A Carta de Caminha Uma Perspectiva Oswaldiana

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A Carta De Caminha: Uma Perspectiva Oswaldiana Bruno Santos "Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (...)Tupi or not tupi, that is the question (...)." (Manifesto da Poesia Pau Brasil, Oswald de Andrade,Correio da Manhã, 18 de março de 1924.) Oswald de Andrade foi sem dúvida um dos maiores disseminadores dos ideais modernistas na literatura brasileira. Publicou dois notáveis manifestos: O Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropofágico. É considerado um grande poeta de nossa literatura, notável por seu ideal combatista na poesia e na sua incansável busca por uma identidade genuína da nossa cultura. É inegável para todos que a literatura brasileira sempre esteve ligada aos padrões estéticos portugueses. Para os Modernistas, uma ruptura com esses padrões era mais do que necessária. Assim como as artes plásticas já haviam rompido com o antigo tradicionalismo estético da beleza através das formas perfeitas e de um modus fazendi que buscava aproximar- se do real, a literatura brasileira precisava romper com os

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Literatura Colonial

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A Carta De Caminha: Uma Perspectiva Oswaldiana

Bruno Santos

"Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

(...)Tupi or not tupi, that is the question (...)."

(Manifesto da Poesia Pau Brasil, Oswald de Andrade,Correio da Manhã, 18 de

março de 1924.)

 

  Oswald de Andrade foi sem dúvida um dos maiores disseminadores dos

ideais modernistas na literatura brasileira. Publicou dois notáveis manifestos:

O Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropofágico. É considerado

um grande poeta de nossa literatura, notável por seu ideal combatista na

poesia e na sua incansável busca por uma identidade genuína da nossa

cultura. É inegável para todos que a literatura brasileira sempre esteve ligada

aos padrões estéticos portugueses. Para os Modernistas, uma ruptura com

esses padrões era mais do que necessária.  Assim como as artes plásticas já

haviam rompido com o antigo tradicionalismo estético da beleza através das

formas perfeitas e de um modus fazendi que buscava aproximar-se do real, a

literatura brasileira precisava romper com os tentáculos que a prendiam à

Europa, ao passadismo, e buscar uma nova identidade, livre e genuinamente

brasileira.

  É nesse cenário de busca pela firmação da cultura e literatura brasileiras que

o poeta modernista Oswald de Andrade aparece. Oswald opôs-se aos

convencionalismos, ao falar/escrever rebuscado em prol de uma linguagem

despida do velho erudito e arcaico e mais comum. Seria a língua “sem

arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de

todos os erros. Como falamos. Como somos”. Defendia a poesia ingênua,

sendo essa ingenuidade um desapego aos padrões do que é e de como se faz

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arte. Segundo escrito em seu manifesto, “[a poesia deveria ser] ágil e cândida.

Como uma criança”. Com o Manifesto Pau-Brasil (publicado em 1924), Oswald

de Andrade expõe seu desejo de tornar a cultura brasileira uma cultura de

exportação, assim como o pau-brasil outrora fora produto brasileiro vendido ao

mercado europeu. Defende que a sua poesia “seja um produto cultural que não

deva nada à cultura européia e que possa, inclusive, vir a influenciá-la” [1].

Graças ao Futurismo e ao Cubismo europeus, a arte mais avançada ganhara

elementos de cultura africana e polinésia (e por que não brasileira?).

  Com os olhos voltados para as origens do Brasil, vários cronistas e poetas

contemporâneos se lançaram numa empreitada que culminaria numa releitura,

reescrita e reinvenção dessas origens. E, como era de se supor, o documento

alvo das atenções dos modernistas foi a carta de Pero Vaz de Caminha ao

então Rei D. Manuel, nossa certidão de nascimento que, além de conter os

fatos(?) históricos e os detalhes das (re)ações dos portugueses em terras

brasileiras, mostra-nos o quão tendencioso um simples documento que

pretende ser puramente descritivo pode se tornar quando o que se está em

jogo são interesses pessoais. Através dos modernistas como Oswald de

Andrade, a história passa a ser vista como um misto de contradições e que

mostra-se necessária uma investigação crítica do processo de colonização

brasileira.

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   A ousada proposta do poeta Oswald de Andrade é a da reconstrução da

história do Brasil aos olhos não do explorador, mas do explorado. E, como bem

se sabe, toda reconstrução implica, de certo modo, numa desconstrução. A

proposta oswaldiana era de uma reconstituição do “descobrimento” a partir da

visão do outro (o índio), repudiando as visões etnocêntrica, unilateral e política

do colonizador.

  A sua poesia pretende ser irônica e ambígua, como no título “Pero Vaz

‘Caminha’” (“caminha”, “percorre”, “explora”) e nos versos “Os selvagens/

mostraram-lhe uma galinha” (selvagens: os índios ou os portugueses?). Tudo

isso constitui-se num jogo semântico.  Mas toda essa irreverência só acontece

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para tornar real sua ideologia combativa e a busca da definição da cultura

brasileira.

  Oswald explora também a presença do cômico nas linhas da carta. Essa

comicidade é patente nos relatos de Caminha sobre as índias e suas

“vergonhas expostas”. Para o olhar português advindo de uma cultura onde a

nudez explícita é torpe e pecaminosa, a ausência de pudor no comportamento

das índias é notável. Vemos também uma denúncia nos versos “as meninas da

gare/ eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis”, de “A descoberta”,

que denotam a transformação dessas índias em mero objeto sexual dos

portugueses.

  Além da desconstrução dos fatos pseudo-históricos dos portugueses, Oswald

propõe uma desconstrução da imagem do índio feita por Caminha: um nativo

dócil e que de modo algum poderia subestimar a inteligência do europeu

branco e letrado. Essa docilidade entra em contradição com a própria história,

que nos mostra que houve sim resistência indígena. Os dados falam por si só.

Segundo estudos de demografia histórica, a população de índios no Brasil

chegava a cinco milhões (Borah 1962, 1964; Dobbyns e Thompson 1966),

caindo, durante os séculos seguintes, para 519.000 - 0,4% da população do

país [2]. Isso mostra que os índios ao longo dos séculos foram dizimados,

lutando uma luta desigual, sendo massacrados física e culturalmente.

  Oswald de Andrade denuncia também a despreocupação do português com a

cultura dos nativos. A partir de um etnocentrismo (des)mascarado, eles

pretendiam impor-lhes suas crenças usando o “ide por todo mundo”[3] cristão

fadado de um sentimento de compaixão por um, religiosamente falando, 

povo incircunciso, buscando disseminar-lhes a fé, mas de modo algum

escondendo suas intenções ideológico-mercantilistas. Ora, esse era o “espírito

da coisa”: dê-lhes religião e bons modos que eles nos dão o que quisermos.

  Como brilhantemente exposto por Oswald de Andrade e outros poetas e

cronistas da contemporaneidade, é preciso se rever nossas origens, quebrar

com alguns paradigmas e ter, acima de tudo, um posicionamento crítico em

relação ao nosso passado. A Carta de Caminha é um documento histórico,

mas não passível de erros, do subjetivismo do escrevente, das suas

impressões ideológicas e de seus pressupostos. Reler, reescrever e recontar

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nossa história significa olhá-la de modo analítico, despindo-nos do que nos foi

passado através da escola e dos livros didáticos: a imagem do Brasil que deve

comemorar momentos deprimentes de sua história.

 

 

 

 

 

NOTAS:

 [1] Pequeno fragmento do Manifesto de Oswald sobre o novo fazer poético

proposto, publicado em 1924.

[2] Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 0,4% são o

que constitui a população indígena atual em solo brasileiro.

 [3] O “ide por todo mundo” cristão significa a missão conferida a cada seguidor

do Cristianismo de disseminar a fé cristã por toda a terra. Como cristãos, os

portugueses não esqueceram-se dessa nobre missão, embora seus desejos

com a evangelização dos novos povos não fossem tão virtuosos quanto os de

Cristo.]