A cidade como tabuleiro - Dissertação

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL PUCRS FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL FAMECOS PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO PPGCOM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: PRÁTICAS E CULTURAS DA COMUNICAÇÃO LINHA DE PESQUISA: PRÁTICAS CULTURAIS NAS MÍDIAS, COMPORTAMENTOS E IMAGINÁRIOS DA SOCIEDADE DA COMUNICAÇÃO BRENO MACIEL SOUZA REIS A CIDADE COMO TABULEIRO: UM ESTUDO DAS DINÂMICAS DE JOGO NA REDE SOCIAL MÓVEL FOURSQUARE Porto Alegre 2013

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Game Studies, Jogos Digitais, Dinâmicas de Jogo

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL PUCRS FACULDADE DE COMUNICAO SOCIAL FAMECOS

    PS-GRADUAO EM COMUNICAO PPGCOM REA DE CONCENTRAO: PRTICAS E CULTURAS DA COMUNICAO

    LINHA DE PESQUISA: PRTICAS CULTURAIS NAS MDIAS, COMPORTAMENTOS E IMAGINRIOS DA SOCIEDADE DA COMUNICAO

    BRENO MACIEL SOUZA REIS

    A CIDADE COMO TABULEIRO: UM ESTUDO DAS DINMICAS DE JOGO NA

    REDE SOCIAL MVEL FOURSQUARE

    Porto Alegre

    2013

  • BRENO MACIEL SOUZA REIS

    A CIDADE COMO TABULEIRO: UM ESTUDO DAS DINMICAS DE JOGO NA

    REDE SOCIAL MVEL FOURSQUARE

    Porto Alegre

    2013

    Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de mestre pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. rea de concentrao: Prticas e Culturas da Comunicao. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda

  • BRENO MACIEL SOUZA REIS

    A CIDADE COMO TABULEIRO: UM ESTUDO DAS DINMICAS DE JOGO NA

    REDE SOCIAL MVEL FOURSQUARE

    Aprovada em: ____de____________________de_______.

    BANCA EXAMINADORA:

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Cristiano Max Pereira Pinheiro - FEEVALE

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Roberto Tietzmann - PUCRS

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda (orientador) - PUCRS

    Porto Alegre

    2013

    Dissertao apresentada como requisito para a obteno do grau de mestre pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. rea de concentrao: Prticas e Culturas da Comunicao. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda

  • minha me, Marlia de Souza Reis,

    por seu amor e incentivo infinitos.

  • AGRADECIMENTOS

    CAPES, pela bolsa de estudos, sem a qual seria impossvel a realizao dessa

    pesquisa.

    Obrigado Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul e Faculdade dos

    Meios de Comunicao Social (FAMECOS) por proporcionar um ambiente de

    estudos de excelncia e corpo docente inspirador.

    Ao orientador desse trabalho, Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda, por acreditar na

    minha capacidade e pela parceria no caminho.

    Obrigado UBITEC, que, alm de me proporcionar valiosas trocas de conhecimento,

    me acolheu e deu tambm amigos e colegas brilhantes que certamente contribuiro

    muito para o crescimento cientfico no pas.

    Ao UbiLab, pelo aprendizado e crescimento nicos. Grande time!

    A toda minha famlia, principalmente minha me, Marlia de Souza Reis, e minha av

    Teresinha de Assis Souza, por serem os melhores exemplos de vida que algum

    pode ter.

    Muito obrigado a todos os meus amigos (os de longa data e recentes) que me

    acompanharam nesse caminho, especialmente aqueles que partilharam os cafs, as

    risadas, os choros e as inmeras dvidas: Luciele Copetti, Sandra Henriques,

    Cnthia Barbosa, Poliane Espndola, Pedro Reis, Robson Macedo, Priscilla

    Guimares Oliveira e Aline Bianchini. Vocs so incrveis.

  • No habitamos porque construmos. Ao contrrio. Construmos

    e chegamos a construir medida que habitamos, ou seja,

    medida que somos como aqueles que habitam

    M. Heidegger

  • RESUMO

    Este trabalho se insere nos estudos do fenmeno do jogo e sua ocorrncia como

    elemento mediador essencial formao e compartilhamento de formas simblicas

    a partir da comunicao humana, e, por consequncia, da prpria sociedade. A

    partir da constatao da presena macia de aparatos tecnolgicos no cotidiano e

    da imbricao existente entre estes, as redes informacionais e o prprio espao

    pblico das cidades, a qual agora passa a ser entendida como cibercidades

    (LEMOS, 2004), estudamos os elementos de gameplay presentes na rede social

    mvel Foursquare como uma das apropriaes possveis da mesma pelos seus

    usurios a partir da sua transformao em um jogo mvel locativo. De tal maneira,

    utilizamos como vis metodolgico a netnografia, primordialmente a partir de Hine

    (2000) e Kozinetz (2010) para insero no objeto; e o conceito de ludema proposto

    por Pinheiro e Branco (2011; 2012) para anlise das mecnicas de jogo presentes

    na rede sob a perspectiva dos game studies, e a identificao dos mesmos no

    Foursquare - alm de ter sido possvel o seu entendimento enquanto sistema ldico

    regido por regras especficas e com base na competio entre os participantes como

    fora-motriz dos elementos presentes. Apresenta ainda, como anlise

    complementar, a observao de perfis de 10 usurios da rede social em questo,

    buscando indcios que pudessem confirmar o uso da mesma como jogo, como

    acmulo de bens simblicos especficos ao sistema, entendidos como

    achievements, e tambm relaes de conflito e competio, entendendo-as

    essencialmente como processos de interao permitidos pela rede.

    Palavras-chave: cibercultura; comunicao; redes digitais mveis; jogos mveis

    locativos; Foursquare.

  • ABSTRACT

    This work fits in studies of the phenomenon of play and its occurrence as an

    essential mediator of formation and sharing of symbolic forms from human

    communication, and therefore, the society itself. From the understanding of massive

    technological devices in everyday life and the overlapping between these ones, the

    information networks and public space of cities itselves, which now can be

    understood as cybercities (Lemos, 2004), we studied the elements of gameplay

    present in the mobile social network Foursquare, as a possible appropriation by its

    users and its transformation into a locative mobile game. The netnography was used

    as the methodological bias, mostly from Hine (2000) and Kozinetz (2010), to

    approach the object; and the concept of ludema, proposed by Pinheiro and Branco

    (2011, 2012) to the analysis of game mechanics in this social network from the

    perspective of game studies, and the identification of those at Foursquare - besides

    being possible to be understood as a playful system governed by specific rules and

    based on competition among the participants as the driving force of those elements.

    It also presents, as a complement, the observation of 10 users profiles of the social

    network, searching for clues that might confirm the use of it as a game, as the

    accumulation of symbolic goods specific to the system, understood as achievements,

    and also relations of conflict and competition, understanding the interaction

    processes essentially as admitted by the mobile network.

    Keywords: cyberculture; communication; mobile digital networks locative mobile

    game; Foursquare.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1: classificao dos jogos proposta por Caillois ............................................ 42

    Figura 2: Pong, jogo surgido nos anos 60. ................................................................ 44

    Figura 3: primeiro console de videogame comercial, Magnavox Odyssey (1972) ..... 45

    Figura 4: console domstico Pong (1975), lanado pela Atari. ................................. 46

    Figura 5: Auto Race, primeiro console porttil (1976). .............................................. 47

    Figura 6: Microvision (1979). ..................................................................................... 47

    Figura 7: joystick lanado pela Atari com o VCS (1977). .......................................... 49

    Figura 8: Pac-Man (1980) ......................................................................................... 50

    Figura 9: handheld Game & Watch (1980) ................................................................ 51

    Figura 10: LCD Solar Power (1982) .......................................................................... 51

    Figura 11: Nintendo Enterteinment System (1985) ................................................... 53

    Figura 12: Game Boy (1989) ..................................................................................... 54

    Figura 13: Playstation (1995) .................................................................................... 55

    Figura 14: DynaTAC 8000X (1984). .......................................................................... 57

    Figura 15: Game Boy Color (1998). .......................................................................... 58

    Figura 16: N-Gage (2003). ........................................................................................ 59

    Figura 17: iPhone (2007). .......................................................................................... 61

    Figura 18: Snake, jogo padro presente em telefones mveis Nokia. ...................... 62

    Figura 19: Nintendo DS (2004). ................................................................................. 63

    Figura 20: Playstation Portable (2004). ..................................................................... 63

    Figura 21: Hbrido de telefone celular e handheld Xperia Play (2011). ..................... 65

    Figura 22: Um dos pees da experincia Big Urban Game. ..................................... 73

    Figura 23: pgina do jogo Ingress. ............................................................................ 99

    Figura 24: interface inicial do aplicativo Ingress ...................................................... 100

    Figura 25: exibio do estado de cada faco no Ingress. ..................................... 101

    Figura 26: pgina Ingress Intel Map, exibindo a cidade de Porto Alegre ................ 102

    Figura 27: rede social mvel Dodgeball .................................................................. 104

    Figura 28: rede social mvel Where ........................................................................ 105

    Figura 29: rede social mvel Here ........................................................................... 105

    Figura 30: rede social mvel Gowalla ..................................................................... 106

    Figura 31: interface mvel do Google Latitude ........................................................ 107

  • Figura 32: sistema de ofertas disponveis para ativao por estabelecimentos

    comerciais no Foursquare ....................................................................................... 146

    Figura 33: aplicativo Foursquare for Business. ....................................................... 147

    Figura 34: medalha Sem Fronteiras, vinculada TIM Brasil . ................................. 148

    Figura 35: aplicativo do Foursquare exibindo locais durante check-in .................... 151

    Figura 36: venue da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. ......... 152

    Figura 37: campo shout na interface de check-in do aplicativo Foursquare ............ 153

    Figura 38: pgina do Foursquare explicativa sobre as badges ............................... 155

    Figura 39: algumas badges disponveis para ativao no Foursquare ................... 156

    Figura 40: medalha Its a Boy!. ............................................................................. 157

    Figura 41: medalha Bento. .................................................................................... 157

    Figura 42: medalha Century Club ......................................................................... 157

    Figura 43: bagdes especiais do festival SXSW de 2011 ......................................... 158

    Figura 44: Diferenas de formato entre medalhas. ................................................. 159

    Figura 45: Badges de expertise Pizzaiolo, Hot Temale e Herbivore ....................... 160

    Figura 46: Badges de expertise Great Outdoors, Jetsetter e Traisnpotter .............. 161

    Figura 47: Badges de expertise Blue Note, Warhol e Bookworm ............................ 161

    Figura 48: Badge Zootrope, especializada para frequentadores de cinemas ......... 161

    Figura 49: Algumas badges de cidades dos Estados Unidos da Amrica. ............. 162

    Figura 50: Badges Carioca e Sampa ...................................................................... 162

    Figura 51: complemento My4SquareAlibi em pgina do Foursquare. ..................... 166

    Figura 52: pgina Foursquareaddict, com atalhos para a obteno de badges ...... 167

    Figura 53: placar semanal do Foursquare com os pontos atribudos de acordo com a

    utilizao frequente do servio. ............................................................................... 168

    Figura 54: conquista de ttulo de Mayor, ou Prefeito. .............................................. 169

    Figura 55: interface inicial do Foursquare para smartphones ................................. 170

    Figura 56: seo explorar do aplicativo Foursquare para smartphones .................. 172

    Figura 58: mapa explorar do aplicativo Foursquare ................................................ 173

    Figura 59: seo Eu do aplicativo Foursquare para dispositivos mveis ................ 174

    Figura 60: subseo Amigos do aplicativo Foursquare para dispositivos mveis ... 175

    Figura 61: subseo Estatsticas para dispositivos mveis ..................................... 176

    Figura 62: subseo Badges do aplicativo Foursquare ........................................... 177

    Figura 63: subseo Listas do aplicativo Foursquare para dispositivos mveis ..... 177

    Figura 64: interface inicial da verso web do Foursquare ....................................... 178

  • Figura 65: seo explorar da verso web do Foursquare ....................................... 179

    Figura 66: pgina de estatstica de uso do Foursquare .......................................... 181

    Figura 67: esquema bsico de um campo de queimada, ou dodgeball .................. 183

    Figura 68: esquema bsico de um campo de foursquare ....................................... 184

    Figura 69: badges de expertise com a visualizao do nvel de experincia ......... 188

    Figura 70: Badge de expertise Wino. ...................................................................... 196

    Figura 71: Badges concedidas a SuperUsurios .................................................... 200

    Figura 72: Badge Player Please .............................................................................. 201

    Figura 73: Badges desbloqueadas a partir de check-ins em massa ....................... 201

    Figura 74: mensagens em check-in com amigos. ................................................... 203

    Figura 75: mensagem com atribuio de pontos por check-in realizado ................. 203

    Figura 76: site do projeto World of Fourcraft ........................................................... 205

    Figura 77: pgina do jogo Metropoli ........................................................................ 207

    Figura 78: aplicativo do jogo Banco Imobilirio Geolocalizado................................ 208

    Figura 79: conta bancria do jogo Banco Imobilirio Geolocalizado ....................... 209

    Figura 80: mensagem deixada na pgina de uma venue do TecnoPUC ................ 219

    Figura 81: pgina do usurio 2 no Foursquare........................................................ 220

    Figura 82: pgina do usurio 3 no Foursquare........................................................ 222

    Figura 83: local repetidos na lista de prefeituras do usurio 3. ............................... 222

    Figura 84: pgina da venue corresponde cidade de Porto Alegre. ....................... 224

    Figura 85: pgina do usurio 9 no Foursquare........................................................ 225

    Figura 86: pgina do usurio 10 no Foursquare...................................................... 226

    Figura 87: pgina de venue da qual o usurio 10 possui o ttulo de prefeito .......... 226

    Figura 88: Badges padro e de cidades desbloqueadas pelo usurio 2 ................. 230

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: dados coletados a partir de perfis de usurios do Foursquare .............. 217

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ....................................................................................................... 16

    2 SENTIDO DO JOGO HUMANO E SUA FUNO NA CULTURA ........................ 23

    2.1. O conceito de jogo como fenmeno cultural ...................................................... 24

    2.2 Uma breve arqueologia dos jogos eletrnicos e digitais ..................................... 42

    2.3 Os game studies e abordagens contemporneas ............................................... 66

    2.4 O carter pervasivo do jogo mvel locativo ......................................................... 69

    2.5 A questo da virtualidade do jogo em Huizinga e Lvy ....................................... 76

    3 MOBILIDADE, REDES SOCIAIS E MDIAS LOCATIVAS .................................... 81

    3.1 A emergncia do ciberespao ............................................................................. 82

    3.2 As cibercidades e mdias locativas como prtica comunicacional ....................... 92

    3.3 Redes sociais mveis: histrico e cenrio atual ................................................ 103

    4 SOCIALIDADE, INTERAO E COMPETIO ................................................. 111

    4.1 A competio e o conflito como formas sociais e a interao em simmel ......... 111

    4.2 Interacionismo simblico e a Escola de Chicago .............................................. 117

    4.3 Novos nomadismos e prticas de espao a partir de redes sociais mveis. ..... 122

    5 METODOLOGIA .................................................................................................. 133

    5.1 Estratgias metodolgicas para investigao em cibermeios e game studies .. 133

    5.2. A ida a campo e o mapeamento do sistema Foursquare ................................. 138

    5.3 Da escolha dos perfis de usurios para anlise ................................................ 141

    6 O FOURSQUARE ................................................................................................ 143

    6.1 Definindo o objeto: observaes sobre a rede social mvel foursquare ........... 143

    6.2 O negcio foursquare e a sua utilizao por empresas e marcas ..................... 145

    6.3.1 Compartilhamento em outras redes ............................................................... 150

    6.4 O check-in ......................................................................................................... 151

    6.4.1 O check-in falso .............................................................................................. 153

  • 6.5 As bagdes ou medalhas .................................................................................... 155

    6.5.1 Badges do sistema foursquare ....................................................................... 159

    6.5.2 Badges de expertise ....................................................................................... 160

    6.5.3 Badges de cidades ......................................................................................... 162

    6.5.4 Badges de parceiros....................................................................................... 163

    6.5.5 Burlando o sistema: sites dedicados a facilitar a obteno de medalhas ....... 164

    6.6 Pontos e prefeituras, ou mayorships ................................................................. 167

    6.7 O aplicativo para dispositivos mveis e a verso web. ..................................... 170

    7 A FACE LDICA DO FOURSQUARE: DESVENDANDO AS DINMICAS DE

    JOGO NA REDE ..................................................................................................... 182

    7.1 Mecnicas de jogo no Foursquare .................................................................... 185

    7.1.1 Sistema de regras e competio como foras-motrizes. ................................ 186

    7.1.2 O conceito de ludema e sua aplicao nas dinmicas de jogo do Foursquare

    ................................................................................................................................ 191

    7.2 Outros jogos para dispositivos mveis que se utilizam da base de dados do

    Foursquare e o uso de APIs. ................................................................................... 204

    7.2.1 - O World of Fourcraft (WoF) .......................................................................... 204

    7.2.2 - O caso do Metropoli ..................................................................................... 206

    7.2.3 - O Banco Imobilirio Geolocalizado .............................................................. 208

    8 OBSERVAES COMPLEMENTARES DE PERFIS E ANLISE DOS DADOS

    OBTIDOS ................................................................................................................ 211

    8.1 Dados quantitativos dos perfis analisados ........................................................ 213

    8.2 Anlise qualitativa dos dados obtidos ............................................................... 217

    8.2.1 Das prefeituras ............................................................................................... 218

    8.2.2 Das badges .................................................................................................... 226

    9 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 235

    10 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................. 241

  • 16

    1. INTRODUO

    O jogo sempre representou um papel fundamental na histria humana, desde

    os primrdios de nossa espcie, para a prpria socializao entre os sujeitos e a

    formao de sociedades, das mais primitivas, como as tribais, at as mais

    complexas, como a contempornea. Tal influncia direta que o ldico exerce sobre

    ns e a sua funo na cultura j foram amplamente estudados, e sua presena

    reconhecida em todos os campos da experincia humana no mundo: nas artes, na

    poltica e nas leis que regem e fundamentam a sociedade, em modalidades

    esportivas, nos encontros amorosos e at mesmo nos rituais sagrados e religiosos.

    Como afirma Teixeira (2005, p. 467), a categoria do jogo constitutiva da pura

    realizao da vida e da cultura [...]. Reside a, portanto, sua importncia como um

    elemento mediador simblico primordial entre os homens e o mundo.

    O desenvolvimento da eletrnica e da ciberntica, principalmente na segunda

    metade do ltimo sculo, propiciaram o surgimento de jogos que, em princpio, eram

    simples, com pouca definio grfica, mas que, com o aperfeioamento das

    capacidades de processamento de dados dos computadores e dos consoles, foram

    tambm se tornando cada vez mais sofisticados e complexos. Hoje, vemos novas

    modalidades de jogo, nas quais as barreiras entre o jogo e o no jogo se tornam

    cada vez mais indistinguveis, a partir da apropriao de redes informacionais

    globais e o carter social que lhes intrnseco, bem como das tecnologias de

    comunicao mveis. Ou seja, enquanto em outros perodos histricos, sua

    ocorrncia podia ser claramente abalizada de outras atividades embora, caiba

    lembrar que, no raro, ele acabava ultrapassando tais limites, dado o seu papel na

    construo e compartilhamento de formas simblicas que permanecem mesmo

    quando o jogo acaba; na contemporaneidade percebemos tais imbricaes,

    residentes no seio da prpria complexidade que lhe caracterstica, a partir de

    camadas ldicas, sociais, informacionais e fsicas que se amalgamam e trazem

    baila a necessidade de estudos primordialmente interessados nesses fenmenos.

    As tecnologias de comunicao e as possibilidades de interao em rede,

    tanto entre usurios, quanto entre estes e informaes as mais variadas, abarcam

  • 17

    um espectro difuso e complexo de alteraes na vida humana, e, por consequncia,

    na sociedade, a qual passa a se relacionar com o mundo, nesse contexto,

    eletronicamente mediada por mltiplas possibilidades de contato com a realidade.

    Especialmente, no caso deste trabalho, observamos a ubiquidade de tecnologias

    mveis constantemente conectadas, assumindo tambm formas ldicas e

    vinculadas ao espao fsico das cidades, parecendo alterar no somente as prticas

    individuais e coletivas ocorridas em relao s mesmas, mas tambm originando

    camadas informacionais a partir da caminhada dos sujeitos e da ressignificao

    desses mesmos espaos, ao permitir o compartilhamento em rede das experincias

    individuais neles vivenciadas.

    Na presente Dissertao, abordaremos a questo do jogo sob um vis que

    alcana o fenmeno do jogo como essencial e sine qua non nossa prpria

    constituio enquanto humanos; muito embora ele no seja uma exclusividade

    nossa. Como demonstraremos a seguir, claramente perceptvel a sua ocorrncia

    em outros seres, e nesse aspecto as opinies dos autores que aqui utilizamos

    parecem convergir em direo a essa assertiva (HUIZINGA, 2008; CAILLOIS, 1990;

    GADAMER, 1997; BUYTENDIJK, 1977). Entretanto, eles tambm parecem

    concordar que, embora no seja uma ocorrncia somente entre os homens, o jogo

    se diferencia entre ns pelo sentido que damos a ele, e pela sua capacidade de

    significao do mundo atravs do ldico. Longe de constituir uma atividade

    desprovida de seriedade, o jogo justamente se realiza quando se deixa acontecer

    fora de um contexto no qual se pode reconhecer claramente seus limites e sua

    influncia em ns.

    Isso posto, tal trabalho justifica-se por trazer a questo do jogo para o

    primeiro plano de tais processos contemporneos, entendendo que a sua ocorrncia

    hoje se caracteriza pela presena cada vez mais pervasiva e hbrida das dinmicas

    fundamentais sua existncia, ultrapassando assim o ambiente circunscrito do jogo,

    como sugere a abordagem tradicional. Cientes da prpria complexidade inerente

    questo e do carter interdisciplinar desta rea do conhecimento, acreditamos que

    se faz necessrio ampliar o espectro dos estudos e do debate acerca dessa

    temtica no pas ainda incipiente, como a pesquisa sobre o estado da arte para

    esse trabalho revelou. Ou seja,

  • 18

    Ao instalar-se como elemento fundamental da lgica de discurso contemporneo, tomando o ldico, no apenas como entretenimento e passatempo, mas como exerccio bem para alm da mera finalidade recreativa [...] obriga a que olhemos para ele como uma rea emergente das Cincias da Comunicao e da Cultura [...]. (TEIXEIRA, 2005, p. 468).

    Assim, constatado o papel cada vez maior que tais tecnologias e prticas

    sociais originadas a partir da sua apropriao pelos sujeitos representam na

    contemporaneidade, e sua transformao em mediadores fundamentais das

    relaes que estes estabelecem, julgamos necessrio estudar tal fenmeno,

    relacionando tanto as questes relativas aos prprios artefatos tcnicos e do espao

    fsico em sua materialidade, quanto quelas que emergem a partir do seu intrnseco

    carter medial, e que transformam a cidade em espao de fluxo comunicacional por

    meio da imbricao de redes simblicas e a materialidade do mundo. Ou seja,

    [...] necessrio repensar o significado atribudo s nossas relaes com o ambiente o habitar, em geral, a partir do conjunto de interaes tecnolgico-miditicas que foram instauradas gradativamente entre ns e o mundo, dirigindo-se, assim, a perspectivas obviamente no mais antropomrficas ou instrumentais, mas eco-miditicas (DI FELICE, 2009, p. 64-65).

    Isso posto, objetivamos nesse trabalho, atravs de uma anlise das

    dinmicas de jogo presentes na rede social geolocalizada Foursquare, situar o

    mesmo a partir da imbricao existente na sociedade contempornea de

    hiperconexo, tanto entre dispositivos quanto entre sujeitos e a prpria materialidade

    do espao fsico, e descrev-lo segundo a perspectiva fenomenolgica.

    Entretanto, antes do incio da exposio do referencial terico que norteia a

    construo desta, cremos que se faz necessrio pontuar que temos conscincia das

    aceleradas transformaes tecnosociais atravessadas pela sociedade

    contempornea, principalmente no tocante impermanncia de formas e fenmenos

    sociais, os quais parecem florescer incessantemente em seu seio, originando novas

    prticas, apropriaes e possibilidades de construo da realidade. Nesse sentido,

    entendemos esse trabalho como a busca pela captura, ainda que parcial, de um

    fragmento do modus vivendi contemporneo, o qual imprevisvel e essencialmente

    mutvel, e entendido, como defende Maffesoli (2001), como um devir.

  • 19

    Tendo isso em vista, no captulo 2 trataremos das diferentes abordagens em

    relao ao fenmeno do jogo, considerando-o como elemento essencialmente

    socializante e de formao cultural humana. Defenderemos que, como afirma

    McLuhan (2007), os modalidades de jogo exercem uma dupla funo na sociedade

    nas quais eles florescem: ao mesmo tempo em que permitem a prpria existncia

    das mesmas, tambm se apresentam como reflexos dos valores, hbitos e do modo

    como essa se organiza. Nesse sentido, faremos tambm uma breve incurso

    histrica sobre o desenvolvimento dos jogos eletrnicos e digitais, tanto domsticos,

    quanto mveis, traando um paralelo entre a popularizao dos mesmos e os

    desenvolvimentos da informtica e das redes de telefonia mveis. Finalizaremos o

    captulo expondo a formao do campo dos game studies, multidisciplinar e ainda

    recente em comparao outras reas do conhecimento humano, mas que, apesar

    disso, se mostra promissor queles que se dedicam ao seu estudo na

    contemporaneidade e diversidade de facetas que o fenmeno pode assumir.

    J no terceiro captulo, estudaremos a emergncia das redes mundiais de

    computadores conectados entre si, entendendo-as como originrias do que hoje

    conhecemos como a cibercultura ou seja, as relaes existentes entre a presena

    indissocivel de aparatos tecnolgicos na vida humana e a sua absoro e

    apropriao pela sociedade. Entendemos que, a partir disso, originam-se novas

    prticas, tanto individuais quando coletivas, e que alteram desde a forma como

    pensamos ns mesmos enquanto seres que agem conforme princpios vigentes em

    determinado momento histrico, at como interagimos com o outro e nos inserimos

    no mundo.

    Assim, traremos tona as consideraes de Lemos (2004) sobre as

    imbricaes existentes a partir da transformao da urbe contempornea em

    cibercidades; ou seja, territrios nos quais a materialidade que lhes caracterstica

    comporta tambm outras camadas de sentido, sobretudo informacionais e

    simblicas que, quando sobrepostas e concretizadas em dispositivos portteis,

    permitem a existncia das mdias locativas, e parecem promover alteraes na

    prpria experincia humana em relao s mesmas. Finalizaremos o captulo 3

    recuperando o conceito de redes sociais mveis enquanto produtos resultantes de

    interaes tecnomiditicas e sociais e que parecem, a partir de tais imbricaes,

  • 20

    cristalizar os registros cotidianos dos sujeitos inseridos nesse contexto com a criao

    dos georastros (OLIVEIRA, 2012) fragmentos fsicos e informacionais que

    transformam os deslocamentos espaciais em elementos hipermiditicos e escrituras

    mltiplas construdas coletivamente.

    J no captulo 4 recuperaremos a ideia da sociedade e da interao para

    Georg Simmel (1983) socilogo fenomenolgico, haja vista que consideramos o jogo

    como um instrumento essencialmente socializante e simblico mesmo quando

    desenvolvido de maneira aparentemente solitria. Levantaremos tambm, com base

    no autor, a noo do conflito e da competio como formas sociais, as quais

    encontram no jogo um catalisador para a sua existncia e validao enquanto

    prtica socialmente aceitvel. Entendendo o jogo de foras existente nas interaes

    entre os indivduos como intrnseco prpria sociabilidade, utilizaremos tambm

    como aporte terico as consideraes da escola Interacionista, principalmente a

    partir de Blumer (1980) e Littlejohn (1988), entendendo a comunicao como

    essencial e o cimento social, que permeia e d coeso aos processos dessa ordem.

    Ainda no captulo 4, mais uma vez nos voltamos s questes de mobilidade

    contemporneas, tanto informacionais quanto de sujeitos, entendendo tais

    fenmenos sob a perspectiva de Michel Maffesoli (2001) da produo de novos

    nomadismos a partir do ressurgimento contemporneo do pensamento arcaico

    nmade, enquanto aspecto fundador de sentido e de circulao de bens simblicos

    e de produo do que o autor entende de territrios flutuantes, ou seja, a prpria

    noo do mundo, dos sujeitos e do lugar das relaes sociais hoje como

    permanente devir, assumindo aspectos ldicos sobre os espaos a partir da

    apropriao dos mesmos pelos sujeitos, como tambm afirma Certeau (1998).

    Tendo os trs captulos de embasamento terico que fundamentam e

    confirmam o paradigma aqui exposto, procederemos no captulo 5 metodologia

    utilizada para a observao e construo terica em relao ao objeto a rede

    social mvel Foursquare e, especificamente, as mecnicas de gameplay presentes

    na mesma. Aqui sero especificados a deciso pelo vis fenomenolgico que norteia

    esse trabalho, bem como a escolha da netnografia, ou etnografia virtual, como a

    abordagem que nos pareceu mais adequada para a ida a campo e mapeamento do

  • 21

    objeto, diretamente relacionada aos objetivos que pretendemos alcanar. Alm

    disso, explicitaremos tambm nossos critrios em relao s apropriaes dos game

    studies e da identificao de aspectos caractersticos de mecnicas de jogo na rede

    Foursquare.

    J o captulo 6 dedicado a uma minuciosa descrio do sistema

    Foursquare, suas funes e dinmicas sociais, como as diferentes verses (web e

    mvel), as suas possibilidades de utilizao por empresas e anunciantes, atravs

    das plataformas de negcio. Em seguida, buscamos descrever o funcionamento da

    rede a partir da insero do usurio por meio do check-in a ao principal de

    participao na mesma e mecanismo de obteno de medalhas, pontos e

    prefeituras. Assim, tais processos so expostos, considerando, como defenderemos,

    que eles consistem na base dos aspectos de jogo que o Foursquare possui. O

    aspecto de sociabilidade permeia todas as consideraes, uma vez que, embora a

    rede possa ser utilizada de forma isolada, o enfoque que pretendemos nesse

    trabalho a apropriao do sistema pelos seus usurios e sua transformao em

    jogo, a partir do engajamento dos mesmos em processos de competio e acmulo

    dos bens simblicos, considerados aqui como achievements.

    De tal maneira, o captulo 7 consiste no estudo do jogo no Foursquare,

    partindo das noes sobre mecnicas caractersticas de gameplay para o estudo de

    sua face ldica. Primeiramente, buscamos identificar o sistema como um jogo

    estruturado segundo regras especficas, a partir do conceito de ludus e paidia

    proposto por Caillois (1990), bem como seu carter agonstico ou competitivo,

    utilizando mais uma vez a classificao dos tipos de jogos proposto pelo terico. Em

    seguida, introduzimos o conceito de ludema, proposto por Pinheiro e Branco (2011;

    2012), e apresentamos os tipos possveis de acordo com os autores para, aps,

    aplic-los ao Foursquare. Finalizamos o captulo apresentando exemplos de jogos

    que, utilizando a base de dados do sistema em relao ao espao urbano,

    confirmam a existncia do aspecto ldico na rede, ao radicalizar o conceito e propor

    a transformao das cidades em tabuleiros de jogo.

    A partir disso, buscamos, no captulo 8, identificar a sua apropriao pelos

    usurios, haja vista que o carter de jogo do objeto no constitui seu princpio

  • 22

    fundamental, mas sim, como uma possibilidade; a qual s se realiza a partir da

    iniciativa daqueles que passam a pratic-lo como tal, se engajando em processos de

    conflito e competio, os quais so caractersticos da interao humana, bem como,

    em particular, dos jogos. Para isso, foram selecionados 10 perfis de usurios

    assduos da rede conforme critrios expostos no captulo 5, os quais foram

    acompanhados por um perodo determinado, com o propsito de oferecer uma

    anlise complementar das mecnicas de jogo no Foursquare. Atravs da

    observao e da coleta final de dados quantitativos, a anlise qualitativa

    apresentada, focada nas observaes por ns realizadas e documentadas, sobre as

    movimentaes e possveis estratgias utilizadas pelos mesmos em processos de

    competio na obteno, acmulo e manuteno de bens simblicos prprios do

    sistema. Por fim, as consideraes finais sero apresentadas no captulo 9.

  • 23

    2. SENTIDO DO JOGO HUMANO E SUA FUNO NA CULTURA

    O fenmeno do jogo entre os homens sempre exerceu fascnio nas mais

    diversas culturas e pocas, sendo possvel reconhecer traos de sua existncia

    muito antes da nossa constituio e definio como humanos. Podendo tal evento

    ser percebido de variadas maneiras, desde instrumento de recreao e diverso, at

    fundamentando a existncia do sagrado, sua ocorrncia constitui, indiscutivelmente,

    um fenmeno intrnseco a ns e basal ao nosso desenvolvimento como espcie. Ele

    se faz presente desde a criao e utilizao da linguagem humana, como defende

    Wittgenstein (1989), e bem como nos mais variados mbitos da vida em sociedade:

    nos atos e rituais religiosos, no direito, na poltica, nas relaes interpessoais, em

    manifestaes esportivas, nas artes e espetculos, entre outros. Isso significa

    reconhecer a ubiquidade deste fenmeno, que alguns autores, inclusive, consideram

    como elo entre as prticas sociais e a construo e o compartilhamento de formas

    simblicas, ou seja, como um elemento mediador nas relaes que os sujeitos

    estabelecem entre si, consigo mesmos e com o mundo (HUIZINGA, 2008;

    CAILLOIS, 1990; GADAMER, 1997; BUYTENDIJK, 1977).

    Com efeito, sob a perspectiva de que o jogo est profundamente amalgamado

    vida humana de tal maneira que ele se torna irreconhecvel em muitas de suas

    facetas, neste captulo procuraremos expor as principais ideias de alguns

    pensadores que se debruaram sobre o objeto, entendendo, assim, as bases do

    recm-formado campo de estudo que hoje chamado de game studies. Dada a sua

    evidente complexidade, o estudo dos jogos sob a perspectiva contempornea se

    constitui como um campo multidisciplinar, podendo ser estudado luz de diversas

    concepes e abordagens, confirmando a inexistncia de um campo terico

    especfico e bem delimitado. Assim, observaremos como a emergncia das redes

    mundiais de comunicao, concretizadas a partir da ubiquidade tecnolgica em

    todas as esferas da vida humana, potencializaram o fenmeno que hoje chamado

    de pervasive games, que aqui chamaremos de jogos pervasivos1 - ou ainda como

    1 Lemos (2010) opta por no utilizar o termo pervasivo, haja vista que este no consta em dicionrios de Lngua Portuguesa. Contudo, devido grande ocorrncia da palavra em publicaes da rea (tanto nacionais quanto internacionais) e sua relevncia terica, decidimos utiliz-la, na presente Dissertao; pervasivo derivado da Lngua Inglesa e significa espalhado, difuso, que penetra em toda parte ou tende a, por meio de diversos canais, tecnologias, sistemas e dispositivos. Aqui estar

  • 24

    Lemos (2010) prefere, jogos mveis locativos e como isso se d na

    contemporaneidade a partir da ampliao do crculo mgico do jogo (HUIZINGA,

    2008) e da diluio de suas fronteiras, at ento bem delimitadas - o que parece,

    hoje, perpassar e influenciar diretamente na experincia do sujeito em relao ao

    mundo em sua totalidade.

    2.1. O CONCEITO DE JOGO COMO FENMENO CULTURAL

    Johan Huizinga, Reitor da Universidade de Leiden, em sua quase secular

    obra Homo Ludens, publicada originalmente em 1933, lanou as bases para um

    estudo dos jogos sob um ponto de vista filosfico que considera a sua ocorrncia

    como elemento fundamental formao das sociedades humanas e,

    consequentemente, comunicao e transmisso de formas simblicas por meio

    desta. Sob a perspectiva do autor, as manifestaes ldicas, antes mesmo de sua

    utilizao e organizao formal pelo homem, podem ser observadas em uma

    variedade de seres vivos. Para constatar tal afirmao, segundo o autor, basta

    observar a ocorrncia do jogo entre animais, como cachorros, gatos, macacos e

    mamferos aquticos. facilmente perceptvel que eles desenvolvem, desde a

    infncia, uma relao ldica com o mundo e com os outros de sua espcie, que se

    perpetua por toda a sua existncia. O autor defende em sua tese que o ldico no

    inveno humana, nem que o homem [...] acrescentou caracterstica essencial

    alguma ideia geral de jogo. Ou seja, ele existe a priori de sua definio humana,

    uma vez que sua ocorrncia no est condicionada a nenhum grau de organizao

    social ou normativa, nem a nenhum estado de coisas humano.

    Embora o autor defenda em sua obra que o fenmeno do jogo no uma

    exclusividade humana, sua ocorrncia se distingue em ns pela capacidade de nos

    apropriarmos dele, e, assim, desenvolver novas modalidades e atribuir significado ao

    mundo a partir das interaes que estabelecemos, com vistas criao deliberada

    de sentido. Cremos, portanto, que aqui cabe estabelecer uma breve diferenciao

    relacionado, especificamente, a uma caracterstica fundamental dos jogos mveis locativos, objeto de estudo desse trabalho. Ver tambm .

  • 25

    entre os jogos ocorridos entre animais e os homens. Nada sabemos em relao ao

    sentido dos animais quando desenvolvem atividades ldicas; podemos supor que,

    para eles, o jogo represente um mecanismo de aperfeioamento de suas

    capacidades motoras ou, por exemplo, de caa. No tocante sua capacidade de

    perceber tal evento como um meio de treinamento de habilidades necessrias sua

    sobrevivncia, poderamos afirmar que no h um carter simblico ali. De forma

    bem pontual, Heidegger (2011, p. 228) em sua obra Os conceitos fundamentais da

    metafsica, diferencia, em relao capacidade de percepo do mundo e de

    significao das coisas, que a pedra no tem mundo, o animal podre de mundo e o

    homem formador de mundo2. Isso significa afirmar que os animais no possuem

    propriedades cognitivas que lhes permitam criao simblica de forma deliberada;

    tal possibilidade restrita ao homem. O animal encontra-se capturado

    (benommenheit) em seu habitat; ao contrrio do ser humano, que, como defende o

    filsofo, criador de mundo a partir de suas percepes e aes sobre ele.

    Buytendijk (1977) entende o jogo como um elemento mediador entre o

    homem e o mundo, por meio do qual se joga atravs de imagens3 e da linguagem, o

    que acaba por fornecer novas experincias ao sujeito de percepo das coisas. Para

    o autor, o jogo sempre um comportamento, ou seja, uma forma de insero no

    mundo. Ele afirma ainda que possvel encontrar pessoas em situaes e atitudes

    tais que poderiam ser designadas pela palavra jogar, mesmo que no tenha o

    carter de jogo explcito ou no se possa configurar a situao em questo como

    essencialmente um jogo (idem, p. 63). Assim, o carter simblico que o jogo possui

    em ns um dos elementos que permitem diferenciar-nos dos animais e estabelecer

    uma relao humana com o mundo, propriamente dita. Mesmo que a sua existncia

    2 Mundo, para Heidegger, a totalidade de referncias que, desde sempre, compe a existncia do ser-a (Dasein), ou seja, uma estrutura prvia de sentido que permite a ns nos situarmos e nos reconhecermos como homens. Assim, o mundo tem um carter intrinsicamente ontolgico, ligado possibilidade para qualquer relao de ser que o ser-a desenvolva no tempo ou seja, o ser enquanto possibilidade temporal, clareira que ao mesmo tempo o desvela e o encobre. Seria, de tal maneira, o mundo, a totalidade das referncias ontolgicas e composto por uma diviso trplice, que ele entende como sendo os entes disponveis, os existentes, e o ser-a (no caso, ns). Logo, tudo aquilo que o Dasein constri e se apropria, ou seja, a dimenso fundamental onde as coisas simplesmente existentes so mundanizadas, passando ao conhecimento do homem e se transformando em disponibilidade, atravs da vivncia desse mesmo mundo e sua transformao em Umwelt (mundo circundante). 3 Vale ressaltar que para Buytendijk imagem o modo como as coisas se apresentam e os

    acontecimentos se do no mbito dos sentidos (1977, p. 68).

  • 26

    seja diferente da nossa, somos obrigados, tanto no mundo biolgico quanto na

    observao cientfica, a interpretar os movimentos dos animais como modos de

    comportamento e, de vez em quando, como jogo autntico ou, pelo menos, como

    comportamento ldico (ibid., p. 63). Sob tal perspectiva, podemos considerar o jogo

    como uma experincia emancipatria humana, uma vez que ele se presta como

    transformador das relaes que o jogador estabelece consigo mesmo e com os

    outros (idem, p. 79).

    Huizinga (2008) acrescenta ainda que, embora o jogo, pelo vis trabalhado

    por ele, tenha sido sine qua non organizao dos homens na forma de sociedades,

    e ao acmulo cultural advindo de tal arranjo, este no se encontra ligado

    diretamente noo de civilizao como hoje conhecemos. De tal maneira, ele se

    d como fenmeno na dimenso do esprito, e Huizinga nos adverte que [...]

    reconhecer o jogo , forosamente, reconhecer o esprito, pois o jogo, seja qual for

    sua essncia, no material (2008, p. 6). Esprito, aqui, parece significar a

    imaterialidade inerente prpria concepo do fenmeno para o autor, dimenso

    esta que anterior existncia humana, mas que em ns se d a partir de uma

    trade ontolgica por ele proposta, a saber: homo sapiens, faber e ludens.

    Para o filsofo, a pr-existncia dessa relao com o jogo foi uma condio

    fundamental para a formao e evoluo das sociedades humanas atravs dos

    sculos, e adiciona o termo Homo ludens para designar esta propriedade, a qual

    considera fundamental e que permeia os modos como os homens raciocinam e

    pensam a realidade (Homo sapiens) e tambm criam, manipulam e interagem com

    objetos e com a natureza (Homo faber). O autor inclusive considera a construo e a

    utilizao da linguagem, primeira tecnologia humana desenvolvida para se

    comunicar com os seus semelhantes, como um tipo de jogo, que d sentido e

    constri a relao entre os sujeitos e destes com o mundo. O autor realiza uma

    extensa e detalhada pesquisa etimolgica sobre tanto o conceito quanto a prpria

    palavra jogo em diversas lnguas e culturas as mais diversas, buscando assim

    chegar ao mago da questo: que, mesmo antes da prpria definio do fenmeno

    por ns, ele j existia per se. Logo, Huizinga conclui que no seria lcito esperar que

    cada uma das diferentes lnguas encontrasse a mesma ideia e a mesma palavra ao

    tentar dar expresso noo de jogo [...], pois h diversos indcios que mostram

  • 27

    que a abstrao de um conceito geral de jogo foi, em algumas culturas, to tardia e

    secundria como foi primria e fundamental a funo do jogo (idem, p. 33-34, grifos

    do autor). Assim, ele define o jogo como

    [...] uma atividade ou ocupao voluntria, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espao, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatrias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tenso e de alegria e uma conscincia de ser diferente da vida cotidiana (ibid., p. 34).

    Parece-nos de fundamental importncia destacar alguns aspectos levantados

    pelo autor em sua definio de jogo para que, futuramente, possamos analisar o

    objeto deste trabalho em sua profundidade. Huizinga defende de forma enftica que

    a questo da voluntariedade na participao no jogo primordial para classificarmos

    se algo jogo ou no. Seria, de tal maneira, que, quando imposto e retirada a

    liberdade de escolha da participao, [...] deixa de ser jogo, podendo no mximo ser

    uma imitao forada (2008, p. 34). Qual seria, ento, a motivao do jogador para

    o autor? Ele nos fornece alguns indcios a respeito disso, quando afirma existir uma

    busca de prazer na realizao de tais atividades, o que, inclusive, fundamenta a sua

    ocorrncia na vida adulta dos homens. Para ele, o jogo s se torna uma

    necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma

    numa necessidade (2008, p.10-11).

    Assim, percebemos que a questo do jogo funcionar como uma vlvula de

    escape s presses da vida cotidiana permitindo, muitas vezes, a liberao de

    impulsos normalmente coibidos na vida em sociedade parece-nos bastante clara a

    sua funo como um regulador de prticas sociais, e tambm, correto afirmar que a

    sensao de prazer causada por esta atividade guia-se pelo princpio que Huizinga

    chama o divertimento do jogo, relacionando diretamente a questo do ldico a uma

    [...] fonte de alegria e divertimento (CAILLOIS, 1990, p. 26). Ou seja, uma [...]

    atividade voluntria, que tem uma finalidade autnoma e se realiza tendo em vista

    uma satisfao que consiste na sua prpria realizao (HUIZINGA, 2008, p.12).

    Os limites de tempo e espao dos quais fala o autor nos conduzem a uma

    segunda caracterstica fundamental dos jogos: o fato de que, voluntariamente, ao

    se engajar em tais processos, os envolvidos adentram um universo simblico

  • 28

    construdo atravs da negociao entre eles, com regras claras e obrigatrias, cujos

    limites permitem situ-lo como diferente da vida cotidiana. Assim, Huizinga defende

    que [...] o jogo no vida corrente nem vida real. Pelo contrrio, trata-se de uma

    evaso da vida real para uma esfera temporria de atividade com orientao

    prpria (idem, p. 11).

    Parece-nos pertinente entender que, embora o faz-de-conta do jogo seja

    absolutamente consentido e consciente, e represente um escape realidade, a

    conscincia em relao a isso no impede que os jogadores possam se encontrar

    imersos em um ambiente ldico absolutamente imaginrio, como o caso, por

    exemplo, dos atuais jogos de RPG4, nos quais os jogadores interpretam papis em

    enredos fantsticos, repletos de figuras mticas como magos, drages, entre outros

    inclusive, muitas vezes, chegando ao ponto de se caracterizarem como os

    personagens, com indumentrias, expresses faciais, gestuais e lingusticas. Caillois

    (1990) aqui parece contribuir com uma importante relativizao desse conceito, uma

    vez que argumenta que podem existir alguns jogos que no tenhas regras explcitas

    ou negociveis; entretanto, para ele, eles constituem um simulacro, uma imitao da

    vida, um como se (grifos do autor). Ou seja, [...] apesar do carcter paradoxal da

    afirmao, eu diria que, aqui, a fico, o sentimento do como se substitui a regra e

    desempenha exactamente a mesma funo (idem, p. 28, grifos nossos).

    Isso posto, indiscutvel que o jogo, quando perde seu carter voluntrio,

    transforma-se em qualquer coisa, menos jogo: perde sua autenticidade, aquilo que,

    para Huizinga (2008), caracteriza o fenmeno; o jogador se entrega

    espontaneamente a ele, e pode interromper sua ocorrncia quando desejar. Caillois

    (1990, p. 26), corrobora esta tese, quando afirma que

    4 Role Playing Game (RPG), ou jogo de representao de papis, uma modalidade de jogo no qual

    os jogadores assumem, temporariamente, as caractersticas de personagens fictcios, criando

    narrativas colaborativamente enquanto o jogo se desenrola. Via de regra, parte-se de um enredo

    inicial e com regras pr definidas, sendo permitido aos jogadores, dentro dos limites estabelecidos,

    improvisar de forma livre. Como no tem um desfecho prvio, os jogadores so os que determinam a

    direo que o jogo ir tomar. Existem diversas modalidades de RPG, podendo ser desde presenciais,

    at em redes informacionais, em comunidades virtuais dedicadas a esse tipo de jogo.

  • 29

    [...] s existe jogo quando os jogadores querem jogar e jogam, mesmo que seja o jogo mais absorvente ou o mais extenuante, na clara inteno de se divertirem ou de afugentar as preocupaes, ou seja, de se afastarem da vida de todos os dias. Acima de tudo, e sobretudo, urge que tenham a possibilidade de se irem embora quando lhes aprouver, dizendo: no jogo mais.

    Aqui, podemos ento trazer discusso um conceito-chave para o

    entendimento da proposio de Huizinga, e que ser utilizada no decorrer dessa

    dissertao, que a ideia de que o jogo, justamente por ser uma atividade que se

    distingue da vida cotidiana dos indivduos e ter regras e leis especficas a ele as

    quais, muitas vezes, podem ser opostas s que eles se submetem em sua vida

    diria cria um espao prprio, simblico e que funcionaria como uma esfera

    temporria onde os participantes de um determinado jogo se inserem, a fim de

    desenvolverem ali suas atividades, isolando-se momentaneamente do contexto

    espao temporal ao qual pertencem. Ou seja, muito embora os jogos representem

    uma forma de evaso do cotidiano, [...] no vida corrente nem vida real

    (HUIZINGA, 2008, p. 12), eles representam atividades com regras e orientaes

    especficas, e a esse universo capaz de absorver totalmente o jogador para um

    campo simblico circunscrito, virtual e reservado da vida cotidiana, ele chama de

    crculo mgico do jogo (idem, p. 13). Ainda sobre esse aspecto, podemos tambm

    nos apoiar nas consideraes de Buytendijk (1977, p.68), que entende a esfera do

    jogo como essencialmente de fantasia e que carrega consigo possibilidades

    frequentemente impraticveis fora dela.

    Enquanto fenmeno social (aqui entendido como elemento propulsor de

    socializao e transmisso de formas simblicas entre os sujeitos), ele se forma a

    partir do conjunto de contratos firmados entre os participantes de um determinado

    grupo, atravs de processos de negociao, cooperao e conflito, onde so

    estabelecidas regras, o que lcito ou no dentro do universo de um jogo qualquer.

    A esse respeito, Montola et al (2009, p.10) corroboram a ideia do crculo mgico do

    jogo como um espao contratual, cujas fronteiras separam-no da vida regular dos

    indivduos, uma vez que

  • 30

    O crculo mgico metafrico () so os limites contratuais e ritualsticos, os quais so, normalmente, baseados em argumentos implcitos de algum modo. A realidade do jogo diferente [da vida corrente] somente se os participantes do jogo e a sociedade fora desse reconhecem o ambiente ldico como parte das regras do dia-a-dia5 [traduo nossa].

    Huizinga ilustra sua tese citando os inmeros jogos infantis, nos quais

    crianas interpretam personagens, como princesas, bruxas ou animais. Nestes

    casos, percebe-se claramente a ao desse espao simblico do qual fala o autor:

    quando imersos nele, so transportados de tal modo para dentro deste universo que,

    muitas vezes, falam, agem e se movimentam em uma atuao que pode quase lev-

    los a acreditar que realmente so os prprios personagens, sem, entretanto, perder

    de forma total o sentido da realidade que os prende ao aqui e agora. Da mesma

    forma, o autor cita as cerimnias sagradas e ritos tribais em povos primitivos, os

    quais acabam por englobar, em um momento especfico e em torno de uma espcie

    de jogo coletivo, uma consumao alegrica desse universo simblico; uma vez que,

    para Huizinga, a representao sagrada muito mais que a simples realizao de

    uma aparncia, at mais do que uma realizao simblica: uma realizao

    mstica (2008, p.17).

    Com efeito, podemos tambm trazer baila as consideraes de Gadamer

    (1997), que, em captulo de sua notvel obra Verdade e Mtodo, expe a relao

    humana com o jogo como um princpio fundamental da existncia da obra de arte,

    mas que, na sua condio de fenmeno cultural, demanda a realizao de um

    estudo do jogo, considerando-o uma condio sine qua non para a experincia

    humana com o mundo, e, particularmente, com o universo simblico do qual

    falamos; um espao de representao e de entrega do jogador, uma realidade

    interna, que coexiste com a externa. Ele parte da definio da palavra alem spiel,

    que pode ser usada tanto para designar o prprio jogo, quanto para o ato de jogar.

    No decorrer da reviso bibliogrfica desse trabalho, encontramos obras em lngua

    inglesa que traduzem o termo alemo tanto como play e game.

    5 The metaphoric magic circle [...] is a ritualistic and contractual boundary, which is most often based on a somewhat implicit argument. The reality of a game is different only if both the participants of play and the society outside recognize the playground as something belonging outside of ordinary rules.

  • 31

    Huizinga (2008, p. 43), ao propor uma etimologia da palavra jogo, estuda

    essa ocorrncia na lngua germnica, acreditando que, a partir da duplicao do

    termo na traduo anglo-sax, o verbo torna-se tambm substantivo, ou seja, em

    Ingls, diz-se play a game6, para designar a ao de jogar. Essa dicotomia entre a

    ao e o substantivo nos parece interessante, uma vez que indica duas esferas

    distintas. Nesse sentido, Huizinga indaga se no querer isto dizer que o ato de

    jogar possua uma natureza to peculiar e independente que se exclui das categorias

    usuais da ao? (idem, p. 43). Acreditamos que isso se deve ao duplo sentido de

    spiel, conforme originalmente Gadamer utilizou; entretanto, um aspecto fundamental

    que tal vocbulo em alemo designa no somente a palavra jogo, mas tambm

    indica todo tipo de movimento, como o das mars e do vento, das luzes, entre

    outros. Este segundo sentido de primordial importncia para Gadamer, pois, como

    veremos a seguir, as suas reflexes sobre o jogo partem justamente desse

    pressuposto, do jogo como movimento, uma presena imaterial.

    Em sua argumentao, Gadamer (1997) corrobora a ideia do jogo como um

    mediador da relao humana com o mundo e com os outros, especialmente no

    tocante obra de arte; para ele, o jogo o fio condutor ontolgico da explicao dos

    fenmenos humanos. Contudo, no que nos interessa em suas reflexes, ele parece

    confirmar algumas ideias j expostas. Ele tambm entende o espao ldico onde o

    jogo se desenvolve como separado da vida cotidiana dos indivduos, e que tal

    experincia se torna transformadora e propicia o surgimento de novas relaes

    simblicas, uma vez que jogar significa, ao mesmo tempo, jogar com algo e um jogar

    consigo, ou seja, um colocar-se em jogo dentro do prprio jogo.

    Esse movimento constitui, segundo a viso gadameriana, o conceito-chave da

    fundamentao de sua hermenutica e da experincia humana enquanto agente

    criador de mundo, compreendendo, assim, elementos essenciais a tais processos,

    como a linguagem, a comunicao, a construo de sentido e de cultura no mundo.

    De tal maneira, ele refuta a noo comum de que uma caracterstica do jogo a

    ausncia de seriedade; ora, se o jogo um dos responsveis pela construo

    cultural humana, parece-nos ser impossvel que ele seja uma atividade ausente de

    6 Jogar um jogo. Traduo nossa.

  • 32

    comprometimento e participao, pressupondo esse estar-junto, e, como dissemos,

    um jogar e ser-jogado. Esse movimento no tem, assim, um objetivo claro: a vitria

    ou a derrota, quanto existem, no o que profundamente determina o jogo, pois

    elas so condies possveis conhecidas desde o incio do mesmo.

    Tambm apoiado nas consideraes de Huizinga e Buytendijk, Gadamer

    considera o jogo sempre como representao, independente do quanto o jogador

    est ciente disso. Ele radicaliza a ideia de Huizinga de que o jogo um fenmeno

    anterior ao homem, e expe que, na verdade, ele autnomo, trazendo assim o

    prprio jogo para o primeiro plano da discusso, ao afirmar que, na verdade, quando

    praticado, o jogo no comandado pelos jogadores, bem ao contrrio; para

    Gadamer (1997), o jogo quem domina o jogador esta , inclusive, a causa do

    fascnio que tais atividades exercem sobre os que dela participam.

    O autor afirma, assim, que na relao jogo jogador h uma dialtica que

    fundamenta a prpria existncia do fenmeno: enquanto o jogo se assenhora do

    jogador, este tem a iluso de que ele quem controla o jogo, e a partir da, temos

    um movimento que, para o filsofo, to indispensvel que, [...] em ltimo sentido,

    faz que de forma alguma haja um jogar-para-si-somente (idem, p. 180). Uma das

    razes que o filsofo expe para fundamentar suas afirmaes que, quando

    adentram no universo do jogo, os participantes aceitam se submeter s regras que

    regem a atividade, e esse entregar-se que constitui propriamente o encanto

    exercido sobre os jogadores. Ou seja,

    o atrativo do jogo, a fascinao que exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador. Mesmo quando se trata de jogos em que se procura preencher tarefas de auto-aposta, o risco de saber se vai, se d certo e se voltar a dar certo que exerce o atrativo do jogo. Quem tenta dessa maneira , na verdade, o tentado. O verdadeiro sujeito do jogo ( o que tornam evidente justamente essas experincias em que h apenas um nico jogador) no o jogador, mas o prprio jogo. o jogo que mantm o jogador a caminho, que o enreda no jogo, e o que o mantm em jogo (GADAMER, 1997, p. 181).

    A despeito de uma tendncia comum de se considerar o jogo como mera

    distrao, quase uma anttese da seriedade e, em sentido bem especfico, em

    contraposio ao trabalho e demais atividades socialmente consideradas srias e

    produtivas talvez tenha origem no fato do jogo, como dissemos, criar uma esfera

  • 33

    prpria, cujas leis muitas vezes no coincidem com aquelas s quais os indivduos

    se submetem no seu dia-a-dia. Sob a perspectiva de Gadamer, o jogo uma

    atividade cujo sentido de seriedade essencial para a sua ocorrncia, e, embora

    seja facilmente perceptvel, por exemplo, em jogos esportivos institucionalizados e

    em diversos mbitos da vida em sociedade, h outros momentos nos quais o jogo

    est to amalgamado prpria vida humana que se torna uma tarefa rdua

    reconhecer a sua existncia e, mais ainda, a sua seriedade. Gadamer sustenta que

    o ato de jogar possui uma referncia essencial para com esta, pois, justamente

    nesses casos em que o jogo e a sua seriedade no podem ser confirmadas de

    imediato, que os seus efeitos se encontram mais profundamente enraizados, pois

    no a relao que, a partir do jogo, de dentro para fora, aponta para a seriedade,

    mas apenas a seriedade que h no jogo que permite que o jogo seja inteiramente

    um jogo (1997, p. 175).

    Parece-nos que a isso equivale dizer que o jogo prescinde que aqueles que o

    praticam atribuam a ele alguma carga de seriedade, em maior ou em menor grau;

    ora, para Gadamer, o jogo, como dissemos, existe a priori dos jogadores, embora se

    realize por meio desses. Ao afirmar que os sujeitos do jogo no so os jogadores, e

    sim o jogo mesmo, ele no permite que quem joga se comporte como se estivesse

    diante de um objeto ou de uma outra situao qualquer, mas, sim, como um

    fenmeno que, por si s, se constitui como mediador das estabelecidas entre os

    jogadores. Esse movimento do jogo possibilita a abertura do mundo ao homem

    atravs do comportamento ldico, e Gadamer considera, no caso especfico de sua

    argumentao, a obra de arte como elemento legtimo dessa transformao de

    revelao da verdade sobre a existncia.

    Em relao a isso, Huizinga tambm parece ir ao encontro das ideias

    gadamerianas sobre tal aspecto. Assim, ele confirma que, a despeito de se

    considerar tais atividades como uma ausncia de seriedade, a ideia de jogo de

    forma alguma exclui ou se define como tal, afirmando, inclusive, que o conceito de

    jogo [...] de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade

    procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade

    (idem, p. 51).

  • 34

    Isso posto, podemos considerar as mais variadas manifestaes ldicas,

    como jogos infantis e adultos, ou mesmo aqueles nos quais os jogadores

    interpretam personagens, como expresses que constituem ampliaes do homem e

    das sociedades nas quais o jogo se desenrola, sendo possvel reconhecer, nesse

    sentido, uma forte influncia da poca histrica, seus valores e costumes. Podemos

    citar como exemplo as Olimpadas, manifestao cultural originada

    aproximadamente no sculo VII a.C., na Grcia Antiga, que tinha por objetivo

    homenagear Zeus e os deuses do Olimpo atravs de disputas esportivas. McLuhan

    (2007, p.264), em Os meios de comunicao como extenses do homem, afirma,

    ao estudar estas manifestaes, que

    os jogos so artes populares, reaes coletivas e sociais s principais tendncias e aes de qualquer cultura. Como as instituies, os jogos so extenses do homem social e do corpo poltico, como as tecnologias so extenses do organismo animal. [...] Os jogos so modelos fiis de uma cultura. Incorporam tanto a ao como a reao de populaes inteiras numa nica imagem dinmica.

    Nas sociedades tribais, o jogo possua, alm da funo recreativa e de

    integrao da tribo, o objetivo de simular situaes de caa, de enfrentamento com

    animais, de guerra entre tribos rivais, entre outros, objetivando, com isso,

    aperfeioar e transmitir simbolicamente tcnicas de combate, defesa e ataque as

    quais eram de extrema importncia para a segurana e manuteno daquele tipo de

    sociedade. Era um meio de treinamento de destrezas tanto fsicas quanto cognitivas.

    Huizinga nos lembra de que, mesmo em momentos em que os caadores ou

    guerreiros destas coletividades tribais utilizavam as tcnicas aprendidas durante as

    atividades ldicas, o carter do jogo persistia, uma vez que mesmo as atividades

    que visam satisfao imediata das necessidades vitais, como por exemplo, a caa,

    tendem a assumir nas sociedades primitivas uma forma ldica (2008, p. 54).

    Assim como nesses ritos tribais, os confrontos sangrentos (e, no raro,

    mortais) nas arenas entre guerreiros na Antiguidade, os jogos de carta e de tabuleiro

    praticados nas cortes da Idade Mdia: todas estas manifestaes culturais nos

    fornecem indicativos de como aquelas sociedades se organizavam, configurando-se

    como um reflexo, atravs do ldico, do modo de vida das mesmas, e fornecendo

  • 35

    importantes indcios para a compreenso daquele perodo e de sua construo

    cultural coletiva.

    Como instrumento do qual o homem lana mo deliberadamente com vistas

    construo e compartilhamento de formas sociais simblicas, Huizinga reconhece a

    existncia do jogo em diversas esferas da vida humana, organizada na forma de

    sociedade, sendo que, pare ele, o jogo foi fundamental a tal normatizao. Defende

    o estudioso que diversas manifestaes culturais - modalidades esportivas, o

    folclore, a dana, a msica, o teatro e os ritos religiosos, as leis e todos os demais

    mbitos da vida social tiveram, seno em sua origem direta, o jogo como elemento

    de aperfeioamento dos mesmos no decorrer dos sculos, ou seja, eles possuem

    como marca intrnseca a relao com o ldico, em menor ou maior grau. Isso

    significa reconhecer que, de acordo com a concepo do autor, as manifestaes

    culturais surgiram sob a forma de jogo, sendo, desde sempre, jogadas. Logo, a

    argumentao do autor busca derivar do esprito do jogo a maioria das instituies

    s quais, invariavelmente, regulam a vida em sociedade (CAILLOIS, 1990, p. 13).

    Podemos citar aqui uma passagem de sua argumentao que resume bem a viso

    sobre esta funo do jogo por ele defendida:

    o esprito de competio ldica, enquanto impulso social, mais antigo que a cultura, e a prpria vida est toda penetrada por ele, como um verdadeiro fermento. O ritual teve origem no jogo sagrado, a poesia nasceu do jogo e dele se nutriu, a msica e a dana eram puro jogo. O saber e a filosofia encontraram expresso em palavras e formas derivadas das competies religiosas. As regras da guerra e as convenes da vida aristocrtica eram baseadas em modelos ldicos. Da se conclui necessariamente que em todas as suas fases primitivas a cultura um jogo. No quer isto dizer que ela nasa do jogo, como um recm-nascido que se separa do corpo da me. Ela surge no jogo, e enquanto jogo, para nunca mais perder este carter (HUIZINGA, 2008, p. 193, grifos do autor).

    Cabe aqui ressaltar novamente a ligao existente entre os jogos como

    elementos fundadores de sentido social, na medida em que atuam como criadores

    de um sentimento de pertencimento entre aqueles que compartilham das esferas

    simblicas inerentes a tais atividades. Como defenderemos em captulo posterior, de

    acordo com Huizinga, os jogos sempre foram utilizados de forma deliberada como

    agregadores sociais, os quais podem adquirir uma infinidade de matizes, desde as

    manifestaes sagradas que derivaram de seu carter ritualstico, como as

    religiosas, quanto como simples instrumento de busca de prazer e alegria. Embora

  • 36

    hoje se conhea uma variedade de modalidades passveis de serem desenvolvidas

    de forma solitria e individual, ele sempre esteve ligado diretamente formao e

    fortalecimento de comunidades. Aqui podemos, mais uma vez, nos apoiar em seu

    discurso, quando ele afirma que a funo socializante do jogo se deve ao fato de

    que as comunidades formadas pelos jogadores tendem a tornar-se permanentes,

    mesmo depois de finda a atividade. Entretanto, a ideia coletiva de [...] partilhar algo

    importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais,

    conserva sua magia para alm da durao de cada jogo (idem, p. 15).

    Quando Huizinga se props a discutir o fenmeno do jogo e sua funo na

    cultura, quase cem anos atrs, as modalidades que eram desenvolvidas naquela

    poca, (como os esportes, jogos infantis, entre outros) e como se davam as

    interaes sociais sob a perspectiva do jogo como mediador destes processos, alm

    do modo como a sociedade se organizava eram bem diferentes de como hoje

    experimentamos, a partir do surgimento de novas formas de contato com o universo

    simblico ldico, principalmente, e de forma mais recente, com os jogos eletrnicos.

    Embora fique claro na obra do autor em diversos momentos a existncia de lacunas,

    como a ausncia de um estudo sobre os jogos de azar (para ele, o jogo

    desinteressado e, principalmente, desvinculado de interesses materiais

    possivelmente advindos do mesmo), ela foi de fundamental importncia para o

    desenvolvimento de uma teoria que entende o jogo como elemento produtor de

    cultura, ou seja, o autor analisa de forma bastante complexa o seu papel na histria

    do homem, e abre caminhos para o seu estudo e reflexo.

    Foi exatamente isso que fez Roger Caillois, socilogo francs que concentrou

    seus estudos em ampliar o debate sobre os jogos, partindo da obra de Huizinga.

    Trinta anos depois da publicao de Homo Ludens, Caillois props no somente

    uma classificao para os jogos de acordo com suas caractersticas o que era

    ausente na obra do primeiro autor mas tambm trouxe importantes contribuies

    para os estudos do campo. Seguindo uma perspectiva semelhante do seu

    antecessor, e acreditando que a obra de Huizinga uma fundamental

    investigao[...] sobre a fecundidade do esprito de jogo no domnio da cultura, e,

    mais precisamente, do esprito que preside a uma determinada espcie de jogos

    os jogos de competio regrada (1990, p.23), Caillois corrobora as ideias principais

  • 37

    daquele autor, especialmente no tocante espontaneidade do jogo como uma

    atividade livre e voluntria, na qual os homens se engajam com o objetivo de obter

    alegria alm de ser tambm, para ele, uma forma de evaso da vida cotidiana. Ele

    concorda que uma das caractersticas fundamentais dos jogos o fato de o jogador

    a ele se entregar de forma desinteressada, [...] por livre vontade e exclusivo prazer,

    tendo a cada instante a possibilidade de optar pelo retiro, pelo silncio, pelo

    recolhimento, pela solido ociosa ou por uma actividade mais fecunda (idem, p. 26).

    Aqui parece tambm de fundamental importncia, para o autor, a pr-

    existncia do jogo como elemento catalizador da organizao social e

    desenvolvimento da prpria noo de humanidade. A vocao social dos jogos um

    ponto crucial na argumentao de Caillois, uma vez que, para ele, a competio

    atrelada ao prprio conceito enquanto atividade realizada coletivamente produz

    formas sociais, mesmo quando o indivduo est jogando sozinho. Ele sugere que at

    mesmo o mais individual dos jogos facilmente se transforma em princpio

    institucionalizado, afirmando que dizer-se-ia faltar alguma coisa actividade do jogo

    quando esta se reduz a um simples exerccio solitrio (1990, p. 61).

    A existncia de um espao simblico prprio do jogo, o j citado crculo

    mgico, parece aqui tambm ser de fundamental importncia para o socilogo

    francs. Ele tambm entende esse domnio como um universo parte, protegido,

    cujas leis que o regulam no necessariamente coincidem com regras e costumes da

    vida cotidiana. Ou seja, corroborando a ideia de Huizinga, para Caillois (1990, p. 26),

    [...] o jogo essencialmente uma ocupao separada, cuidadosamente isolada do

    resto da existncia, e realizada, em geral dentro de limites precisos de tempo e de

    lugar. H um espao prprio para o jogo. Insistimos nessa caracterstica porque,

    como veremos posteriormente sobre os jogos na contemporaneidade, tal conceito

    parece se diluir medida que percebemos uma difuso desse espao simblico do

    qual falam os autores.

    Assim, Caillois (idem, p. 29-30) define que os jogos possuem seis princpios

    fundamentais que nos permitem identificar suas caractersticas. So eles, a saber:

  • 38

    a) A questo da liberdade da atividade, ou seja, joga-se deliberadamente e de

    forma espontnea, uma vez que, caso participasse da atividade como uma

    obrigao, ela perderia imediatamente seu carter de jogo;

    b) A circunscrio de um espao prprio entre os limites que separam o jogo

    da vida corrente dos jogadores, ou a metfora do crculo mgico da qual os autores

    lanam mo para dar conta desse conceito, como um espao e um tempo

    determinado e previamente conhecido;

    c) A imprevisibilidade do jogo, que, para Caillois (1990, p. 27), parece ser de

    fundamental importncia. Ele diz que, tanto o desenrolar, quanto o fim da atividade

    no podem ser conhecidos a priori, o que significa dizer que uma atividade da qual

    j se conhece de antemo o desfecho, [...] sem possibilidade de erro ou de

    surpresa, conduzindo claramente a um resultado inelutvel, incompatvel com a

    natureza do jogo;

    d) O jogo uma atividade improdutiva, e no gera elementos novos de

    nenhuma espcie, salvo os simblicos. Assim, quando finda a atividade, a tendncia

    o retorno ao estado existente antes de seu incio. As nicas alteraes que Caillois

    considera como possveis de ocorrerem enquanto produtos resultantes da atividade

    ldica so quelas ocorridas no crculo mgico dos jogadores. Porm, como j

    dissemos apoiados em Huizinga (2008), o jogo tende a criar um sentido de

    comunidade entre aqueles que nele se engajam, e que os efeitos resultantes de tais

    atividades ultrapassam os limites de durao das mesmas, ou seja, o jogo no

    termina quando acaba;

    e) o jogo cria um novo universo de regras que, no raro, constituem-se a

    partir de pulses muitas vezes considerados como imprprias para a vida social,

    como por exemplo, a violncia. uma atividade regulamentada, que suspende

    temporariamente as normas vigentes fora do crculo do mgico e que, no decorrer

    do mesmo, so aquelas s quais os jogadores devem submeter-se para possibilitar

    a imerso no mundo do jogo. Entretanto, vale aqui ressaltar que embora represente

    um escape da vida cotidiana dos indivduos, eles tem conscincia de que se trata de

  • 39

    uma atividade cuja durao somente interrompe por algum tempo a vigncia das

    normas socialmente aceitas;

    f) Com base nos pontos expostos acima, Caillois entende que, a partir do

    espao simblico do jogo e da criao de regras especficas ao seu

    desenvolvimento enquanto tal, criada uma realidade fictcia, a qual no tem

    nenhuma necessidade de verossimilhana com a cotidiana.

    A partir dessas consideraes, Caillois (1990, p.85), corroborando a definio

    proposta por Huizinga (2008), entende o jogo como [...] uma actividade paralela,

    independente, que se ope aos gestos e s decises da vida corrente atravs de

    caractersticas especficas que lhe so prprias e que fazem com que seja um jogo.

    Neste sentido, ele busca estabelecer uma sistematizao dos jogos segundo

    algumas caractersticas fundamentais, dividindo-os tambm de acordo com o

    envolvimento do sujeito necessrio sua realizao. Quanto aos tipos de jogos

    segundo traos especficos, ele prope quatro divises: agn, alea, mimicry e ilinx.

    Detalhemos estas categorias por ele propostas.

    a) Agn: para Caillois, so os jogos de competio, ou seja, aqueles que

    proporcionam ao jogador, quando do incio da atividade, a criao artificial de uma

    igualdade de oportunidades, oferecendo aos jogadores condies ideais e anulando

    quaisquer vantagens prvias em relao uns aos outros. Podem ser tanto de carter

    fsico, como os esportes, quanto de carter intelectual (jogos de tabuleiro, como

    xadrez ou damas). Nesta modalidade, para o autor, o interesse do jogo , para cada

    um dos seus concorrentes, o desejo de ver reconhecida a sua excelncia num

    determinado domnio (1990, p. 35).

    b) Alea: so os jogos baseados em sorte, numa evidente oposio ao agn,

    onde se depende quase que exclusivamente de habilidades individuais para o seu

    sucesso. Nesta categoria, podemos perceber tambm a existncia da igualdade de

    oportunidades, haja vista a inexistncia de condio superior de um jogador em

    relao ao outro; enquanto no tipo anterior, esta igualdade fornecida de forma

    artificial, na forma de uma conveno arbitrria aceita como necessria ao jogo, aqui

    ela existe fundamentada na ideia de entregar sorte o seu desempenho. Para

  • 40

    Caillois, trata-se aqui mais de vencer o destino do que um adversrio, e podem ser

    citados como tpicos as loterias e jogos de azar. O autor, inclusive, considera que

    estes ltimos apresentam-se como exclusivamente humanos, uma vez que os

    animais desconhecem o conceito de sorte para que pudessem nele basear atividade

    qualquer.

    c) Mimicry: estes so os tipos de jogos baseados em simulao, na aceitao

    de um universo imaginrio e fechado, onde os jogadores tanto podem criar uma

    condio espao temporal simblica, distinta daquela em que vivem a sua vida

    cotidiana, quanto representar papis, encarnando personagens fictcios e adotando

    comportamentos especficos a eles. Baseia-se na premissa de que, para o

    desenvolvimento de tais modalidades, necessrio ao jogador [...] jogar a crer, a

    fazer crer a si prprio ou a fazer crer aos outros que outra pessoa (CAILLOIS,

    1990, p. 39). Podemos citar aqui desde brincadeiras infantis, simulaes onde

    fingem ser monstros, cavaleiros e princesas, at outras socialmente consideradas

    como atividades mais srias, como representaes teatrais e dramticas, e

    profisses como atores e atrizes.

    d) Ilinx: esta ordem de jogos caracteriza-se como aqueles nos quais se busca,

    deliberadamente, algum tipo de desordem fsica, sensorial ou cognitiva nos

    jogadores. Trata-se da destruio momentnea da estabilidade na percepo do

    jogador, que o autor chama de uma sensao de vertigem. Aqui podemos enquadrar

    os parques de diverses, atividades como pular de paraquedas, ou mesmo o hbito

    comum entre crianas de girar sobre seu prprio eixo com o objetivo de perder o

    equilbrio. curioso observar, tambm, que nesta categoria, o autor enquadra

    atividades cotidianas e naturalizadas socialmente entre adultos, como o hbito de

    ingerir bebidas alcolicas e a dana (idem, p. 46).

    Postas as categorias acima, o autor argumenta tambm no tocante

    necessidade de regulamentao dos jogos a partir de dois eixos, que ele chama de

    paidia e ludus7 (idem, p. 32-33). O primeiro tipo caracteriza-se por atividades nas

    7 Faz-se necessrio, aqui, esclarecer que, no decorrer deste trabalho, ao utilizarmos a expresso ldico, no necessariamente estamos nos referindo categoria ludus proposta por Caillois, embora

  • 41

    quais se busca majoritariamente a diverso despreocupada, em cujo sentido

    encontra-se a alegria e o prazer proporcionados pelas mesmas. Possibilitam uma

    maior flexibilidade em relao s regras, sem que haja uma estruturao rgida e

    formas estabelecidas de jogar, permitindo assim maior criatividade e improvisao

    por parte do jogador. J por ludus, estabelecendo um contraponto em relao

    categoria anterior, ele designa os jogos estruturados segundo regras especficas e

    s quais no se permite nenhum tipo de violao, sob pena de desfazer-se o crculo

    mgico, caso isso ocorra. So jogos mais estandardizados e burocrticos, como por

    exemplo, o xadrez. Neste tipo de jogo especfico, o jogador no pode movimentar as

    peas conforme o seu bel-prazer, e, caso este o faa, imediatamente cessa-se at

    mesmo o sentido encerrado no jogo. No ludus, o prazer proporcionado por tais

    regras existe justamente em vencer o (s) oponente (s) seguindo as normas de forma

    clara. Embora sejam distintos, ludus e paidia podem se desenvolver dentro do

    mesmo jogo, e parecem estar em conflito, dada a sua aparente contradio;

    entretanto, esclarece o autor que

    a paidia conjuga-se com o gosto pela dificuldade gratuita, a que proponho chamar ludus, e desemboca nos variados jogos a que pode ser atribuda, sem exagero, uma inteno civilizadora. Efectivamente, eles ilustram os valores morais e intelectuais de uma cultura, bem como contribuem para os determinar e desenvolver (CAILLOIS, 1990, p.48).

    Isso posto, o autor esquematiza a sua classificao em relao aos tipos de

    jogos, e tambm quanto ao seu sistema de regras da seguinte forma (figura 1):

    o objeto que ser descrito posteriormente nesta Dissertao possua caractersticas desse tipo por ele designado.

  • 42

    Figura 1: classificao proposta por Caillois (1990, p. 57)

    2.2 UMA BREVE ARQUEOLOGIA DOS JOGOS ELETRNICOS E DIGITAIS

    No que tange esse ponto, Caillois (1990) parece corroborar a tese de que

    podemos reconhecer uma sociedade pelos jogos que nela se desenvolvem,

    conforme McLuhan (2007) defende, e j expusemos anteriormente. Existe, assim,

    uma relao simbitica entre estas duas esferas, ou uma retroalimentao

    constante, o que parece, para ns, perfeitamente pertinente quando consideramos,

    por exemplo, a evoluo dos jogos eletrnicos principalmente a partir da segunda

    metade do sculo XX os quais esto diretamente ligados ao fenmeno da

    informatizao e digitalizao da vida em sociedade, ou como preconiza Negroponte

    (1995), a transformao de tomos em bytes nas mais diversas esferas da vida

    humana.

    A distino entre jogos eletrnicos e digitais necessria, segundo Pinheiro

    (2007, p. 62), pois reconhecida a existncia de jogos eletrnicos ainda na primeira

    metade do sculo XX, com as mquinas de pinball, mesas nas quais uma bola era

    arremessada (inicialmente, com o auxlio de um taco de madeira, depois com uma

    mola), fazendo com que fosse lanada para a parte superior de uma estrutura

    inclinada contando com uma srie de obstculos dispostos na superfcie da mesa,

    fazendo com que percorresse o caminho de volta e casse em cavidades esfricas

  • 43

    na parte inferior. A esse jogo, foi dado o nome Bagatelle, sendo essencialmente

    praticado em bares e pubs; posteriormente, foi aprimorado ao ser introduzido

    circuitos eltricos que, alm de lanar a bola automaticamente na mesa de jogo,

    detectavam os movimentos que ela fazia pela superfcie, identificando caso o

    jogador tentasse trapacear inclinando a mesa, por exemplo. Outro mecanismo

    importante, segundo Pinheiro (2007, p. 65), foi o que retornava a bola

    automaticamente, caso ela casse em um dos buracos dispostos na superfcie da

    mesma. Na dcada de 30 surgiram tambm as primeiras mquinas de caa-nqueis

    e outros jogos de azar nos Estados Unidos da Amrica, sendo imediatamente

    relacionada aos pinballs e proibidas em diversos estados que possuam leis restritas

    para jogos desse tipo.

    Uma sada para a legalizao dos pinballs foi a associao deles mais s

    habilidades motoras e cognitivas de seus jogadores, do que ideia de apostas.

    Assim, em 1947 foi produzida a mquina Humpyt Dumpyt, contando com circuitos

    eltricos e tambm dispositivos mecnicos, chamados flipper bumps, que

    relanavam a bola mesa quando teoricamente o jogo deveria ter terminado, para

    que o jogador pudesse marcar mais pontos, e que no Brasil ficaram conhecidos

    como fliperamas.

    Nas dcadas seguintes, foram sendo produzidos novos tipos de jogos

    combinando dispositivos eletromecnicos, como o Triple Action (1948) e tambm as

    mquinas de jukebox,