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A BRUXARIA EM HÄXAN: PROVOCAÇÕES, CLICHÊS E TERROR NA REPRESENTAÇÃO DA MULHER THE WITCHCRAFT IN HÄXAN: PROVOCATIONS, CLICHES AND TERROR IN THE WOMAN’S REPRESENTATION Kethlen Santini / UFRGS RESUMO Este artigo propõe reflexões sobre o filme sueco-dinamarquês Häxan: Feitiçaria Através dos Tempos (1922), e explorar as relações entre o entendimento sobre bruxaria e sobre as mulheres consideradas bruxas, e as gravuras e pinturas que aparecem no filme entre elas, gravuras do livro Compendium Maleficarum (1608) e do artista David Teniers, “o jovem” (1610 1690). Serão detalhadas as histórias Anna (Karen Winther), uma jovem moça, e Maria (Maren Pedersen), uma pobre senhora, a fim de questionar os estereótipos que tanto norteiam as representações da bruxa. Por fim, será problematizado o aparecimento da histeria como justificativa para os sintomas e reações das mulheres acusadas de bruxaria. PALAVRAS-CHAVE Bruxaria; representação da mulher; cinema; cultura visual. ABSTRACT This article proposes reflections on the Swedish-Danish film Häxan: Sorcery Through the Ages (1922), and explore the relations between the understanding of witchcraft and women considered witches, and The engravings and paintings that appear in the film - among them, engravings from the book Compendium Maleficarum (1608) and the artist David Teniers, "the young man" (1610 - 1690). It will detail the stories of the characters in the film, Anna (Karen Winther), a young girl, and Maria (Maren Pedersen), a poor lady, in order to question the stereotypes that so much guide the representations of the witch. Finally, the appearance of hysteria as a justification for the symptoms and reactions of women accused of witchcraft will be problematized. KEYWORDS Witchcraft; woman‟s representation; movie theater; visual culture.

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A BRUXARIA EM HÄXAN: PROVOCAÇÕES, CLICHÊS E TERROR NA REPRESENTAÇÃO DA MULHER

THE WITCHCRAFT IN HÄXAN: PROVOCATIONS, CLICHES AND TERROR IN

THE WOMAN’S REPRESENTATION

Kethlen Santini / UFRGS

RESUMO Este artigo propõe reflexões sobre o filme sueco-dinamarquês Häxan: Feitiçaria Através dos

Tempos (1922), e explorar as relações entre o entendimento sobre bruxaria e sobre as

mulheres consideradas bruxas, e as gravuras e pinturas que aparecem no filme – entre elas,

gravuras do livro Compendium Maleficarum (1608) e do artista David Teniers, “o jovem”

(1610 – 1690). Serão detalhadas as histórias Anna (Karen Winther), uma jovem moça, e

Maria (Maren Pedersen), uma pobre senhora, a fim de questionar os estereótipos que tanto

norteiam as representações da bruxa. Por fim, será problematizado o aparecimento da

histeria como justificativa para os sintomas e reações das mulheres acusadas de bruxaria.

PALAVRAS-CHAVE Bruxaria; representação da mulher; cinema; cultura visual.

ABSTRACT This article proposes reflections on the Swedish-Danish film Häxan: Sorcery Through the

Ages (1922), and explore the relations between the understanding of witchcraft and women

considered witches, and The engravings and paintings that appear in the film - among them,

engravings from the book Compendium Maleficarum (1608) and the artist David Teniers, "the

young man" (1610 - 1690). It will detail the stories of the characters in the film, Anna (Karen

Winther), a young girl, and Maria (Maren Pedersen), a poor lady, in order to question the

stereotypes that so much guide the representations of the witch. Finally, the appearance of

hysteria as a justification for the symptoms and reactions of women accused of witchcraft will

be problematized.

KEYWORDS Witchcraft; woman‟s representation; movie theater; visual culture.

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SANTINI, Kethlen. A Bruxaria em Häxan: Provocações, Clichês e Terror na Representação da Mulher, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1001-1015.

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Figura 1. Detalhe de cena do filme Häxan (Svensk Filmindustri, 1922)

Um padre acusa uma mulher jovem de bruxaria porque ela lhe tocara no braço. Uma

senhora idosa é agredida e torturada até a morte pelos inquisidores. Uma jovem

mulher é chantageada por padres até que ela assumisse que era bruxa – em troca,

enganosamente, veria seu filho. Uma freira vê o “demônio”, mostra a língua e

desafia sua superior, demonstrando estar possuída [figura 1]. Mulheres que pisam

em um objeto com aspectos de cruz e beijam as nádegas desse “demônio” em um

ritual semelhante ao Sabá. Häxan: Witchcraft Through the Ages (título original), é um

filme de terror mudo sueco-dinamarquês em estilo documentário, de 1922, escrito e

dirigido pelo diretor de cinema, roteirista e ator dinamarquês Benjamin Christensen

(1879 – 1959), o qual traz todas essas situações. Da sátira ao terror, construído a

partir do discurso apoiado em representações visuais, Häxan não só se destaca na

história específica do campo cinematográfico, como nos ricos detalhes

iconográficos, mas também na pertinência do tema.

Com caráter didático, Christensen exibe diversas gravuras e obras de arte para

apresentar a temática da bruxaria dentro da história e da arte. O filme pode fazer o

espectador ter, de alguma forma, a consciência da maneira como se pensava o

tema sobre bruxaria e feitiçaria no início do século XX, ao citar estudos de caráter

histórico e científico, como veremos a seguir. Häxan tenta realizar uma reavaliação

do passado ignorante, como James Kendrick (2013) analisa, apresentando algumas

soluções ceticistas para desmitificar esse universo do ocultismo. O diretor e autor do

filme parte das imagens de obras de arte de diversos momentos da história da arte,

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entre elas gravuras e pinturas, para, além de servir como fonte, também “explicar”

sua linha de pensamento. O que isso poderia significar?

Se não bastasse todo o grande valor simbólico das obras de arte servindo como

referência histórica e social, o próprio filme será tratado aqui como objeto de arte.

Muitos filmes mudos se perderam ou foram descartados, segundo James Kendrick

(2013), em virtude do desgaste e das ações do tempo. Häxan reforça sua

importância quando, duas décadas depois da estreia, é relançado em 1941, já com a

inserção do som e, em 1968, é apresentado em uma versão reduzida de tempo, com

77 minutos. A saber, o filme estreou no mesmo ano em que foi lançado Nanook of

the North (1922), de Robert Flaherty (1884 – 1951) – geralmente considerado,

segundo Kendrick, o primeiro documentário de longa-metragem –, e Nosferatu, Eine

Symphonie des Grauens (1922), de Friedrich Wilhelm Murnau (1888 – 1931),

considerado por muitos como um dos filmes que guinaram o gênero de terror na

modernidade. Dessa forma, Häxan pertence ao conjunto de filmes que

revolucionaram o terror cinematográfico e que, de uma maneira única, trouxe o tema

da bruxaria que até hoje, em meados do século XXI, não se trabalhou da mesma

maneira. Mesmo assim, o filme permanece obscuro para muitas pessoas até os dias

de hoje.

De início, é indispensável compreender o contexto histórico em que o filme foi feito.

Esse ainda estava em processo de elaboração, quando a Europa passava por um

momento de luta feminina. As mulheres trabalhavam pela conquista do direto ao

voto, iniciada ainda no século XIX. Em 1884, na Grã-Bretanha, conforme Antônio

Ribeiro (2012) analisa, dois terços das mulheres já tinham o direito ao voto, baseada

em uma norma legal na qual elas eram consideradas "proprietárias" e, como os

homens, elas podiam votar, se tivessem propriedades. Não abarcando as classes

mais baixas, as mulheres insatisfeitas passaram a protestar publicamente,

resultando quase sempre na prisão das ativistas, chamadas então de suffragettes

(sufragistas). Quando Emily Davison, em junho de 1913, joga-se na frente do cavalo

do rei durante uma prova hípica, causa-se uma maior onda de protestos, além de

uma maior visibilidade do movimento, tendo finalmente, em 1929, a liberdade ao

voto para todas a partir dos 21 anos. Na Europa, várias deputadas foram eleitas em

seus países. Segundo Ribeiro, logo após a concessão do direito do voto feminino na

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Noruega e na Suécia - este último que teve em 1919 a liberdade ao voto feminino -,

as mulheres eleitoras se tornaram rapidamente número superior aos dos homens. E

porque trazer a questão do voto feminino? Pois, ao final de Häxan, será visto a

teoria da histeria como justificativa para o sentimento e a reação das mulheres

consideradas bruxas, com o retorno de algumas cenas e sua explicação vista pela

ciência. Essa mesma acusação da mulher histérica será feita para aquelas que

lutavam para conseguir seus direitos. Elas seriam, enfim, todas histéricas.

Nesse período, segundo Kendrick (2013) Christensen passou dois desses anos, de

1919 a 1921, pesquisando a história da feitiçaria e do culto ao Diabo. Entre as obras

pesquisadas estariam o livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras, 1487) e

roteiros de peças teatrais. Por isso, o diretor descreve seu filme como uma

apresentação do ponto de vista cultural e histórico do tema (HÄXAN, 1922, cap. 1).

A partir da estrutura cinematográfica da época, o filme é dividido em sete partes. O

filme poderia ser segmentado em três etapas: [1] apresentação histórica, [2]

universo prático da bruxaria e da Inquisição, e [3] descoberta da histeria.

Dentro da questão estética, são vistas cenas que oscilam entre as cores azul e

vermelho, uma referência dos filmes expressionistas nórdicos, muito influenciados

pelo expressionismo alemão. Esses filmes utilizaram muito, no geral, de

interpretações exageradas e teatrais, além de uma iluminação contrastante a fim de

revelar o estado psicológico dos personagens, e grande estilização de cenários,

maquiagem e figurinos, tornando-se um elemento vivo da cena.

Capítulo 1 – Apresentação histórica O capítulo 1 é intitulado A Bruxa (todos os outros seis não têm título próprio) e é nele

que se pode ter uma ideia da vasta pesquisa realizada pelo diretor. Essa pesquisa

dá o embasamento para o cineasta afirmar que as crenças em magia e bruxaria

estão desde sempre presentes ao longo da história. Acreditar em espíritos malignos,

magia e feitiçaria seriam o resultado de “noções ingênuas sobre os mistérios do

universo” (HÄXAN, 1922, cap. 1). Christensen utiliza da teoria do egiptólogo francês,

Gaston Maspero (1846 – 1916), para apresentar em uma “maquete” a crença

egípcia sobre o universo. Trabalha a questão da visão teocêntrica do Medievo, com

Deus acima de toda ordem natural. O autor utiliza também a pesquisa do

egiptólogo, Rowlinson (1812 – 1902), cujo estudo foi de que algumas crenças de

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antigas civilizações acreditavam que o céu seria a abóboda, a terra seria o terraço e

os demônios viveriam no centro da terra. O cineasta complementa a pesquisa com o

historiador Paul Lacroix (1806 – 1884), também conhecido como P. L. Jacob, autor

do livro The Arts in the Middle Ages, and at the Period of the Renaissance (1875),

que dá detalhes de algumas leituras iconográficas da Idade Média e Moderna, como

a inserção do “demônio” e da “bruxa” no imaginário da época.

O diretor cita o livro A Vida Alemã do passado em Pinturas (HÄXAN, 1922, cap. 1)

como uma das fontes mais utilizadas para ilustrar em imagens as informações

obtidas. Em várias delas, seriam os espíritos malignos que vagavam pela noite

roubando crianças. Não referenciadas no filme, algumas das imagens apresentadas

[figura 2] foram retiradas do livro do jurista Ulrich Molitor (1442 – 1508), que

escreveu De Laniis et phitonicis mulieribus (Sobre As Bruxas e Adivinhos, 1489) em

latim e alemão, como um contraponto ao Malleus Maleficarum. E principalmente,

utilizou das ilustrações do livro Compendium Maleficarum (1608), de Francesco

Guazzo, cuja riqueza de informações se dá nos detalhes: das fogueiras para as

mulheres que estavam ligas aos espíritos do mal, acusadas pelos Inquisidores; e

dos possíveis feitiços malígnos que eram feitos nas aldeias a fim de causar

malefícios para quem quer que seja ou para quantas pessoas fossem [figura 3].

Figura 2. Imagem reproduzida no filme Häxan (Svensk Filmindustri, 1922)

Ulrich Molitor, De Laniis et phitonicis mulieribus, 1489

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Figura 3. Imagem reproduzida no filme Häxan (Svensk Filmindustri, 1922)

Francesco Guazzo, Compendium Maleficarum, 1608

O diretor do filme afirma que "[...] a crença nos espíritos malignos, bruxaria e

feitiçaria é o resultado de noções ingênuas sobre o mistério do universo" (HÄXAN,

1922, cap. 1). Kendrick lembra em sua análise que o diretor reconhecera o prazer e

o potencial da encenação dessas “crenças ingênuas” na tela. Aliás, se perceberá no

decorrer do filme as recriações das cenas presentes nas gravuras, esculturas e

pinturas para a atuação, personagens e o cenário. Grande parte de Häxan,

conforme Kendrick analisa, é de fato organizado em torno da ação de trazer essas

imagens artísticas para a ficção.

Em relação à questão das “crenças ingênuas” sobre o tema, Carlo Ginzburg irá

desmitificá-la. Aliás, ele critica, em sua obra História Noturna (2012), a postura dos

pesquisadores do tema sobre a feitiçaria e o Sabá: “Impressiona, sobretudo o fato

de que essas pesquisas, com pouquíssimas exceções, continuaram, como no

passado, a concentrar-se de forma quase exclusiva na perseguição, dedicando

interesse menor ou nenhuma consideração às atividades e aos comportamentos dos

perseguidos” GINZBURG, 2012, p.11). Esse ponto de vista pode ser muito bem

compreendido se pegar Häxan como exemplo, já que, apesar de utilizar poucas

imagens de gravuras, pinturas e esculturas para mostrar alguns exemplos de

deidades e rituais pagãos, a maior parte do filme interessa-se em apresentar

somente as vítimas e seu universo particular do ponto de vista do acusador, isto é,

dos inquisidores cristãos.

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Christensen, ainda nessa primeira parte, introduz algumas informações e imagens

sobre o Sabá – uma visão, como afirmado acima, baseada nas descrições dos

acusadores. Ele apresenta o “unguento das bruxas”, que era o que as faziam voar.

Informa que Satã dava nomes de demônios para todos e as bruxas beijavam as

nádegas do Demônio em sinal de respeito. Em Häxan, a saber, o diretor parece não

pensar no pudor quando encenou esse ato, algo chocante para a década de vinte.

Abaixo [figura 4 e 5], temos a imagem da gravura de Guazzo e a cena – qualquer

semelhança não é mera coincidência.

Figura 4. Imagem reproduzida no filme Häxan (Svensk Filmindustri, 1922)

Francesco Guazzo, Compendium Maleficarum, 1608

Figura 5. Imagem retirada do filme Häxan (Svensk Filmindustri, 1922)

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Capítulo 2 ao 5 – Universo prático da bruxaria e da Inquisição Para dar seguimento aos estudos feitos por Christensen, o capítulo 2 serve de

transição da arte bidimensional para a atuação e cenário. O filme se direciona para o

grande imaginário das histórias de feitiçaria e ocultismo, apresentando alguns

exemplos de feitiçaria. Christensen nos induz a concluir que as pessoas acreditavam

tanto em demônio, feitiçaria e em bruxaria que eles se tornavam real (HÄXAN, 1922,

cap. 2). Nessa pequena confusão do que era ou não considerado “bruxaria”, insere-

se aqui a constatação de Jules Michelet (2003), importante teórico do tema1, em

que, a partir da maioria ser do gênero feminino, afirma que:

Não faltaram as injúrias. Chamaram às feiticeiras sujas, indecentes, impudicas, imorais. No entanto, os seus primeiros passos nesta via foram [...] a bondade e a caridade. Por uma monstruosa perversão de ideias, a Idade Média encarava a carne, na sua representante (amaldiçoada desde Eva), a Mulher, como impura. (MICHELET, 2003, p.9)

É no capítulo 3 que Christensen brincará com os vários perfis e ações suspeitas das

acusadas. A saber, o autor apresenta as obras dos estudiosos de cultura e história,

Franz Heinemann, de Rituais e Direitos na Alemanha do Passado, e Edward Fuch

(1970 – 1940), de História e Costumes, como suas fontes de estudo. Uma longa

narração, que vai até o capítulo seis, contará a história de duas mulheres que se

cruzam em um determinado momento, mas que terão meios e maneiras diferentes

de serem acusadas de “bruxaria” e de serem julgadas. Uma era jovem e bela. A

outra era idosa, denominada “mendiga” (HÄXAN, 1922, cap. 3). Explicita-se aqui o

problema dos estereótipos da mulher considerada bruxa que se faz necessário

entender. A autora Mirelle Dottin-Orsini (1996) lembra que, no fin-de-siècle, tinha-se

a imagem da mulher idosa como sinônimo de feiura. Apresentando o pensamento

que perdurara por séculos sobre o assunto, a autora lembra que Otto Weininger

(1880 – 1903) se utilizara da ideia da mulher “ser feia” de Schopenhauer (1788 –

1860):

É a mulher velha que revela a realidade da mulher [...] a mulher não é bela [...] se a mulher fosse bela, não haveria bruxas. A bruxa é para ele, „a manifestação concreta do horror feminino (velhice e feiura). Com isso, ele revelaria, acima das ilusões românticas, a verdade da mulher‟. (WEININGER apud DOTTIN-ORSINI, 1996, p.61)

Por isso, no filme, é a mulher jovem e bela, chamada Anna (Karen Winther), que

acusa Maria (Maren Pedersen), a fiandeira e uma senhora “feia”, de ser praticante

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de bruxaria [figura 6], visto que não teria outra explicação para os fatos ruins que lhe

aconteciam. A própria personagem cai no perfil que era e ainda é difundido, quase

como uma obviedade – e é isso que o diretor de Häxan pretendia. Kendrick analisa

que Christensen lança a “velha patética” como peão sem culpa – já que, até então,

ela não havia feito nada – e, com a tortura, de repente, a faz "confessar" todo tipo de

acontecimento diabólico. Assim, ele recria detalhes do Malleus Maleficarium como,

por exemplo, o fato de Anna ter acusado Maria pela morte de seu marido:

[Bruxas] São as que, pela permissão de Deus, perturbam os elementos – as forças da natureza -, são as que confundem a mente dos homens, conduzindo-os à descrença em Deus, e que, pela força terrível de suas fórmulas malignas, sem qualquer poção ou veneno, matam seres humanos. (KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 74)

Figura 6. Detalhe da cena do filme Häxan (Svensk Filmindustri, 1922)

É nessa mesma parte do filme que Christensen introduz outro drama: o servidor da

Inquisição, chamado John (Elith Pio) [figura 7], que, no filme, “sente algo como fogo

quando a donzela o toca” (HÄXAN, 1922, cap. 3), no momento em que Anna vai

pedir ajuda para denunciar a “velha bruxa”. O diretor de Häxan cita: “noviço servidor

da Inquisição não pode trocar palavras com uma desconhecida” (HÄXAN, 1922, cap.

3), sendo uma das regras impostas pelos religiosos para se proteger das ameaças

ocultas, como indicadas abaixo:

Pois que os homens não são apanhados apenas pelo desejo carnal quando veem e ouvem outras mulheres. Diz-nos São Bernardo: “o seu rosto é como vento cáustico e a sua voz como o silvo das serpentes: lançam conjuros perversos sobre um número incontável de homens e de animais”. [...] E suas mãos são como algemas para

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prender: quando botam as mãos numa criatura, conseguem enfeitiça-la com o auxílio do Diabo. (KRAMER; SPRENGER, 2015, p.128)

Sobre esse assunto, Dottin-Orsini (1996) observa que, no que poderia se chamar de

uma mitologia da feminilidade, “a mulher fatal não é apenas a mulher que mata. Ela

se confunde também com a megera [...] daquela que estraga a vida de um homem,

como a depravada de imoralidade contagiosa, como a beldade de nefasto poder”

(DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 15). Aliás, o medo da mulher teria uma longa tradição

que remonta aos hebraicos e à Antiguidade clássica, segundo o professor de

História Medieval da USP, Carlos Nogueira. Para os gregos, Pandora, o presente

dado aos homens por Zeus, "um mal em que todos, no fundo do coração, se

deleitarão em rodear de amor sua própria desgraça. [A mulher] foi a responsável

pela introdução de todos os males do mundo" (NOGUEIRA, 1991, p. 104).

Figura 7. Detalhe do filme Häxan (Svensk Filmindustri, 1922)

Esse mesmo personagem fiel à Igreja irá se flagelar em virtude do toque da moça e

do sentimento causado. Ao ver John vítima de um “feitiço” (possível ironia de

Christensen ao clero), seus colegas decidem que a dama, antes acusadora de

bruxaria, se torna a acusada. Lembrando aqui o que os escritores do Malleus

definiram:

Tais encantamentos podem ser classificados em três tipos: [...] há o da ilusão dos sentidos – que realmente podem ser produzidas por magia [...]; em segundo lugar, da fascinação pelo encanto e pela sedução [...]; em terceiro lugar, há o feitiço lançado pelo olhar sobre outra pessoa que pode ser prejudicial e maligno. (KRAMER; SPRENGER, 2015, p.77)

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Dessa análise dos estereótipos, é importante frisar através da observação de Jules

Michelet (2003): supôs-se das maneiras mais fáceis que a mulher considerada

feiticeira foi sempre feia e velha, pois: “À palavra Feiticeira, veem-se as horríveis

velhas de Macbeth, os processos cruéis, no entanto, mostram o contrário. Muitas

morreram precisamente por serem jovens e belas” (MICHELET, 2003, P.12). A

saber, em uma das cenas Christensen afirma que “na época das bruxarias era

perigoso ser velha e feia, mas também não era seguro ser jovem e bonita” (HÄXAN,

1922, cap. 3).

Refletindo, então, sobre a imagem da mulher, pergunta-se: teria como alguma

mulher estar livre de acusações? Ao lado dessa questão, com a história de Häxan,

pode ser observado uma das principais formas do comportamento masculino em

relação à mulher: “a imagem da mulher fatal, complacente e gratificante no plano da

arte [visuais ou cinema], cristaliza de maneira espetacular a ambivalência da atitude

masculina diante do feminino [...]: fascinação e repulsa, adoração submissa e ódio

agudo (poderíamos dizer histérico?), desejo de aconchego e terror incontrolável”

(DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 22).

Em seguida, no capítulo 4, o ritual do Sabá é trazido como papel. E é aqui que o

humor prevalece, em que Christensen atua como Satanás, interpretando o papel de

forma “operística”, como define Kendrick, balançando a língua, tornando seu

personagem um Deus humorado, ao invés de assustador. Além disso, vê-se em

uma cena anterior, as mulheres partindo para o Sabá, podendo ser uma rápida

referência2 a obra de David Teniers, “o jovem” (1610 – 1690) [Figura 8], onde duas

mulheres cultuam rituais encantatórios no centro, um “demônio” está próximo delas;

uma espécie de Íncubo tocando um instrumento musical, e bem ao fundo, o

principal: uma senhora auxiliando uma jovem a voar com a vassoura, situação que é

muito semelhante à do filme.

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SANTINI, Kethlen. A Bruxaria em Häxan: Provocações, Clichês e Terror na Representação da Mulher, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do 26o Encontro da Anpap. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017. p.1001-1015.

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Figura 8. Depois de David TENIERS, “o jovem”

Sem título, 1675-1725 Gravura 20,7x28,9cm

British Museum, Londres, Inglaterra3

Dentro das histórias mais difundidas sobre a feitiçaria na Idade Média, no capítulo 5,

o diretor apresenta o movimento realizado pelos inquisidores para “descobrir” os

verdadeiros culpados das acusações. Ambas as personagens, Maria e Anna, são

torturadas até assumirem que eram bruxas. O pesquisador Nogueira (1991) já

observou que, a partir da detenção preventiva, a acusada já era tratada como uma

verdadeira culpada; a condenação e a tortura prévia arrancavam os nomes de novos

cúmplices sem que o defensor pudesse intervir.

Capítulo 6 e 7 – Descoberta da histeria É no capítulo 6 que serão apresentados os diversos materiais utilizados para a

tortura. Nesse momento, o filme volta a lembrar seu gênero de terror, já que é

explícita a maneira como as acusadas eram torturadas. Surge aqui novamente o

exemplo da personagem Maria. A tortura ocorre não somente com materiais, mas

com terror psicológico, este que o diretor de Häxan denuncia ao apresentar o clero

se divertindo com as reações tanto de Maria, quanto de Anna, tal atitude

representando também duras críticas a eles, mostrando a ignorância e o medo que

tinham do que não conheciam.

Christensen tenta justificar todo esse imaginário em cima das questões de feitiçaria

e bruxaria no último capítulo, introduzindo os últimos estudos de psicologia da

época. Além da Cleptomania e do sonambulismo, a histeria feminina vai ser a

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principal justificativa para as diversas características e comportamentos que as

mulheres tinham. Através de Jean-Martin Charcot (1852 – 1893), a participação

mágica atinge um estatuto de "neuropatologia". Sigmund Freud (1886 – 1939)

escreve no obituário de seu mestre: "Charcot [...] baseou-se extensamente nos

relatórios ainda existentes de processos de bruxaria e possessões demoníacas,

para demonstrar que as manifestações da neurose (histeria) eram as mesmas, tanto

naquela época como atualmente" (CHARCOT apud NOGUEIRA, 1991, p.71). Sobre

a falta de sensibilidade nas mulheres acusadas de “bruxaria” a qual seria causada

pelo demônio, na verdade, era um dos sintomas de histeria. Sobre esse problema

que as mulheres foram diagnosticadas, Dottin-Orsini analisa de uma forma sucinta:

A histeria é, primeiramente, uma feminilidade patológica e negativa; é o escândalo feminino em estado puro, a mulher fora de si, isto é, sem pudor, exibindo [...] sua monstruosa sexualidade. [...] A maioria das temíveis características atribuídas à mulher seria contemplada com um termo médico: a insensibilidade tornava-se anestesia, a frigidez, abolição do sentido genésico, a dureza, tetanização, a inconsciência, sonambulismo, a mentira, simulação [...]. (DOTTIN-ORSINI, 1996, p. 233-234)

Freud continuou nas pegadas de Charcot, tornando a bruxaria um problema de

psicopatologia ao afirmar que a possessão por um demônio, quando considerada a

causa dos fenômenos histéricos, solução da Idade Média, seria suficiente trocar a

terminologia religiosa e supersticiosa pela linguagem científica de hoje (FREUD

apud NOGUEIRA, 1991). Daí a possível associação do diretor de Häxan.

Juntamente com Nogueira, que acredita que assimilar a bruxaria a um estado de

doença mental seria algo simplista, senão preconceituosa, advinda da necessidade

de afirmação de uma ciência “[...] que, para se impor, necessitava de um

embasamento e uma justificativa histórica” (NOGUEIRA, 1991, p.118), o final de

Häxan, apesar de contextualizado à sua época, acaba sendo misógino, tanto quanto

as acusações de bruxaria da Inquisição.

Recepção, lembrança e uma nova perspectiva Na mesma época da estreia do filme, segundo Kendrick, os revisores iniciais foram

confundidos pela estética da dita “arte maior” e da “arte menor”. O fato de o filme

apresentar imagens vívidas –ora terríveis, ora exageradas – que possuem em si a

intenção do choque, faz o filme andar por duas linhas: o terror e o grotesco. Em sua

crítica de 1923, um crítico da Variety analisou: "Embora este filme seja maravilhoso,

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é absolutamente impróprio para a exibição pública" (KENDRICK, 2013, tradução

nossa). Não deixando claro, entretanto, se aqui é referido a questão da nudez, da

crítica ao clero ou mesmo do satanismo explícito. Richard Baxstrom e Todd Meyers

acrescentam outra crítica da Film- Kurier magazine, de 1924, mais positiva: “O filme

não é apenas científico e artístico, é um evento ético” (BAXSTROM; MEYERS, 2016,

p.145, tradução nossa). Um crítico do The New York Times escreveu em 1929

(WOOD, 2017): "O quadro é, em sua maior parte, fantasticamente concebido e

dirigido, mantendo o espectador em uma espécie de feitiço medieval. A maioria dos

personagens parecem saídos de Pinturas primitivas". O filme também chamou a

atenção dos surrealistas que, segundo Kendrick (2013), foram conquistados

principalmente pelas críticas ao clero, além da teatralidade que o diretor traz para o

cinema.

Em concordância com James Kendrick (2013), há elementos de Häxan que se

apresentam “excessivamente pedantes”. Considerada “revolucionária”, a teoria de

Christensen da histeria feminina como explicação dos sintomas das mulheres

acusadas de feitiçaria é excessivamente problemático, mas compreensível, de certa

maneira. Isto é, apesar do diretor cair nas ciladas discursivas – situação que ainda

ocorre em pleno século XXI -, cujo impacto hoje, segundo Kendrick é mais evidente

do que era em 1922, Häxan ainda pode ser um filme considerado atrevido. Como?

Pela maneira trabalhada e pelos temas abordados, sem querer disfarçar todo esse

universo que, de certa forma, sempre permaneceu oculto e omitido, quando não

relacionado aos contos de fadas. Christensen cria um filme histórico-fantasioso com

ares de documentário, cuja abordagem se estende por uma linha tênue entre o

desejo original de explorar a história e de cair nas armadilhas da imaginação.

Uma possível justificativa para a lembrança do filme na última década, em eventos

como a IV Jornada Brasileira De Cinema Silencioso, 2010, em São Paulo, e o Ciclo

“A Filosofia e o Cinema Religioso”, promovido pelo Departamento de Filosofia da

UFPel, 2011, no Rio Grande do Sul, pode vir ao que Carlo Ginzburg observa sobre o

tema da feitiçaria: “Renovação histórica, feminismo, redescoberta de culturas

arruinadas pelo capitalismo contribuíram – em vários níveis e em diversas medidas –

para o sucesso e, se quisermos, a moda dos estudos de história da feitiçaria”

(GINZBURG, 2012, p. 11). Além do que já foi especulado, pode se pensar que o

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sutil “esquecimento” do filme pode vir também do fato de que Häxan ficara no

gênero de documentário, com informações históricas artísticas e científicas como

referência, ao mesmo tempo em que satiriza e fantasia sobre o tema, seus aspectos

e seus personagens. De qualquer maneira, é através dele que podemos levantar

perguntas. Por isso, que venham então mais filmes e mais pesquisas para que se

possa, um dia, valorizar e trazer à luz todos os elementos e fundamentos que

ficaram perdidos. Häxan nada mais é do que um espelho do que possivelmente se

acreditava no início do século XX. E hoje, em que acreditamos?

Notas

1 Juntamente com Margaret Murray (1863 – 1963), importante teórica do assunto, com a ideia bastante

contestada de que a Europa conservou o culto a Diana e Janus até o séc. XVII, Jules Michelet pertence a linha de pesquisa romântica do tema da bruxaria e feitiçaria. 2 Imagem essa que aparece na primeira parte do filme, no conjunto das obras de arte. Ela surge recortada,

somente com o detalhe da senhora e da jovem com a vassoura. 3 Disponível:

<http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=3197768&partId=1&searchText=David+TENIERS,+&page=3>.

Referências Bibliográficas BAXSTROM, Richard; MEYERS, Todd. Sex, Touch, and Materiality. In: Realizing the Witch: Science, Cinema, and the Mastery of the Invisible. Fordham University. 2016. Disponível: <http://www.jstor.org>. Acesso em 24 de fev. 2016. DOTTIN-ORSINI, Mirelle. A mulher que eles chamavam fatal: textos e imagens da misoginia fin-de-siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 371p. GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 479 p. HÄXAN: Feitiçaria através dos tempos. Direção: Benjamin Christensen. [S.I.]: Magnus Opus, 1922. 1 DVD (180 min). KENDRICK, James. A witches' brew of fact, fiction and spectacle. KINOEYE. Vol 3 - Issue 11. 13 Out. 2003. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum). Rio de Janeiro: Edições Bestbolso, 2015. 542p. MICHELET, Jules. A Feiticeira. São Paulo: Aquariana, 2003. 142 p. NOGUEIRA, Carlos Roberto F.. Bruxaria e História: A práticas mágicas no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1991. 174p. RIBEIRO, Antônio Sérgio. A Mulher e o Voto. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). 2012. WOOD, Bret. Critic Reviews Of "Haxan". Disponível: <http://games.tcm.com>. Acesso em 24 de fev. 2017.

Kethlen Santini Estudante do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS/PPGAV), no Mestrado com ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (2016). É Bacharela com Láurea Acadêmica no curso de História da Arte pela UFRGS (2015). Suas pesquisas são relacionadas aos estudos iconográficos da mulher considerada bruxa dentro do campo das Artes Visuais.