europa, sem chapéu. Outro, do moço americano que regressava aos Estados Unidos, com capote. Os dois grupos eram afetuosos, e melancólicos. Dizem que partir é sempre melancólico, e eu concordo: para quem fica. Porque quem vai não tem tempo de ficar triste, ao passo que quem fica não só sente uma bruta inveja como no fundo alimenta o desejo inconsciente de ver o trem soltar fora dos trilhos e a viagem fracassar. Nós todos estávamos muito melancólicos, não há dúvida. Como houvesse relações comuns, estabeleceu-se ligação entre as duas correntes. A do moço americano tinha um ramalhete maior de moças. Não desfazendo do ramalhete que rodeava o moço mineiro e Deus sabe como eram bonitas. A gente do lado de cá tinha prazer em cumprimentar uns olhos camaradas do lado de lá, e houve momentos em que inglês e português se casavam numa só língua. Respeitando-se, é claro, algumas incompatibilidades pessoais.

8 Trecho da referida entrevista à Maria Zilda Cury (1998). 9 Além desse periódico, ver algumas crônicas dos anos de 1930 e 1931 na Biblioteca Estadual Luiz de Bersa.

69

A família sabe que viajar hoje em dia num paquete da Munson Line ou da Sud Atlantique representa a menos grega das aventuras, mas absolutamente não deixará de comover-se com o espetáculo dos mancebos que partem - de capote, sem chapéu - para as misteriosas Américas e as inacreditáveis Oropas: coitados, tão novinhos! Daí abraços silenciosos e um pouco graves de ontem à tarde na estação. A gente sabe que eles voltam, mas há tantas baldeações e tantas francesas nesse mundo! (ANDRADE, 1987, p. 140).

O presente texto foi publicado em 31/05/1932 na coluna Sociais. Essa crônica

chama a atenção, inicialmente, por dois motivos: o perfil do cronista, como leitor

crítico do espaço do jornal, e a feitura da crônica tendo a seção em que esse

escreve como base de sua narrativa.

O título da crônica “Os que partem” é o mesmo de um gênero publicado na

parte em que Carlos Drummond de Andrade assinava Antônio Crispim. Sem o

contato com o jornal, poder-se-ia atribuir o título ao seu pseudônimo, ao invés de

considerá-lo como um empréstimo realizado na coluna do periódico. Mas não foi a

primeira vez que o personagem conseguiu essa façanha. Em abril de 1923, quando

se encontrava no Diário de Minas, ele escreve uma crítica à obra de Batista

Santiago chamada Folhas que o vento leva... O referido artigo leva o mesmo título

do livro, como aponta Cury (1998).

Não cabe aqui discorrer sobre os motivos que o levaram a empregar o

recurso nessa publicação, mas nos dois casos, está-se mais uma vez diante do

processo de camuflagem tão bem empreendido pelo autor. A crônica com o mesmo

título de um dos blocos do caderno funcionou como uma espécie de atrativo ao leitor

atento do jornal. Enganado pela entrada do texto, o leitor cai numa espécie de

composição-surpresa e é levado a uma leitura mais crítica da seção convencional.

A coluna Sociais era composta pelas crônicas de Antônio Crispim e Barba

Azul, pelas notas informativas que levavam “Os que chegam” e “Os que partem”,

respectivamente, dentre outros textos que podem ser vistos na reprodução feita ao

final deste capítulo.

Há em “Os que partem” um aspecto de lista que se consolida por meio de sua

estrutura, na maioria das vezes, rígida: o nome das pessoas, moradores ou não,

com seus respectivos destinos. Some-se a esse modelo uma série de blocos soltos,

apenas indicados por travessões. Tudo isso confere ao texto uma monotonia, uma

imagem circular que, no geral, termina por onde deveria começar. Com esse mesmo

formato tem-se, do outro lado, “Os que chegam”. Essa nota, guardadas as devidas

70 proporções, é mais elaborada do ponto de vista linguístico, afinal, ela é tratada com

maior entusiasmo por quem a redigia.

Com base nesse aparente modelo foi que Carlos Drummond de Andrade

escreveu a crônica “Os que partem”. Na verdade, ele não se valeu apenas da

estrutura do gênero, mas dos bastidores de quem produzia esse tipo de texto, às

vezes, o próprio autor. Assim como ocorreu com a crônica brasileira, num sentido

jornalístico-literário mais amplo, sobretudo com João do Rio, a presente narrativa foi

inspirada nas atividades ligadas à reportagem. Isso porque o texto, no seu conjunto

de imagens, remonta à cena de um repórter diante de uma estação. Cena essa

encontrada no depoimento do escritor, quando esse se referia ao seu trabalho no

Diário de Minas. Embora o autor exponha a realidade de um outro periódico no que

concerne ao tratamento político, pode-se estender tal prática aos repórteres do

Minas Gerais, quando eles tomavam notas das pessoas ilustres que chegavam ou

partiam da capital:

[...] Naquele tempo (década de 20) eles todos (os políticos) viajavam de trem, o noturno mineiro. Tinha o rápido que saía pela manhã e o noturno que saía ao entardecer. Então ia um repórter para a estação central para tomar nota os passageiros. Se nós disséssemos: “embarcou ontem para o Rio de Janeiro o deputado fulano de tal”, era apenas uma notícia, não tinha esse deputado menor importância. Agora, se disséssemos assim: “Hoje, cercado de amigos, embarcou para o Rio de Janeiro o ilustre deputado fulano de tal” é que o homem estava com as boas graças do governo. (ANDRADE apud CURY, 1998, p. 150)

Na crônica acima, a estação figura como espaço de grande relevância, uma

vez que é o cenário da partida tanto dos viajantes, quanto da própria crônica. Nele o

cronista divaga, deixando entrever a feitura do seu texto, a exemplo da recorrência

da duplicidade no corpo da crônica, marcada pelos contrastes propostos pelo

narrador: “Na estação, encontraram-se os dois cortejos. Um era do moço mineiro

que ia para a Europa, sem chapéu. Outro, do moço americano que regressava aos

Estados Unidos, com capote.” (ANDRADE, 1987, p. 140).

É interessante a forma como o cronista condensa o comportamento de

determinados grupos sociais nesse mesmo espaço. Nota-se que tais viajantes, de

classe média, não são nomeados e deles se sabe a nacionalidade: mineiro e norte-

americano, a faixa etária e a classe social. Dessa forma, tudo converge para o

mesmo espaço, conferindo à crônica o registro de uma cena comum do cotidiano

daquela época, porém afinado com o humor peculiar do pseudônimo e seus

71 comentários que não caberiam na formalidade da notícia.

O cronista demonstra, ao longo de toda narrativa, seu lado arguto,

aproximando-se mais uma vez do cronista benjaminiano ao lidar com as miudezas

da linguagem no periódico em que trabalhava. Nesse sentido, ele sutilmente observa

as cenas da capital mineira, como o embarque/desembarque das pessoas na

estação. Assim, ele não deixa escapar os pequenos acontecimentos do dia,

convertendo-se num exímio leitor da cidade.

As crônicas até aqui analisadas apresentam características singulares do

pseudônimo Antônio Crispim. Nele podem-se observar aspectos do cotidiano da

moderna cidade, narrados como histórias bem próximas do real e que dizem das

formas de apropriação do espaço urbano e das relações que ali se instituem. Ele

carrega uma imagem crítica e, ao mesmo tempo, lírica em relação à Belo Horizonte

dos anos de 1930. Isso se confirma, às vezes, no sentimento melancólico que

perpassa os textos por ele assinados, sentimento esse muito comum na obra do

autor Carlos Drummond de Andrade.

Paixão e crítica, tradição e ruptura, a marcar os percursos enunciativos do

cronista/flanêur a rasurar o mapa da cidade moderna em suas contradições.

MINAS GERAIS10

Figura: 3 MINAS GERAIS Fonte: MINAS GERAIS, 2010.

10 A escolha dessa ilustração se justifica por trazer na íntegra as duas seções: Os que partem e Os que chegam

73 4 NO CENÁRIO DE BARBA AZUL

O exame dos exemplares do jornal Minas Gerais, dos anos 1930 e 1931,

possibilitou delinear melhor a diferença da configuração do espaço em que Carlos

Drummond de Andrade escrevia sob os pseudônimos Antônio Crispim e Barba Azul.

Em geral, os textos se organizavam em colunas no início da seção Notas Sociais,

com fonte em itálico. As letras dos títulos aparecem maiores do que as do corpo dos

textos e geralmente sublinhadas, sem, contudo serem grafadas em itálico. Percebe-

se, no entanto, que, quanto aos títulos, há um tratamento diferenciado entre os

pseudônimos: as crônicas de Antônio Crispim não possuem um título permanente,

pois esse vai ser de acordo com o assunto abordado ao longo de seus textos. Já as

narrativas assinadas por Barba Azul vêm sempre sob o título de “Um minuto,

apenas”.

Apesar de serem apresentadas sempre sob o mesmo título, as narrativas de

Barba Azul, ao contrário dos textos assinados por Antônio Crispim, abordam mais de

um assunto na mesma coluna. Para realizar tal atividade, Carlos Drummond de

Andrade, redator chefe do jornal, separa os temas por um pequeno asterisco entre

os parágrafos, conciliando crônicas, provérbios e poemas, próprios ou de outros

colaboradores.

A presença da multiplicidade de textos pode ser verificada na estreia do

pseudônimo Barba Azul no jornal, em 08/09 de junho de 1931, quando este assina

os seguintes textos na mesma seção: “Programa”, “O amor único” e “Uma Xícara de

chá”. Configuradas dessa forma, as crônicas de Barba Azul, mais uma vez, vão se

distinguir das assinadas sob o pseudônimo Antônio Crispim por serem mais curtas.

Acrescente-se, também, a esse aspecto, uma proposta diferente na relação com o

leitor, como veremos mais à frente. Em alguns dias, no lugar das crônicas são

publicadas críticas literárias, confirmando que o tratamento dado ao espaço do jornal

é diferente para cada um desses pseudônimos. De certa maneira, delineia-se, nos

diversos textos de Barba Azul, uma diversidade de vozes. Traço esse presente nos

dois pseudônimos, mas em razão do trabalho com os vários textos, bem como a

relação com o jornal, vai se evidenciar nas crônicas de Barba Azul. Nesse sentido,

pode-se dizer a polifonia presente nas crônicas remete, também, à multiplicidade da

própria cidade.

74

É interessante ressaltar que, embora tenha lidado com uma maior diversidade

de assuntos em suas crônicas, Carlos Drummond de Andrade utilizou o pseudônimo

Barba Azul num espaço de tempo menor em relação a Antônio Crispim. De acordo

com informações contidas no livro Crônicas 1930-1934, Barba Azul publicou apenas

durante os meses de junho e julho do ano de 1931. Já Antônio Crispim estreou no

jornal em 23 de março de 1930, com a crônica “Do frio que chegou”, publicando

pelos três meses seguintes desse mesmo ano. O fato de Carlos Drummond de

Andrade ter que se ausentar, nesse mesmo ano, para o treinamento militar na

cidade de Barbacena fez com que pausasse sua participação no jornal até o ano

seguinte. Em 1931, após a publicação da crônica do dia 03 de junho, “Baile de

chita”, Carlos Drummond de Andrade vai assinar esporadicamente seus textos no

Minas Gerais como Antônio Crispim, como consta no livro em estudo. Dessa forma,

pode-se dizer que esse pseudônimo perdurou por mais tempo nas páginas desse

jornal em relação ao tempo ocupado por Barba Azul.

Se se pensa na trajetória do personagem Antônio Crispim, sobretudo que ele

tenha escrito anteriormente para outros suportes, como o Diário de Minas e A

Revista, é pertinente inferir que tal personagem cedeu espaço no jornal para que o

outro pseudônimo, Barba Azul, pudesse entrar em cena. Isso se comprova, num

primeiro momento, pelo fato de ambos não assinarem as crônicas do periódico

numa mesma data. Nesse sentido, a presença de Barba Azul na coluna do Minas

Gerais, dado o curto espaço de tempo, dá a impressão de que Carlos Drummond de

Andrade teria planejado/dirigido a performance desse pseudônimo na seção Notas

Sociais. Utilizando-se de um tom mais coloquial, poder-se-ia dizer que a atuação sob

esse pseudônimo foi proposital por parte do autor. Isso se esclarece a partir da

sequência em que as crônicas foram publicadas no Minas Gerais, como se pode

perceber em textos em que o poeta assinou tal pseudônimo, a exemplo de “Bilhete

à oitava mulher” e “O doce incomível”, analisados à frente.

Para analisar o conjunto de narrativas assinadas sob o pseudônimo Barba

Azul, textos esses que corroboram a ideia de um projeto de escrita para a coluna do

jornal Minas Gerais, a pesquisa partirá da primeira narrativa de Barba Azul, escrita

em dia 08 de junho de 1931, transcrita a seguir:

75

Um minuto, apenas Programa Nesta seção se falará de moda, de sentimentos que passam com ela, de atrizes bonitas de cinema, de poetas que não usam entorpecentes nem os fabricam, e de mil outros assuntos terrestres. A senha será: Frivolidade, que, às vezes se confunde com Espírito, outras vezes (sem parecer) é mais grave que um tratado de Finanças. A seção será curta, como a vida, mas sem as complicações da vida, como o telefone não-automático, o cão pisado na rua, o amor pisado no coração, a falta de horário, os telegramas cifrados, a viagem do “Do-X” e o desmemoriado de Collegno. Sairá todo dia útil (domingo) e até mesmo nos dias inúteis (os outros dias): não se aceitam reclamações nem se devolvem bilhetes. Também não há programa. A preocupação única é: aborrecer pouco, aborrecer o menos possível. (ANDRADE, 1987, p.146)

O painel de informações contidas na crônica acima confirma a proposta do

seu subtítulo, “Programa”. Por se tratar do primeiro texto sob tal pseudônimo, tem-se

aí a imagem de uma interação com o público leitor, uma espécie de “contrato de

leitura”, como propôs Porto (2008). Esse é, pois, o programa de escrita de Barba

Azul. Levando-se em conta os sentidos do vocábulo programa , faz-se necessário

discorrer sobre a cena enunciativa de tal texto.

A formatação de uma crônica que traz na sua abertura o signo “programa”

invoca a figura de apresentador desse tipo de evento, pois é assim que vai se

configurar a imagem do foco narrativo no texto em questão. Com as feições de um

apresentador de programa, seja de rádio, no contexto de publicação da crônica, seja

nos moldes da televisão, o personagem Barba Azul vai procurar esclarecer aos seus

leitores o conteúdo, o formato e as características das crônicas que serão

publicadas na respectiva seção a partir daquela data.

Nesse sentido, é interessante pensar não só no lugar de enunciação do

enunciador sob tal pseudônimo, mas também no espaço da crônica dentro da coluna

do jornal, sobretudo no título “Um minuto, apenas”. Ora, o tempo previsto para essa

chamada dialoga com a duração da narrativa, pois esta conta com um texto ágil, de

períodos curtos, com organização interna que se aproxima de um script, uma

espécie de roteiro para aquilo que vai ser lido em voz alta. Ressalte-se que esse

conjunto de aspectos é sugerido pelo tom em que o personagem se enuncia para o

seu público leitor. Dessa entoação, considere-se, ainda, a palavra minuto que vem

no título, ou seja, um dos signos indicados pela modernidade, que pode se referir à

rapidez do tempo. Aliem-se, a esse signo, outras indicações como as novidades do

cinema, da moda e de seus desdobramentos. Assim, o cronista se projeta em mini-

76 textos cujos diversos assuntos fazem referência a signos da modernidade, dentre

eles a ideia de que se gastará “um minuto, apenas” com os acontecimentos fugazes

da cidade de Belo Horizonte, inserida no contexto das novidades.

Considerando-se a imagem do apresentador atribuída a Barba Azul, é de

grande relevância o trecho do texto em que ele, de certa forma, menciona uma

espécie de norma para a interação com o leitor: “A senha será: Frivolidade, que, às

vezes se confunde com Espírito, outras vezes (sem parecer) é mais grave que um

tratado de Finanças.” (ANDRADE, 1987, p.146). Assim como a palavra programa ,

que abriu o texto, senha e frivolidades merecem também uma devida atenção na

cena enunciativa da crônica em estudo.

Senha é uma marca ou indicação para dar a entender uma coisa ou se

chegar ao conhecimento dela. Trata-se de um indício, ação, palavra ou fórmula

secreta previamente convencionada para ser usada como sinal de reconhecimento

entre pessoas (HOUAISS, 2002). Retomando a ideia de que esse foi o primeiro texto

escrito sob o mencionado pseudônimo, ressalte-se que o emprego de tal vocábulo

reforça a intenção de Barba Azul em manter um diálogo com os seus leitores. E a

disposição de uma senha a esse público legitima as condições de um pacto de

leitura.

A senha e o programa podem, sim, ser uma forma de entrada do leitor; uma

forma de interação com esse leitor. Por outro lado, diante de todas as novidades -

moda, aparelhos e vitrines - que começam a chegar à cidade, é de se esperar que

as pessoas desenvolvam um maior interesse por conhecerem e terem notícias

acerca dessas atrações. Partindo disso, parece que o cronista chama/atrai o leitor,

‘fingindo’ que vai tratar apenas de moda, de cinema e de outras novidades, mas,

quando o leitor já está ‘dentro do programa’ depara-se com outras questões,

ironicamente apontadas pelo cronista com o intuito, também, de levá-lo à reflexão.

Considere-se, ainda, que a apresentação dessa senha, frivolidade, vai dizer

muito da maneira com que os “mil assuntos terrestres” serão tratados pelo

apresentador. A senha revela, também, uma importante faceta desse pseudônimo

se pensada no comentário que se segue à entrega da senha. “A preocupação única

é: aborrecer pouco, aborrecer o menos possível.” (ANDRADE, 1987, p.146). Como

bem apontou Porto (2008, p.14), Barba Azul vai se configurar como um comentador

de assuntos mundanos e frívolos. Entretanto, seus comentários resultam de

maliciosa observação da sociedade, confirmados pelo recorrente emprego da crítica

77 às transformações da cidade. Por trás de meros comentários sobre frivolidades, ele

pretende mostrar questões que levarão os seus leitores à reflexão acerca da

sociedade em que vivem. Nesse sentido, reforça-se o jogo de esconde-esconde, em

que o próprio autor Carlos Drummond de Andrade se esconde atrás de seu

pseudônimo, Barba Azul. Dessa forma, todos os acontecimentos dignos e indignos

de nota da capital mineira no ano de 1931 passarão pelo crivo irônico do autor sob

tal pseudônimo.

4.1 Barba Azul: outro enunciador da vida urbana

Diante das principais características das crônicas assinadas por Barba Azul,

dos jogos narrativos por ele apresentados já no seu texto de estreia no jornal Minas

Gerais, optou-se por eleger a palavra Programa como um operador de leitura das

narrativas selecionadas para este capítulo.

Valendo-se do recurso do comentário, traço peculiar ao gênero crônica,

Carlos Drummond de Andrade, sob o pseudônimo Barba Azul, critica algumas

lacunas das relações sociais do contexto em que as crônicas foram escritas. É o que

se pode ler, por exemplo, na crônica “Uma xícara de chá”, publicada na mesma data

de “Programa”, 08 de junho de 1931:

Uma xícara de chá Domingo que vem, todas as pessoas elegantes de Belo Horizonte, menos os cronistas, que geralmente não o são, irão tomar chá no grupo escolar “Afonso Pena”. A tarde e a noite serão frias e meigas. O ambiente será aconchegado, mineiro e ao mesmo tempo rafiné. O chá será um pretexto. Há tantos pretextos neste mundo! Os que gostarem com pouco açúcar, poderão tomá-lo com mais flirt. Nota importantíssima: não será proibido dançar, como em certas festas que nós, ai de nós! Conhecemos. (ANDRADE, 1987, p.147)

A informação de um chá em um grupo escolar muito se aproxima de um

comunicado à elite da cidade. Em uma breve leitura dessas linhas, tem-se uma

referência ao evento sintonizado com os costumes ingleses, indicado no momento

do ‘Chá das 17horas’.

78

Isso se explica, uma vez que tal crônica se aproxima de outros textos

publicados praticamente na mesma página do jornal da época, em colunas

anteriores às Notas sociais, ou seja, ao conjunto de escritos da seção Diversas, cujo

conteúdo dialoga com a matéria da crônica em questão. Diante do percurso

empreendido nesse espaço do jornal, pode-se inferir que Carlos Drummond de

Andrade se valeu desses textos diversos para compor “Uma xícara de chá”.

Pensando nisso, vale olhar mais criticamente para as pequenas fendas do espaço

textual que possibilitaram visualizar a construção da crônica.

Nas três primeiras linhas, o autor/personagem anuncia o chá do próximo

domingo e, pautando-se na distinção dos grupos sociais, atribui requinte à elite que

participará do evento. Só que, ao lado da informação, ele delineia o lugar ocupado

pelos cronistas, entre vírgulas: “Domingo que vem, todas as pessoas elegantes de

Belo Horizonte, menos os cronistas , que geralmente não o são, irão tomar chá no

grupo escolar “Afonso Pena”. (ANDRADE, 1987, p.147). Na sequência, o enunciador

descreve as imagens, bem como os detalhes do suposto acontecimento.

Desse quadro pintado em relação ao chá, observe-se o trecho em que ele diz

que: “O ambiente será aconchegado, mineiro e ao mesmo tempo rafiné.”

(ANDRADE, 1987, p.147). É interessante perguntar qual é a imagem de mineiro

projetada nessa frase. Seria o sintoma de certo provincianismo atribuído à história

do Estado? Pois o emprego do adjetivo raffiné, de origem francesa, permite ao

cronista dar um ar irônico de sofisticação ao evento. Talvez, na ótica urbana, a

possibilidade de uma feição ligada ao cosmopolitismo. Daí a presença do chá no

título do texto, que contribui para a distinção das classes, uma vez que tal costume

não era comum a todos os grupos sociais.

O culto àquilo que é visto como elegância reforça a ironia aos eventos

ocorridos na cidade, indicada na nota importantíssima da crônica: “não será proibido

dançar, como em certas festas que nós, ai de nós! conhecemos.” (ANDRADE, 1987,

p.147). O uso da interjeição ai e do pronome pessoal nós desenha aí o tipo de festa

que frequentava o grupo social a que o cronista pertencia.

Na pista das lacunas sociais, é interessante lançar uma luz sobre o vocábulo

pretexto , considerando em especial o lugar em que se encontra no corpo da

narrativa, isto é, no meio da composição, quando o narrador comenta: “O chá será

um pretexto. Há tantos pretextos neste mundo!” (ANDRADE, 1987, p.147).

Considerando a liberdade expressiva que permeia o exercício desse gênero da

79 literatura e o recurso da metalinguagem, tem-se, em tal vocábulo, o espelhamento

da feitura da crônica. Esse efeito se dá por meio do diálogo entre o conteúdo da

narrativa e os mecanismos empregados em sua confecção, pois se o chá, assunto

do evento, é um pretexto para “outros negócios”, é também pré-texto para a escrita

da crônica. Mais do que isso, o autor/personagem conseguiu, através do chá-

pretexto, apresentar de forma irônica o comportamento da sociedade belo-

horizontina em determinados eventos.

Dessa íntima relação com o espaço do jornal onde assinou seus textos, é

pertinente discorrer, mesmo que de forma breve, acerca daquela que seria uma das

maiores críticas de Barba Azul no que diz respeito ao seu perfil de enunciador da

vida urbana. A ousadia de comentar os fatos da semana se encontra na

emblemática crônica do dia 17 de junho de 1931:

Resumo Os acontecimentos mais palpitantes da semana foram: a moça que engoliu uma bola de golfinho quando abriu a boca, cheia de espanto, por ver o namorado jogar tão bem ; a excursão de Manoelina de Coqueiros (em caráter particular e não de santa) ao Instituto “Raul Soares”; o burrinho sábio do Circo Queirolo, que não tinha graça nenhuma e por isso fazia concorrência ao palhaço ; a ressurreição de “Ben Hur”, sob os auspícios do Instituto Histórico ; e uma frase nova da gíria: “Diz melografado”. No mais, nada de novo na frente ocidental. (ANDRADE, 1987, p.159, grifo nosso)

Da narrativa transcrita podem-se ler dois textos. A parte que não se encontra

grifada configura-se como a sequência exata de cinco acontecimentos da semana

que passou. Esses fatos, verídicos ou não, correspondem à estrutura do resumo que

intitula a narrativa. Nesse sentido, Barba Azul apreende algumas notícias do

cotidiano e as enuncia na seção em que escreve, passando a imagem de alguém

que deu o seu recado, como mostra o desfecho da narrativa: “No mais, nada de

novo na frente ocidental”. (ANDRADE, 1987, p.159).

Já os trechos sublinhados pautam-se no domínio do comentário, indicado por

vírgulas e parênteses, geralmente de caráter cômico. Com o cruzamento dessas

partes, Carlos Drummond de Andrade atualizou o gênero ao condensar as notícias e

os seus respectivos comentários nas linhas de um resumo.

80 4.2 Isso aqui não é o Rio de Janeiro

O percurso pela cidade moderna permitiu ao cronista-flâneur captar os vários

acontecimentos ocorridos nesse espaço. Trata-se de um olhar atento às relações

encenadas no tecido urbano. Ao transitar pelas ruas da cidade, o cronista entra em

contato com as miudezas do cotidiano e, por estar rente ao chão, misturado aos

burburinhos, captura uma infinidade de assuntos/ temas, (CANDIDO, 1993). No

processo de criação das crônicas, ele vai ora enaltecer algumas imagens

recorrentes na cidade, ora construir/ destruir alguns símbolos ligados a esse lugar.

Assim como o percurso desse personagem se multiplica no espaço físico,

multiplicam-se também as configurações da cidade em suas crônicas.

Diante dos aspectos relacionados ao emaranhado demográfico que constitui a

urbe, o narrador-personagem atua de forma meticulosa, flagrando as cenas que

perpassam a cidade. Depois ele vai transformá-las em texto e transpô-las para o

jornal, na coluna “Um minuto, apenas”. Percebe-se, aí, a agilidade e malícia do

cronista, uma vez que tudo que ele vê/observa pode ser dito em um minuto. Nessas

sutilezas do olhar que o cronista lança ao espaço urbano, evidencia-se o paradoxo:

a representação do corpo complexo da cidade em tão pouco tempo. Não se pode

esquecer que ele quer mostrar, aos seus leitores, a efemeridade das coisas; por isso

mesmo a agilidade do seu texto que dialoga com a rapidez das novidades, tão

almejadas no cenário da modernidade.

Em relação a essas imagens captadas pelo cronista-narrador, importa

salientar duas outras crônicas: “Luzes da cidade”, do dia 21 de julho de 1931, e

“Golfinho e outros substantivos”, publicada em 10 de junho do mês ano. Há dois

assuntos que, indiretamente, aproximam essas narrativas: a moda e a questão do

provincianismo da capital mineira em relação ao Rio de Janeiro. Por isso mesmo, é

importante sinalizar, num primeiro momento, que a referência à capital carioca é um

assunto muito explorado nas narrativas de Carlos Drummond de Andrade,

produzidas nesse contexto, sendo que a escolha das crônicas assinadas por Barba

Azul apresenta apenas uma dimensão de tal recorrência.

Como se viu, desde as transformações empreendidas por Pereira Passos, no

início do século passado, a cidade do Rio de Janeiro se tornou um grande ícone da

modernidade em nosso país, influenciando as outras capitais nos diversos setores

81 da economia, arquitetura, cultura e, claro, da moda. Dessa forma, os lançamentos,

as descobertas, enfim as novidades da Europa passavam primeiro pela cidade

carioca. O Rio de Janeiro foi, então, um importante pólo disseminador das

tendências culturais modernas. Daí, provavelmente, seu forte traço de

cosmopolitismo. Essa característica estava em evidência no contexto de publicação

das crônicas de Barba Azul. Diga-se de passagem que, a despeito de sua

relativização por várias causas, esse atributo perdura até os dias atuais. As outras

cidades brasileiras, diante desse quadro, viviam na condição de “atrasadas”, no que

tange aos ideais de avanço e progresso. Paradoxalmente, até mesmo Belo

Horizonte, que já nasceu moderna, vai receber o rótulo de cidade “provinciana”. É o

que se pode ler nas referidas crônicas.

Em “Luzes da cidade”, percebe-se um narrador ávido por ícones diretamente

associados ao cenário da modernidade, a começar pelo título que faz uma alusão à

“cidade-luz”, Paris. Analisando-se mais nitidamente a crônica, pode-se entender

parte do desejo do autor por uma cidade iluminada, pois ele vai reclamar da sombra,

da escuridão que cai sobre a capital mineira: “As vitrinas apagaram-se na noite de

Belo Horizonte.” (ANDRADE, 1987, p.200).

Nessa frase de abertura da narrativa é interessante observar dois aspectos: o

primeiro aponta para a ironia presente no título da crônica, pois naquilo que o texto

propõe, ter-se-ia Belo Horizonte, como a cidade sem luzes. O segundo elemento

consiste no emprego da palavra vitrinas . Luciana Nascimento (2005, p.65), citando

Hardman, expõe:

curiosa ironia dos materiais: ao contrário dos muros de pedra, dos gonzos de ferro, dos postigos maciços, a vitrine é a maneira mais cínica através da qual o luxo se deixa entrever, assinalando ao mesmo tempo, seu preço e seu dono. (HARDMAN apud NASCIMENTO, 2005, p.65).

Daí se tomar a vitrine também como uma das metonímias da cidade moderna.

Parece, pois, que Barba Azul parte da seguinte lógica: se Belo Horizonte é uma

cidade moderna, por excelência, onde está sua luminosidade? Longe dos becos,

montanhas, encruzilhadas, típicas do interior mineiro, o que ele esperava desse

espaço era, sobretudo, a luz. À semelhança de Paris, eleita por Walter Benjamim

como sede da modernidade, metáfora do cosmopolitismo e que serviu de modelo

para a construção de Belo Horizonte, a provinciana noite delineada pelo narrador

82 distancia a cidade mineira de sua matriz. Segundo Barba Azul, “na hora em que o

burguês faz a sua digestão ambulante e as meninas saem do cinema, já não há

nada para espiar atrás dos vidros.” (ANDRADE, 1987, p.200).

O narrador perambula pelas ruas à procura de objetos/situações que ajudem

a configurar a capital em sua versão atrativa, feérica, mas o crepúsculo da cidade o

impede: “As gravatas e os frascos de perfume, os sapatos de baile, as luvas, as

coisas caras e tentadoras desaparecem de nossos olhos. Até uma casa especialista

em pernas artificiais entendeu de fechar as luzes que custavam caro” (ANDRADE,

1987, p.200). E nesse percurso pela escuridão ele, ironicamente, revela outro traço

dos belo-horizontinos, estendido a todos os mineiros: o excesso de sovinice. Soma-

se a isso a imagem de Belo Horizonte como a cidade do tédio o que, segundo

Carlos Drummond de Andrade, devia-se em grande parte ao conservadorismo

mineiro. (MACHADO, 2009)

A ausência de luzes na noite da cidade faz com que Barba Azul a confronte

com a deslumbrante Rio de Janeiro: “Enquanto isso, os jornais do Rio anunciam

ironicamente os concursos de vitrinas.” (ANDRADE, 1987, p.200). Talvez seja nesse

trecho que se encontra a maior evidência do par provincianismo/cosmopolitismo. Ao

se tomar Barba Azul como um enunciador da vida urbana e, pensando na relação

dele com o jornal da época, pode-se ler aí a postura de alguém que reforça para os

seus leitores a ideia de que Belo Horizonte, mesmo moderna, carrega o fardo do

atraso. Porém, como morador desse espaço e instigado pelo sarcasmo, o cronista

encontra a saída para a falta de criatividade da noite belo-horizontina, ofertando ao

seu leitor uma boa dose de humor: “Nós aqui podíamos fazer o mesmo: indagar qual

a vitrina mais escura e, como prêmio, oferecer ao proprietário um lampião a

gasolina.” (ANDRADE, 1987, p.200).

Na mesma linha encontra-se “Golfinho e outros substantivos”, cuja narrativa

se baseia na cena de um cavalheiro tecendo observações sobre um dos costumes

da cidade: o golfinho, diminutivo do golfe, esporte que estava em alta entre os

jovens burgueses da Belo Horizonte dos anos 1930. Tal prática, semelhante às

luzes da cidade, é vista como ponto de partida para a discussão de um tema maior,

ou quem sabe, mais relevante para o cronista. Parece que, novamente, há uma

tentativa de “ajuste cultural” entre a capital mineira e o Rio de Janeiro. Essa busca

de equilíbrio, no plano ideológico, é demonstrada no recurso espaço-temporal que

83 atravessa o corpo da narrativa. O confronto entre as cidades se dá nas mesmas

condições da crônica anterior, até mesmo no emprego de determinados vocábulos,

como se lê nas partes sublinhadas:

- Agora que o golfinho tomou conta de Belo Horizonte, ninguém joga mais golfinho no Rio. Quando ele apareceu lá, há meses, fazia calor e algumas jovens de plástica mais interessante tomaram mesmo a liberdade de jogá-lo em mailot. Aqui , a essa altura do ano, e com os queixos batendo, só mesmo de capotão, e com os queixos batendo, tweed seater e lãs escocesas bem espessas. Enquanto isso , as elegantes cariocas estréiam modelos notabilíssimos de manteaux russos, siberianos e poloneses, que só chegarão ao conhecimento da família mineira (se chegarem ) em dezembro de 1931, isto é, quando toda gente estiver tomando sorvete de coco no bar do Automóvel Club. (ANDRADE, 1987, p.148, grifo nosso).

Observe-se que, junto das partidas de golfinho, o narrador encontra uma

lacuna para abordar a questão da moda carioca, tratada nesse contexto com

requinte e elegância. Curiosamente, para abordar tal questão, o cronista se vale das

estações do ano e a exigida renovação da moda com suas coleções: outono-

inverno; primavera/verão. E por meio do emprego dessas fases do ano, pode-se

dizer que o cronista também faz uma crítica ao Rio, por sua importação de moda

com clima inadequado.

O emprego dos parênteses sugere a impossibilidade de a cidade belo-

horizontina não experimentar a moda que foi sucesso na ‘Paris à beira-mar’: “[...] as

elegantes cariocas estréiam modelos notabilíssimos de manteaux russos, siberianos

e poloneses, que só chegarão ao conhecimento da família mineira (se chegarem )

em dezembro de 1931[...]” (ANDRADE, 1987, p.148, grifo nosso). Diante dessa

distância entre as capitais e, por consequência, o respectivo atraso com que a moda

de Belo Horizonte recebe as novidades do Rio, o cavalheiro termina de expor suas

observações com a seguinte solução: "Se tivermos um pouco de habilidade ou de

paciência, poderemos atrasar doze meses exatos, e então a moda belo-horizontina

deste ano ficará perfeitamente sincronizada com a moda carioca do ano passado".

(ANDRADE, 1987, p.148)

É interessante ressaltar que Barba Azul narra por meio do discurso de

outrem, no caso, de um cavalheiro anônimo que observa um tipo de lazer recorrente

no contexto de 1930. Com essa estratégia, tomando emprestadas as observações

desse cavalheiro, que acompanha o cotidiano da capital mineira, Barba Azul, de

certa forma, endossa a proposta enunciada na sua primeira crônica. Ou seja, a de

que ele é apenas um programa que apresenta as futilidades para os leitores do

84 jornal. Assim, mais uma vez se põem à mostra as artimanhas do pseudônimo de

Carlos Drummond de Andrade que tanto na escuridão de Belo Horizonte, quanto no

esporte em voga, encontrou formas de (re) ler a cidade criticamente.

4.3 Da conversa com as leitoras aos fios da barba

Desde a escrita das narrativas de estreia no Minas Gerais, Barba Azul

demonstrou interesse em manter relações com o seu público leitor, e, não

gratuitamente, dispôs uma senha para selar tais interlocuções, como já visto. Mas é

bom lembrar que, ao final desse mesmo texto, o pseudônimo contradiz a existência

de um Programa, título da crônica, e afirma que a sua preocupação única era:

“aborrecer pouco, aborrecer o menos possível”. (ANDRADE, 1987, p. 146).

A partir dessa intenção, é relevante pontuar que grande parte desse público a

quem Barba Azul remetia suas crônicas era composto por mulheres. Ressalta-se,

também, que esse traço se relaciona basicamente a dois fatores: o primeiro diz

respeito aos assuntos por ele abordados nos textos que levavam sua assinatura,

sobretudo, a moda. O outro se associa diretamente ao nome do pseudônimo, Barba

Azul. Levando-se em conta a interlocução com os seus leitores, bem como as

estratégias envolvidas na construção do pseudônimo, será analisado, através das

crônicas, o tratamento dado à mulher.

Pensando no aspecto de volubilidade, peculiar ao personagem, em relação ao

público feminino, destacam-se as narrativas “Receita de doce” e “O doce incomível”,

publicadas em 21 e 22 de junho 1930, respectivamente. Num primeiro momento,

tomando o título da primeira crônica, pode-se inferir uma espécie de consonância

com a proposta geral de Barba Azul, quando esse mencionou no seu programa a

possibilidade de abordar os “mil assuntos terrestres”. Nesse sentido, indicar uma

receita de doce aos seus leitores não é uma ação que fugiria da pauta. Assim, a

questão que ora interessa é a forma como o autor lidou com esse gênero em sua

narrativa, transcrita a seguir:

85

Receita de doce Faça este doce para sobremesa de hoje: Algumas maçãs descascadas. Cortam-se em pedaços de tamanho regular e põem-se num prato fundo. Salpica-se com açúcar e rega-se com rum; de vez em quando sacode-se o prato, que deve estar coberto. Meia hora de maceração. Põem-se numa tigela três colheres de farinha de trigo (50 gramas), juntam-se duas gemas, uma pitada de sal, outra de açúcar, uma colherinha de conhaque e outra de azeite. Tudo isso é misturado com carinho, juntando-se um pouco d’água, que baste para formar uma massa rala. Mergulha-se cada pedaço de maçã da massa e frita-se na gordura ou no azeite. E aí temos uns excelentes beignets de maçã, que podem ser caramelizados com um pouco de açúcar cristalizado por cima. Serve-se tout de suite. (ANDRADE, 1987, p.166)

Em linhas gerais, pode-se dizer que se trata de uma crônica-receita, pois a

organização do texto apresenta a seguinte estrutura: título, ingredientes e modo de

preparo. Observa-se, porém, no texto, a ausência do título da receita em si, que só

aparecerá no corpo da narrativa - beignets de maçã. No lugar dos ingredientes, o

narrador vai direto ao modo de preparo. Assim, ao descrever a sequência da receita,

ele confere ao seu texto o traço de narrativa. Em outras palavras, os passos de

preparação de uma sobremesa resultam na confecção da crônica. Para alguém que

se aventurou numa área ligada à culinária, misturando as partes de uma receita,

intrometer-se como chef foi uma atitude de sucesso? É o que o leitor do jornal pôde

conferir na crônica “O doce incomível”:

Recebi, hoje, pela manhã, a carta que dou abaixo: “Sr. Barba Azul - Quando acabei de fazer o doce que o Sr. recomendou na sua palestra de ontem com os leitores do “Minas”, e que o provamos, meu marido virou-se para mim e disse: “Mande isso para o Barba Azul, com um cartão perguntando se foi com uma droga dessas q ue ele matou as suas sete mulheres” . Palavra que tive vontade de fazê-lo, mas como as mulheres nunca devem obedecer aos maridos, porque senão eles abusam, deixo de enviar o doce mas envio estas linhas. É o cúmulo, Sr. Barba Azul! O sr. subscrever uma receita de sobremesa onde entra azeite em doces de maçãs! No fundo, eu fui uma boba de experimentar em casa as suas receitas de doce. Se visse a cara de meu marido depois que provou o prato, decerto deixaria de ser doceiro. No mais, continuo sua admiradora, em termos. - L... de S...” Peço perdão à minha gentilíssima correspondente e ao seu marido. A receita saiu com um erro de revisão. Onde está “depois de feito, serve-se tout de suite”, devia estar “jogue-se fora imediatamente”. Eu peço perdão. (ANDRADE, 1987, p.168, grifo nosso)

Considerando o assunto que aproxima as duas narrativas, é importante

observar como o autor se apropriou de outros gêneros textuais, receita e carta, para

compor as suas crônicas, reforçando o aspecto híbrido desse tipo de texto. Nesse

86 sentido, a atitude da leitora aborrecida com a estranha receita de Barba Azul, ao

enviar uma dura crítica ao cronista, permite vislumbrar um dos desdobramentos do

gênero no espaço do jornal: a carta do leitor (verdadeira ou fictícia). A apropriação

da carta, no plano estrutural, resulta na imagem de uma crônica-carta, pois em uma

rápida leitura da narrativa tem-se, primeiramente, como discurso de Barba Azul, o

primeiro e último parágrafos. Graficamente, o discurso que pertenceria à leitora

encontra-se entre travessões. Por isso mesmo, é importante focar o conteúdo da

carta da leitora do “doce incomível”, para desvelar mais uma artimanha do

personagem/autor.

O jogo enunciativo, encenado no espaço textual da crônica, muito diz daquele

que o propôs. Como bem observou Porto (2008):

a reclamação sobre a receita pode indicar que haveria uma relação de confiança estabelecida entre o cronista e o público, e que ao publicar uma receita que não deu certo, esta relação foi senão totalmente rompida, sofreu algum tipo de abalo. (PORTO, 2008, p.15).

Tal leitura é pertinente, sobretudo quando se retoma o trecho em que a leitora

finaliza sua carta: “No mais, continua sua admiradora, em termos. - L... de S ...”

(ANDRADE, 1987, p.168, grifo nosso). Pensando na relação leitora/Barba Azul,

algumas questões emergem a respeito da feitura da crônica, tais como: por que a

leitora aborrecida não assinou o seu nome completo? Que efeito de sentido há no

fato de essa admiradora se referir ao seu esposo durante a exposição da crítica à

receita? Há possibilidade de entrar no jogo de Barba Azul?

Independente das respostas a essas indagações, o que se propõe é puxar

alguns fios da construção do personagem, iniciando-se pela assinatura da leitora

chateada. Ora, dizer que essa saída foi para manter o seu anonimato diante da

cidade belo-horizontina parece uma leitura ingênua, uma vez que no cenário de

Barba Azul os detalhes são imprescindíveis para a leitura de sua performance. Esse

procedimento textual, atribuído à leitura, é típico do criador maior dos personagens,

Carlos Drummond de Andrade. Como discorrido no capítulo anterior, o poeta criou

pseudônimos com nomes completos e também aqueles que foram apresentados

pelas iniciais. Frise-se que o próprio Carlos Drummond de Andrade assinou várias

vezes as iniciais de seu nome, C.D. A e C.D. Talvez o uso mais ousado desse

recurso, por parte do escritor, tenha sido o empregado na assinatura da crônica “A

87 cidade verde” em que ele grafou apenas Y.

Partindo desse quadro criativo, no que diz respeito às estratégias utilizadas

pelo escritor na abordagem dos nomes, nasce uma desconfiança com relação à

autoria da carta. De um modo geral, essa dúvida redimensionará a leitura da

crônica. Até aqui a imagem construída da figura sob tal pseudônimo é a de um leitor

corrosivo da cidade em que estava inserido. Diante disso, questiona-se: a

reclamação da “admiradora de Barba Azul” é pertinente ou a publicação da receita

de doce seria uma pilhéria com os seus leitores?

A resposta a essa indagação, de alguma forma remete ao “programa”

apresentado pelo narrador, uma vez que ele sarcasticamente menciona que sua

preocupação era aborrecer um pouco, no caso, os seus leitores. Independente de a

carta ser verdadeira, o que se tem aí é um contraponto criado pelo cronista.

Quando se desloca o foco para o pseudônimo, tem-se a dimensão do jogo

narrativo aí empreendido. Tanto a receita quanto a carta que a critica são o

resultado da criação literária de Barba Azul. Um percurso investigativo de suas

manobras textuais revela a farsa por ele encenada. Parte desse efeito de sentido

pode se ler no título da crônica do dia seguinte, pois o ‘doce incomível’ cria a

imagem do pseudônimo que foi delineada pela leitora virtual, na carta enviada ao

jornal. Aos olhos dessa leitora, o cronista se tornou uma figura intragável.

No confronto das ideias contidas na primeira crônica de Barba Azul com a

situação dessa senhora, percebe-se que ela representa todo o público leitor do

personagem. Em outras palavras, aquele que contrariasse o acordo assinado

apenas pelo pseudônimo, amargaria consequências semelhantes às da leitora L. de

S. Num tom coloquial, ele assim poderia propor: não se brinca com aquele que tem

como intenção lhe aborrecer.

A partir dessas artimanhas é que se pode perceber a elaboração de um

pseudônimo, e, mais do que isso, a (re) construção de um personagem que vai

assinar por dois meses as crônicas do jornal em que Carlos Drummond de Andrade

era colaborador. Nesse sentido, quando a leitora virtual mencionou em sua a carta a

opinião do marido revelou-se uma importante pista acerca do personagem

drummondiano. Para melhor explicitar isso, é oportuno reler o trecho em que a

referência ao personagem de Perrault aparece de forma explícita no comentário do

marido: “Mande isso para o Barba Azul, com um cartão perguntando se foi com uma

droga dessas que ele matou as suas sete mulheres”. (ANDRADE, 1987, p.168).

88 Com essa posição do marido anônimo, percebe-se o espelhamento entre o Barba

Azul, pseudônimo drummondiano, e o personagem homônimo de Perrault, ambos

relacionados ao “aborrecimento” causado às mulheres. Não se pode esquecer, é

claro, da sedução que perpassa a escrita do cronista. Nota-se uma forma educada

de se interagir com a leitora. Dessa forma, as atitudes do lendário Barba Azul de

Perrault lançarão uma luz às ações do personagem que Carlos Drummond de

Andrade utilizou para assinar seus textos.

“Barba Azul era um homem que possuía belas mansões no campo e na

cidade, baixela de ouro e prata; móveis floreados e todas as carruagens douradas”

descreve Perrault (1997, p. 101). Mas por infelicidade tinha uma estranha barba

azul, que passou a nomeá-lo. Essa característica o tornava tão feio que não havia

mulher ou donzela que fugisse dele. Para atrair o interesse das mulheres, ele fazia

bom uso de sua riqueza, proporcionando a suas pretendentes passeios, viagens,

presença em festas elegantes.

Esses galanteios contribuíram para que ele se casasse várias vezes, e todas

as suas mulheres tinham desaparecido sem deixar vestígio. Há versões da história

que confirmam que o personagem Barba Azul matou sete mulheres. Casou-se,

então, com uma jovem, a quem deu as chaves da casa, mas a proibiu de entrar em

um pequeno gabinete no porão. Tomada pela curiosidade, a jovem visita o quarto

durante uma viagem do marido e constata que o aposento estava repleto de

cadáveres pendurados, com o chão todo coberto de sangue. A chave cai de sua

mão e ganha uma indelével mancha de sangue, a denunciar sua desobediência. O

tenebroso protagonista decide então matá-la, como fez com suas antecessoras. Por

sorte, os irmãos da jovem esposa chegam a tempo de salvá-la. Eles atravessam o

corpo de Barba Azul com uma espada e ali o deixam morto. Por fim, a esposa acaba

por herdar toda a riqueza do marido. Seguindo os moldes da narrativa fabular, esse

conto apresenta em seu desfecho duas moralidades:

Aprazível embora, a curiosidade Traz muitas vez contrariedade, Como com mil exemplos é possível provar. Trata-se de um prazer, mau grado o sexo, vão. Custa a atingir e vai-se ao ar Mal se lhe toca com a mão. Outra moralidade Mesmo quem seja um pouco tonto

89

E pouco saiba desta vida Vê logo que este belo conto É de uma era assaz antiga Não há já esposos tão terríveis A exigir só impossíveis. Mesmo zangado e ciumento, Ao pé da dama é ele sempre obediente; Mesmo que tenha a barba azul ou doutra cor, Não se distingue qual dos dois é mais senhor. (PERRAULT, 1997, p.108)

Diante do enredo do conto, evidencia-se a releitura que Carlos Drummond de

Andrade fez desse personagem para construir o seu pseudônimo. Além das

referências explícitas na tessitura de suas crônicas, saliente-se dois pontos que

merecem destaque ao longo da narrativa de Perrault (1997): a questão da chave

proibida e o número de vezes que o personagem se casou. A relevância desses

pontos se encontra no fato de eles servirem como operadores de leitura das

crônicas assinadas pelo personagem drummondiano. Para isso, faz-se necessário

focar a cena do conto em que Barba Azul deixa a sua última esposa para realizar

uma viagem de negócios:

Quanto a esta chavinha, é a chave do gabinete que fica ao fundo da grande galeria térrea; nesse pequeno gabinete proíbo-vos, porém de entrar, e proibo-vo-lo de tal modo que, se acaso o abrirdes, tudo podereis esperar da minha cólera. (PERRAULT, 1997, p.102)

A cena enunciativa aí representada é bastante simbólica, já que propicia uma

leitura ainda mais verticalizada do jogo narrativo proposto nas crônicas “Receita de

doce” e “O doce incomível”. Na relação com o interlocutor, a atitude dos

personagens de Perrault (1997) e Carlos Drummond de Andrade se aproxima. O

sinal desse diálogo encontra-se na metáfora da chave. Assim como as mulheres que

Barba Azul desposava, para depois matá-las, por essas desrespeitarem o

combinado por ele proposto, o pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade

tornar-se-ia intragável aos leitores que desrespeitassem o contrato de leitura por ele

empreendido, como ocorreu com a leitora que ficou aborrecida com a sua esdrúxula

receita.

Ao se levar em conta a cólera do personagem do conto, tem-se, na pilhéria

construída pelo cronista, a dimensão do que este seria capaz de provocar em seus

leitores. Dessa forma, o excerto acima permite uma reflexão acerca da atuação do

90 personagem drummondiano. Reconhece-se, obviamente, que se trata de uma

releitura que o poeta realizou do famoso personagem e, no entanto, a construção do

seu pseudônimo carrega traços mais leves no que concerne à tragicidade. No

espaço da riqueza, da feiúra, dos crimes dos quais o primeiro se ocupava, encontra-

se um crítico da cidade de Belo Horizonte dos anos 1930, motivado por sarcasmo,

humor e ironia.

Quanto ao segundo aspecto do enredo, tem-se que o Barba Azul de Carlos

Drummond de Andrade, além de levar em conta a interlocução com as mulheres,

apropriou-se do número de vezes que o personagem de Perrault casou, como

consta na crônica “Bilhete à oitava mulher”, evidenciado já no título do texto. Trata-

se de uma das últimas narrativas assinadas pelo pseudônimo, publicada no dia 22

de julho de 1931. Nela o cronista, mais uma vez, vai receber críticas do seu público

leitor. Só que nesse caso, o teor da reclamação é mais específico, uma vez que se

direciona à escrita do personagem. Na primeira parte da resposta ao bilhete de sua

ácida leitora, nota-se uma espécie de atmosfera de galanteios, por parte do

narrador; um charme disfarçado com intuito de enaltecer a remetente da mensagem:

Escrever todos os dias para você uma coisa amável é a obrigação mais doce do mundo, leitora. Mas há dias em que você prefere os ácidos aos doces e não acha gosto naquilo que a gente escreve para você. Certamente ontem foi um desses dias. Daí o bilhete que você me mandou e eu não publico só para fazer inveja aos meus semelhantes. Uma impertinência de mulher vale mais que dois carinhos da mesma mulher. E se eu contasse aos duzentos mil leitores do “Minas” que você foi impertinente comigo, eles todos ficariam gostando pouco de mim e muito de você. (ANDRADE, 1987, p. 208)

A postura de Barba Azul, nesta crônica, difere também daquela adotada em

“O doce incomível”, pois aqui ele, estrategicamente, recusa-se a publicar o bilhete

que macularia sua imagem de bom cronista em relação a outros colaboradores da

época. Mas também esconde do leitor o jogo de sedução em que se envolve. Para

isso, ironicamente inicia a crônica-resposta de forma suave, aspecto conferido nas

primeiras palavras que emprega. Daí, talvez, a escolha da frase impactante por ele

empregada: “Uma impertinência de mulher vale mais que dois carinhos da mesma

mulher.” (ANDRADE, 1987, p. 208). Trata-se de um jogo de sedução com a leitora.

Ele adoça a atitude daquela leitora que critica o seu estilo, para depois amargá-la

com o ácido teor irônico, presente na sequência da narrativa:

91

Oh! Você não foi impertinente comigo. Você disse que o Yves do “Fon-fon” escreve melhor do que eu e não é tão convencido. Você se esqueceu de uma coisa: o Berilo Neves da “Careta” escreve muito melhor do que o Yves do “Fon-fon” e portanto muitíssimo mais ainda do que Barba Azul, seu criado. E é muitíssimo mais convencido do que nós dois juntos. (ANDRADE, 1987, p. 208)

Aí, Barba Azul apresentou uma desenvoltura diferente em relação à outra

narrativa. Pode-se dizer que ele teve uma de suas características atingida: a

imodéstia. O que o personagem vê como saída é argumentar à sua leitora que

existem cronistas mais convencidos do que ele.

Quando se afirma ser esse um tratamento singular à sua leitora é porque

dessa interlocução muitos fios que permitem o cruzamento com a história contada

por Perrault se colocam à mostra. Percebe-se que o cronista, a partir dessa

mensagem, redimensiona a sua atuação diante do leitor, reapresentando assim sua

imagem e proposta:

Você disse que não sabe como é que eu posso ser tão frívolo assim. Menina, quem lhe contou que eu sou frívolo? Meu nome é um programa. Eu sou aquele que liquidou sete mulheres enquanto o diabo esfregava um olho. Eu não sou brinquedo. Eu sou muito homem de apanhar você e [...] (ANDRADE, 1987, p. 208, grifo nosso)

Note-se que Barba Azul aí retoma o primeiro texto escrito nas páginas do

jornal. Ao relembrá-lo à sua leitora, ele permite que tal narrativa seja relida de uma

forma ainda mais ampla, pois quando afirma que programa é o nome dele, a

proposta da senha frivolidade se torna ainda mais forte. Observe-se que, quando o

personagem recorre ao texto de estreia no Minas Gerais, traz consigo a referência

explícita ao Barba Azul de Perrault. A aproximação realizada ao final do excerto é

tão convincente que dá a impressão de que quem emite tais palavras é o tenebroso

assassino. As reticências do trecho apontam para mais um iminente crime. Mas

como saiu da pena do Barba Azul drummondiano, a cena se torna engraçada,

sobretudo, quando esse dá continuidade à sua narrativa:

Não. Paro aqui. No fundo você tem razão. Quem já liquidou sete mulheres não tem sustância para liquidar oito. Oito também é demais, e sucede que você é a oitava, isto é, a que veio “vestida de púrpura e com andar de rainha”, para vencer e pisar na gente. (ANDRADE, 1987, p. 208, grifo nosso).

É interessante analisar a forma como esse pseudônimo demonstra, ao longo

do seu discurso, os fios que se entrelaçam na construção do personagem. A ironia

92 do Barba Azul que assina as crônicas na seção Um minuto, apenas tem origem na

sagacidade do personagem de Perrault. Nesse sentido, os dois também terão como

embaraço a figura de uma mulher. No caso do pseudônimo, a leitora que o critica.

Para o outro, a oitava esposa que descobriu seu estratagema. Levando-se em conta

o traço machista que perpassa a trajetória do pseudônimo assinado por Carlos

Drummond de Andrade, percebe-se, na citação acima que, ao se referir à última

mulher, ele reafirma as ações do personagem de Perrault. Nesse jogo submete-se,

no entanto, ao poderio da sedução feminina.

Não se pode perder de vista a cena enunciativa que atravessa o texto: um

cronista que responde às críticas de sua leitora. Nessa resposta que se mistura com

as características de um jogo de argumentação, é preciso desconfiar dos elogios

atribuídos a essa oitava mulher, uma vez que se refere àquela que derrotou o outro

personagem, e que, metaforicamente, encontra-se corporificada nas atitudes da

leitora da coluna jornalística. Por esse viés, o Barba Azul drummondiano, ao

enaltecer a figura feminina, procura uma justificativa para o seu ponto fraco, como

identificado na sua relação com outros cronistas convencidos. Esses argumentos

serão encontrados na trajetória de personagens que também foram derrotados por

mulheres:

O chamado Sansão, que devia ser meu primo, não ficou valendo de nada depois que lhe apararam o cabelo. O Barba Azul de Perrault e os Gilles de Rais de Anatole France são hoje dois sujeitos escanhoados. Com a barba foi-se a truculência. (ANDRADE, 1987, p. 208)

Neste trecho da crônica, Barba Azul endossa o seu ponto de vista valendo-se

de duas histórias: a que ele teve como origem e a de Sansão. O livro de Juízes

narra que Sansão era um homem muito forte, gozava de prestígio entre as mulheres

e era tremendamente temido pelos homens. Por ter esses atributos, ele contava com

um grande número de inimigos. Em uma ocasião, Sansão rasgou a boca de um leão

sem usar nenhum instrumento cortante. O livro bíblico narra também que ele

amarrou 300 raposas, uma a uma pela cauda, e ateou fogo. Colocou as raposas nas

plantações dos filisteus. Tudo foi destruído, tanto o que estava para ser colhido,

como também as vinhas e os olivais. Todos os filisteus ficaram atônitos, porque

ficaram sabendo que foi somente um homem que causou tamanha destruição.

Diante dessas ações, as pessoas começaram a se perguntar de onde vinha a força

93 daquele. Para se chegar à resposta, esses inimigos contaram com um ponto fraco

de Sansão: ele não resistia às mulheres. Nesse cenário surge uma mulher “vestida

de púrpura e com andar de rainha”, Dalila. Ele se apaixonou por ela e passou a fazer

tudo o que ela pedia. Por duas vezes Dalila enganou Sansão, mas, como se

estivesse com os olhos fechados, ele não conseguia perceber. Ela queria saber,

instigada pelos inimigos de Sansão, de onde vinha a tremenda força que ele

possuía. Num jogo de sedução, o personagem bíblico revelou o seu segredo: a força

estava no cabelo. Dalila o fez adormecer e mandou que raspassem os cabelos

longos de Sansão, de modo que ele perdeu sua grande qualidade.

Com esse enredo bíblico, o argumento do pseudônimo se fortalece. Ao fazer

o cruzamento dessa história com a do Barba Azul de Perrault, nota-se que a figura

da mulher é responsável pela derrota desses personagens. O que seria de Barba

Azul sem as suas estratégias, sem a atmosfera tenebrosa contida na sua horrenda

barba? A atribuição ao pêlo dessas figuras caracteriza o traço de masculinidade,

pois com o cabelo foi-se a força e “com a barba, a truculência.”

Posto assim, a referência a essas histórias corrobora o discurso do

pseudônimo, apresentando, humoristicamente, a informação de que o bilhete da

oitava mulher provocou uma espécie de desarranjo no trabalho do cronista, no que

diz respeito ao seu ar convencido e caráter frívolo. Dessa forma, o pseudônimo de

Carlos Drummond de Andrade compõe a tríade de “personagens derrotados por

mulheres”. O que seria do Barba Azul sem a imodéstia?

Outro ponto que merece destaque na citação acima é a maneira como o

pseudônimo atualiza a fragilidade da tríade. Barba Azul, contextualmente, encontra a

causa, o objeto que justifica a derrota dos seus colegas: “A gilette acabou com a

nossa prosápia . Graças à americanização do mundo, uma mulher hoje pode acabar

com sete homens,”(ANDRADE, 1987, p. 208, grifo nosso). Reafirmando

ironicamente o seu perfil machista, ele adverte que isso “não convenha devido à

carestia.” Após tecer toda essa argumentação à sua leitora, figura que

metaforicamente condensa as personagens Dalila e a oitava mulher de Barba Azul,

o cronista retoma seu traço zombeteiro, finalizando da seguinte forma: “E até

amanhã, se você quiser.”

Com essa narrativa, uma das últimas assinadas sob tal pseudônimo na

coluna do Minas Gerais, muitos fios permitiram revisitar a textualidade literária de

Carlos Drummond de Andrade , sobretudo no que diz respeito à nítida recriação de

94 um personagem com perfil muito bem delineado. Dessa forma, é possível afirmar

que a atuação desse personagem no espaço do jornal, nos meses junho e julho de

1931, foi uma atitude planejada por parte do diretor da cena, o escritor Carlos

Drummond de Andrade.

A leitura das crônicas assinadas por Barba Azul revela traços distintos em

relação aos textos que receberam a assinatura de Antônio Crispim. Além de

narrativas mais curtas, como já mencionado, Barba Azul encontra-se mais próximo

do leitor e "desse contato” com seu público, desponta um sujeito mais ousado em

suas críticas à modernidade. Sua postura diante da escrita demonstra o perfil de

alguém mais sarcástico, performático na relação, sobretudo, com as mulheres.

Acredito que essas características singulares atribuídas ao pseudônimo se devem à

apropriação de elementos explorados do conto homônimo de Charles Perrault. Daí,

então, a imagem de um perfil mais elaborado. Acredito que essas características

singulares atribuídas ao pseudônimo se devem à apropriação de elementos

explorados do conto homônimo de Charles Perrault, porém resultando na imagem

de um perfil mais elaborado.

95 5 CONCLUSÃO

Nas análises empreendidas pela pesquisa, procurou-se investigar as

configurações da moderna cidade de Belo Horizonte - planejada como tal em fins do

século XIX - nas narrativas do livro Crônicas 1930 - 1934, de Carlos Drummond de

Andrade. Como visto, o trabalho contemplou as crônicas publicadas nos anos de

1930 e 1931, com exceção de “Os que partem”, texto de 1932. Embora o título do

livro indique um período de quatro anos, as narrativas dos anos iniciais

compreendem a maior parte do corpus.

O conceito de espaço relacional, proposto pelo geógrafo Milton Santos

(1997), que se amplia com a postura de Doreen Massey (2008) no tratamento do

tema, foi de grande importância para o entendimento das relações engendradas na

esfera urbana. Através dessa abordagem, foi possível vislumbrar os muitos

caminhos que constituem o fenômeno urbano e compreender o traço da

multiplicidade, comumente associado às configurações da cidade.

Se por um lado, a contribuição conceitual desses geógrafos ampliou a visão

do espaço da/na cidade, por outro, as pesquisas de Walter Benjamin (1989)

lançaram uma luz sobre as reflexões tecidas neste trabalho sobre a cidade moderna.

Ao eleger Paris como sede da modernidade, a partir da análise da obra de Charles

Baudelaire, os estudos do teórico permitiram um melhor entendimento das

transformações ocorridas em outras cidades que a tiveram como modelo, tais como

Rio de Janeiro e a própria Belo Horizonte.

Nesse sentido, foi prudente recorrer a dois conceitos/tipos estudados pelo

filósofo alemão, o do flâneur e o do cronista, concebendo-os como operadores de

leitura de algumas crônicas de Carlos Drummond de Andrade. E com base nas

características dessas figuras, em constante movimento, adotou-se a expressão

cronista-flâneur, aproximação que permitiu melhor analisar o trânsito dos sujeitos

narrativos.

O estudo da cidade no cenário da modernidade possibilitou a construção da

equação cidade/modernidade/jornal/crônica. Viu-se que esses elementos estiveram

intimamente relacionados, podendo ser lidos como produtos da modernidade.

Observou-se, no entanto, que, mais que produtos, eles revelam o processo desse

momento com suas contradições.

96

Os acontecimentos e as impressões acerca do cotidiano da capital mineira

eram partilhados com o leitor das crônicas de Carlos Drummond de Andrade,

publicadas no jornal Minas Gerais, importante órgão do estado de que o autor era

redator na época. Assim, mover um dos elementos da equação, no caso, as

crônicas, significou lidar com avanços, transformações e conflitos gerados pela

modernidade.

Importa salientar, sobretudo, que a literatura configura-se como uma ponte, e,

no caso específico desta pesquisa, uma ponte que permitiu nos transportar para o

cotidiano da cidade de setenta e oito anos atrás. Entretanto, na impossibilidade de

ler o todo de uma esfera urbana, recorreu-se ao emprego da palavra percurso ,

ancorando-se nas ideias de Certeau (1999) ao pontuar que esse imprime movimento

ao mapa, recriando-o.

Ademais, a pesquisa confirmou ser a literatura também uma espécie de

percurso pelo rico cenário da cidade. Foi no trabalho com a linguagem, na lapidação

das palavras, no jogo de ironia, na sutileza das críticas que a cidade da década de

30 pode ser lida nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade, reforçando a ideia

da literatura como palco que encena o modo como determinado contexto,

determinada realidade são percebidos.

Assim, a crônica se mostrou como o elemento mais relevante da equação

proposta pela pesquisa, consolidando-se como percurso; espaço que acolheu as

representações que Carlos Drummond de Andrade fez da cidade moderna. Na

construção das crônicas, foi a própria construção da cidade, com seus paradoxos e

ambiguidades, que se ergueu aos olhos do leitor. Ao retratar o cotidiano da cidade

nos anos de 1930, percebeu-se a profusão de vozes ouvidas nas crônicas,

mostrando os diferentes olhares que constituíam a própria cidade como sinônimo de

multiplicidade; como mistura de histórias várias. (MASSEY, 2008).

É interessante ressaltar que para o estudo dos pseudônimos, a abordagem de

Michel Foucault (1992) sobre a figura do autor foi de grande importância para que se

percebesse a forma como Carlos Drummond de Andrade, ao assinar em suas

crônicas Barba Azul e Antônio Crispim, exerceu a função-autor. Na esteira desses

pseudônimos, constatou-se que ao longo de sua carreira jornalístico-literária, o

poeta recorreu a esse procedimento em diversos momentos, confirmando aí a sua

“variedade de eus” a legitimar o traço polifônico que caracteriza a cidade como um

feixe de histórias.

97

Ao fazer dialogar o texto “Bom viver”, assinado por Antônio Crispim, com o

romance A Capital, de Avelino Fóscolo, constatou-se o forte traço de provincianismo

que perpassou a história da capital mineira. Escrita vinte e sete anos depois da

publicação do romance, a crônica ampliou as lacunas apontadas por Fóscolo na

construção da cidade moderna. No lugar dos sonhos de uma capital feérica, a

escuridão e o atraso peculiares das cidades interioranas do Estado. Na ausência de

atrativos culturais que pudessem mudar a rotina do espaço, genuinamente moderno,

o que se leu foi a sensação de um tédio que marcou definitivamente a história da

cidade. O delírio da inauguração da capital, delineado no romance de Fóscolo,

desemboca num cenário carente, pacato e mórbido na cidade-texto de Antônio

Crispim, mostrando que a vida da capital mineira muito se aproximava das antigas

províncias, embora fosse um espaço urbano e, por excelência, moderno. A partir

dessa abordagem de gêneros da literatura da cidade, percebeu-se o traço das

contradições recorrentes da modernidade.

Nas discussões em torno do par provincianismo/cosmopolitismo, notou-se

que as crônicas de Antônio Crispim criticavam não só esse par, mas também as

políticas públicas, as posturas municipais e, mais fortemente ainda, a própria

modernidade atropelando tudo e todos em nome do novo, do progresso. Tudo isso

deixou entrever, em seus textos, o sentimento de angústia, desencanto e melancolia

frente às rápidas mudanças.

Já em relação às crônicas assinadas pelo pseudônimo Barba Azul, tem-se

que as mesmas deixaram transparecer um sentimento mais favorável a tais

mudanças, como se essas fossem realmente imprescindíveis para consagrar a

cidade como modelo de modernidade. Assim, parece que o enunciador, ao encetar

duras críticas ao provincianismo da capital mineira, mostrou-se a favor do desapego

à tradição e da consequente aceitação das transformações inauguradas pela

modernidade. Tais posturas evidenciam o paradoxo do homem moderno, ou do

próprio escritor, exposto, então, nos dois personagens.

É interessante observar, ainda, que nas crônicas assinadas por Barba Azul, a

ironia parece ultrapassar os limites da capital mineira, podendo ser estendida à

cidade do Rio de Janeiro, que foi a primeira a ser ajustada aos padrões da

modernidade. É o que se constatou na leitura da crônica “Golfinho e outros

substantivos” ao apontar a inadequação da moda nas respectivas estações do ano.

Mais ainda, destaque-se o olhar crítico e sutil lançado à noite belo-horizontina em

98 “Luzes da cidade”. As luzes, símbolo da modernidade, ironicamente, iluminaram a

ausência de atração cultural na capital mineira.

Nas narrativas “Kodack”, “Avenida ao sol” e “Amigos do verde”, assinadas por

Antônio Crispim, imprime-se o perfil de um cronista também crítico, porém nostálgico

e até mesmo melancólico, característica peculiar na trajetória do autor. O traço

afetivo permeia-se ao histórico, delineando trajetos do que hoje se chama

geopoética.

A forma como Carlos Drummond de Andrade explorou o espaço do jornal

aproxima os dois pseudônimos - guardadas, é claro, as peculiaridades de cada um -

na medida em que eles transportavam para o jornal as imagens colhidas no espaço

da cidade. Isso demonstra o grande conhecimento que Carlos Drummond de

Andrade tinha do formato do jornal na condição de redator-chefe, aliado ao inegável

caráter arguto do escritor e poeta que, ao transformar as imagens da cidade em

palavras, as dispunha de tal modo que parecia saber bem os efeitos que cada texto,

alinhado à respectiva coluna, iria produzir no leitor.

Embora esse traço esteja bem marcado no texto “Os que partem”, de Antonio

Crispim, é nas narrativas de Barba Azul que ele se consolida e se confirma,

sobretudo na adoção do personagem homônimo de Perrault e no pacto que ele

procurou firmar com os leitores do periódico em seu texto de estréia, “Programa”.

Como visto, já nessa crônica de abertura, o autor tentou estreitar a relação com o

seu público leitor, marcadamente feminino. Nessa interlocução, delineia-se, de forma

mais nítida, o perfil desse pseudônimo que levava para seus textos o que observava

da cidade. Atento aos avanços dos meios de comunicação pode-se dizer que o

poeta, sob o pseudônimo Barba Azul, configurou-se como uma espécie de

apresentador de rádio, porém valendo-se do jornal da Belo Horizonte dos anos 30.

Pode-se dizer que a imagem que se construiu desses pseudônimos está

diretamente relacionada à questão da textualidade, magistralmente explorada por

Carlos Drummond de Andrade, sobretudo na feitura do texto. O modo como ele

organizou as crônicas, de forma a alcançar um objetivo junto a seu leitor,

demonstrou as condições de produção das mesmas, principalmente no que se

refere ao trânsito dos sujeitos narrativos, à intencionalidade ao abordar os assuntos

que estavam na ordem dia, à imagem mental que tinha de seus leitores, ao diálogo

travado com outros textos em um arguto exercício de intertextualidade. Escritas

assim, as crônicas representaram muito mais do que simples informações impressas

99 no Minas Gerais sobre o cotidiano da capital mineira.

Diante de todas as estratégias textuais adotadas por Carlos Drummond de

Andrade e das configurações que fez da jovem cidade, a crônica pode ser vista,

pois, como um espelho da equação cidade/modernidade/jornal, já que as

contradições contidas no interior do próprio gênero em estudo retratam, por

conseguinte, as contradições da cidade no impasse do par

cosmopolitismo/provincianismo.

Os textos deixaram transparecer o projeto que tentou erguer uma nova

história da cidade nos moldes da ordem e do progresso, o que implicaria, por

consequência, o apagamento de muitas histórias. Entretanto, num movimento

inverso ao da construção da nova capital, as crônicas fizeram ressurgir histórias que

se queriam apagadas, mostrando que a cidade era muito mais do que pensavam

seus idealizadores. Ela aparece, então, como uma mistura não linear, como lugar de

convívio de diferentes pensamentos, posturas, classes e opiniões; como espaço por

excelência de encontros e desencontros; espaço múltiplo e, por isso mesmo,

complexo, não cabendo nos limites de réguas ou pranchetas.

Para o entendimento dessa imagem da cidade, a relação com o cronista de

Benjamin foi de grande importância à pesquisa, uma vez que Carlos Drummond de

Andrade rompeu com a linearidade da história tradicional e seu conceito totalizante

e uno de progresso. A História da cidade, na concepção dos pseudônimos

drummondianos, permitiu entrever outras versões da vida idealizada no espírito da

modernidade ao mostrar o avesso do cotidiano na capital mineira, reafirmando a

ideia de que o cenário urbano é composto de “histórias” outras.

É assim, pois, que Carlos Drummond de Andrade retratou um momento

particularmente rico da história cultural de Belo Horizonte e de sua gente, como

consta no prefácio da obra Crônicas 1930-1934. Mais do que um retrato do cotidiano

da cidade de Belo Horizonte, as crônicas se configuram como um registro do

percurso daquele que nasceu em Itabira, morou em Belo Horizonte e veio a falecer

na capital carioca, a qual tanto citava como exemplo de modernidade. Isso evidencia

o paradoxo que tomou conta do escritor que nasceu e viveu sob o signo da

modernidade. Paradoxo esse que não se resolve, como se pode ler em poemas que

Carlos Drummond de Andrade escreve mais tarde sobre a capital mineira, a exemplo

de “Triste horizonte” - década de 70 - em que, ao olhar para a cidade já totalmente

mudada, já tornada uma moderna metrópole, o poeta busca na memória as imagens

100 da Belo Horizonte dos anos 30, tão criticada como cidade provinciana.

Inspirada nos vários percursos empreendidos pelo jovem escritor, a pesquisa

encerra seu também percurso pelas narrativas do livro Crônicas 1930-1934,

reconhecendo, no entanto, que vários outros ainda podem ser realizados pela

“cidade que ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”.

101

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