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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Araújo. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 3(gt27):1-13
A CENTRALIDADE DA GENÉTICA NA SÍNTESEEVOLUTIVA: ESTABELECENDO AS MARGENS DEUMA TERATOLOGIA DE SABERES
G27 - Controvérsias insurgentes e ciências emergentes
Leonardo Augusto Luvison Araújo
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INTRODUÇÃO
A historiografia tradicional da Biologia Evolutiva apresenta dois episódios históricos
fundamentais: a revolução darwiniana - que seguiu o trabalho de Darwin após a publicação da
Origem das Espécies em 1859 - e a Síntese Evolutiva, ocorrida entre 1920-1950 (Largent,
2009). Entre esses períodos históricos ocorreu o que se convencionou chamar de “Eclipse do
Darwinismo”, entre o final do século XIX e início do século XX. Esse período seria
caracterizado por uma proliferação de teorias consideradas antidarwinistas.
Pode-se afirmar que a Síntese Evolutiva apresentou novidades conceituais,
metodológicas e disciplinares quando comparada com os períodos históricos anteriores da
Biologia Evolutiva (Smocovitis, 1996). Os arquitetos da síntese (termo autodenominado)
também contribuíram para a institucionalização da Biologia Evolutiva, organizando
conferências, revistas e ambientes institucionais em que especialistas de diferentes áreas
puderam se comunicar sobre os problemas evolutivos.
A Genética foi central na construção desta síntese, uma importância que perdura até os
dias de hoje, apesar de algumas propostas de revisão da estrutura teórica da Evolução
Biológica. Entender de que modo a Genética adquiriu essa centralidade e que efeitos isso tem
na forma como pensamos a evolução da vida não deveria ser algo pré-disposto ou
autoevidente.
Este trabalho procura discutir de que forma a centralidade da Genética abriu muitas
possibilidades para o conhecimento evolutivo, mas também estabeleceu os objetos possíveis
de explicação, os problemas, as questões e os fenômenos que a evolução deve e não deve
considerar. A construção da herança genética enquanto fenômeno e o surgimento da Genética
Clássica enquanto disciplina fixaram fronteiras na Síntese Evolutiva, não sendo possível
explicar o seu papel multiplicador do conhecimento evolutivo se não levar em conta também
a sua função constritiva (Araújo, 2015).
Como Foucault salienta, quando discutimos alguma disciplina científica, muitas vezes,
“só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e
insidiosamente universal” (Foucault, 1971, p. 20). Assim,
tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos
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comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, recursos infinitos para a criaçãodos discursos. Talvez, mas não deixam de ser princípios de constrangimento; e éprovável que não se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se nãotomarmos em consideração a sua função restritiva e constrangedora (Foucault, 1971,p. 36).
Em consonância com a interpretação de Foucault, acredito que a generalidade do
conhecimento evolutivo na Síntese Evolutiva foi adquirida ao custo das “constrições”
operadas pela Genética. Afinal, “no interior dos seus limites, cada disciplina reconhece
proposições verdadeiras e falsas; mas repele para o outro lado das suas margens toda uma
teratologia do saber” (Foucault, 1971, p. 33).
O termo “teratologia” é usado por Foucault para apontar os discursos considerados
monstruosos para certa discursividade científica. Neste mesmo sentido, este trabalho procura
aprofundar as múltiplas dimensões de uma teratologia de saberes que foram estabelecidos
pela Genética no conhecimento evolutivo. Essa margem de saberes envolve disciplinas (como
a Embriologia), autores, fenômenos biológicos (como o desenvolvimento ontogenético) e
tempos evolutivos (como a macroevolução).
Procuro explorar essa margem de saberes a partir de três importantes elementos da
elaboração da Síntese Evolutiva: (i) a construção da herança genética enquanto fenômeno
biológico, no início do século XX; (ii) a Síntese Evolutiva como um quadro teórico baseado
na Genética; e (iii) a narrativa histórica construída pelos arquitetos da Síntese Evolutiva,
buscando justificar as marginalizações deste quadro teórico.
1) A CONSTRUÇÃO DA HERANÇA GENÉTICA ENQUANTO FENÔMENO
BIOLÓGICO
Entre o final do século XIX e o início do século XX houve uma proliferação dos
discursos que tomam a hereditariedade como um objeto científico. O livro Les théories de
l’évolution (1909) de Yves Delage e Marie Goldsmith nos dá uma ideia da amplitude de
concepções sobre evolução e hereditariedade apresentadas nessa época. Dos vinte e um
capítulos desta obra, cinco são dedicados à teoria darwiniana; oito tratam de concepções de
diferentes pesquisadores sobre hereditariedade; dois capítulos discorrem sobre lamarckismo; e
os restantes apresentam outras teorias evolutivas. As teorias da hereditariedade abordadas são
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oriundas de diferentes tradições de pesquisa a partir da Fisiologia, Embriologia, Mendelismo,
Mutacionismo e Citologia. Autores com abordagens muito distintas como Spencer, Darwin,
Hugo de Vries, Galton e Mendel são apresentados.
Os processos orgânicos de transmissão de características, desenvolvimento biológico,
nutrição e adaptação ao meio não eram distinguidos nas primeiras teorias de hereditariedade.
Natureza e criação, hereditariedade e meio ambiente, ainda não eram vistos como categorias
opostas, representando fenômenos parcialmente independentes (Müller-Wille e Rheinberger,
2012).
Como a hereditariedade se tornou um fenômeno biológico próprio, independente
dessas outras leis e fenômenos da vida? Há muitas formas de contar a história pela qual o
espaço da hereditariedade se reduziu ao esquema mendeliano, com a atomização da
hereditariedade e, por extensão, do próprio corpo e da natureza. Este evento histórico foi
possibilitado por muitos atores, práticas e conceitos que estão longe de serem totalmente
explorados.
Essa limitação se torna visível quando compreendemos a natureza construída da
herança genética. A herança genética não é um fenômeno “pronto” na natureza, mas
pressupõe uma série de intervenções para que possa ser de fato conhecida. A herança genética
somente é estabelecida em decorrência de outros parâmetros considerados externos. A partir
dela, se consolida a distinção entre "as influências da hereditariedade" e "as influências
externas", duas categorias de causas cuja relação foi concebida como aditiva em vez de
interativa.
Foram muitas as práticas experimentais que permitiram essa construção, como a
ênfase nas regularidades das populações; o modelo de herança de partículas, separadas tanto
de influências do ambiente externo quanto do ambiente interno; a adoção de ferramentas
experimentais que procuraram remover “flutuações não hereditárias” de origem ambiental e
ontogenética; entre outras inúmeras práticas da Genética Clássica. Estas práticas abriram
novos e fecundos caminhos para estudar a herança genética, mas também excluíram o
desenvolvimento ontogenético da explicação causal da hereditariedade e evolução dos seres
vivos (Araújo e Araújo, 2016).
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Por isso, a construção da herança genética não foi apenas “positiva”, no sentido de
gerar novidades teóricas e explorar fenômenos até então desconhecidos. Para a sua
construção, muitas marginalizações foram necessárias, sobretudo daqueles fenômenos que se
referem ao desenvolvimento ontogenético e dos efeitos do meio ambiente no organismo, que
precisaram ser separados da hereditariedade.
Se por um lado a construção da herança genética permitiu uma série de novidades na
teoria evolutiva, por outro, essa construção reduziu drasticamente a extensão dos fenômenos e
das crenças admissíveis na evolução. Afinal, a hereditariedade é central para a evolução: é ela
que garante a continuidade das características entre as gerações. A construção da herança
genética, dessa forma, estabeleceu as entidades fundamentais da evolução, como elas
interagem com outras entidades e quais questões podem ser legitimamente feitas. Aqueles
fenômenos que não se ajustavam aos limites construídos simplesmente não foram
considerados. Ao se concentrar em uma faixa de fenômenos e problemas, a Genética
engendrou uma forma de pesquisar evolução, tornando-se um pré-requisito para a Síntese
Evolutiva em muitos aspectos.
3 A SÍNTESE EVOLUTIVA COMO UM QUADRO TEÓRICO BASEADO NA
GENÉTICA
Algumas abordagens de pesquisa evolutiva não estavam em consonância com aquelas
desenvolvidas a partir da Genética. Os principais livros da Síntese Evolutiva, por exemplo,
não incluíam as pesquisas sobre Embriologia e Fisiologia (Smocovitis, 1996). Essa opção não
foi por acaso. Para os embriologistas, a hereditariedade deveria abranger também o
citoplasma da célula. Além disso, esses autores utilizavam conceitos que não faziam parte da
genética mendeliana, como os de organização, regulação e diferenciação embrionária.
Pesquisadores que seguiam nessa linha com frequência apresentavam mecanismos evolutivos
considerados “antidarwinistas” e colocavam em dúvida a extrapolação de que a
microevolução e a macroevolução formam um continuum (Araújo e Araújo, 2015).
Chamamos de macroevolução as grandes mudanças que descrevemos na história da
vida, ao passo que as mudanças biológicas em curto espaço de tempo, na genética das
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populações, são referidas como microevolução. Por isso, afirmar que essas grandes mudanças
são contínuas à microevolução é embasar a crença de que os processos genéticos
populacionais de curto prazo podem ser extrapolados para explicar os padrões evolutivos
acima do nível de espécie, em intervalos de tempo mais longos. Para alguns embriologistas, as
mudanças macroevolutivas podem ser geradas durante o desenvolvimento biológico e não
somente por alterações nas frequências gênicas das populações ao longo de uma grande escala
de tempo.
As diferentes pesquisas desse tipo, centradas no desenvolvimento, simplesmente não
foram incorporadas pela Síntese Evolutiva (Waddington, 1957). Para a Genética de
População, a herança mendeliana é o modelo exclusivo de hereditariedade que opera na
evolução, constituindo a “matéria prima” sobre a qual os mecanismos evolutivos atuam.
A tradição de pesquisa sobre variação e hereditariedade na Síntese Evolutiva
desempenhou um papel importante na marginalização do modelo ontogenético de herança.
Além da exclusão da Embriologia, a marginalização da herança branda também foi um passo
importante na própria construção desta síntese. O termo “herança branda” é usado por Ernst
Mayr (1982) para descrever o tipo de herança em que as variações biológicas são maleáveis e
podem ser produzidas pelo efeito do ambiente, ou pelo uso e desuso, e são transmitidas à
descendência de uma forma menos robusta e previsível do que os fatores mendelianos
“duros”. A herança branda foi um aspecto importante das pesquisas centradas no
desenvolvimento biológico, mas não teve lugar na Síntese Evolutiva (Amundson, 2005).
Ernst Mayr, um dos importantes arquitetos da síntese, defendeu explicitamente essas
exclusões. Para o autor, o estudo da hereditariedade não poderia fazer nenhum progresso até
que o desenvolvimento biológico fosse devidamente colocado como um problema irrelevante:
Todos os geneticistas de Nägeli e Weismann até Bateson não conseguiramdesenvolver teorias bem-sucedidas da hereditariedade porque tentaram explicarsimultaneamente herança (transmissão do material genético de geração em geração)e desenvolvimento (.. .) Foi o gênio de Morgan que pôs de lado todas as questõesfisiológicas do desenvolvimento (apesar de ele próprio ter vindo da Embriologia) ese concentrou estritamente nos problemas de transmissão [genética]. Suasdescobertas pioneiras de 1910-1915 foram inteiramente devidas a essa sábiarestrição. Os problemas do desenvolvimento [biológico] que suas descobertas (e asde seus colaboradores) promoveram foram simplesmente abandonadas (Mayr, 1982,p. 832).
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Não foi apenas em relação às questões de hereditariedade que o desenvolvimento
biológico se tornou irrelevante, mas também para os próprios fenômenos evolutivos. A
ausência da Embriologia na Síntese Evolutiva não foi apenas uma questão de ênfase ou um
mero recurso metodológico de pesquisa: ela reflete a convicção de que os efeitos ambientais e
ontogenéticos são “ruídos” do processo evolutivo, o qual é essencialmente genético (West-
Eberhard, 2003). Além de relegar a ontogenia a uma “caixa preta”, o ponto de vista genético
adotado na Síntese Evolutiva implicou em uma diminuição do papel do ambiente no processo
evolutivo. Os autores que consideravam a relevância das interações ambiente-
desenvolvimento na origem das novidades evolutivas tiveram uma influência limitada. As
abordagens desenvolvimentais sobre a interação hereditariedade–ambiente eram muito
distintas das propostas oriundas da genética. Conceitos como “plasticidade fenotípica”,
“seleção estabilizadora”, “norma de reação” e “assimilação genética” eram usados por alguns
embriologistas para discutir a contribuição do ambiente na origem de novidades fenotípicas e
tiveram um espaço limitado na síntese (Amundson, 2005).
Por essa razão, autores como Provine (1992) acreditam que um acordo em relação ao
conjunto de variáveis consideradas importantes para a evolução biológica foi estabelecido na
Síntese Evolutiva. Provine compreende que o aspecto fundamental da Síntese Evolutiva não é
o de uma síntese de conceitos, disciplinas e fenômenos biológicos, mas o fato de ser uma
verdadeira constrição. Stephen Jay Gould também se refere à Síntese Evolutiva como um
consenso limitado: “prefiro ver a história da síntese sob uma rubrica e terminologia diferente,
desenvolvida pelo historiador da ciência Provine e por mim mesmo - ou seja, (1) constrição,
seguida de (2) endurecimento” (Gould, 2002, p. 505).
O melhor exemplo desta limitação da síntese é a própria definição elaborada por
Theodosius Dobzhansky (1937, p.11-12): evolução se refere às “mudanças na composição
genética das populações ao longo do tempo”. Essa definição é perpetuada nos livros de
evolução até os dias de hoje, denotando que a Síntese Evolutiva é basicamente um quadro
teórico baseado na Genética.
Como comentado anteriormente, para a construção da herança genética e o
funcionamento da Genética enquanto disciplina, muitas exclusões precisaram ser
estabelecidas, sobretudo quanto ao papel do meio sobre o organismo e da relevância dos
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fenômenos ontogenéticos na hereditariedade. Devido à centralidade da Genética na Síntese
Evolutiva, tais marginalizações foram perpetuadas. A Evolução Biológica, que até então era
uma ciência do fenótipo, passa a receber uma definição genética (West-Eberhard, 2003).
4 A NARRATIVA HISTÓRICA CONSTRUÍDA PELOS ARQUITETOS DA SÍNTESE
EVOLUTIVA
Como vimos nas seções anteriores, a Genética gerou uma verdadeira revolução na
Biologia Evolutiva em poucos anos, excluindo diferentes disciplinas e explicações desta
disciplina. A Síntese Evolutiva foi um quadro teórico que encarnou uma teoria genética da
evolução, perpetuando também todas as exclusões e marginalizações necessárias para o
funcionamento desta disciplina.
É interessante notar a forma como os arquitetos da síntese justificaram essas
exclusões e marginalizações através de uma leitura da própria história de sua disciplina.
Muitos dos aspectos marginalizados pela Síntese Evolutiva, até poucos anos antes de sua
construção e consolidação, eram considerados parte do mainstream da Biologia, sobretudo no
período conhecido como Eclipse do Darwinismo (entre o final do século XIX e inicio do
século XX).
Alguns arquitetos da síntese passaram a interpretar esse período como sendo uma
verdadeira idade das trevas da Biologia. O uso de duas metáforas nos diz muito sobre esta
leitura do Eclipse do Darwinismo. A primeira delas é a própria metáfora astronômica de um
eclipse: a luz brilhante do Darwinismo foi obscurecida por teorias concorrentes de natureza
especulativa. Assim como o sol inevitavelmente emerge por trás da lua ao final de um eclipse
solar, a teoria da evolução pela seleção natural acabaria por surgir novamente após o eclipse
feito pelas dezenas de teorias concorrentes oferecidas pelos teóricos antidarwinistas do início
do século XX (Largent, 2009).
Ao se referir aos autores antecessores da Síntese Evolutiva, arquitetos da síntese como
Julian Huxley (1942) argumentaram que o Eclipse do Darwinismo foi uma época ignorante e
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sem desenvolvimento científico. A metáfora do eclipse, portanto, tem valor retórico
específico: aponta a Síntese Evolutiva como um desenvolvimento natural, uma solução
previsível para os problemas evolutivos, que foram obscurecidos pelo eclipse feito por teorias
incompatíveis com esse corpo teórico.
Outra metáfora utilizada por Huxley é a da Síntese Evolutiva como uma fênix. Nas
palavras do próprio Huxley: “[A Síntese Evolutiva] é este renascer do Darwinismo, esta Fênix
mutada, ressuscitada das cinzas da pira e acesa por homens tão distintos como Bateson e
Bergson” (Huxley, 1942, p. 22). A imagem de uma fênix denota o caráter de infalibilidade do
Darwinismo no pensamento evolutivo, renascido na figura da Síntese Evolutiva, a qual
congrega os ideais de uma ciência unificada e confiável (Largent, 2009). O Eclipse do
Darwinismo, por oposição, representa uma sucessão de enganos no pensamento evolutivo, ao
relegar a seleção natural a um segundo plano e apresentar teorias meramente especulativas.
Ernst Mayr endossou e ampliou a interpretação de Huxley sobre o Eclipse do
Darwinismo. Em Biologia, ciência única: reflexões sobre a autonomia de uma disciplina
científica (2004), Mayr se refere a esse período como repleto de paradigmas sem
credibilidade, que veio a ser suplantado pela Síntese Evolutiva:
Depois que Darwin propôs a seleção natural como o mecanismo da evolução, osaltacionismo, a ortogênese e o lamarckismo competiram com o selecionismodurante oitenta anos (Bowler, 1983). Somente com a síntese evolutiva da década de1940 que estes paradigmas concorrentes perderam sua credibilidade (Mayr, 2004, p.165).
Em diferentes trechos de sua análise histórica, Mayr faz uma defesa enfática das
exclusões que a Síntese Evolutiva operou. O papel dos arquitetos da síntese, segundo o autor,
não foi apenas o de construir o conhecimento evolutivo, mas também o de silenciar as teorias
concorrentes. Ele reivindica a importância de muitos evolucionistas que ajudaram a “limpar o
terreno para que as pontes pudessem ser construídas, fornecendo importantes materiais de
construção” (Mayr, 1982, p. 568).
Cito Mayr:
A síntese evolutiva resolveu inúmeros argumentos antigos de uma vez por todas e,assim, abriu o caminho para uma discussão de problemas inteiramente novos (....)Foi talvez a refutação de uma série de equívocos que tiveram o maior impacto naBiologia Evolutiva. Isso inclui a herança branda, o saltacionismo, o essencialismo eas teorias autogenéticas. A síntese enfaticamente confirmou a esmagadora
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importância da seleção natural, do gradualismo, da natureza dual da evolução(adaptação e diversificação), da estrutura populacional das espécies, do papelevolutivo das espécies e da herança dura (Mayr, 1982, p. 569-570).
Na interpretação de Mayr, a exclusão da herança branda e da Embriologia, entre outras
teorias e disciplinas biológicas, foi necessária para a “limpeza do terreno” no caminho da
Síntese Evolutiva. É interessante notar o caso da Embriologia: apesar de alguns arquitetos da
Síntese Evolutiva possuirem interesse em aspectos do desenvolvimento ontogenético, Mayr
achava que a geração de embriologistas do início do século XX não estava pronta para ajudar
a construir esta síntese. Segundo o autor, a Embriologia desta época era antidarwinista,
adotava interpretações tingidas de vitalismo e apenas lidava com causas próximas (Mayr,
1982, p. 118).
De modo interessante, Mayr tem uma leitura “antidesenvolvimental” da teoria
evolutiva, tanto ao defender que o estudo da hereditariedade não poderia fazer nenhum
progresso até que o desenvolvimento ontogenético fosse colocado como um problema
irrelevante, quanto ao afirmar que os embriologistas não teriam contribuições substanciais
para a Síntese Evolutiva. Essa leitura histórica teve um papel ativo, pois o desmerecimento da
ontogenia fez o desenvolvimento parecer irrelevante no processo evolutivo, sendo
praticamente ausente na teoria evolutiva até meados dos anos 1970 (Amundson, 2005).
5 O PAPEL DAS MARGINALIZAÇÕES
As estratégias de pesquisa em consonância com a Genética abriram novos e fecundos
caminhos para as pesquisas evolutivas: adquiriu-se uma forma de síntese teórica e explicativa
na evolução, possibilitando uma maior generalidade e extensão da evolução biológica através
da Síntese Evolutiva. Uma das formas de manter constantemente a coerência deste quadro
teórico, bem como o seu alcance explicativo, ocorreu pela disputa a respeito dos processos
evolutivos. Abordagens centradas no desenvolvimento não compartilhavam diversos aspectos
da Genética e entraram em conflito com muitos de seus pressupostos, pois estavam voltadas
para as regularidades individuais, com um papel importante da interação entre o ambiente
interno e externo dos organismos. Mesmo autores que tentaram um diálogo entre a Genética e
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a Embriologia, como Richard Goldschmidt, permaneceram isolados ou em conflito com os
principais teóricos da Síntese Evolutiva (Amundson, 2005).
Os fenômenos ontogenéticos e a sua relação com o meio foram simplesmente tratados
como uma “caixa preta”. Um efeito disto foi a exclusão da Embriologia na síntese, que levou
a uma negligência das considerações sobre a interação hereditariedade-ambiente e dos estudos
com outros níveis hierárquicos na evolução biológica - além do populacional -, os quais não
tiveram espaço no pensamento evolutivo ao menos até a segunda metade do século XX.
A Síntese Evolutiva se apoiou no suposto de que a população seria suficiente para
explicar todos os níveis da evolução. A microevolução torna-se fundamental, levando a novas
e fecundas vias de pesquisa, mas também restringindo a possibilidade de acessar outras
unidades evolutivas. Eventos que envolvem níveis hierárquicos mais amplos, como a origem
de novas espécies e de grandes novidades evolutivas, representariam os mesmos processos
microevolutivos.
Uma questão importante que se coloca aqui é se o primado epistemológico da
população na Síntese Evolutiva deriva apenas das demandas teóricas e práticas internas ou
também envolveu um desejo de controle da vida que excede o âmbito científico. Devemos
levar em conta que a população foi objeto de interesse não apenas dos biólogos no início do
século XX, mas também de seus contemporâneos, sendo um importante modo de controle da
vida. O fator crucial na assimetria de poder que a Genética obteve em relação a áreas como a
Embriologia foi o seu maior engajamento nessa questão. O controle da vida, a partir das
ferramentas mendelianas, abriu um amplo espaço para transformar o futuro com uma
perspectiva biopolítica. Nesse sentido, há uma clara articulação de como o conhecimento da
Genética revolucionou a ciência agrícola e como os objetivos da eugenia podem ser uma
eventual aplicação destas técnicas para a sociedade (Thurtle, 2007).
A partir da Genética, a base material da evolução permitiu também o alinhamento de
uma causa mecânica da evolução no continuum do gene ao ser humano. Apesar da palavra
“eugenia” ser expurgada do vocabulário dos arquitetos da síntese, principalmente após a
segunda guerra mundial, autores como Dobzhansky, Mayr, Simpson e Stebbins possuíam
versões do progresso evolutivo e do futuro da humanidade. De certo modo, a Genética reduzia
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a vida (e o ser humano) à lógica fisicalista, mecanística e materialista da Ciência. Todas essas
considerações possibilitaram uma soberania do seu discurso no pensamento evolutivo.
Desse modo, entendemos como a formação da Síntese Evolutiva e muitas de suas
questões práticas e teóricas encontraram seu lugar em nichos culturais específicos. Como
tentei discutir aqui, as marginalizações na Síntese Evolutiva tiveram como ponto importante o
aparecimento histórico da Genética enquanto disciplina e a construção do fenômeno da
herança genética. As marginalizações e exclusões geradas na Síntese Evolutiva tiveram um
papel essencial na construção do conhecimento evolutivo, sendo objeto de preocupação
permanente dos seus proponentes.
Referências
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