A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO ADMINISTRATIVO · 2017-02-22 · regime jurídico de...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP THULIO CAMINHOTO NASSA A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO ADMINISTRATIVO MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

THULIO CAMINHOTO NASSA

A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO

ADMINISTRATIVO

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2010

1

THULIO CAMINHOTO NASSA

A BOA FÉ NO REGIME JURÍDICO DE DIREITO ADMINISTRATIVO

MESTRADO EM DIREITO ADMINISTRATIVO

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo / COGEAE, como

exigência parcial para obtenção do título de

MESTRE em Direito Administrativo, sob

orientação do Prof. Doutor Clovis Beznos.

SÃO PAULO

2010

2

BANCA EXAMINADORA

______________________________________

______________________________________

______________________________________

______________________________________

3

AGRADECIMENTOS

À Marlene Caminhoto Nassa (mãe), Fernanda Nogueira Silveira Nassa (esposa),

Giulia Silveira Nassa e Beatriz Silveira Nassa (filhas), mulheres da minha vida, grandes

estrelas que me inspiram, guiam, incentivam e compreendem com esperança as horas

que me dedico ao Direito. Não fossem elas, eu certamente não seria ninguém. Tudo

faço em seus nomes. Com todo meu amor.

Agradeço ao meu pai, Sandoval Antonio Lappa Nassa, jornalista e exemplo de

cidadão, que durante toda sua vida lutou pela democracia e pela defesa dos direitos

individuais e coletivos. Paradoxalmente fez despertar em mim o desejo pela carreira

jurídica, e, em especial, pelo Direito Público.

Agradeço também aos meus irmãos, Thiago Caminhoto Nassa, jornalista, e

Thalissa Caminhoto Nassa, médica veterinária, que compartilharam comigo todas as

descobertas da vida com imensa fraternidade, fortalecendo-me contra os medos e

confortando-me contra as angústias.

Agradeço, de maneira impenhorável, ao meu grande amigo, mestre e exemplo

de vida, Professor Clovis Beznos, que, além da orientação deste trabalho, plantou em

mim e noutros alunos do Mestrado o interesse apaixonado pelo estudo do regime

jurídico de direito administrativo e de seus princípios informadores. Certamente destas

generosas mãos surgirão administrativistas que farão eternos seus ensinamentos, os

quais servem, e muito, ao direito hodierno.

4

Agradeço ao Professor Marcio Cammarosano, pelas contribuições oferecidas a

este trabalho e, sobretudo, por me fazer enxergar o Direito além do horizonte, fruto de

sua visão aguçada.

Agradeço também ao Professor Fernando Dias Menezes de Almeida,

componente da Banca Examinadora representando a Faculdade de Direito do Largo

São Francisco (USP/SP), o que só me honra, sobretudo por ter fornecido valiosas

contribuições sobre os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança.

Por fim, agradeço a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a

realização deste trabalho, como os Professores da PUC/SP Silvio Luis da Rocha

Ferreira, Celso Antônio Bandeira de Mello, Lucia Vale Figueiredo, Maria Garcia, Ricardo

Marcondes Martins, Maria Helena Diniz, Paulo de Barros Carvalho, dentre tantos outros.

5

RESUMO

O objetivo deste trabalho consiste em revelar a boa fé diante do regime

jurídico de direito administrativo, que a contamina e que lhe confere especial

concepção.

Justifica-se a necessidade científica de sua análise pelo fato de que,

muito embora se apresente como princípio fundamental desse ramo do direito,

não recebe da doutrina especializada um tratamento sistemático.

A metodologia empregada caminha no sentido de identificar a origem da

boa fé, analisar seu processo de transposição ao direito administrativo,

conceituá-la, estabelecer suas diferenças com outros institutos jurídicos para

que, ao final, seja possível descrever sua aplicação nas diversas atividades

administrativas.

É tratada nos aspectos subjetivo e objetivo, e também abordada como

fenômeno jurídico da proteção à confiança na tutela do interesse público pelo

administrador, conforme os padrões de conduta exigidos pelo Direito.

Do desenvolvimento desta dissertação, resultou que a boa fé consiste

num princípio dotado de autonomia científica no direito administrativo, e que

incide em praticamente todas as espécies de atividade do Estado, além de

receber da jurisprudência hodierna grande encampação.

Palavras chave: boa fé, boa-fé, confiança, princípio, direito administrativo.

6

RESUME

The objective is to prove the good faith before the legal system of

administrative law, which infects and that its special design.

Justifies the need for its scientific analysis by the fact that, while

presenting himself as a fundamental principle of this branch of law, the doctrine

does not receive specialized treatment routine.

The methodology goes to identify the source of good faith, consider the

process of implementing administrative law, its concept and identify differences

with other legal institutions so that in the end, it is possible to describe its

application in various administrative activities.

It is treated in the subjective and objective aspects, and addressed as

legal phenomenon of intellectual confidence in the protection of the public

interest by the administrator, as the standard of conduct required by law.

Developing this thesis, which resulted in good faith is a principle of

scientific freedom endowed on administrative law, and deals on virtually all kinds

of activity of the state, and receive the case today's big takeover.

Keywords: good faith, confidence, principle, administrative law.

7

SUMÁRIO

PARTE I – INTRODUÇÃO

PARTE II – DESENVOLVIMENTO

Capítulo I – O instituto da boa fé.

1 – Origem filosófica na Grécia...............................................................14

2 – Origem no Direito Romano...............................................................20

3 – A boa fé no Direito Alemão...............................................................24

4 - A boa fé no Direito Civil Brasileiro.....................................................28

5 – A boa fé positivada como princípio geral no Direito Brasileiro .........31

Capítulo II – O direito administrativo, seu regime jurídico e a boa fé.

1– Metodologia.......................................................................................37

2 - Breve relato sobre a formação do direito administrativo. O Estado de

Direito.....................................................................................................38

3 - Relação de administração.................................................................42

4 – O “dever-poder” no exercício de função administrativa....................44

5 – O regime jurídico de direito administrativo e a boa fé......................46

6 – Classificação principiológica no regime administrativo....................53

8

Capítulo III – A boa fé administrativa.

1 – Análise do conceito na doutrina internacional (o conceito de Jesus

Gonzáles Peres).....................................................................................60

2 - Análise do conceito na doutrina nacional..........................................69

3 - Conceito próprio de boa fé administrativa.........................................81

4 – Boa fé administrativa objetiva e subjetiva........................................85

5 – Relações e diferenças com outros termos do direito

administrativo.........................................................................................89

5.1 - Desvio de poder.....................................................................90

5.2 -. Proporcionalidade.................................................................93

5.3 - Moralidade administrativa.......................................................97

5.4 – Improbidade administrativa..................................................104

5.5 – Segurança Jurídica .............................................................106

5.5 - Dever de “boa administração”..............................................109

Capitulo IV – Aplicação do princípio da boa fé administrativa.

1. Introdução.......................................................................................112

2. A boa fé e o ato administrativo........................................................113

2.1. Sujeito...................................................................................115

2.2. Motivo....................................................................................121

2.3. Causa....................................................................................123

2.4. Finalidade..............................................................................124

2.5. Formalização.........................................................................127

9

3. A boa fé e o processo administrativo..............................................132

3.1. Processo e procedimento......................................................132

3.2. A boa fé no processo administrativo federal.........................133

4. A boa fé em face do exercício de competência vinculada e

discricionária.......................................................................................140

5. A boa fé e os contratos administrativos..........................................147

5.1. Contratos da Administração e contratos administrativos......147

5.2. Os contratos regidos pela Lei Federal 8.666/93...................149

PARTE III – CONCLUSÃO

PARTE IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

10

PARTE I – INTRODUÇÃO

Após o reconhecimento de que o Direito, como sistema, não contém

apenas regras literais, mas, especialmente, que também seleciona e positiva

valores da experiência humana, e assim o faz exatamente para preencher o

sentido e a finalidade das normas jurídicas, passou a fazer parte da rotina do

cientista o papel de investigar o elemento comumente denominado princípio

jurídico.

Isto porque, numa visão dinâmica, sistemática, e ao mesmo tempo

juspositivista do direito (ao menos numa concepção mais atual do positivismo

jurídico), regra (lei stritu sensu) e princípio (valores juridicizados) precisam se

interagir constantemente, numa relação lógica entre a positivação legal dos

comandos permitidos, proibidos e obrigatórios (que são as regras), com o

sentido e a finalidade que o Direito atribui a mesmos comandos (aferíveis pelos

princípios).

Nesse linha, o presente trabalho tem por finalidade o estudo mais

aprofundado do princípio da boa fé no direito administrativo e não apenas de

uma ou outra norma legal que sobre ela eventualmente viesse a dispor.

Inicialmente será abordada a origem da boa fé (ainda que forma

sintética), já que, na medida em que o Direito seleciona e recolhe da realidade

humana um objeto que lhe é externo, se afigura adequado que a ciência do

direito, para melhor descrevê-lo, possa conhecer a realidade na qual se

configurou.

11

Em outras palavras, ao conhecer melhor a boa fé em si mesmo, será

possível descrever sem grandes distorções aquilo que o Direito resolveu colher

de fora para dentro de seu sistema.

Nesse sentido, o objeto de estudo será, num primeiro momento,

identificar o princípio na sua origem, especialmente no campo da filosofia (o que

será feito, frisa-se, de forma resumida, tendo em vista o escopo do trabalho),

para depois analisarmos sua evolução na história, e, ao final, ser possível

enxergar seu processo de positivação pelo direito atual.

No entanto, ao mesmo tempo em que se justifica a importância desta

metodologia cognitiva, alerta-se para o fato de que, ao jurista importará, no final

do processo de escolha, o princípio projetado pelo Direito e não o princípio

enquanto mera realidade exterior.

Ou seja, o estudo do princípio anterior ao sistema será útil para

apreendermos seu conceito, mas por óbvio não poderá fundamentar, por si só,

sua aplicação jurídica.

Isto porque, nesse processo de passagem, o princípio que está dentro do

campo do Direito sofre alterações em relação ao valor original, e isso ocorre

exatamente pela carga de influência que recebe de outros valores juridicizados,

que também gravitam a mesma órbita jurídica.

Será possível perceber que a boa fé projetada no Direito, muito embora

concebida fundamentalmente pela filosofia grega, apresentará alguns contornos

peculiares, os quais se tornam ainda mais sensíveis em face do direito hodierno.

12

Nesse trecho do trabalho, procuraremos demonstrar que a boa fé,

atualmente, emergiu no sistema como princípio geral, aplicável portanto a todos

os ramos do direito.

Conhecida originariamente e explicitada sua positivação jurídica, a

proposta do trabalho passa a ser, a partir de então, descrever a boa fé

especialmente no regime jurídico de direito administrativo, a fim de que

possamos visualizar a projeção do princípio que nele se delineia de forma ainda

mais categórica (razão pela qual passaremos a denominá-la como boa fé

administrativa).

Diante deste objetivo, o presente trabalho buscará superar uma sensível

dificuldade, qual seja, o fato de que a doutrina nacional e quiçá internacional,

infelizmente, não se dedicaram com o devido mister no delineamento do regime

jurídico de direito administrativo, isto é, tomado como objeto principal do estudo

científico (ou seja, tomado em si mesmo, e não apenas pelo estudo das normas

que dele se projetam) - tal registro, aliás, pode ser constatado na monumental

obra de Celso Antônio Bandeira de Mello, em Curso de Direito Administrativo 1.

Não obstante, sabe-se que a análise de um regime jurídico seria o

método científico-descritivo que permitiria conhecermos sua estrutura e seus

elementos formadores, isto é, que possibilitaria identificar o conjunto que faz

emanar sentido próprio às normas (princípios e regras). Assim, tal lacuna

doutrinária tem provocado, em muitos casos, a inadequada percepção dos

princípios que deveriam ser desenhados especialmente no âmbito do direito

administrativo. 1 Bandeira de Mello, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo, 22ª Edição, p. 51.

13

Por isso mesmo, o espírito desse trabalho consiste em revelar a boa fé

diante de um regime jurídico próprio, que a contamina e que lhe confere especial

concepção, já que referido princípio vem sendo relegado, muitas vezes, à

doutrina civilista, a qual, muito embora forneça valiosos estudos, é filiada a outra

ramificação sistemática, e, portanto, não poderia ter o papel de esgotar o tema

para o direito administrativo.

Ademais, a boa fé, quando é tratada no campo do direito administrativo,

freqüentemente aparece, sem muita precisão, como simples referência de

moralidade administrativa ou de desvio de poder (muito embora possa existir

relações íntimas de implicação e aproximação entre os termos jurídicos

assinalados), ou seja, como se o estudo destes dois institutos pudesse, de forma

oblíqua, suprir os reclamos jurídicos para a compreensão daquela.

Acredita-se, assim, que essa dissertação poderá contribuir modestamente

para a ciência jurídica, como uma simples semente na missão muito maior de

identificar corretamente um dos princípios que reputamos como relevante no

regime jurídico de direito administrativo, estando positivado pela Constituição da

República, e que, portanto, em razão da existência de um Estado Democrático

de Direito, ainda devemos respeito, independentemente de ser ou não o mais

desejável para determinados setores sociais, e por mais sedutoras que sejam as

razões de ordem meta-jurídica invocadas.

Ainda, ao contrário do que se possa imaginar, entendemos que a

aplicação dos princípios positivados contribui sensivelmente para afastar o

cidadão do risco de interpretações judiciais pessoais e arbitrárias, pois vinculará

14

o juiz a decidir de forma racional, isto é, conforme uma pauta de valores que não

foram eleitos pessoalmente por ele, mas sim por meio de um processo

democrático constituinte e legislativo.

Da mesma forma, pode tornar mais efetivo o controle dos atos

administrativos, uma vez que propicia aos administrados o conhecimento dos

valores que a sociedade, expressada no direito, espera na conduta do

administrador, muito além do simples respeito à formalidade da lei.

Daí que a boa fé administrativa possa funcionar como elemento

importante de controle dos atos administrativos, como verdadeiro princípio

jurídico solucionador de causas judiciais nas quais a “letra fria” da lei (isto é, a

regra isolada do princípio) seria por si só insuficiente - nesse sentido, lembremos

dos êxitos logrados pela razoabilidade no controle do ato administrativo em

competência discricionária, ou da impessoalidade, no caso do nepotismo, dentre

tantos outros.

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PARTE II - DESENVOLVIMENTO

Capítulo I – O instituto da boa fé.

1. Origem filosófica na Grécia. 2. Origem no direito romano. 3. A boa fé no direito

alemão. 4. A boa fé no direito civil brasileiro. 5. A boa fé como princípio geral no direito

brasileiro.

1. Origem filosófica na Grécia.

A expressão exata ou o signo específico denominado boa fé, atualmente

utilizada em termos semânticos para expressar o princípio jurídico que é objeto

deste trabalho, aparece como tal, e originariamente, no direito romano (o que

será tratado no item 2 deste capítulo).

Assinala-se, por isso, que a remissão grega é pouco mencionada nos

estudos a respeito da matéria.2

No entanto, a par do seu significado etimológico, veremos que os ideais

da boa fé, antes dos romanos, já haviam sido detectados pelos filósofos gregos,

sobretudo no campo das regras morais 3.

2 Nesse sentido, vide na literatura brasileira, José Guilherme Giacomuzzi, em “A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública”, Malheiros, 2002, e, na literatura estrangeira, Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, em “Da Boa Fé no Direito Civil”, Coleção Teses, Almedina, 2007. Ainda, a ausência da remissão grega também é sentida na festejado obra de Jesus Gonzáles Peres, quando trata “El Principio General de La Buena Fe en El Derecho Administrativo, 3ª Ed, Madrid, Editora Civitas, 1999. 3 Tomamos a expressão regras morais no sentido que lhe atribui Hannah Arendt, em “Algumas questões de filosofia moral”, p. 113, isto é, como sendo aquelas que dizem respeito à conduta e ao comportamento individual, às regras e aos padrões segundo os quais os homens costumam distinguir o certo e o errado e são invocados para julgar ou justificar os outros e a si mesmo.

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Com efeito, a antiguidade anterior à filosofia grega era marcada pela

reunião da moral em torno da religião, a qual era a fonte criadora dos deveres de

comportamento. Logo, o homem, inserido nesse contexto, deveria se comportar

de acordo com um mandamento divino ou sagrado, ou seja, na obediência pura

a seres supremos, mitológicos, símbolos ou outras coisas imateriais.

Ocorre que os gregos, preocupados em romper com estas tradições,

passaram a estudar, por meio da natureza humana (e não sobre-humana),

padrões de comportamento que pudessem ser racionalmente identificados como

certos ou errados, como virtuosos ou desvirtuosos.

Encontraram, pois, na própria realidade humana de viver em sociedade,

parâmetros objetivos de conduta (standards) que eram necessários para manter

o convívio entre seus indivíduos, tais como aqueles relacionados ao bom pai de

família, ao bom amigo, ao bom cidadão, dentre outros modelos que serviam aos

interesses da sociedade grega, em detrimento da mera vontade individual ou

egoísta de seus membros, ou ainda da vontade arbitrária dos Deuses 4.

Logo, é a partir da razão, ou seja, da observação dialética sobre a

realidade social do homem (e não mais da obediência ao mítico), que os gregos

passam a identificar um conjunto de comportamentos dotados de

perceptível constância na consciência social e que, por isso, deveriam ser

seguidas como certos, virtuosos.

4 Dentre as obras de filosofia grega que tratam da busca das regras de comportamento pela observação da realidade humana, nos baseamos em Platão, por meio da dialética ou técnica de investigação conjunta (“A República”) e Aristóteles, segundo o qual a construção das virtudes se dá pelo hábito, entendido como a ação humana repetida (“Ética a Nicômaco”).

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Como bem disse Hannah Arendt, esse processo de identificação de

comportamentos humanos objetivados por uma sociedade, e de forma racional,

ocorre pela existência da chamada “teia de relações humanas” 5, ou seja, num

processo de exteriorização das ações e discursos de cada indivíduo perante um

grupo ou conjunto social, compondo um conteúdo histórico, concreto e

materializado, da realidade humana, a que todos integrantes, pelo registro

gerado, podem consultar.

Trata-se, portanto, de uma teia, de uma verdadeira e concreta trama

social, na qual os indivíduos deixam sua marcam quando agem e quando falam.

Marcas estas que, ao longo do tempo, demonstrarão a coerência do

comportamento com o discurso de cada indivíduo, bem como os padrões de

comportamentos adotados numa sociedade.

E, exatamente diante deste modelo filosófico, surgem as primeiras idéias

da boa fé, as quais estavam ligadas inicialmente à necessidade da promessa,

ou melhor, da necessidade da coerência entre a palavra e a ação futura de

cada membro da sociedade, o que era registrado exatamente pela “teia de

relações”.

Isto porque, para que se pudesse controlar ou minimizar os riscos da

imprevisibilidade do comportamento humano - o que atentava contra a

subsistência da unidade social - se fazia necessário colher do indivíduo a

palavra da conduta futura segundo a qual se comprometeria a exercer, pois

apenas assim a sociedade poderia dele esperar algo e cobrá-lo nesse sentido.

5 Arendt, Hannah. A condição humana, p.189-191.

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Assim, ao registrar sua promessa na “teia de relações humanas”, tornar-

se-ia possível aferir, concreta e objetivamente, a coerência de sua intenção com

a ação produzida.

Surge, destarte, o que chamamos do dever da boa fé, como condição

necessária para a manutenção do convívio social. Ou seja, torna-se fundamental

que o cidadão cumpra com a conduta prometida ou com a intenção declarada, e,

portanto, nessa medida esperada pela sociedade, sob pena de provocar

verdadeira insegurança contra o “pacto social”.

A boa fé relaciona-se, nesse mister, com a virtude da verdade em

cada pessoa (promessa versus uma ação coerente). Daí fala-se em boa fé

subjetiva.

Além do mais, a partir do registro histórico e continuado das promessas

e das ações realizadas pelos indivíduos componentes na mencionada “teia de

relações”, a própria sociedade (e não mais o indivíduo isoladamente) passa a

escolher aqueles padrões de comportamento (standards) que se mostraram

reiteradamente, e conforme os diversos processos de eleição, mais virtuosos

para a vida social, e que, portanto, todos deveriam adotar daqui para frente, e

isto tudo independentemente da vontade ou da intenção de cada um.

Eis que, de forma concomitante e da mesma raiz filosófica, emerge a

boa fé também no aspecto objetivo. Diz respeito ao dever de exercer a

conduta futura de acordo com padrões eleitos de forma convencional, de

maneira objetiva, e, portanto, independentemente da vontade ou da

promessa específica (traços subjetivos) de um determinado indivíduo.

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Sobre esse processo de eleição de comportamentos esperados, que a

torna objetiva, interessante anotar as idéias já percebidas por Aristóteles e

citadas de forma muito bem garimpada por Camilla de Jesus Mello Gonçalves,

em valiosa obra sobre referido princípio 6 (obra esta com enfoque prevalente no

campo da filosofia e do direito civil).

Vejamos, pois, seu precioso registro: “Aristóteles reconhece que as

ações belas e justas investigadas pela “ciência política não são passíveis de

raciocínios precisos por igual, devendo-se admitir uma variedade e uma

flutuação de opiniões. Diante disso, concluiu que as ações belas e justas não os

são por natureza, mas sim por convenção, devendo-se contentar com a

indicação da verdade por aproximação e em linhas gerais. Essa idéia aplica-se

ao conceito de boa-fé objetiva, pois os parâmetros de conduta são

estabelecidos, por convenção, a respeito do que é desejado e admitido e do que

não é. Por outro lado, a mesma concepção pode ser dirigida as criticas à

utilização de cláusulas abertas, baseadas em sua definição imprecisa, pois a

impossibilidade de exatidão do conceito não o torna maléfico, sendo possível

construir uma idéia de boa-fé "por aproximação e em linhas gerais". Assim,

evita-se a insegurança e permite-se a consideração de elementos importantes

na formulação de respostas pelo Direito.” 7

E, assim, a partir da objetivação convencional dos standars, ocorrida

inicialmente no campo social e antropológico da “teia de relações” (como visto),

é que a boa fé passará para o campo do direito, na medida em que o homem,

6 Princípio da Boa-Fé, Perspectivas e Aplicações, Campus Jurídico, 2008. 7 Idem; cit. p. 14.

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futuramente, positivará padrões sociais de comportamento virtuosos na “teia de

relações” como normas jurídicas, isto é, dotadas de coercibilidade estatal (o que

veremos a partir do item 3 deste Capítulo).

Logo, nesse momento é importante registrar que as primeiras idéias

relevantes da boa fé surgem na Grécia, sendo relevante para esse trabalho fixar

que referido valor aparece na qualidade de espécie de regra moral de

comportamento, que é necessária à manutenção da unidade ou “pacto” da vida

social, e que especialmente se relaciona com o dever de coerência da promessa

de cada indivíduo com sua ação (boa fé subjetiva), bem como do dever de

exercer a conduta futura independentemente de sua vontade, mas de acordo

com standards objetivamente eleitos pela sociedade (boa fé objetiva).

Aí estão, efetivamente, os elementos de formação inicial da boa fé e que

o direito, mais para frente, resolveu encampar, ainda que sobre ela tenha

atribuído especial coloração num dado momento histórico.

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2. A boa fé no direito romano.

Como dito anteriormente, o signo “fé” – do ponto de vista etimológico e

que consta na expressão “boa fé” - proveio dos romanos.

Representava, inicialmente, a deusa mitológica romana denominada

Fides, a qual personificava a confiança da palavra dada. Os juramentos a ela

ocorreriam com a mão direita erguida, tal como a simbologia que se utiliza hoje

em muitos juramentos solenes 8.

Por tal razão, o signo semântico fides que contém esse mesmo sentido

na língua portuguesa curiosamente não é a palavra “fé” (tida como crença

religiosa), mas sim o termo “fidúcia”, podendo ser traduzido pela confiança no

compromisso assumido pela palavra 9.

Já o signo “boa” provém do latim bonna e representa o adjetivo ‘bom’ no

feminino, ou seja, positiva, virtuosa, salutar.

Boa fé, portanto, significava etimologicamente a qualidade de bem

corresponder à confiança depositada.

8 Segundo a enciclopédia livre na internet Wikipédia, categoria Deuses Romanos, a deusa Fides, na mitologia romana, consistia na personificação da palavra dada. Era representada como uma idosa de cabelos brancos, sendo entendida como mais velha que o próprio Júpiter. Desta maneira pretendia-se transmitir a noção que a palavra dada, o compromisso, era a base da sociedade e da ordem política. Acreditava-se que o próprio culto da deusa era muito antigo e que teria sido introduzido no tempo de Numa Pompílio. A deusa possuía um templo no Capitólio, perto do templo de Júpiter Óptimo e Máximo, que foi mandado erguer pelo cônsul Aulus Atilius Calatinus. O templo foi consagrado à deusa no dia 1 de Outubro de 254 a.C. (o 1 de Outubro tornou-se assim o dia da festa da deusa). Para oferecer um sacrifício à deusa era necessário envolver a mão direita com um pano de cor branca. Este templo era ocasionalmente usado pelo Senado romano para as suas reuniões. Nas suas paredes eram colocados tratados e leis inscritos em tábuas de bronze. Por volta de 58 a.C. o templo foi restaurado por Marco Emílio Escauro. 9 Vide o significado destas expressões e outras correlatas no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Editora Moderna Ltda, 2ª Edição, 2004.

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De outro lado, ao analisar a boa fé pelo Direito e não meramente pela

Etimologia, verificar-se-á, em Roma, a presença dos mesmos elementos

apreendidos pela filosofia grega, mas agora transportados para o campo do

direito. E, por essa razão, foram os romanos quem efetivamente desenvolveram-

na, pois produziram sobre ela normas jurídicas (regras e princípios) que até

hoje, sobretudo no direito civil, aplicamos quase que integralmente.

Daí haver igual relevância analisar, ainda que de forma sintética

(reconheça-se), a boa fé no direito romano.

Para o estudo do tema, encontrar-se-á na magistral obra “Boa-Fé no

Direito Civil Português”, de Menezes Cordeiro, uma consistente e abrangente

visão de seu aparecimento e evolução, razão pela qual a ela recorremos 10.

Com efeito, referido autor relata que a boa fé romana surge com a idéia

de fides, a qual continha três enfoques distintos.

(a) Fides-sacra, documentada em diversas normas religiosas: (a1)

extraída na Lei das XII Tábuas, quando esta prescrevia sanções religiosas

contra o patrão que defraudasse a fides do cliente (Patronus si clienti fraudem

fecerit, sacer esto); (a2) no culto à deusa Fides, que solenizava o ritual da

entrega da palavra e da lealdade pelo homem diante desta entidade divina 11;

(a3) na análise de poderes extensos atribuídos, pela Igreja, ao pater sobre a

família, e nas fórmulas iniciais de sua limitação.

(b) Fides-facto, assim denominada por apresentar-se autônoma em

relação às regras religiosas ou puramente morais. Tal acepção também

10 Da Boa-Fé no Direito Civil. Coleção Teses. Almedina, p. 53/70. 11 Vide nota 6.

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compreendia a fides como uma espécie de garantia, relacionada ao instituto

jurídico da clientela. No entanto, citando a leitura Beseler (ACI Roma I, 1934,

133-167 e 141), Menezes Cordeiro aponta que a fides-facto concebida pelos

romanos trazia a idéia de ligação entre os indivíduos por um fato humano, qual

seja, o empenhamento da palavra, que os uniria exatamente por essa ocorrência

(um fato), tal como o faria a lótus grega (flor de origem indo-européia utilizada

para atar coisas).

(c) Fides-ética, concebida desde o momento em que a garantia

expressa pela fides passou a residir na qualidade de uma pessoa, e, portanto,

ganhando coloração moral. Mais do que em simples fato, a fides implicaria agora

o sentido de dever. 12

Diante desta panorama, mister reconhecer que o direito romano, muito

embora fosse excessivamente formalista, adota a fides para permitir ao pretor,

no julgamento do caso concreto, uma investigação além da simples letra da lei,

mas também comprometido em assegurar o respeito dos deveres assumidos

pelas partes, pelas crenças depositadas e pelas promessas feitas. Exemplos

desta positivação tem-se claramente no surgimento, pelos romanos, dos

institutos da boa fé contratual, ou da boa fé do possuidor, como condição de

aquisição de bem imóvel por usucapião.

Desta feita, o direito romano encampa a boa fé, sobretudo no aspecto

subjetivo, e lhe confere positivação jurídica, relacionando-a, portanto, com o

dever de lealdade de uma parte para com outra, quer seja numa relação

obrigacional, quer seja numa relação de direito real. 12 Idem nota 8, p. 55/56.

24

Posteriormente, os romanos também percebem que, no comportamento

leal à parte contrária, não poderia ser levado em conta apenas o compromisso

assumido pela palavra dada por alguém (subjetivo), uma vez que este mesmo

compromisso poderia ser injusto.

Assim, pela insuficiência da fides isolada para o alcance da justiça,

acrescentam-lhe o qualificativo bonna (bonna fides), no sentido de que a palavra

assumida não deveria apenas ser honrada, mas, antes disto, deveria ser justa,

ou seja, conforme a pauta de valores aplicada no caso concreto por quem

detinha o papel de dizer o direito (daí um exemplo magno da importância da

construção da jurisprudência romana; daí a intimidade da boa fé com a

necessidade de introduzir valores no ordenamento jurídico, ainda que emergidos

pelo pretor).

Tem-se, portanto, pontuadas as primeiras positivações jurídicas do valor

da boa fé, mantendo-se, como evidenciado, os principais elementos de sua

formação filosófica.

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3. A boa fé no Direito Alemão.

Nesse tópico, dedicaremos algum esforço para tratar da boa fé no

direito alemão, o que faremos em razão de sua peculiar formação e

desenvolvimento, os quais, de certa forma, influenciaram a encampação do

princípio jurídico no Brasil.

A “boa fé” no Direito Alemão, segundo Staudinger (citado por Karina

Nunes Fritz 13), não teria relação de descendência direta com a bonna fides do

Direito Romano, mas seria proveniente das expressões Guten Glauben (boa fé

subjetiva) e Treu und Glauben (boa fé objetiva), as quais teriam suas raízes nas

tradições medievais dos “juramentos de honra dos cavalheiros”, impregnados

pelas idéias de lealdade, retidão de conduta, honra, fidelidade à palavra dada e

consideração pelo outro.

Nessa linha, treu significava, segundo Heinrich Dorner, “um

comportamento que compreendesse confiança, sinceridade e consideração na

relação dos participantes.” E glauben significa “a confiança nesse tipo de

comportamento da outra parte. A combinação das palavras contém, com isso, a

necessidade de um comportamento honesto e leal, com justas considerações

aos interesses legítimos do outro. Essa necessidade compreende a idéia de

proteção da confiança”. 14

No entanto, a par das diferenças culturais, etimológicas e influências

que receberam, evidente reconhecer que, em ambos os casos (romano e

13 Julius Von Staundinger aparece citado por Karina Nunes Fritz, em “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”, p. 89/91. 14 Citado por Karina Nunes Fritz. “Boa-Fé Objetiva na fase Pré-Contratual”. p. 90.

26

germânico), o núcleo central da boa fé seria semelhante, pois diz respeito à

proteção jurídica da confiança, do cumprimento da palavra, ou seja, dos valores

“verdade”e “coerência”, fazendo crer que esta realmente afigura-se como

objeto inerente e essencial para a segurança dos indivíduos ao viver em

sociedade, independentemente do momento histórico-cultural.

Destarte, a diferença mais sensível entre o conceito da boa fé romana e

da germânica pode ser encontrada no fato de que a bonna fides se propagava

na Idade Média de forma distinta daquela que surgia com os povos germânicos.

A primeira passava por uma forte influência do cristianismo, o qual unificou o

conceito de boa fé em torno do pecado, retrocedendo-a, portanto, ao aspecto

subjetivo 15.

Por sua vez, a Treu und Glauben germânica, exatamente por se manter

imune à influência cristã, foi concebida, naquele momento, com significação

distinta, desprovida, pois, do elemento subjetivo pecaminoso.

Logo, o que sobreleva anotar no Direito Alemão é que, a partir da Idade

Média, foram os germanos quem melhor desenvolveram a boa fé no aspecto

objetivo, enquanto Roma mergulhava no chamado “período das trevas”,

queimando livros, fazendo cruzadas, perseguindo cientistas e, de forma geral,

cegando os olhos dos cidadãos para o conhecimento científico que fugisse à

doutrina religiosa.

Com efeito, os germanos passaram a reconhecer que numa relação

jurídica existem deveres (de boa fé) que dizem respeito estritamente às

15 A influência cristã sobre a bonna fides romana, na Idade Média, e sua distinção com a Treu und Glauben germânica, também é abordada por Menezes Cordeiro, em “A Boa-Fé no Direito Civil”, bem como de Karina Nunes Fritz, em “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”.

27

obrigações recíprocas entre as partes, da mesma forma em que há deveres (e

também de boa fé) que não se relacionam estritamente às obrigações das

partes, mas sim a deveres secundários, anexos, correlatos, e até mesmo

sociais, ou ainda que possam atingir terceiros, externos ao pacto obrigacional.

Esta seria, pois, a feição objetiva da boa fé de maior intensidade que a

história do direito concebeu, isto é, no dever de cumprir regras objetivadas pela

sociedade e que são externas à simples promessa feita pelas partes, o que o

direito hodierno passou a encampar.

Assim, por exemplo, o Código Civil do Estado de Baden, de 1810,

prescrevia, no art. 1134, III, que os contratos deveriam ser executados

honestamente.” Ademais, no art. 1135, que os contratos vinculam também a

tudo aquilo que decorre da “equidade, dos usos e das leis”, o que fora

reproduzido, em essência, nos Códigos da Renânia (1814), da Saxônia (1863) e

de Dresden (1866).

Ou seja, a proteção jurídica não se limitaria aos sujeitos ou as

obrigações principais pactuadas por eles, mas incluiria deveres anexos, como os

de equidade e honestidade, entre eles e com terceiros.

Proteger-se-ia, em última analise, a própria sociedade em geral,

fazendo com que o direito alemão atingisse notável grau de abstração e

objetividade no que tange à aplicação da boa fé.16

16 Nesse particular, convém transcrever trecho do estudo de Karina Nunes Fritz (“Boa-Fé Objetiva na fase Pré-Contratual”. p. 47 e 51), a qual, pelo escopo de seu trabalho, faz longa pesquisa sobre a boa fé no Direito Alemão: “Percebe-se do exposto que a noção de relação obrigacional na Alemanha – melhor seria falar em fenômeno obrigacional – tem uma dimensão muito ampla e abrangente que supera muito a visão de obrigação como vinculo jurídico entre devedor e credor em função do qual pelo menos um deve uma prestação ao outro, cuja origem repousa na concepção romana de obrigação, difundida no Ocidente com a recuperação do direito romano. O primeiro golpe desferido no sólido conceito de obrigação foi obra da

28

Não obstante, para justificar a pertinência da realidade germânica no

estudo da boa fé no direito brasileiro, bastaria verificar que o direito civil

contratual encampou tais deveres de conduta em relação aos contratantes

reciprocamente, mas também destes em face da chamada “função social” do

contrato.17

É o que se colhe dos artigos 2421 e 422 do CC Brasileiro de 2002, in

verbis: Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da

função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na

conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Posto isto, tem-se, por essas simples assertivas, desde já justificada a

proposta de trazer à colação um panorama, ainda que resumido, da boa fé no

direito germânico, na medida em que, de forma íntima, influenciou o direito

nacional com a teoria objetiva que especialmente cuidou de talhar.

jurisprudência alemã que, logo após a Primeira Guerra Mundial, deixou de considerar a obrigação como uma prestação do credor – superando a própria visão do direito das obrigações como o estatuto do credor – e passou a concebê-la como um processo ou organismo, dinâmico, no dizer de Heinrich Siber, composto por uma gama de direito e deveres.” E ainda, citando Clóvis de Couto e Silva e Martins-Costa, referida autora relata: “Clóvis de Couto e Silva, amparado na doutrina alemã, defendeu pioneiramente a compreensão da obrigação como um processo teleológico composto por um conjunto de direitos e deveres dirigidos a uma finalidade comum e isso influenciou sensivelmente o pensamento brasileiro. Seguindo seus ensinamentos, a doutrina mais atualizada postula a superação da concepção tradicional de obrigação como vínculo estático em função do qual apenas o sujeito ativo tem direitos. ... (Martins-Costa) Arremata, porém, que a imagem de uma pessoa a que incumbem os direitos e outra obrigada ao dever de cumprimento é, na verdade, uma concepção demasiadamente simplista para ser real. Em torno de cada u dos intervenientes da relação se compõe um feixe de direitos, obrigações, deveres secundários, anexos, poderes formativos, ônus etc., articulados dinamicamente.”. No esmo sentido, confira Arnold Wald, em “Direito Civil - Direito das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos”, p. 212. 17 Interessante anotar que a boa fé contratual do Código Civil é aplicável nos contratos administrativos brasileiro, por força do art. 54 da Lei Federal 8.666/93.

29

4. A boa fé no direito civil brasileiro.

O primeiro ramo que se ocupou do instituto da boa fé no direito brasileiro

foi, efetivamente, o direito civil, e talvez por isso o desenvolvimento do tema e

sua positivação, nele, ocorreram de forma mais notável.

No entanto, o que mais nos interessará, para o objeto deste trabalho,

passa a ser a influência e a penetração da boa fé civil no direito administrativo, e

não preponderantemente o estudo completo dela própria (o que certamente

demandaria uma dissertação específica e à parte).

Por isso mesmo, procuraremos traçar de forma resumida suas bases no

direito civil para depois meramente projetá-la no direito administrativo (aliás,

anote-se que o Capítulo III, 1 e 2, tratará da boa fé administrativa como figura

própria e diversa).

Com efeito, sobre o surgimento da boa fé civil, convém registrar que o

civilista Adalberto Pasqualatto anotara que o Direito Civil Brasileiro já havia

positivado-a pelo Código de 1916, ainda que de forma implícita e na sua forma

subjetiva – reconheça-se. 18

Destacou na ocasião o art. 120, pois tal dispositivo conferia

conseqüências diversas segundo o “mau comportamento” das partes numa

relação obrigacional. Isto porque considerar-se-ia verificada a condição cujo

implemento fora maliciosamente obstado pela outra parte; e não verificada a

condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem seu implemento

18 “A boa-fé nas obrigações civis”. In: O ensino jurídico no limiar do novo século. Edição comemorativa do cinqüentenário da Faculdade de Direito.

30

aproveitava, ou seja, a norma determinava nitidamente a inversão do efeito da

condição contra aquele que atuasse de má fé.

Além das observações de Pasqualatto, ainda podemos citar ainda outras

passagens no Código Civil de 1916, o que se mostrará suficiente para

sintetizarmos uma idéia de seu conceito. Talvez, o exemplo mais categórico

estivesse no art. 85, que assim dispunha: “Nas declarações de vontade se

atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”. Nele, fica

evidente que a boa fé civil consiste num importante princípio de interpretação,

prevalecendo, inclusive, sobre o sentido da escrita contido no documento.

Nota-se, pois, que a boa fé estava ligada à intenção do agente, ou seja,

consiste no comportamento que o indivíduo, no seu interior, desejava com a

prática do ato, e não meramente a tradução fria e literal do instrumento que

declara seu ato.

Logo, tem-se que a boa fé introduzida pelo Código Civil de 1916 é

subjetiva, podendo ser conceituada como a proteção jurídica da intenção

interior do agente contra os defeitos da linguagem (art. 85) ou contra os defeitos

de lealdade praticados pela parte contrária numa relação obrigacional (art. 120).

Já a boa fé objetiva no direito civil, inspirada plenamente pelo Direito

Germânico (Cap. I.4), foi positivada apenas pelo recente Código Civil de 2002,

com a inserção das seguintes normas: “Art. 187. Também comete ato ilícito o

titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites

impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons

costumes.” (...) “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos

31

limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a

guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios

de probidade e boa-fé.”

Neles, a presença do caráter objetivo estaria no fato de que o exercício

de um direito ou a celebração e execução de um contrato devem ser realizados

não apenas para respeitar a intenção subjetiva de cada parte, mas, extrapolando

a relação interna dos membros da relação jurídica, devem respeito às normas e

padrões exigidos e em favor da sociedade, como verdadeiros modelos,

arquétipos ou standards de comportamentos, objetivados no ordenamento

jurídico (no caso a função social do contrato, os fins econômicos, os bons

costumes, etc.).

Hodiernamente, o desenvolvimento da boa fé objetiva é notável e já

penetra diversas espécies de relações jurídicas no direito civil.

Destarte, para o eminente prof. Silvio Luis Ferreira da Rocha “o princípio

da boa-fé também informa todo o direito obrigacional. A boa-fé que hoje

influencia grandemente o direito obrigacional é a boa-fé objetiva, e não a boa-fé

subjetiva.”, concluindo ainda que a boa-fé objetiva desempenha três importantes

funções no sistema jurídico civilista: “(...) a de cânone hermenêutico-integrativo;

a de norma de criação de deveres jurídicos; e a norma de limitação ao exercício

de direitos subjetivos.” 19

Deveras, pode-se notar – a par do modesto resumo – que os

ensinamentos fornecidos pelo direito civil brasileiro são importantes e relevantes.

19 Direito Civil 1 – Parte Geral, Malheiros, 2010, p. 23 e 25.

32

Contaminam, efetivamente, o direito administrativo de duas maneiras: a)

direta, quando a Administração Pública está submetida à relações jurídicas cujo

regime privado e civilista a ela se aplica (por exemplo: nos contratos de compra

e venda, locação, contratos, etc.); b) indireta, quando as fontes doutrinárias do

direito civil fornecem elementos de compreensão para institutos próprios do

direito administrativo, ou quando as normas civilista se aplicam de maneira

subsidiária (tal como nos casos do art. 54 da Lei Federal 8.666/93, que trata da

incidência das normas das teoria geral dos contratos nos contratos

administrativos).20

5. A boa fé como princípio geral no direito brasileiro.

Para alguns civilistas brasileiros21, a positivação da boa fé, como

princípio geral do ordenamento jurídico, se operou conseqüentemente à

positivação do princípio da “dignidade da pessoa humana” e da finalidade

fundamental da República em construir uma sociedade não apenas baseada na

liberdade, mas na liberdade regrada pela justiça e solidariedade, o que está

estampado no art. 1º, III, e 3º, I, da Constituição República de 1988. 22

20 “Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.” 21 Nesse sentido, vide: Claudia Lima Marques, em “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, p. 417; e Claudio Luis Bueno de Godoy, “Função Social do Contrato”, p. 129. 22 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: ... III - a dignidade da pessoa humana; ...

33

Nesse sentido, Larenz (citado por Karina Nunes Fritz), enxerga que a

raiz do princípio da boa fé encontrar-se-ia no chamado personalismo ético, cujas

raízes decorrem da necessidade elementar de respeito à pessoa e à sua

dignidade” 23.

Tal assertiva, efetivamente, pode ser considerada no âmbito do direito

brasileiro. Isto porque a conduta exigida do homem, inserido numa comunidade

solidária e que respeita a dignidade do outro (artigos 1º, III e 3º, I, da CF), jamais

poderá ser absolutamente livre.

Deve, em verdade, agir sempre de acordo com os valores sociais

juridicizados, na qual a idéia de cooperação e respeito ao próximo são deveres

de comportamento necessários à subsistência deste modelo constitucional.

Aí está, desde logo, notada a boa fé como princípio jurídico (agir

conforme o comportamento esperado pelo Direito), bastando para tanto

relembrarmos sua significação construída ao longo da história da filosofia e do

direito (vide Capítulo I.1, I.2, I.3 e I.4).

Por tal razão, notaremos que o exercício da liberdade ou da propriedade

- como o de formar contratos, o de empreender atividade econômica – pelo

Direito, jamais são absolutos ou totalmente livres, desprovidos de qualquer

obrigação de boa fé.

Ao invés disto, apenas poderá ser exercitado conforme os padrões de

comportamento objetivos e esperados pelo corpo social.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ... I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; 23 “Boa-Fé Objetiva na Fase Pré-Contratual”, p. 105.

34

Exemplo fértil desta positivação ainda podemos detectar no caso do

exercício do poder de polícia administrativa, no qual, segundo o magistério do

eminente administrativista Clovis Beznos, caberia ao Estado verificar se a

liberdade e a propriedade, pelo cidadão, estariam exercitados conforme seu

desenho social, isto é, pelos contornos já delimitados no ordenamento jurídico. 24

Nesse sentido, o cidadão não poderia, jamais, empreender atividade

econômica livremente sem respeitar os padrões de comportamentos sanitários

ou ambientais, ou ainda não poderia edificar propriedade imóvel sem respeitar

as posturas e a política de desenvolvimento urbano. O desenho que o

ordenamento jurídico confere ao exercício de um direito jamais tem contornos ou

fronteiras infinitas, de acordo com a mera vontade de seu titular.

Assim é que, diante do pacto social, o ordenamento jurídico não

concedeu o exercício de liberdade, da vontade, da propriedade, ou dos demais

valores individuais, como absolutos. Com efeito, se a Constituição positivou que

a vida em sociedade exigirá solidariedade, a qual limita a liberalidade do homem

por meio de padrões objetivos de conduta, a fim de evitar comportamentos

inesperados pelo ordenamento jurídico, tutelando a confiança social desta

maneira, inexoravelmente introduziu a boa fé em sua máxima expressão, qual

seja: tipicamente objetivada e, assim, desvinculada da vontade individual de

cada um.

Pela preconização dos referidos artigos constitucionais, tem-se a

positivação da boa fé, ora tratada como “princípio geral de direito”.

24 “Poder de Policia”, Ed. RT, 1979, p. 46/60.

35

Muito embora voltaremos ao tema (Cap. II.6), diz-se, aqui, “princípio

geral de direito” conforme a definição empregada por Miguel Realle, a qual, por

retidão teórica, convém transcrever ipsis litteris 25: “Nosso estudo deve começar pela

observação fundamental de que toda forma de conhecimento filosófico ou cientifico implica a

existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base

de validade das demais asserções que compõe dado campo do saber. É claro que estamos

cuidando da palavra “princípio” apenas em seu significado lógico, sem nos referirmos à acepção

ética desse termo, tal como se dá quando demonstramos respeito pelos “homens de princípios”,

fiéis, na vida prática, às suas convicções de ordem moral. Restringindo-nos ao aspecto lógico da

questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de

conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas

também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos

pelas necessidades da pesquisa e da práxis. A nosso ver, princípios gerais de direito são

enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão

do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para elaboração de

novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o

de sua atualização prática.

Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força

de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe

a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de

irretroatividade da lei para proteção dos direitos adquiridos etc. A maioria dos princípios gerais

de direito, porém, não constam de textos legais, mas representam contextos doutrinários ou, de

conformidade com a terminologia assente no Capitulo XIV, são modelos doutrinários ou

dogmáticos fundamentais. Como se vê, e é salientado por Josef Esser, enquanto são princípios,

eles são eficazes independentemente do texto legal. Este, quando os consagra, dá-lhes força

cogente, mas não lhes altera a substancia, constituindo um jus prévio e exterior à lex. Nem todos

25 Miguel Reale, em, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição, p. 314.

36

os princípios gerais têm a mesma amplitude, pois há os que se aplicam apenas neste ou naquele

ramo do Direito, sendo objeto de estudo da Teoria Geral do Direito Civil, do Direito

Constitucional, do Direito Financeiro etc. Fácil é perceber que, sendo elementos condicionadores

ou fundantes da experiência jurídica, podem ter as mais diversas origens, consubstanciando

exigências de ordem ética, sociológica, política, ou de caráter técnico. Vê-se por conseguinte,

que eles se desenvolvem no plano do Direito Positivo, embora se fundem, de maneira mediata,

em razões éticas ou de Direito Natural, desde que este seja concebido em função da experiência

jurídica, como logo mais veremos, e não como uma duplicata inútil do Direito Positivo.

Nessa linha, considerando que a positivação da boa fé de que trata o

artigos 1º, III, e 3º, I, da CF, permeia todo o sistema jurídico brasileiro, e, por isso

mesmo, considerando se tratar de princípio geral do direito brasileiro, seria

totalmente válida a afirmação de que deveríamos aplicá-la, com esta mesma

carga, perante à Administração Pública.

Ora, se a Administração se submete ao ordenamento jurídico e se figura

como titular de direitos e obrigações, resta insofismável seu dever de adotar os

mesmos padrões de comportamentos (no caso, o dever de agir conforme

padrões objetivos de boa fé, coloridos pela solidariedade e dignidade à pessoa

humana) que foram juridicizados constitucionalmente a todos.

Fornecidos os principais elementos da boa fé, como objeto da realidade

filosófica, e, posteriormente, como instituto jurídico positivado, esse trabalho

voltará seus olhos, especialmente, para o estudo do tema dentro do direito

administrativo.

Para tanto, propor-se-á uma premissa anterior, consubstanciada na

identificação do regime jurídico de direito administrativo, a fim de inserir, como

37

método dedutivo, a boa fé com o colorido especial que esse trabalho pretende

alcançar.

38

Capítulo II – O direito administrativo, seu regime jurídico

e a boa fé.

1. Metodologia. 2. Breve relato sobre a formação do direito administrativo. O Estado de

Direito. 3. Relação de administração. 4. O “dever-poder” no exercício da função

administrativa. 5. O regime jurídico de direito administrativo e a boa fé. 6. Classificação

principiológica no regime de direito administrativo.

1. Metodologia.

Para a descrição científico-dogmática de determinado objeto de estudo,

tal como sugerem Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Miguel Reale, tem-se, como um

método importante, a delimitação primeira do ordenamento jurídico que o

envolve, ou seja, da completude do sistema e de seus pontos de partida, a fim

de permitir, com coerência, o conhecimento dedutivo das espécies nele

inseridas.26

26 Tercio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao Estudo do Direito – Técnica, Decisão, Dominação; Editora Atlas; 5ª Edição, p. 47/51. Sobre o método dedutivo, relevante transcrever o pensamento de Miguel Reale, em Lições Preliminares de Direito, Editora Saraiva, 21ª Edição, que assim se posiciona: “Ao contrario do processo indutivo, temos o dedutivo, que se caracteriza por ser uma forma de raciocínio que, independentemente de provas experimentais, se desenvolve, digamos assim, de uma verdade sabida ou admitida a uma nova verdade, apenas graças as regras que presidem à indiferença das proposições, ou, por outras palavras, tão-somente em virtude das leis que regem o pensamento em sua “consequencialidade” essencial. Deve-se lembrar também que há duas espécies de dedução, a silogística e a amplificadora. A primeira, a do silogismo, se distingue porque, postas duas proposições, chamadas premissa maior e premissa menor, delas resulta necessariamente uma conclusão, a qual, se esclarece ou particulariza um ponto, nada acresce substancialmente ao já sabido. Na dedução amplificadora, que muitos erroneamente atribuem somente às Matemáticas, do cotejo lógico de duas ou mais posições podemos elevar-nos a uma verdade nova, que não se reduz, ponto por ponto, às proposições antecedentes.” (p. 83/84) “Já dissemos que as normas jurídicas se ordenam logicamente. Essa ordenação tem múltiplos centros de referencia, em função dos campos de relações sociais que elas disciplinam, havendo uma ou mais idéias básicas que as integram em unidade. Desse modo, as normas da mesma natureza, em virtude de uma comunhão de fins, articulam-se em modelos que se denominam institutos do penhor, da hipoteca, da letra

39

Desta feita, entende-se que é de suma importância descrever, mesmo

resumidamente (reconheça-se), o direito administrativo e seu regime, pois

são eles que conferem um conjunto, uma unidade da qual, como conseqüência

lógica, emergirá a boa fé sobre a forma de princípio geral (classificação esta que

adiante será explicada).

A seguir, passaremos, então, a analisar panoramicamente o regime

jurídico de direito administrativo, o que faremos – insista-se – de forma limitada e

resumida, mas, por outro lado, certo de que revelará, ainda assim, a importância

metodológica para que o estudo da boa fé possa se tornar mais adequado.

2. Breve relato sobre a formação do direito administrativo. O Estado de

Direito.

Diz-se que o direito, numa visão genérica a abstrata, pode ser concebido

como objeto de construção do homem que, por viver em sociedade, pretende

ordenar coercitivamente o comportamento. E esta coercitividade (emprego da

força estatuída para o cumprimento da norma), segundo Miguel Reale, é

exatamente o que diferencia-o do campo da moral, que apenas cuida de regular

o comportamento humano sem o emprego desta força estatuída.27

de câmbio, da falência, da apropriação indébita. Os institutos representam, por conseguinte, estruturas normativas complexas, mas homogêneas, formadas pela subordinação de uma pluralidade de normas ou modelos jurídicos menores a determinadas exigências comuns de ordem ou a certos princípios superiores, relativos a uma dada esfera da experiência jurídica.” (p. 191) 27 Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Ed., p.1/2e 46.

40

Desta feita, somente seria possível falar em direito quando houvesse a

existência de deveres de conduta, e, portanto, que pudessem compelir alguém,

sob pena de sanção, a um comportamento obrigatório, proibido ou permitido.

Assim, se o direito administrativo é um ramo do direito que se ocupa de

regular a atividade administrativa (conceito que melhor trataremos a partir do

item seguinte28), tem-se que sua formação somente ocorreria, como

conseqüência óbvia, quando o Estado passasse a se submeter a essa mesma

organização coercitiva da conduta, da qual seu conjunto objetivo se denomina

ordenamento jurídico.

Por tudo isso, pode-se deduzir que a formação do direito administrativo,

tal como concebemos na atualidade, é recente, na medida em que até o século

XVII a história nos mostra um Estado que não se submetia efetivamente ao

ordenamento jurídico, isto é, ao conjunto de regras jurídicas de comportamento

sob pena de sanção.

Lembremo-nos que Maquiavel, numa concepção acentuada do Estado-

Poder, mas reveladora de sua linha filosófica empírica, aconselhou Lourenço de

Médicis no século XVI ao afirmar que a única atividade típica do governante, e

que ele tinha que se preocupar, era manter seu comando através da guerra, da

organização, e das disciplinas militares.29

28 Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, a função administrativa consiste no “cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica” ob. cit. p. 27. 29 Nicolau Maquiavel aconselhou Lourenço de Médicis afirmando: “Preconizo que um príncipe não tenha outro objeto de preocupações nem outros pensamentos a absorvê-lo, e que tampouco se aplique pessoalmente a algo que fuja aos assuntos da guerra e à organização e à disciplina militares, porquanto apenas estes concernem à única arte atinente ao seu comando.” O Príncipe, Traduzido do Italiano por Antonio Caruccio-Caporale, L&M Pocket, vol. 110, p. 69.

41

Esta, e não outra, seria a tarefa do Estado, isto é, a de fonte e de

preservação de poder.

Ademais, se afirmava na França que “Le roi ne peut mal faire”, ou na

Inglaterra, “The King can do not wrong”, expressões que, em ambos os casos,

podem ser interpretadas como o rei nunca erra, sintetizadas, pois, na idéia de

que o Poder Governamental não estaria sujeito a controle ou imposições.

Somente com a Revolução Francesa, fundada em parte nas teorias de

Montesquieu sobre a virtude da democracia 30, é que nasce o chamado “Estado

de Direito”, expressando que o governo democrático, em contraposição ao poder

monárquico que se encontrava acima e à margem do ordenamento jurídico,

deve, ao mesmo em que executa as leis, suportar seu peso, ou seja, submeter-

se aos seus mandamentos.

Tais ideais, consolidados (bem verdade) pela jurisprudência francesa

posterior à Revolução (o chamado Conselho de Estado), foram objeto de

positivação posterior pela maioria das Constituições dos países ocidentais, tal

com ocorreu no Brasil.

Assim sendo, diante desta nova concepção, na qual o Estado, além dos

poderes e prerrogativas instrumentais que continuava diferenciando-o dos

administrados, passaria a se sujeitar ao ordenamento jurídico que lhe impunha

30 Montesquieu, em sua obra Do Espírito das Leis, Coleção Universidade de Bolso, Editora Ediouro, cit. P. 52, escrevera que “Não é preciso muita probidade para que um governo monárquico ou um governo despótico se mantenha ou se sustente. A força da lei, no primeiro, no segundo o braço do príncipe sempre erguido, regulam e abrangem tudo. Mas, num estado popular, torna-se necessário um dispositivo a mais, que é a virtude. Isto que eu digo acha-se confirmado em toda a contextura da história, e acha-se muito conforme a natureza das coisas. Porque é claro que, em uma monarquia, onde aquele que faz executar as leis se julga acima das mesmas, necessita de menos virtude do que em um governo popular, onde aquele que faz executar as leis sente que ele próprio a estas se acha submetido, e delas suportará o peso.”

42

deveres de conduta, surge, como conseqüência natural, a necessidade de se

estabelecer um conjunto de normas e regras peculiares, as quais, concatenadas

em torno de uma unidade própria, pudesse regular o exercício da função

administrativa.

Daí que, por meio da criação sucessiva e fértil desse conjunto de regras

jurídicas que se faziam úteis para regular de forma peculiar a atividade

administrativa, emerge o que denominamos de “direito administrativo”. E assim

ocorre na qualidade de ramo especial do direito que, ao mesmo tempo, se

inseria como parte integrante do sistema jurídico unitário.31

Frisa-se, portanto, que o surgimento do direito administrativo, originado na

França como conseqüência do “Estado de Direito” (em oposição ao Estado-

Poder, como visto), é fenômeno da história recente nos países ocidentais,

valendo a pena conferir, em rodapé, o relato contido nas obras de Renato Alessi

e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, retratando o ocorrido na Itália e no Brasil,

respectivamente32.

31 Lembremo-nos, sempre das lições de Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1957, n. 274, PP. 284285), quando afirma que: “De fato, o direito especial abrange relações que, pela sua índole e escopo, precisam ser subtraídas ao Direito Comum. Entretanto, apesar desta reserva, constitui também, por sua vez, um sistema orgânico, e, sob certo aspecto, geral.” 32 Na Itália, vale transcrever Renato Alessi, que, ao estudar o surgimento do Direito Administrativo naquele país, fez a seguinte observação: “Se comprende, por lo tanto, que el Derecho Administrativo tanga, en todo ordenamiento, un carácter relativamente reciente, posterior a la aparición de los regímenes constitucionales, com los cuales se dio nacimiento (al menos en la Europa continental) a un sistema de normas jurídicas obligatorias para la Administración, reguladoras del ejercicio de la función administrativa y que constituyen una garantía para los intereses y los derechos de los súbditos que pueden ser lesionados por el ejercicio de la citada función. Por lo que respecta as Derecho administrativo italiano, es evidente que el mismo se remonta a la formación del Reino. Dado que el nuevo Estado italiano que se formó por la anexión al Reino de Piamonte de las otras regiones italianas, no es más que la continuación de este Reino, según la opinión que nos parece acertada, es asimismo evidente que los orígenes de nuestro ordenamiento administrativo han de encontrarse en el ordenamiento administrativo sardo-piemontés, el cual, a su vez, surgió gradual y profundamente influido por el ordenamiento francés

43

3. Relação de administração.

No ciclo de formação do direito administrativo, pudemos observar que o

Estado deixou de ser fonte de poder absoluto, acima e à margem do

ordenamento jurídico. As Constituições de grande parte dos países ocidentais

passam, destarte, a estabelecer como preceito fundamental e positivado nas

Constituições dos países o Estado Democrático de Direito, no qual o poder

estatal provém do povo e em seu nome será exercido.33

Nesse contexto, pois, interessante anotar que a relação de poder entre

Estado e cidadão passa, agora, a subsistir por mera delegação deste, ou seja, o

Estado passa a ser uma espécie de representante do povo, recebendo, assim,

poderes limitados que esse especialíssimo mandato lhe confere (mandato, aqui,

em sentido lato), isto é, com o único fim de cumprir, de representar e de dar

concretude a um processo democrático explicitado nas leis.

de la época napoleónica y postnapoleónica, aun después de la Reestructuración, si bien, naturalmente, de manera más acusada después de la introducción del régimen constitucional. ... Em 1865 podemos considerar finalizado el primer período de la historia de nuestro Derecho administrativo, durante el cual, al tiempo en que se llevó a cabo sustancialmente la unificación administrativa Del Reino, se levantaron los cimientos Del ordenamiento administrativo.” Trad. espanhola de Instituciones de Derecho Administrativo, Tomo I, Bosch, Casa Editorial, Urgel, 51 bis, Barcelona, cit. p. 20/21. No Brasil, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ao tratar do surgimento do Direito Administrativo, reconheceu que ele “só surgiu no século passado, embora sempre tenham existido normas jurídicas ordenando a atividade do Estado-Poder.” Princípios Gerais, Editora Forense, de Direito Administrativo, 2ª Ed., 1979, cit. p. 51. 33 A Constituição Brasileira de 1988 encampou referido mandamento no art. 1º, Parágrafo Único.

44

Tratam-se, portanto, de poderes instrumentais e não mais de poderes

originários, tendo como fonte e destinatário o povo e não o governo ou seus

“governantes”.

Essa nova relação de poder, que dá legitimidade à atuação do Estado,

que lhe permite executar a função administrativa, é bem definida por Jürgen

Habermas em sua teoria do discurso, nos seguintes termos: “o princípio da

soberania do povo significa que todo poder político é deduzido do poder

comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima

pelas leis que os cidadãos criam para si mesmo numa formação de opinião e da

vontade estruturada discursivamente.”34

A partir de toda essa ilação podemos justificar a tese de que o Estado

não pode ser concebido mais como fonte pura do poder político, ou, no campo

do direito administrativo, não é mais proprietário da res pública, pois administra

coisa alheia que não lhe pertence originariamente.

Em verdade, sua relação com a população (relação jurídica) passa a ser

de servo e não de senhor, de administrador e não de proprietário, e, assim,

passa a agir em razão de um dever e de uma finalidade, e não mais por livre

vontade (recebe o poder do povo e apenas em seu nome o exerce).

Nesse sentido, Cirne Lima demonstrou, de forma muito clarividente, que

essa relação jurídica de administração entre Estado e população impera apenas

o dever e finalidade de quem tutela coisa alheia. Em contraposição, numa

34 Direito e Democracia – Entre Faticidade e Validade. Vol. I. Biblioteca Tempo Universitário 101. 1997.

45

relação de propriedade ou de domínio, aí sim, prevaleceria a vontade do titular,

que da coisa poderia livremente dispor. 35

4.- O “dever-poder” no exercício da função administrativa.

Ao lado e à frente da relação de administração como corolário da

expressão constitucional de que todo poder emana do povo e em seu nome será

exercido (art. 1º, Parágrafo Único), e com a finalidade de consolidar a existência

35 Rui Cirne Lima, em Princípios de Direito Administrativo, Malheiros, 7ª Edição, p. 105/106, assim se expressou: “Concebe-se geralmente a relação jurídica como expressão de um poder do sujeito de direito sobre um objeto do mundo exterior, seja aquele uma cousa existente per se, seja uma abstenção ou um fato, esperados de outro sujeito. (...) À relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente, chama-se relação de administração. Chama-se relação de administração, segundo o mesmo critério pelo qual os atos de administração se opõem aos atos de propriedade (Código Civil Frances, art. 1988). Na administração, o dever e a finalidade são predominantes. Esse traço característico da administração é salientado no Código do Imperador Justiniano, quando afirma que ‘aquele que é administrador e senhor de sua cousa, nem todos os negócios realiza, mas a maior parte por sua vontade própria. Os negócios de outrem, porém, devem ser administrados com a maior exatidão; a esse respeito nada do que foi negligenciado ou mal administrado se isenta de falta’. (...) No domínio a vontade é predominante. Na definição do Conselheiro Lafayte Rodrigues Pereira, o ‘domínio é o direito real que vincula e legalmente submete ao poder absoluto de nossa vontade a coisa corpórea, na substancia, acidentes e acessórios’. (...) É no direito administrativo, porém, que a relação de administração adquire a plenitude de sua importância. Avulta essa importância quando se consideram, comparativamente, no direito privado e no direito administrativo, os efeitos da relação de administração sobre a relação de direito subjetivo, como sujeito diverso, acaso existente sobre o mesmo objeto júris. A relação de administração coexiste, não raro, sobre o mesmo objeto, com um direito subjetivo, do titular diverso do daquela. Os bens dos filhos são propriedade destes, embora administrados pelos pais (Código Civil, art. 1689, II). O bem de família pode ser propriedade do marido, se o regime dos bens do casamento for o da comunhão, ou, ainda, da mulher, no regime de separação (Clóvis Bevilacqua, Código Civil Comentado, t. I, Rio de Janeiro, 1921, p. 301). Dentro do direito privado, os conflitos entre a relação de administração e a de direito subjetivo, resolvem-se em favor desta última. Ao pai ou à mãe, que arruína os bens da família, suspende-se, com o pátrio poder, a administração, a este inerente (Código Civil, art. 1637, caput). Quanto ao bem de família, lícito é ao instituidor, revogar-lhe a vinculação à finalidade legal (Decreto-lei 3.200, de 19.4.1941, art. 21. O instituidor, se não tem a propriedade, tem, entretanto, sempre a disposição do bem quoad institutionem). Diversamente, no Direito Administrativo, a relação de administração domina e paralisa a de direito subjetivo. Relação de administração, exempli gratia, é a que se estabelece, segundo o Direito Administrativo, sobre os bens destinados ao uso público. ‘Desde a data do registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo’ (Lei 6.766, de 19.12.1979, art. 22).

46

de um regime próprio de direito administrativo, fundamental acrescentar a

construção teórica traçada por Celso Antônio.

Nela, o grande administrativista brasileiro verificou que o objeto de

regulação do direito administrativo, qual seja, a função administrativa, representa

- pelas mesmas bases desse Estado de Direito e dessa relação de

administração -, um “dever-poder”.

Ou seja, tratando-se de “função”, a atividade administrativa demanda,

antes, uma obrigação, que é a de executar o mandamento legal (vontade

popular discursivamente personificada 36), e, portanto, apenas como meio

instrumental e ancilar para o cumprimento desta referida função, é que poderes

lhes são atribuídos 37.

Assim, o raciocínio sobre a relação de administração - na administração,

o dever e a finalidade são predominantes, enquanto que no domínio a vontade

seria prevalente – aqui (no exercício de função administrativa) se aplica de

forma íntegra, retirando-se do Estado todo e qualquer liberdade de agir (o agir

deve se dar conforme o dever e a finalidade legal).

Como conseqüência desta base Teórica do direito administrativo, Celso

Antônio elege como fundamento axiológico desse regime a “indisponibilidade 36 Conforme Habermas, idem nota 7. 37 “Tem-se função quando alguém está assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não teria como atender a finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio. Assim, ditos poderes são irrogados, única e exclusivamente, para propiciar o cumprimento do dever a que estão jungidos; ou seja, são conferidos como maios impostergáveis ao preenchimento da finalidade que o exercente da função deverá suprir. (...) Com efeito, fácil é ver-se que a tônica reside na idéia de dever, não de poder. Daí a conveniência de inverter os termos desse binômio (dever-poder) para melhor vincar sua fisionomia e exibir com clareza que o poder se subordina ao cumprimento, no interesse alheio de uma finalidade. (...) Ora, a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar o interesse de outrem: a coletividade.” Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 22ª Edição, p. 94/95

47

do interesse público”, ou seja, “sendo interesses qualificados como próprios da

coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de

quem quer que seja, por inapropriáveis.” 38

Com esta visão mais ampla do “Estado do Direito”, da relação de

administração e do exercício da função administrativa (que pressupõe

indisponibilidade do interesse público) - todos concatenados logicamente -,

identificam-se, finalmente, as bases para a concepção de um ramo do direito

peculiar (Direito Administrativo), o qual, a partir desta estrutura criada,

necessitará de regras e princípios próprios para regulação da atividade estatal

que se subsume a essa nova realidade.

E, dentre as regras e princípios que emergirão deste novo ramo do

direito, conferindo-lhe um regime jurídico peculiar, finalmente encontrar-se-á a

boa fé.

Vejamos.

5. O regime jurídico de direito administrativo e a boa fé.

Como visto, a partir da identificação da fundação do direito

administrativo e de seus elementos mais fundamentais, enfim, pode-se traçar

um contorno, ainda que sintético, de seu regime jurídico, isto é, do conjunto de

formação e orientação das regras e princípios nele inseridos, para que, na exata

38 Curso de Direito Administrativo. Citação extraída da14ª Edição, p. 45.

48

medida do método dedutivo lógico, possam ser feitas assertivas sobre a boa fé

que nele se insere. 39

Seu conceito decorre, pois, dos elementos de formação do direito

administrativo vistos nos tópicos anteriores, e são: conjunto de regras e

princípios que partem da existência de um Estado de Direito e, com ele, do

dever da atividade administrativa de se submeter ao ordenamento jurídico

e de buscar o interesse público positivado por meio de um processo

formal-democrático.

Esta seria, para os fins deste trabalho, a melhor concepção do regime

jurídico de direito administrativo, o que, para melhor compreensão, assim pode

ser decomposto:

a) emerge a partir da existência do chamado “Estado de Direito”, no

qual o Estado se encontra submetido ao ordenamento jurídico;

b) afigura-se como regime jurídico pela existência de um conjunto de

normas jurídicas peculiares (regras e princípios) que tem por objeto regular a

função administrativa;

39 Nesse sentido, vide Miguel Reale; Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição: “Já dissemos que o ordenamento jurídico nacional se distribui em “faixas normativas” ou sistemas de modelos jurídicos distintos, correspondentes às diferentes regiões ou esferas da realidade social. Se assim é, cada “região jurídica” pressupõe, por sua vez, diretrizes ou conceitos básicos que asseguram a unidade lógica dos institutos e figuras que a compõem. É mister, por conseguinte, estudar os princípios gerais do Direito Civil, do Direito Processual, do Direito do Trabalho etc., e, mais particularmente, do Direito de Família, do Direito Cambial etc. Os princípios gerais de Direito põem-se, destarte, como as bases teóricas ou as razões lógicas do ordenamento jurídico, que deles recebe seu sentido ético, a sua medida racional e a sua força vital ou histórica. A vida do Direito é elemento essencial do diálogo da história.”

Aliás, já ensinava Carlos Maximiliano que “Descobertos os métodos de interpretação, examinados

em separado, um por um; nada resultaria de orgânico, de construtor, se os não enfeixássemos em um todo lógico, em um complexo harmônico.” (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, 1957, p. 156)

49

c) a partir da concepção de que todo poder emana do povo e em seu

nome será exercido (art. 1º, Parágrafo Único, da CF), tem como elemento

axiológico fundamental deste conjunto de regras o princípio da tutela

indisponível do interesse público, na qual a atividade administrativa, numa

relação de administração, se preordena ao alcance do interesse público

previsto pelo ordenamento jurídico.

No entanto, parece restar inquieta a seguinte indagação: afinal de

contas, qual a relação específica de toda esta construção do regime jurídico de

direito administrativo com a aparição da boa fé?

A resposta, por sua vez, consiste numa relação de total pertinência e

relevância, a qual se mostrará crucial para o desenvolvimento do tema ora

proposto.

Deveras, se o direito administrativo hodierno (e positivado pela

Constituição da República) funda-se na delegação de poder do povo para o

Estado numa perfeita relação de administração (como visto, pelo art. 1º,

Parágrafo Único, da CF), inegável reconhecer que, nessa situação de mero

representante e guardião do interesse coletivo, o dever de boa fé, isto é, o de

corresponder à confiança depositada na tutela de interesse que não lhe

pertence, consiste num princípio fundamental para o exercício da atividade

administrativa.

Por certo, é da essência do Estado de Direito que a coletividade delega

ao Estado (como instituição) a tutela dos interesses tidos como públicos

50

unicamente porque confiou que esta organização institucionalizada pudesse

executar em boas mãos tal mister.

Não se trata, aqui, de recorrer a argumentos meta-jurídicos, uma vez

que a confiança da coletividade de que o Estado deva tutelar o interesse público

não é invocada pela vontade social ou pela intenção do legislador, mas, pura e

simplesmente, como decorrência lógico-interpretativa da relação jurídica de

administração que foi devidamente positivada ou juridicizada pela Constituição

da República, e, que assim, se deduz dogmaticamente da fundação do Estado

de Direito.

Ou seja, ao interpretar o direito posto (e não a fase anterior de formação

desse direito), é que percebemos o elemento confiança como princípio geral e

essencial da existência de uma relação jurídica baseada na administração de

interesse alheio.

É ela, afinal, quem produz o liame necessário a manter íntegra a relação

jurídica de administração.

Trata-se, pois, de puro e legítimo exercício de interpretação

sistemática40, já que o elemento obrigacional (no caso a confiança) sempre

corresponderá ao fio de sustentação da relação jurídica formada pelo Estado e

coletividade. 41

40 Nesse particular, convém citar Juarez Freitas, em sua obra Interpretação Sistemática do Direito, Malheiros, 3ª Ed., p. 70, quando afirma:”Qualquer exegese comete, direita ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito. Assentes tais pressupostos, convém assinalar que todas as frações do sistema guardam conexão entre si, daí resultando que qualquer exegese comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios, de regras e de valores componentes da totalidade do Direito. Retido este aspecto, registre-se que cada preceito deve ser visto como parte viva do todo, eis que apenas no exame de conjunto tende a ser melhor equacionado qualquer caso.” 41 Sobre a função da obrigação numa relação jurídica, confiram-se as lições de Silvio Rodrigues, Direito Civil Vol. II, in Parte Geral das Obrigações, cit., pp. 3 e 4

51

Logo, como admitir-se o exercício da função administrativa pelo Estado,

que a exerce apenas para corresponder à confiança juridicamente depositada

pela coletividade, sem a presença da boa fé?

Evidentemente, pois, que a boa fé é um princípio fundamental do direito

administrativo e decorre duma positivação já implícita nos elementos formadores

do seu regime jurídico (Estado de Direito, relação de administração e

indisponibilidade do interesse público).

Por isso, funciona nesse sistema da mesma forma que o princípio da

legalidade (dever da atividade administrativa se sujeitar à lei e ao direito, e não à

vontade do administrador); que o princípio da responsabilidade do Estado (dever

de se submeter às conseqüências do ordenamento jurídico); ou até mesmo que

o princípio da impessoalidade (proibição de conferir tratamento pessoal, numa

relação de administrar interesse que não lhe pertence); dentre outros de igual

escalão que gravitam em torno dos elementos estruturais do regime de direito

administrativo tal como os planetas gravitam em torno do sol.

Daí decorre que a boa fé - imbricada com a idéia do exercício de um

mandato do interesse público, nos termos do art. 1º, Parágrafo Único, da CF –

também implica como corolários o dever de prestar contas da atividade

administrativa realizada, o de publicar os atos administrativos, o de motivar o ato

administrativo, dentre tantos outros que demonstram que a atividade

administrativa deve ser conduzida de acordo com padrões de comportamento

previamente exigidos pela sociedade ao confiar na tutela do interesse público

pelo Estado.

52

Por essa razão, a boa fé no regime jurídico de direito administrativo

emerge como o princípio do dever de atuação, pelo administrador, de acordo

com o comportamento esperado de quem tutela o interesse público.

Este comportamento é representado tanto pelo dever de lealdade entre

as partes especialmente envolvidas numa relação especial (boa fé subjetiva,

entre o administrador e o cidadão) bem como pelo dever de conduta segundo

padrões de comportamento previstos no ordenamento jurídico (boa fé objetiva),

características estas que melhor analisaremos no Capítulo seguinte.

Na essência, observa-se que a boa fé e semelhante daquela que nasceu

pela filosofia grega e que influenciou toda a positivação jurídica posterior (vide

Capítulo 1). Difere, contudo, do colorido que a preenche especialmente, ou

melhor, da “pauta de comportamentos esperados” pelo direito administrativo.

E isto não é pouco.

Com efeito, o Estado de Direito, a relação de administração e a

indisponibilidade do interesse público, como visto, farão com que essa “pauta de

comportamentos esperados” seja muito diversa daquela que se exigiria, por

exemplo, de um membro da sociedade grega antiga, de um proprietário de um

bem particular, ou de um livre empreendedor, e assim por diante.

Vejamos, por exemplo, que o comportamento esperado de um

administrador privado será o de se comportar sempre com vistas a buscar o

aumento consistente do lucro, que é a vocação natural da sociedade comercial

que representa. Já para o administrador público, a situação se inverte, uma vez

que o aumento da arrecadação atentaria, muitas vezes, contra o poder

53

econômico da população, e, assim, o comportamento esperado, ou melhor, a

boa fé subjetiva ou objetiva do administrador recomendaria outra conduta

exatamente porque a pauta de valores referencial não é mais o aumento da

“receita”, mas sim a melhora da condição de vida das pessoas administradas, o

que pode ser alcançado com a diminuição, e não com o aumento, da carga

tributária.

Ademais, a boa fé inserida e impregnada pelo regime jurídico é capaz de

nos fornecerá, deveras, a segurança necessária para evitar a discricionariedade

ou o abuso que freqüentemente são cometidos pelo aplicador do Direito. Ora,

diante de conceito tão fluido, vago e indeterminado, a pauta de valores

juridicizada evitaria a substituição por aquela preferida subjetivamente pelo juiz,

com sua visão muitas vezes autoritária das coisas, ou por aquela que

pretenderia impor o promotor de justiça, movido por suas sanhas pessoais,

ideológicas ou até mesmo políticas, ou ainda por aquela que julgasse mais

conveniente o administrador, movido pelas mais diversas razões (algumas

absolutamente inconfessáveis).

Logo, a boa fé para os fins deste trabalho nasce e se forma como tal

rigorosamente dentro do regime jurídico de direito administrativo, e assim deve

ser fruída, da mesma forma que a maçã nasce e se forma como tal por

intermédio da macieira, pois somente assim forneceria seu peculiar sabor.

54

6. Classificação principiológica no regime de direito administrativo.

Entende-se que a boa fé administrativa consiste num princípio

positivado na Constituição da República, o qual, muito embora não esteja

explicitado de forma expressa, deve ser reconhecido na forma implícita como

emergente lógico do regime jurídico de direito administrativo (o que já foi

explicado no tópico anterior), sobretudo a partir do elemento “confiança” extraído

do especialíssimo mandato conferido pelo citado Parágrafo Único de seu artigo

1º. 42

E, sobre o reconhecimento de princípios implícitos no ordenamento

constitucional, valemo-nos do escólio do eminente Canotilho, segundo o qual:

“Os princípios se beneficiam de uma objetividade e presencialidade que os

dispensam de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito

particular.” 43

Classificamos a boa fé, destarte, como “princípio” por entendermos

que consiste numa norma axiológica de conteúdo aberto e genérico, que se

irradia e orienta a interpretação de todas as demais normas do regime jurídico

de direito administrativo.

Por isso, a boa fé de quem cuida de interesse alheio (no caso o

interesse público), como nítida razão lógica da expressão de que o poder emana

42 Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 43 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição; Livraria Almedina, 3ª Edição, Coimbra, 1999.

55

do povo e em seu nome será exercido (base teórica do Estado de Direito), deve

permear toda atividade da Administração Pública, assim como deve orientar a

exegese do jurista em tese, e, por fim, vincular a jurisdição no caso concreto.

Contudo, ao entender que ela incide como norma de otimização, isto é,

em graus de ponderação e sopesamento quando em colidência com os demais

princípios de igual hierarquia, adota-se a rotulação de “princípio” traçada por

Robert Alexy, o que se faz para diferenciá-la do que o referido autor chama de

“postulado” - e ainda que existam inúmeras formas científicas de classificarmos

o fenômeno principiológico. 44

44 Sobre a classificação adotada (princípio geral), deixa-se registrado que a ciência adota diversas formas refinadas e controvertidas de denominar as expressões que servem para designar as premissas que, não sendo normas jurídicas explícitas, compõe a estrutura do sistema jurídico como ponto de partida para a interpretação do sentido e alcance destas mesmas normas (meta-norma). Destacamos, a priori, Humberto Ávila, que, apoiado nas idéias de Robert Alexy, faz uma distinção entre princípios e postulados, asseverando que estes correspondem às “condições de possibilidade do fenômeno jurídico”, ou seja, explicam o modo teórico de como o Direito deve ser conhecido, e, portanto, não admitem flexibilização e nem incidiriam em graus, tal como os princípios incidiriam. Humberto Bergmann Ávila; (A Distinção entre princípios, regras e a redefinição do dever de proporcionalidade; RDA 215:151-179, p. 165). O próprio Robert Alexy, em sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, Malheiros, 2008, traduzida por Virgílio Afonso da Silva, cf. p. 90, explica que a terminologia princípio deve ser empregada como “mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua atuação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. E sobre “regras” (como outra espécie de norma, além do princípio; e ao lado de postulado), o autor ainda dispõe: “Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras conte, portanto, determinações daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é uma regra ou princípio.” Sobre a diferença entre regras e princípios (deixando, aqui, os postulados de fora), muito clara e precisa é a definição de Wilis Santiago Guerra, para o qual regras são estruturas lógico-deônticas, constituídas pela descrição de uma hipótese e a previsão de uma conseqüência, a realizar-se quando da ocorrência da moldura fática nela prevista. Já os princípios, longe de fornecerem tratamento para situações assemelhadas, emanam a prescrição de um valor que, pela sua inclusão no sistema, adquirem positividade (Notas em Torno do Princípio da Proporcionalidade, artigo publicado em Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976, Coimbra Editora, 1996, v. I, p. 249).

56

Já Miguel Reale, em, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 27ª Edição, p. 314, concebe a expressão princípio como gênero, explicitado seu pensamento da seguinte maneira: “Nosso estudo deve começar pela observação fundamental de que toda forma de conhecimento filosófico ou cientifico implica a existência de princípios, isto é, de certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais asserções que compõe dado campo do saber.”

É claro que estamos cuidando da palavra “principio” apenas em seu significado lógico, sem nos referirmos à acepção ética desse termo, tal como se dá quando demonstramos respeito pelos “homens de princípios”, fiéis, na vida prática, às suas convicções de ordem moral.

Restringindo-nos ao aspecto lógico da questão, podemos dizer que os princípios são “verdades fundantes” de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem pratica de caráter operacional, isto é, como pressupostos exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis.

A nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática.

Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de irretroatividade da lei para proteção dos direitos adquiridos etc.

A maioria dos princípios gerais de direito, porém, não consta de textos legais, mas representam contextos doutrinários ou, de conformidade com a terminologia assente no Capitulo XIV, são modelos doutrinários ou dogmáticos fundamentais.

Como se vê, e é salientado por Josef Esser, enquanto são princípios, eles são eficazes independentemente do texto legal. Este, quando os consagra, dá-lhes força cogente, mas não lhes altera a substancia, constituindo um jus prévio e exterior a lex.

Nem todos os princípios gerais têm a mesma amplitude, pois há os que se aplicam apenas neste ou naquele ramo do Direito, sendo objeto de estudo da Teoria Geral do Direito Civil, do Direito Constitucional, do Direito Financeiro etc. Fácil é perceber que, sendo elementos condicionadores ou fundantes da experiência jurídica, podem ter as mais diversas origens, consubstanciando exigências de ordem ética, sociológica, política, ou de caráter técnico. Vê-se por conseguinte, que eles se desenvolvem no plano do Direito Positivo, embora se fundem, de maneira mediata, em razões éticas ou de Direito Natural, desde que este seja concebido em função da experiência jurídica, como logo mais veremos, e não como uma duplicata inútil do Direito Positivo.” De outro lado, Nicola Abbagnano, em Dicionário de Filosofia, Editora Martins Fontes, 2003, p. 782, registra que, em geral, se diferenciam as expressões postulado e axioma, sendo o primeiro uma premissa que, servindo para demonstrar um procedimento, ainda não foi admitida, e, sendo admissível, deve ser demonstrada. Já o axioma seria o princípio stritu sensu, ou seja, também serve como premissa para demonstrar um procedimento, mas é admitido por si só, com valor próprio, e, portanto, independe de ser demonstrável. Por fim, registra que a distinção entre postulado e axioma deixou de ser usada na lógica e na matemática moderna. Para o administrativista Celso Antonio Bandeira de Mello, princípio também seria visto como gênero, definindo-o como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a Tonica que lhe dá sentido harmônico.” (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, cit. p. 53).

57

E assim se faz não meramente para se instaurar uma logomáquica, uma

disputa de palavras ou rótulos. Com efeito, a adoção da classificação

principiológica de Alexy se justifica pela sensível necessidade de se especificar

estritamente de que forma a boa fé deve ser aplicada no sistema jurídico, ou

seja, a função que desempenha.

Isto porque, se a compreendermos na concepção genérica de princípio

de Miguel Reale – o que inclui os “enunciados lógicos admitidos como condição ou

base de validade das demais asserções que compõe dado campo do saber” 45 -

poderemos concluir erroneamente que a boa fé não incidiria em graus de

ponderação com os demais princípios, já que serviria, como norma formal

constante, para explicar o modo teórico de como o Direito deve ser conhecido (o

que para Alexy seria classificado como “postulado” 46).

Ao justificar a posição adotada, o que também reforçará a utilidade da

classificação proposta, podemos traçar alguns exemplos esclarecedores.

Com efeito, a hierarquia entre as leis é pressuposto que incide sempre

de maneira constante e inflexível. Serve para explicar como o sistema jurídico

deve ser interpretado, ou seja, de modo a observar sempre que a norma

constitucional prevalece sobre aquela infraconstitucional, e assim por diante. O

mesmo ocorre com a irretroatividade, com a razoabilidade ou com a

proporcionalidade, as quais funcionam no sistema como meta normas, ou seja,

para explicar as técnicas de interpretação e aplicação de todas as normas

(regras e princípios) do sistema.

45 Vide nota 44. 46 Vide nota 44.

58

Daí porque são estruturas formais em termos absolutos, chamadas de

“postulados” e não admitindo ponderação.

Já o princípio da boa fé, em nítida distinção, contém carga axiológica

pura, e por isso mesmo incide em graus de ponderação com demais princípios

que também veiculam valores igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico.

Vejamos, como exemplo categórico, o terrível caso do apossamento de

fato pela Administração Pública, isto é, a chamada vulgarmente “desapropriação

indireta” que nada mais é do que a invasão ou o esbulho possessório de área

que não lhe pertence, a fim de edificar obra pública e nela instalar serviços

essenciais, como uma escola ou um hospital público. Evidentemente que nesses

casos não há justa e prévia indenização e sequer o respeito ao devido processo

administrativo (previstos como obrigatórios no instituto jurídico da

desapropriação, em nível constitucional inclusive). Tem-se, pois, uma hipótese

de máxima violação do dever de boa fé, já que a própria Administração Pública -

de quem mais se esperaria o comportamento fiel aos meios legais - age em total

afronta e deslealdade com as instituições jurídicas.

Contudo, a par desta tremenda violação ao dever de boa fé, é fato que a

doutrina em geral e os Tribunais vem reconhecendo, inspirados na doutrina

francesa segundo a qual l’ouvrage public mal plante ne se detruit pás 47, que não

se deve desfazer o ato (considerando a obra pública edificada) com efeitos ex

47 A tradução corresponde, em português, a “não se desfaz obra pública mau plantada”.

59

tunc, concedendo ao proprietário esbulhado apenas o direito a uma

indenização.48

Em outras palavras, equivale dizer, precisamente, que a boa fé,

exatamente por desempenhar a função comum aos princípios, foi relativizada

ou ponderada no caso concreto em favor do princípio da “continuidade do

serviço público”.

Sem prejuízo, ainda outros exemplos de ponderação serão abordados

no Capítulo IV, o qual cuidará dos desdobramentos práticos da boa fé

administrativa.

Ora, caso a boa fé fosse uma meta-norma de interpretação sobre o

sistema jurídico (um postulado, como a hierarquia das leis), ou ainda uma

espécie de alicerce lógico e de validade de um regime jurídico (tal como o

exercício de função administrativa no regime de direito administrativo), não seria

possível relativizá-la, pois aí se desmontaria o sistema ou o próprio regime

jurídico.

Daí porque é importante frisar que ela se classifica como princípio na

exata definição proposta por Alexy, sempre ponderável no caso concreto diante

de outros princípios de igual escalão. 49

Ainda seria interessantíssimo trazer à colação o registro do pensamento

de Aristóteles, o qual, muito embora tenha sido formulado há milênios, já

constatava com tremenda clarividência a natureza não absoluta dos fenômenos

48 Confira-se o registro doutrinário e jurisprudencial sobre a “desapropriação indireta” na magistral obra de Clovis Beznos “Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação”, Editora Fórum, 2006, Cap. 3, p. 53/66. 49 Vide nota 44.

60

axiológicos, sintetizados como virtudes (e dentre elas a boa fé, encampada pelo

direito).

Vejamos: “As virtudes nascem dos atos que praticamos, que

estabelecem a diferença de caráter entre o valente e o covarde ou o calmo e o

irascível. Essas características são, de fato, modos diversos de reagir diante da

mesma circunstância, tornando importante nos acostumarmos a agir desta ou

daquela maneira, desde a juventude, na formação do caráter.50 O objetivo de

Aristóteles não é saber o que é virtude, mas sim o que fazer para nos tornarmos

bons, em linhas gerais e não de maneira precisa, pois, para ele, questões de

conduta não são rígidas e devem ser consideradas em cada caso. Mesmo em

relação a boa-fé, o dever de veracidade cede passo diante de outras

virtudes como a justiça, a compaixão, a generosidade e o amor,

demonstrando a inexistência de dever absoluto, universal ou

incondicional.51”

Enfim, traçados os contornos do regime jurídico que faz emergir a boa

fé, e analisado o tipo das funções que pode desempenhar no sistema jurídico,

passemos a analisá-la por dentro.

50 Aristóteles, em Ética a Nicômaco, p. 64. 51 Idem, p. 67-68.

61

Capítulo III – A boa fé administrativa.

1. Análise do conceito na doutrina internacional (o conceito de Jesus Gonzáles

Peres). 2. Análise do conceito na doutrina nacional. 3. Conceito próprio de boa

fé administrativa. 4. Boa fé objetiva e subjetiva. 5. Relações e diferenças com

outros termos administrativos. 5.1. Desvio de poder. 5.2. Proporcionalidade.

5.3 Moralidade. 5.4 Improbidade. 5.5 Segurança Jurídica. 5.6 Dever de boa

administração.

1. Análise do conceito na doutrina internacional (o conceito de Jesus

Gonzáles Peres).

Diante da escassez do tratamento da boa fé no direito administrativo -

estranho fenômeno que também se deu na doutrina internacional (o que foi

percebido pelo português Menezes Cordeiro 52) - foi Jesus González Perez,

renomado autor espanhol, quem procurou abordar o tema com maior nível de

aprofundamento no direito público, razão pela qual sua obra vem sendo a fonte

científica mais consultada.53

Aqui abro um parêntese para comentar que a boa fé provavelmente

nunca encontrou espaço adequado no campo do direito administrativo pela forte

52 Referido autor anota que a boa-fé nas obras de direito administrativo aparecem, quando raro, em referencias escassas e desalinhadas. Observa que falta abordá-la segundo sua natureza, aplicações e formas de aplicação (Da Boa-Fé no Direito Civil; Coleção Teses, Edições Almedina. 2007, p. 391). 53 Outro raro autor que se ocupou monograficamente sobre o tema da boa-fé no direito administrativo, pela doutrina internacional, muito embora sem o mesmo destaque de Peres, foi o italiano Francesco Manganaro, em Principio di Buona Fede e Attivitá delle Admministrazioni Pubbliche, o que será abordado na seqüência.

62

carga que o princípio da legalidade representou neste regime jurídico (é o que

suponho, numa tentativa de explicar tamanha lacuna). Com efeito, no direito civil

sempre vigorou a máxima de que “tudo que não for proibido em lei é permitido”,

e que, por isso mesmo, “na declaração de vontade prevalece mais a intenção

das partes do que a literalidade do ajuste” (vide artigos 104, III, 107, 112 e 113

do Código Civil).

Assim, a liberdade de atuação sempre foi muito maior entre os

particulares e daí porque sempre se justificou uma preocupação maior com a

confiança que é depositada por uma parte em relação à outra numa relação

jurídica – típica incidência do princípio da boa fé subjetiva, o que despertou o

interesse pelos estudos no direito civil, até chegar ao aspecto objetivo.

Já no campo do direito administrativo, por causa da idéia de que “a

atuação administrativa só é permitida se houver previsão legal e nos limites

desta”, sem campo considerável de liberdade, considerava-se irrelevante

averiguar a intenção ou a vontade do agente público, o que nos permite deduzir,

destarte, que isso teria provocado o desinteresse pelo tema.

Entretanto, ao considerarmos que o regime jurídico de direito

administrativo, após o Estado de Direito, baseia-se na delegação de poder do

povo ao administrador, que age em seu nome numa relação especial de

confiança (vide Cap. II, 5), podemos concluir que a omissão da boa fé neste

ramo jurídico é despropositada.

63

Ora, sendo princípio jurídico relevante do direito administrativo (Cap. II, 6),

a boa fé incide de maneira tão forte que provoca, em confronto com outros

princípios, a relativização deles, inclusive o da própria legalidade.

Como exemplo, fiquemos por ora com os chamados “limites à invalidação

dos atos quando ampliativos de direito em prol da boa fé”, numa clara

ponderação desta com o princípio da legalidade, o que colhemos da significativa

obra de Weida Zancaner, ou então com “o efeito do ressarcimento ao terceiro de

boa fé mesmo diante de ato ilegal”, tal como proposto por Ricardo Marcondes

Martins, em seu completíssimo “Efeitos dos Vícios dos Atos Administrativos”. 54

Voltando, agora, ao conceito da boa fé no campo do direito administrativo

segundo Perez, podemos trazer à colação que o referido autor define-a, apoiado

na jurisprudência espanhola e nas idéias de Lacruz e Dromi, como um “valor

ético de la confianza. Representa las vías más fecundas de irrupción del

contenido ético social en el orden jurídico, y, concretamente, el valor de

confianza. Sirve de cauce para la integración del idea de fidelidad y de crédito, o

de creencia y confianza. La buena fe supone una regla de conducta o

comportamiento civiliter, una conducta normal, recta y honesta, la

conducta de un hombre corriente, de un hombre medio. Se mide en la

relación concreta en la que opera, al igual que sucede con la noción de

buen conductor, según la jurisprudencia contencioso-administrativa. No 54 A Professora Weida Zancaner trata da boa-fé x legalidade em sua magistral obra “Da convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos, Malheiros, 3ª Edição”, cit. p. 73/74. Deve-se anotar que o Professor Ricardo Marcondes Martins, em obra de notável e igual conteúdo científico (Efeitos dos Vícios do Ato Administrativo, Malheiros, 2008), defende que a boa-fé do terceiro atingido poderá, conforme o conceito que a compreende e dependendo do sopesamento com a legalidade, não afastar a invalidação do ato, mas apenas servir para lhe garantir a reparação de danos. Entretanto, o que interessa observar, em ambas as obras citadas, é o reconhecimento da boa-fé como valor suficiente para sopesar a própria legalidade no direito administrativo.

64

hace referencia al comportamiento general de la persona, sino a su posición en

una concreta relación jurídica, bien en su nacimiento, en el ejercicio de los

derechos o en el cumplimiento de las obligaciones en que se concreta.” 55

Referido autor, situa a boa fé, portanto, como um dever de conduta

honesta, normal e reta (ou seja, de um homem médio), de modo a corresponder

à confiança depositada.

Por isso, sintetiza seu conceito em torno do valor confiança, o qual seria

aferível pelo comportamento esperado. 56

A partir destas valiosas lições é que a ciência do direito pôde discutir mais

a fundo a matéria no seio do direito administrativo, sucedendo, como é natural,

outras luzes a respeito do tema, como observações, interpretações ou até

mesmo discordâncias (daí é que se prova, deveras, o sucesso da iniciativa

científica).

De nossa parte, reputa-se como adequado interligar o conceito de boa fé

ao dever de confiança, pois estaria de acordo com a maneira pela qual

sustentamos que referido princípio emerge no regime jurídico de direito

administrativo, ou seja, a partir de uma relação fiduciária que se estabelece

quando a sociedade (titular do poder) delega ao Estado (mandatário) a tutela do

interesse público (vide Cap. II, 5).

Entretanto, impõe como relevante fazer uma interpretação, desde já,

sobre o chamado comportamento esperado, haja vista que o dever do agir

55 “El principio general de buena fe em el derecho administrativo”, Civitas, Tercera Edición, p. 74. 56 Idem 51.

65

previsivelmente não se pode relacionar com o histórico, anterior e previsível, do

comportamento de alguém.

A coerência exigida, a rigor, não é com o passado.

Em verdade, o comportamento esperado e que caracteriza a boa fé

administrativa, não seria meramente o comportamento anterior, mas, ao invés

disto, deve ser aquele que se exige conforme os padrões de conduta vigentes

pela sociedade e desde que reconhecidos pelo direito positivo,

independente e desvinculado da experiência anterior do indivíduo analisado.

Para confirmar o alegado, bastaria recorrer à máxima de que “ninguém

pode se aproveitar da própria torpeza”, ou seja, um histórico anterior e

inadequado de comportamento jamais poderá conferir a alguém o direito de

continuar exercendo-o sob pretexto de coerência pessoal.

Em outras palavras: o comportamento de má fé repetido não se torna, por

isso, de boa fé.

A invocação do histórico anterior ainda poderia revelar a pior espécie de

má fé, pois, pela prática reiterada de um comportamento que foge da pauta de

valores juridicizada, pretende-se, pela banalização da conduta, torná-lo aceito,

suportável, e, assim, definitivo.

É uma espécie sofisticada e dissimulada de proceder de forma contrária

aos ditames da boa fé, já que a má fé repetida mil vezes realmente provoca, em

muitos casos, o efeito da acomodação, o que nos cega os olhos para enxergar o

que seria, de fato, a boa fé.

E os exemplos, infelizmente, são fartos, senão vejamos.

66

Razões desta natureza (muitas vezes não detectadas) estão nas

entrelinhas, por exemplo, da edição reiterada de emendas constitucionais

tendentes a perenizar o calote no pagamento dos precatórios, em flagrante

violação ao dever de responsabilidade do Estado. E tudo isso – frisa-se –

apoiado na justificativa de que o Poder Público, pelo seu histórico de mau

pagador contumaz, pretende não ser mais responsabilizado na forma da

Constituição e das leis, as quais, segundo essa linha, teriam de ser alteradas em

seu favor.

Ora, muito embora o cidadão brasileiro até pudesse esperar este tipo de

comportamento, em razão do histórico anterior do Estado, é obvio que o dever

de boa fé encontrar-se-ia por demais afetado. 57

Ou ainda, lembremo-nos da prática reiterada da Administração Pública

em realizar concurso público e não nomear os servidores aprovados para o

57 Sobre o tema, nada melhor do que simplesmente transcrever a redação do art. 2º da atual Emenda Constitucional 62, de 09 de dezembro de 2009, na parte que introduziu alterações no art. 97 do ADCT, para verificar que o Estado, se valendo da torpeza de mau pagador, cria nova moratória ao cidadão que já amarga décadas para receber o que lhe é devido.. Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 97: "Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data de publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclusive os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo, farão esses pagamentos de acordo com as normas a seguir estabelecidas, sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal, exceto em seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional. § 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios sujeitos ao regime especial de que trata este artigo optarão, por meio de ato do Poder Executivo: I - pelo depósito em conta especial do valor referido pelo § 2º deste artigo; ou II - pela adoção do regime especial pelo prazo de até 15 (quinze) anos, caso em que o percentual a ser depositado na conta especial a que se refere o § 2º deste artigo corresponderá, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança para fins de compensação da mora, excluída a incidência de juros compensatórios, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento.

67

número certo das vagas postas em disputa (o que era feito por razões

inescrupulosas, como, por exemplo, o simples intuito de arrecadar o dinheiro da

inscrição).

Com efeito, tal exemplo de má fé demorou muito tempo para ser

repudiado pela jurisprudência pátria, a qual, nitidamente levada pela artimanha

do comportamento anterior, entendia que o candidato não poderia confiar e

esperar que a conduta administrativa no final do certame fosse a nomeação,

mas apenas que, se houvesse alguma nomeação, que se respeitasse a ordem

de classificação.

Em suma: até a posição adotada pelo STF em 2008, dizia-se, na espécie,

que sequer havia direito adquirido, mas apenas expectativa de direito. 58

Talvez o exemplo mais interessante de que o comportamento esperado

não pode se relacionar com a praxe administrativa, sobretudo por ainda estar

desapercebido pela jurisprudência, colhe-se na importante obra de Clovis

Beznos sobre os “Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação”.59

Nela, o perspicaz professor, em total aversão à conduta reiterada e até de

certa forma já aceita pela sociedade, defende a tese de que a execução na ação

de desapropriação deveria, pela sua natureza declaratória em favor do Poder

Público, ser realizado por este (e não pelo expropriado), mediante o pagamento

integral do valor transitado em julgado e conseqüente transcrição no Cartório

Imobiliário, a fim de não causar mais prejuízos ao expropriado.

58 Vide RE 227480, STF, Relator(a): Min. MENEZES DIREITO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA; Julgamento: 16/09/2008, Órgão Julgador: Primeira Turma. 59 Aspectos Jurídicos da Indenização na Desapropriação, Editora Fórum, 2006.

68

E o resultado prático disto seria incrível: não existiria mais precatório nas

desapropriações judiciais, uma vez que o Poder Público é quem promoveria a

execução do julgado.

E, aliás, nada mais seria natural do que exigir tal comportamento. Uma

desapropriação apenas ocorre porque a Administração Pública unilateralmente

manifesta a vontade de se apropriar do bem particular, e, portanto, ao obter o

título judicial que fixa o justo valor da aquisição em seu interesse, deveria ela

própria concluir o processo.

Esta, e não outra, deveria ser a conduta esperada da Administração.

No entanto, o Poder Público, em nítida posição de má fé (sobretudo

quando já se imitiu na posse sem o pagamento total do valor da indenização

devida), omite-se em relação à satisfação do julgado, deixando que o réu do

processo (o expropriado), que sequer título executivo ostenta, tenha de utilizar-

se duma espécie de “execução invertida” (execução pelo réu da ação e que

sucumbiu ao titulo declaratório), e assim seja obrigado a cair na ardilosa e

interminável fila de precatórios. 60

60 “Vê-se que não se aloca a indenização na ação de desapropriação no conceito de pagamento devido pela Fazenda Pública em virtude de sentença judiciária, mesmo porque, como acima foi referido, não se constitui a indenização na ação expropriatória em direito autônomo do réu, exeqüível como um provimento condenatório. O que aparta essa situação judicial das condenações da Fazenda Pública, sujeitas aos trâmites preconizados nos artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil, com base no artigo 100 da Constituição Federal, é que a sentença declaratória na desapropriação, ao contrário das sentenças condenatórias, não faz surgir o título determinante de uma execução, mas tem por objetivo tão-somente, com seu trânsito em julgado, fixar o valor devido, para a concretização da desapropriação. Desse modo só se pode concluir que é absolutamente equivocada a prática da execução da indenização pelos expropriados, com fundamento no artigo 100 da Constituição Federal e nos termos dos artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil.” Em outro trecho, Clovis Beznos chega a ser ainda mais enfático quando assevera: “Considera-se que, quanto ao aspecto em tela, é evidente a crise de efetividade da justiça, o que acarreta descrédito, colocando em xeque a credibilidade do Poder Judiciário e das instituições democráticas, eis que intermináveis são as filas de precatórios, além do fato de que usualmente as Fazendas Públicas, salvo honrosas exceções,

69

Tem-se, evidentemente, um histórico pernicioso na conduta

administrativa, o qual deixa claro que a boa fé não pode ser relacionada com o

comportamento passado administrativo (ou comportamento reiterado), mas,

como já afirmado, deve mirar o comportamento esperado em razão dos

valores juridicizados pela sociedade, numa relação espaço-tempo.

Por isso é que a exata compreensão do comportamento esperado é o

remédio mais eficaz para evitar que a Administração Pública acabe se valendo

de sua própria torpeza.

E, para tanto, vincular o comportamento esperado à pauta de

comportamentos juridicizados, e não ao histórico fático, será fundamental.

Compreendem-se como tais os comportamentos esperados pelo direito,

segundo suas normas em vigor (regras e princípios), e não pelo histórico

individual de cada um. Somente assim o dever de boa fé administrativa poderá

ser aplicado com segurança e efetivamente controlado pelo Judiciário.

De outro turno, ainda merece destaque na doutrina internacional o escólio

de Francesco Manganaro, o qual também se ocupou como monografista da boa

fé no campo do direito administrativo em sua obra Principio di Buona Fede e

Attivitá delle Admministrazioni Pubbliche.

Nela, o jurista italiano sustenta que a boa fé administrativa consistiria

numa decorrência do princípio da solidariedade positivado no art. 1175 do

Código Civil Italiano e no art. 2º de da Constituição daquele País. O conteúdo

utilizam todos os expedientes possíveis para retardar os feitos em que lhes possam impor condenações em favor dos administrados, atuando como verdadeiros litigantes de má-fé, o que é simplesmente lamentável”. Ou ainda: “Entretanto, essa prática é inquestionavelmente desafiadora da lógica e desconforme com o regramento da espécie. Vide nota 22, p.142 e 136/138.

70

semântico impregnado estaria ligado à idéia de que o exercício de um direito

não poderia ser realizado a ponto de provocar o sacrifício excessivo dos

interesses de todos. 61

Ou seja, para Manganaro o princípio da boa fé administrativa não seria

outra coisa senão a aplicação do princípio geral da boa fé comum que se

espraia nos demais ramos do direito.

Neste particular, muito embora já reconhecemos um princípio geral da

boa fé aplicável em todos os ramos do direito, inclusive no direito administrativo

(vide Cap. II.5), e que deriva realmente do dever de solidariedade, assevera-se

que a existência desta como princípio específico do direito administrativo, e, o

mais importante, com sentido e utilidade próprios – o que veremos nos itens

subseqüentes.

2. Análise do conceito na doutrina nacional.

A par do desenvolvimento da boa fé como princípio geral do direito e que

ganhou luzes mais brilhantes no campo do direito civil (Cap. II, 5), é fato que a

doutrina brasileira administrativista, tal como a estrangeira, apresenta-se muito

escassa quanto à sua adequada descrição científica.

Raríssimas exceções, não se tem, infelizmente, desenvolvido

metodologicamente o tema no regime jurídico de direito administrativo, faltando-

61 Principio di Buona Fede e Attivitá delle Admministrazioni Pubbliche – Nápoles, Edizioni Scientifiche Italiane, 1995

71

lhe uma investigação de sua natureza, de seu conceito, de suas hipóteses de

incidência e de suas conseqüências.

Encontram-se apenas referências vagas e isoladas sobre a boa fé,

desprovidas de qualquer inserção sistemática.

Acredita-se, ainda, que a carga representada pelo princípio da legalidade

provavelmente também funcionou para a doutrina nacional como inibidor do

aprofundamento da boa fé (vide comentário no item 1 deste Capítulo).

O primeiro autor nacional que se ocupou um pouco mais detidamente do

princípio da boa fé no direito administrativo foi Almiro do Couto e Silva, em 1981,

quando a tratou dentro do tema “Responsabilidade do Estado” 62. Situava que o

Estado, ao incentivar a atuação dos administrados mediante promessas, não

poderia quebrá-las à luz do princípio da proteção à confiança, sob pena de ser

responsabilizado. 63

Assim, a boa fé, também como proteção da confiança, passou a ser

reconhecida como incidente no campo do direito administrativo, mas inserida

especialmente no tema da responsabilidade do Estado pelas promessas

concretamente realizadas, sob influxo da segurança jurídica (que cuidaremos de

tratar no item 5.5 deste Capítulo).

Entretanto, o fato mais sensível é que após a positivação explícita do

princípio da moralidade administrativa pela Constituição Brasileira de 1988, a

62 “A responsabilidade do Estado no quadro dos problemas jurídicos resultantes do planejamento”, tese esta que foi publicada na RF 278/366-371, e, depois, em “Responsabilidade pré-negocial e culpa in contrahendo no direito administrativo brasileiro” artigo publicado na RDA 217/163-171) 63 Idem nota acima (p. 370).

72

boa fé passou a ser tratada pela doutrina pátria, de forma reflexa, como

elemento contido no conceito daquela.

Nesse sentido, o grande mestre Celso Antônio Bandeira de Mello bem

ilustra a posição brasileira: “Princípio da moralidade administrativa: De acordo

com ele, a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de

princípios éticos. Violá-los implicará violação ao próprio Direito, configurando

ilicitude que assujeita a conduta viciada a invalidação, porquanto tal princípio

assumiu foros de pauta jurídica, na conformidade do art. 37 da Constituição.

Compreende-se em seu âmbito, como é evidente, os princípios da lealdade

e da boa-fé, tão oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesus

Gonzáles Peres em monografia preciosa. Segundo os cânones da lealdade e da

boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com

sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso,

eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o

exercício de direitos por parte dos cidadãos.” 64

Assim, a boa fé para o grande mestre, inserida no campo do dever ético

da moralidade administrativa, é vista como o dever do comportamento

verdadeiro e movido com boas intenções em relação aos administrados.

Trata-se, portanto, da proteção no que toca ao aspecto subjetivo, o que

não está errado afirmar (reconheça-se), mas que não poderia esgotar, por si só,

o estudo do referido princípio (o que o grande mestre jamais mencionou ter a

pretensão de fazê-lo – reconheça-se novamente).

64 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 119.

73

E, nesse particular, caminhou a doutrina de uma forma geral 65 até que

José Guilherme Giacomuzzi publicou, em 2002, sua dissertação de mestrado

sobre o tema “A moralidade administrativa e a boa-fé da administração

pública”.66

Nela, o autor, que faz um estudo mais focado sobre o princípio da

moralidade, abre um capítulo dedicado a boa fé no direito administrativo. Nesta

parte, fornece a esperada distinção sobre a dicotomia objetivo x subjetivo, para,

em seguida, concluir que a boa fé, no aspecto subjetivo, seria o “estado de

consciência; é subjetiva porque o intérprete, ao aplicá-la busca a intenção do

agente; a má-fé é seu contrário” 67, e, quanto à faceta objetiva, significaria “um

modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico ligado às idéias e

ideais que animaram a boa-fé germânica do § 242 do BGB: regra de conduta

baseada na honestidade, na retidão, na lealdade, e, principalmente, na

consideração para com os interesses de terceiros, vistos como um membro do

conjunto social que é juridicamente tutelado.” 68

Destarte, Giacomuzzi trata da boa fé subjetiva e objetiva, também no

campo do direito administrativo, como dois fenômenos jurídicos distintos e

aplicáveis.

Entretanto, ao reconhecer que sua obra não teve por finalidade tratar da

boa fé de forma específica e minuciosa, acaba, no final das contas, reduzindo

65 No mesmo sentido, citamos a posição dos insignes juspublicistas Carmen Lucia Antunes Rocha (Princípios Constitucionais da Administração Pública, Del Rey, 1994), e Marcio Cammarosano (O Princípio Constitucional da Moralidade e o Exercício da Função Administrativa, Fórum, 2006), dentre outros. 66 A moralidade administrativa e a boa-fé da administração pública, Malheiros, 2002. 67 Idem nota acima, cit. p. 240. 68 Idem.

74

seu estudo a meras referências sacadas de outras normas ou princípios do

direito administrativo. 69 Quanto ao aspecto subjetivo, ela se reduziria ao dever

de probidade administrativa, e, quanto ao aspecto objetivo, seria a própria

veiculação do princípio da moralidade administrativa. 70

Ainda em 2002, emerge, finalmente, a publicação da tese de

doutoramento de Edilson Pereira Nobre Junior, sobre o tema específico

“Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro”. 71

Nela, o autor, enfim, a descreve como objeto especial pela ciência do

direito. Aborda seu surgimento a partir do Direito Romano, bem como a visão do

direito comparado e a positivação no direito brasileiro, para, ao final, trazer luzes

sobre sua aplicação em algumas atividades administrativas, como processo ou

contrato administrativo, dentre outros.

Quanto ao acolhimento da boa fé no direito administrativo brasileiro,

Nobre Junior rompe com a tradição de concebê-la unicamente como espécie

inserida dentro do campo da moralidade administrativa, passando a enxergar

que o processo de sua positivação é variado e se deduziria, também, da

imbricação com muitos outros cânones constitucionais, tais como a

solidariedade, o devido processo legal, e a proporcionalidade. 72

E assim o faz exatamente porque, influenciado pelos ideais da boa fé do

direito comparado e aperfeiçoados pelo direito civil nacional (aqui tratado no

69 O autor revela a abrangência do estudo da boa-fé, nesse particular, a fls. 229, em A moralidade administrativa e a boa-fé da administração pública, Malheiros, 2002. 70 Idem cit. p. 242 e 249/250. 71 Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Editora Sergio Antonio Fabris, 2002. 72 Idem nota 70, cit. do item 4 do Capítulo III, páginas 153/161.

75

Cap. I), reconhece a altíssima carga de abstração que o valor nela veiculado

representa, ultrapassando a barreira simples da moralidade.73

Também vale menção a posição de Ricardo Marcondes Martins,

publicada em 2008 no bojo de sua citada obra sobre “Efeitos dos Vícios dos

Atos Administrativos”, sobretudo porque referido autor se preocupou em definir

um conceito para a boa fé administrativa independentemente de sua co-relação

com outros princípios do sistema. 74

73 Nesse sentido, diz o insigne Doutor (Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Editora Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 153/158): “Conforme exposto linhas passadas, não há a menor dúvida quanto à presença da boa-fé como um dos pontos cardeais de nossa realidade administrativa. A maneira pela qual torna-se realidade é variada. Melhor dizendo, advém a sua descoberta, mediante o labor hermenêutico, de dispositivos não específicos da Lei Fundamental, podendo também sobressair expresso de textos legais, ou ainda através de recursos a preceitos do direito privado. Na primeira situação, em que se tem a boa-fé como princípio magno implícito, forçoso considerar, como ponto de partida, a sua consideração como conceito jurídico indeterminado, a fim de que se possa, diante de casos concretos, apontar-se o seu enquadramento em uma determinada regra ou princípio que se afigure como o melhor dotado para respaldar uma solução justa. Firmada tal asserção, impõe-se sustentar, atento à classificação exposta por Antonio Francisco de Souza, configurar a boa-fé como conceito normativo de valor, porquanto, demais de sua conexão com o mundo das normas, somente poderá ter, em cada caso, a sua determinação delineada com base em uma norma de valoração. Feito isso, passemos aos múltiplos dispositivos que encarnam, no seu conteúdo, o princípio da boa-fé, tornando-o aplicável não só ao direito privado, mas, por igual, ao direito administrativo. Primeiramente, tem-se a visualização da boa-fé no art. 3º, I, da Lei Fundamental, ao indigitar, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. ... Doutro lado, há que se notar a forte influência ostentada pela boa-fé, ao servir de suporte para o arcabouço principiológico da função administrativa. É induvidoso a Constituição de 1988 não erigi-la, às expressas, ao nível de princípio cardeal da Administração Pública. Sem embargo, aquela é facilmente extraída do standard da moralidade, inscrito no art. 37, caput, da Lei Máxima. ... Pelo menos, mais dois outros dispositivos de nossa Norma Básica conferem amparo à boa-fé Omo diretriz da Administração. Em primeiro lugar, emerge à ribalta o art. 5º, LIV, da CF, prescrevendo a adoção expressa, em nosso direito, do devido processo legal para a privação de bens ou de liberdade. ... Ao lado, integrando-lhe, surge o art. 5º, §2º, da Constituição Federal, de cujo teor emana o princípio da proporcionalidade, a atuar tanto no sentido de conter os limites da atuação material da Administração quando no de balizar os contornos da atividade normativa não arbitrária. 74 “Efeitos dos Vícios do Atos Administrativo”, Malheiros, 2008, cit. p. 316.

76

Ao ensejo, Martins sugere uma diferença original e muito interessante,

entre o princípio da boa fé e o princípio da confiança (muito embora reconheça

existir uma aproximação entre os termos comparados).

Para ele, “o princípio da confiança legítima protege a confiança do

administrado na correção dos atos estatais; o princípio da boa-fé exige que o

administrado e a Administração ajam com ética e lealdade entre os dois

princípios”. E nessa linha conclui que “a inserção do princípio da confiança

legítima dá-se com a inserção de uma norma no sistema jurídico (...) o princípio

da boa-fé é bem mais complexo: ele exige que os sujeitos, ao se relacionarem,

atuem com lealdade e ética e, de certa forma, favorece quem tenha obedecido a

essa exigência e desfavorece quem a tenha violado”. 75 76

Contudo, ainda que seja clarividente e necessário analisar, em foco

separado, a boa fé entre Administração e parte numa relação jurídica específica,

daquela que ocorre entre Administração e sociedade em geral (o que já é de

enorme contribuição para o desenvolvimento do tema), simplesmente

discordamos das premissas semânticas traçadas por Martins, e, assim, da

conclusão a que se chegou.

75 Idem nota 74. 76 Anota-se que Maria Sylvia Zanella Di Pietro, apenas na 23ª edição do livro “Direito Administrativo”, publicada em 2010, p. 87, acolhe a distinção entre os termos nos mesmos moldes adotados por Ricardo Marcondes Martins. Diz a insígne autora: “Há quem identifique o princípio da boa-fé e o da proteção à confiança. É o caso de Jesús Gonçales Perez, em sua obra El pincipio general de la buena fe en el derecho administrativo. Na realidade, embora em muitos casos, possam ser confundidos, não existe uma identidade absoluta. Pode-se dizer que o princípio da boa-fé deva estar presente ao lado da Administração e do lado do administrado. Ambos devem agir com lealdade, com correção. O princípio da proteção protege a boa-fé do administrado; por outras palavras, a confiança que se protege é aquela que o particular deposita na Administração Pública. O particular confia em que a conduta da Administração esteja correta, de acordo com a lei e com o direito. É o que ocorre, por exemplo, quando se mantêm atos ilegais ou se regulam efeitos pretéritos de atos inválidos.”

77

Com efeito, a carga semântica da boa fé, que foi moldada desde os

gregos pela filosofia e que se manteve incólume na história do direito (conforme

tratado no Cap. I), carrega como gênero as duas acepções que se tenta

fragmentar, isto é: a proteção do cumprimento da promessa feita pelas partes e

entre elas (o que foi chamado estritamente de boa fé), bem como a proteção da

pauta de comportamentos esperados social e objetivamente (o que se chamou

de proteção à confiança).

E mais, o que está por trás dos deveres de lealdade e ética entre as

partes (o que seria o núcleo da boa fé para Martins), também é a mesma

proteção do princípio da confiança, pois sem fidúcia nada haveria que se exigir

da parte contrária além da simples entrega do objeto pactuado.

Em outras palavras: sem a proteção jurídica da confiança, não haveria

que se falar em dever de boa fé de uma parte para com a outra.

Por isso, sustento que a boa fé positivada pelo direito administrativo

abrange duas vertentes do próprio valor da confiança, sem descolar dele, senão

vejamos: (a) protege as partes numa relação jurídica, para que não atuem, uma

com a outra, de má fé ou com deslealdade (proteção, aqui, subjetiva e objetiva,

respectivamente); b) da mesma forma que protege a boa fé do administrado

que, fora de uma relação jurídica específica, confia que a Administração adotará

um comportamento adequado conforme os padrões objetivos de lealdade e

honestidade, fixados como standards no ordenamento jurídico (proteção, aqui,

objetiva e extrapartes).

78

Por isso, apartar o valor da confiança desnudaria a própria essência da

boa fé, que é exatamente o de proteger a confiança depositada num

comportamento esperado, objetiva ou subjetivamente, intrapartes ou

extrapartes.

Aliás, o que se convencionou chamar de proteção à confiança, pelo direito

administrativo, nada mais é do que uma vertente da boa fé objetiva e que foi

encampada do direito germânico, isto é: o de reconhecer que os deveres de

lealdade e honestidade não se limitavam entre as partes, mas também diante de

terceiros, que aguardavam um comportamento segundo arquétipos sociais ou

modelos de conduta objetivados pelo Direito. 77

Por tudo isso, restringir a boa fé apenas no dever ético entre as partes

não me parece coadunar com o sentido e a dimensão (ampliativos) que o

ordenamento jurídico conferiu a este notável princípio.

Permaneço, assim com a posição inicial do mestre espanhol Gonçales

Perez, ao imbricá-la com o valor da confiança 78, muito embora reconheço que a

posição de Ricardo Marcondes Martins clarifica a compreensão da boa fé

administrativa intraparte e extraparte.

Mesmo assim, alguém ainda poderia dizer que a divergência entre as

posições seria meramente uma logomaquia, porquanto o que se chama de boa

fé objetiva poder-se-ia chamar de princípio da proteção à confiança, e o que se

convenciona chamar de boa fé subjetiva seria chamado simplesmente de boa fé,

ou vice-versa.

77 Sobre a boa-fé no direito alemão, vide Cap. I.3. 78 “El principio general de buena fe em el derecho administrativo”, Civitas, Tercera Edición, p. 74.

79

Mas, na realidade, além do problema conceitual, existem outras

distinções entre as duas posições que ora temos de enfrentar.

Na primeira delas, não admitimos que a boa fé (aqui subjetiva) possa

decorrer de padrões de lealdade ou ética que não seriam previstos

normativamente, tal como proposto quando se fez a separação desta com o

princípio da proteção à confiança (nesse caso, apenas o último decorreria de

uma norma inserida no sistema jurídico).

A rigor, na boa fé, quer seja subjetiva ou objetiva, o que se protege é

sempre uma pauta de valores juridicizada.

A diferença está no fato de que a violação subjetiva ocorrerá mediante

uma ação intencional de quebrar a confiança depositada pela parte contrária

numa relação jurídica, mas tudo conforme os padrões éticos colhidos dentro do

ordenamento jurídico, e não fora dele.

A má fé (contrário da boa fé subjetiva) residiria na intenção de frustrar a

própria confiança, no ânimo do agente em violar o comportamento esperado, e

não sobre o tipo ou a origem da pauta de valores violada.

Esta, sobretudo nos sistemas que não partem da common law, será

sempre fixada pelo direito, sob pena de cairmos na terrível insegurança de que

cada um poderá eleger de maneira diferente aquilo que entende por correto x

incorreto, bom x ruim, honesto x desonesto, leal x desleal.79

A segunda conseqüência distinta que pode ser aferida entre os escólios é

que a segmentação proposta por Martins levaria os signos da boa fé e da

79 Vide as diversas formas de classificar o fenômeno da boa-fé administrativa, objetiva e subjetiva, no item 4 deste Capítulo.

80

confiança a receber um tratamento diverso quando em conflito com o princípio

da legalidade, a fim de decidir pela manutenção ou anulação dos atos

administrativos.

Na posição do astuto jurista, a ilegalidade, quando em confronto com o

princípio da confiança, seria sempre relativizada em favor da manutenção do

ato, enquanto que o mesmo choque com a boa fé provocaria necessidade de

ponderação no caso concreto para decidir em favor de uma de outra.

E isto se daria pela existência, no sistema, de faixas de pesos pré-

concebidas em favor do princípio da confiança, o que não ocorreria da mesma

forma com a boa fé.80

De nossa parte, entretanto, não se vislumbram que os valores jurídicos

em termos de boa fé (lealdade, verdade, solidariedade, etc) contenham pesos

distintos e apriorísticos no ordenamento em favor de um ou de outro.

Isto porque, tanto o princípio especial da proteção à confiança

(supostamente extraído da idéia de boa fé), como também da chamada boa fé

em si mesma (supostamente ligada apenas à proteção da lealdade e da

honestidade) incidem como princípios fundamentais do regime de direito

administrativo, e, portanto, contém pesos iguais e que são ponderáveis sempre

no caso concreto, de acordo com o postulado da proporcionalidade.

Diante destas asserções sobre a boa fé no direito administrativo,

notamos, enfim, que a doutrina nacional começa a volver seus olhos com mais

atenção no trato do tema.

80 “Efeitos dos Vícios dos Atos Administrativos”, Malheiros, 2008, cit. p. 316.

81

E a prova maior disto é exatamente a oportunidade que se tem, a partir de

agora, de confrontar duas ou mais posições de valor científico, permitindo ao

leitor ou ao aplicador do direito eleger aquela que lhe pareça mais adequada.

Nessa linha, é interessante observar que Maria Sylvia Zanella di Pietro,

até o final de 2009 81, não tratava do princípio da boa fé dentro dos princípios

arrolados no direito administrativo, fazendo apenas mera referência desta no

seio da moralidade.

Contudo, na 23ª Edição de sua obra “Direito Administrativo”, publicada em

2010, a autora passa, enfim, a tratar da boa fé como princípio autônomo. Nela,

Maria Sylvia registra que o princípio já se encontra positivado expressamente

pela lei federal de processo administrativo (Lei Federal 9.784/99) 82, e, o mais

importante, nos fornece mais um desenho, dentro do direito administrativo, entre

sua acepção objetiva e subjetiva, assim explicitado: “a boa-fé abrange um

aspecto objetivo, que diz respeito à conduta leal, honesta, e um aspecto

subjetivo, que diz respeito à crença do sujeito de que está agindo corretamente.

Se a pessoa sabe que a atuação é ilegal, ela está agindo de má-fé.” 83

81 O registro se refere à sua obra Direito Administrativo, considerada até a 22ª Edição. 82 Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades; IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; 83 Direito Administrativo, 23ª Edição, p. 87.

82

Enfim, traçados e analisados todos estes enfoques doutrinários, os quais

inspiram este trabalho e servem de maneira valiosíssima para as conclusões

aqui tomadas, passemos a construir um conceito próprio da boa fé no direito

administrativo, e, a partir daí, poderemos estabelecer relações íntimas e

distinções com outros institutos afins.

3. Conceito próprio da boa fé administrativa.

A partir de sua carga semântica, e, principalmente, a partir da análise

dos elementos que fundamentam o regime jurídico de direito administrativo

(Cap. II, 5), é possível sustentar a existência de um conceito próprio da boa fé

sem a necessidade de referi-la a outro princípio posteriormente estabelecido

dentro deste mesmo sistema.

Se o direito administrativo hodierno (e positivado pela Constituição da

República) funda-se na delegação de poder do povo para o Estado numa

perfeita relação de administração, inegável reconhecer que, nessa situação de

mero representante e guardião do interesse público, o dever de boa fé figura

como princípio originalmente concebido pelo sistema.

Não há aqui, portanto, necessidade de qualquer referência à positivação

de outros princípios igualmente subalternos a este regime jurídico para

localizarmos o valor jurídico que representa. Basta, para tanto, a aparição do

regime jurídico de direito administrativo como tal.

83

Por isso, pode-se afirmar que a boa fé administrativa, influenciada a partir

dos elementos iniciais de seu regime jurídico, consiste no dever de corresponder

à confiança depositada pelo cidadão na tutela do interesse público, conforme os

padrões de conduta exigidos e juridicizados pela sociedade numa relação de

espaço-tempo.

Nota-se, pois, que esta recebe da filosofia, da história do direito e do

recente direito civil a carga semântica que sempre lhes foram comum, ou seja, o

valor de proteção à confiança. Com efeito, no exercer da atividade

administrativa, a Administração Pública deverá atuar de acordo com o dever de

conduta, assumido e esperado pela sociedade, não cabendo, assim, espaço

para a deslealdade e incoerência.

Entretanto, a idéia de que o comportamento esperado se liga à finalidade

de tutelar o interesse público é que lhe confere especial coloração e

característica singular, diferenciando-a com a boa fé típica a outros regimes

jurídicos.

Relembremos das lições de Hector Escola, segundo o qual o regime de

direito administrativo, do ponto de vista teleológico, gira em torno do interesse

público e, a partir daí, apareceria um conjunto de princípios e normas jurídicas

próprios. 84

Destarte, é a partir do interesse público que nasce uma pauta de

comportamentos específica, preenchendo, em última análise, o conteúdo da boa

fé administrativa.

84 “El Interes Público como Fundamento del Derecho Administrativo”, Buenos Aires, Desalma, 1989, cit. p. 15.

84

Fosse outro o foco almejado pela proteção da confiança, o dever de boa

fé jamais seria o mesmo. Na tutela de interesse público, espera-se do

administrador que torne público os negócios jurídicos celebrados pelo respectivo

ente administrado, enquanto que na tutela de interesses particulares o

comportamento normalmente aguardado seria exatamente o oposto, ou seja,

que as partes contratantes mantivessem sigilo quanto aos termos da avença

apalavrada.

Outro traço marcante do conceito de boa fé administrativa ora proposto é

a existência de uma pauta de comportamentos juridicizada, que proteja o dever

de atuação conforme os modos de conduta pré-exigidos pelo direito e não fora

dele.

Isto porque, o povo, como titular do interesse público e destinatário da

proteção à confiança administrativa (art. 1º, Parágrafo Único, da CF), é uma

típica abstração jurídica do sistema jurídico republicano. Não tem vida própria, e,

assim, manifesta sua vontade apenas por meio das leis de um País.

Destas premissas, enfim, será inexorável concluir que o comportamento

esperado do administrador, pelo povo, somente pode ser encontrado dentro do

direito positivo, local este onde se encontra depositada e registrada a promessa

administrativa e a confiança popular. Fora dele, o dever de boa fé passa a ser

meramente uma regra consuetudinária ou, no mínimo, desvinculada do regime

jurídico de direito administrativo.

Não há, destarte, campo para proteção das confianças pessoais ou

subjetivas de um ou de outro indivíduo, considerado isoladamente na sociedade.

85

A boa fé administrativa se relaciona, destarte, com os compromissos

assumidos dentro do direito positivo, quer seja numa relação jurídica onde o

Estado figure como parte, quer seja em qualquer outra atividade administrativa

onde isto não ocorra.

Exemplo categórico desta situação estaria na quebra unilateral, pela

Administração, das cláusulas estabelecidas num contrato administrativo. Com

efeito, este tipo de conduta administrativa atentaria claramente contra a

confiança depositada por alguém que firmou um contrato e que, por isso,

aguardaria que ele fosse honrado de acordo com os termos iniciais. Nítida

incidência da boa fé comum, voltada aos bons hábitos daquilo que normalmente

cada um espera da parte contrária. Entretanto, ao atentarmos para a existência

da regra que possibilita a alteração unilateral dos contratos administrativos, com

vistas a preservar interesses públicos (art. 65 da Lei Federal 8.666/93),

poderemos constatar que a boa fé comum se choca com o comportamento

esperado pela sociedade de acordo com o direito objetivo, e, assim, o interesse

do contratado em manter o pacto inicial não receberia proteção jurídica alguma.

Resta-nos, destarte, analisar os aspectos objetivo e subjetivo da boa fé

administrativa.

86

4. Boa fé administrativa subjetiva e objetiva.

A classificação objetivo versus subjetivo serve, no direito, para distinguir

os mais diversos e distintos fenômenos jurídicos. O próprio direito pode ser

classificado em direito objetivo (conjunto concreto de leis) ou direito subjetivo

(possibilidade do exercício de um direito). Os mais variados ramos do direito

também se valem desta classificação para separar fenômenos jurídicos ou

hipóteses de incidência, tal como o direito penal, que analisa o elemento

subjetivo ou objetivo para tipificar uma conduta como criminosa.

Adotamos assim a classificação de boa fé administrativa, objetiva ou

subjetiva, conforme as acepções que reputamos mais úteis para reforçar sua

significação e seus desdobramentos, bem como para reafirmarmos os casos de

sua incidência.

Nessa linha, valendo-se da evolução histórica de seu instituto (Cap. II), e,

mais especificamente, de sua evolução no direito civil brasileiro (Cap. II.4),

podemos classificá-la em subjetiva ou objetiva segundo dois pontos de vista.

(a) O primeiro consiste em analisar a boa fé sob o ângulo dos envolvidos

na relação jurídica. Será subjetiva quando disser respeito ao cumprimento da

promessa assumida apenas pelos sujeitos da relação jurídica específica. E será

objetiva quando extrapolar a relação jurídica específica e versar sobre o dever

de lealdade para com terceiros, mediante padrões de conduta juridicizados,

também chamados de standards.

87

Neste caso, é evidente que a boa fé administrativa - considerando o dever

de corresponder ao comportamento esperado na tutela de interesse público –

abrange as duas categorias. Com efeito, o regime jurídico de direito

administrativo, com muito mais razão que o direito civil, deve proteger o valor da

lealdade não apenas perante o sujeito de uma relação jurídica específica, mas

também perante toda a sociedade em geral.

A Lei Federal 8.666/93 contém prova disso quando, ao dispor sobre os

contratos administrativos, protege o contratado ao exigir que a Administração

formalize devidamente a relação jurídica travada (art. 60), da mesma forma que,

extrapolando o limite estrito das partes contratantes, exige que a Administração,

em nítido dever de boa fé objetiva em favor de todos os cidadãos, dê publicidade

a este mesmo contrato no órgão oficial de imprensa (art. 61, Parágrafo Único). 85

(b) A segunda maneira de visualizar a classificação em objetiva ou

subjetiva decorre da natureza volitiva da violação cometida.

85 Art. 60. Os contratos e seus aditamentos serão lavrados nas repartições interessadas, as quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem. Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea "a" desta Lei, feitas em regime de adiantamento. Art. 61. Todo contrato deve mencionar os nomes das partes e os de seus representantes, a finalidade, o ato que autorizou a sua lavratura, o número do processo da licitação, da dispensa ou da inexigibilidade, a sujeição dos contratantes às normas desta Lei e às cláusulas contratuais. Parágrafo único. A publicação resumida do instrumento de contrato ou de seus aditamentos na imprensa oficial, que é condição indispensável para sua eficácia, será providenciada pela Administração até o quinto dia útil do mês seguinte ao de sua assinatura, para ocorrer no prazo de vinte dias daquela data, qualquer que seja o seu valor, ainda que sem ônus, ressalvado o disposto no art. 26 desta Lei. (Parágrafo único incluído pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)

88

Neste contexto, a boa fé administrativa pode ser quebrada

intencionalmente ou não. Será subjetiva quando houver violação intencional, e

objetiva quando a violação não contar com o elemento volitivo.

Quanto à quebra anímica (subjetiva), por se tratar de modalidade mais

grave, não teríamos maiores problemas em aceitar tal conduta como sendo

patológica à luz do direito. Até porque o contrário semântico da boa fé subjetiva

seria a própria “má-fé”.

A dificuldade se colocaria, nestes termos, no acatamento de que a

ausência do exercício de um comportamento esperado, mesmo sem a intenção

de fazê-lo, também provocaria a contaminação da conduta do administrador

diante do dever de boa fé.

Para resolvermos o problema acima criado, tomemos inicialmente as

seguintes hipóteses:

1) na primeira situação, determinado agente público, no curso de

procedimento licitatório que se encontrava suspenso um dia antes da entrega da

documentação de habilitação e proposta, faz publicar aviso de reabertura do

certame com as mesmas regras, marcando data para a entrega dos envelopes

já para o dia seguinte, e assim o faz com o intuito de restringir o universo de

participantes e favorecer determinado concorrente;

2) na segunda hipótese, outro agente político, em licitação posterior,

procede da mesma maneira, mas o faz apenas acreditando ser aquela a praxe

adotada pelo respectivo setor de licitação, e, portanto, atua sem qualquer

intenção de prejudicar ou favorecer concorrentes.

89

Ocorre que, tanto no caso ‘a’ (conduta intencional – subjetiva) como no

caso ‘b’ (conduta não intencional - objetiva), afigura-se que os administrados não

receberam da Administração Pública o “comportamento esperado”, qual seja:

que o aviso de reabertura do certame contivesse, sem sobressaltos, um prazo

razoável para que pudessem se preparar para a nova data da entrega dos

documentos.

Certamente seria esta a conduta juridicamente esperada, esta a crença

depositada no exercício da função administrativa. Logo, parece evidente que

houve quebra da boa fé no exercício da função administrativa nos dois casos,

tendo ambos os agentes públicos expedidos os atos administrativos no “contra-

pé” dos administrados 86.

E assim se processou independentemente de violação à letra da lei de

regência – já que a Lei Federal 8.666/93, em seu art. 21, §4º, apenas determinaria a

reabertura do prazo original para entrega dos documentos apenas quando houvesse

modificação das regras do certame que alterasse o modo de formulação das propostas.

Com efeito, há padrões de conduta juridicizados por meio de princípios -

tal como, no exemplo acima, tem-se com a ampla publicidade (art. 37 da CF) -,

os quais exigem do administrador comportamentos objetivos e que independem

de sua intenção em violar ou não a regra jurídica.

Nesse contexto, ao reconhecer a quebra da boa fé especialmente em ‘b’,

por conseqüência lógica se reconhece o caráter objetivo deste princípio, isto é,

de que a confiança depositada ao administrador - no sentido de exercer a função

86 Jargão extraído da cultura popular do futebol brasileiro, e que representa o ato do atacante chutar a bola no sentido oposto da que o goleiro estaria esperando.

90

administrativa procedendo conforme padrões juridicizados de conduta - não

pode ser desrespeitada mesmo diante da ausência de intenção de seu infrator.

Espera-se objetivamente (e não apenas subjetivamente) que a

Administração Pública aja conforme os comportamentos e padrões juridicamente

esperados pela norma que confere competência a agentes públicos, pois, de um

jeito ou de outro, ter-se-ia frustrada a confiança nela depositada. 87

5. Relações e diferenças com outros termos administrativos.

Conceituada a boa fé e situada no âmbito do regime jurídico de direito

administrativo, caberia, agora, estabelecer suas relações e diferenciá-la dos

signos que, inseridos nesse mesmo regime, com ela mais se assemelhariam.

São eles: o desvio de poder (ou desvio de finalidade), a

proporcionalidade, a moralidade administrativa, a improbidade, a segurança

jurídica, e o dever de boa administração.

Verificaremos que as estruturas acima apresentam, quando interligadas

no mesmo sistema jurídico, inter-relações que as aproximam semanticamente

ou que as colocam, em dadas situações, como incidentes de forma

concomitante à boa fé. E isto se dá pelo grau de abstração que possuem.

87 No entanto – muito embora não seja escopo deste trabalho – importante registrar que o Direito Brasileiro (sobretudo penal e/ou administrativo disciplinar), tratará das duas condutas violadoras da boa-fé com reações diversas, punindo com maior rigor na situação dolosa.

91

Entretanto, noutros casos perceberemos que a boa fé se dissociará ou

até mesmo se chocará com os termos comparados, forçando o aplicador do

Direito a eleger, no caso concreto, qual deles deve prevalecer.

E apenas isso já justificaria a utilidade, pela ciência do direito, de

estabelecer o discrimen.

5.1. Desvio de poder ou desvio de finalidade.

O desvio de poder se caracteriza, segundo Augustín Gordillo (que dedica

capítulo especial para tratar dos vícios de vontade no direito administrativo 88),

“toda vez que o respectivo agente atua com uma finalidade distinta daquela

perseguida em lei”. 89

No direito espanhol, tal patologia encontra-se positivada no artigo 70.2, da

Ley de la Jurisdicción como sendo “o exercício de potestades administrativas

para fins distintos dos fixados pelo Ordenamento Jurídico”.

Para Celso Antônio, a mesma noção central se repete, mas com os

seguintes desdobramentos: a) quando o agente busca uma finalidade alheia ao

88 Tratado de Derecho Administrativo, 6ª Edição, Tomo 3, Del Rey, Capítulo IX. 89 “Existe desviación de poder toda vez que el funcionario actúa con la finalidad distinta de la perseguida por la ley. El acto está así viciado aunque su objeto no sea contrario al orden jurídico. En efecto, se interpreta que las normas que confieren una determinada facultad al administrador lo hacen para que el funcionario satisfaga la finalidad expresa o implícita del ordenamiento jurídico, no para realizar lo que a él le plazca, con el fin que le plazca. El administrador tiene su competencia circunscripta a lo que las normas determinan, por lo cual la facultad que ellas le confieren está necesariamente restringida y orientada al cumplimiento de la propia finalidad del sistema normativo. Cuando el administrador se aparta de la finalidad prevista por el sistema, su conducta es por ello sólo antijurídica: no estaba jurídicamente autorizado para usar del poder de las normas sino con finalidad prevista por ellas.” (Tratado de Derecho Administrativo, 6ª Edição, Tomo 3, Del Rey, IX 23/24)

92

interesse público ou b) quando o agente busca uma finalidade, ainda que de

interesse público, mas alheia à categoria do ato que utilizou.90

Referido mestre brasileiro, além de registrar o emprego da expressão

sinônima do “desvio de finalidade”, traz à colação exemplo de grande clareza,

qual seja, o do agente público que, dentro de sua esfera de competência,

remove funcionário com o intuito de castigá-lo, quando, por evidente, a

finalidade do ato de remoção não seria punitiva.91

Trata-se, portanto, de vício teleológico (ligado à finalidade do ato

administrativo).

De qualquer sorte, o que interessa anotar é que, no exemplo citado, o

desvio de poder se cumulará com a violação da boa fé, fornecendo razões

obvias para detectarmos uma forte aproximação entre os dois citados vícios do

ato administrativo.

Contudo, em raros casos, os deveres de boa fé podem ser violados

mesmo por razões distintas daquelas ligadas à finalidade do ato administrativo.

Em outras palavras: pode o agente atender a finalidade do ato em específico, e,

ainda assim, não exercer o “comportamento esperado”.

Exemplo desta situação ocorre quando o agente, ao frustrar a conduta

que dele se esperava, pratica ato diverso do comportamento normal, muito

embora o tivesse praticado adstrito à finalidade da função administrativa que lhe

incumbia.

90 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 22ª Edição, p. 387/389. 91 Idem nota 26.

93

Vejamos o caso típico do exercício de competência discricionária em

procedimento de autorização sobre porte de arma no direito brasileiro. Quando

determinado agente vier a indeferir o pedido sem justificativa de ordem objetiva

e razoável, não estará necessariamente, violando a finalidade do ato (que era

exatamente a de acolher ou negar o pedido), mas, destacadamente, estará

agindo contrário às exigências de boa fé quando exercitou sua competência

discricionária.

Assim, a finalidade do ato, ainda que executada materialmente, não se

traduziu por meio de um comportamento aceitável. Isto porque o administrado

deveria, por certo, receber uma justificativa de ordem razoável, sobretudo ao

ensejo do exercício de competência discricionária. 92

Perez, outrossim, assinala outra diferença entre os termos jurídicos

postos em paradigma, qual seja, a de verificar que a má fé pode ocorrer em

relações da Administração em que não haja uso de potestades públicas (e,

portanto, incidiria em situações cujo desvio de poder não poderia ocorrer), o que

também reforça a separação da boa fé com o chamado “desvio de poder” (ou

desvio de finalidade). 93

92 Não se adota, aqui, o sentido da expressão “exercício de competência discricionária” como mera liberdade conferida de imediato ao agente político para decidir, mas como a margem de liberdade que resultaria apenas se, no caso concreto, houvesse duas ou mais alternativas que igualmente alcançassem o interesse público. 93 El Principio General de la Buena Fe em el Dereceho Administrativo, Terceira Ed., Civitas, p. 69.

94

5.2. Proporcionalidade.

Conforme importante registro contido na obra “Os Princípios da

Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Administrativo Brasileiro”, de

José Roberto Pimenta Oliveira 94, extrai-se que o princípio da proporcionalidade

nasceu no direito alemão, pela obra de Otto Mayer, que o correlacionava, de

início, apenas com a idéia de atuação administrativa na medida da

necessidade.95

Em seguida a Mayer, Hartmut Maurer, ao verificar que “uma medida que é

levada a efeito com vistas à consecução de um fim (ou um resultado)

determinado deve obrigatoriamente ser conforme a proporcionalidade no sentido

amplo do termo, isto é, deve ser apropriada, necessária, e ditada nas justas

proporções requeridas pelo seu fim” 96, concebeu a proporcionalidade sob três

enfoques que, cumulativamente, deveriam ser atendidos:

a) utilidade, uma vez que a medida adotada somente seria proporcional

quando se mostrasse apta para a realização de seu resultado perseguido;

b) necessidade, isto é, a medida adotada seria apta apenas se outra

menos prejudicial à pessoa afetada e/ou à coletividade não pudesse ser

praticada;

c) proporcionalidade em sentido estrito, cujo conteúdo dispõe que a

conduta deve ser proporcional sempre em relação com o resultado perseguido,

isto é, numa relação de exata medida entre o ato e sua finalidade.

94 Malheiros, 2006, p. 43. 95 Deutsches Verwaltungsrecht, vol. I, Leipzig, 1895, p. 267. 96 Hartmut Maurer, in Droit Administratif Allemand, p. 248.

95

Ainda nesse juízo de proporcionalidade estrita emergiria, como

conseqüência, a necessidade ponderar todos os princípios envolvidos na

questão, de modo a eleger aquele que, se aplicado, provocaria menos ablação

dos demais.

Perez, apoiado nesses conceitos, sustenta haver uma correlação

indissociável entre a boa fé administrativa e o princípio da proporcionalidade.

Suas razões se encontram explicitadas, resumidamente, na seguinte

passagem: “Podría entenderse que una atuación desproporcionada es contraria

a las exigencias de la buena fe, en cuanto el sujeto adopta una conducta que no

es la conducta normal y recta que podría esperarse de una persona asimismo

normal. No es normal exigir algo más de lo que es necesario exigir para cumplir

el fin perseguido. No actúa de buena fe el que grava a otro innecesariamente, el

que impone limitaciones superiores a las necesarias para cumplir la finalidad

pretendida o exige prestaciones demasiadas. El principio de proporcionalidad

vendrá a coincidir en ciertos aspectos con el principio de la buena fe.”97

Desta feita, tem-se por coerente o pensamento segundo o qual a

proporcionalidade, em certos aspectos, venha a coincidir com a boa fé.

No entanto, importante destacar a ressalva “em certos aspectos” que está

contida na assertiva supramencionada, pelo fato de que, nesse ponto, há uma

necessidade de maior aprofundamento.

Isto porque existe uma sensível diferença da função lógica que

desempenham a proporcionalidade e a boa fé no regime jurídico de direito

administrativo. E, destarte, a missão de identificar todas as funções dos termos 97 El Principio General de Buena Fe em el Derecho Administrativo – Civitas – 1989, cit. p. 71.

96

jurídicos no sistema não seria irrelevante, conforme bem explica Gregório

Robles: “é papel da Ciência do Direito descrever, com maior grau de exatidão

possível, não apenas as significações pragmáticas (sentido prático) dos termos

jurídicos, mas também as diversas funções semânticas (conceituação) e

sintáticas (funções) que desempenham no sistema. Caberá sempre ao novo

intérprete, e, com maior razão ao juiz, se valer destas fontes científicas para

encontrar seu alcance no caso concreto.” 98

Nesse sentido, já vimos que, para Miguel Reale, os princípios são

gêneros e desempenham distintas funções, abrangendo o papel axiológico, bem

como fornecendo as regras do funcionamento do sistema. Já Dworkin Alexy faz

uma distinção clara entre princípios e postulados, asseverando que estes

correspondem às “condições de possibilidade do fenômeno jurídico”, ou seja,

explicam o modo teórico de como o Direito deve ser conhecido, e, portanto, não

admitem flexibilização e nem incidiriam em graus tal como os primeiros. 99

Nessa linha, a proporcionalidade desempenha no regime jurídico de

direito administrativo a função explicativa de como o direito deve ser aplicado

(necessidade, utilidade e proporcionalidade). Trata-se, portanto, de postulado na

visão de Dworkin ou de princípio formal, na visão de Reale, e assim será

imutável e inflexível.

Já a boa fé desempenha função bem diversa, haja vista que, mesmo

sendo princípio fundador e irrenunciável do Estado de Direito, funciona como

98 O Direito como Texto, Editora Manole, cit. p. 46. 99 Vide nota 19.

97

valor em si mesmo, de conteúdo flexível e mutável determinado espaço-tempo

em que ele se projeta, aplicado sempre em graus de otimização.

Por isso, a boa fé, como princípio axiológico (ou princípio estritu sensu, na

visão de Dworkin), poderá refletir-se na realidade como uma exigência de um

determinado comportamento que, num dado momento histórico, seja diverso do

que se exigiria em outro.

Com efeito, vimos que o comportamento exigido pelo direito positivo atual,

no sentido de preservar a confiança depositada pela sociedade, é bem diverso

(no sentido de mais rigoroso, conforme a multiplicidade de diplomas legais

emergindo nesse sentido) daquele que se exigia cem anos atrás.

De outro lado, a demonstração da possibilidade de relativização da boa fé

em favor de outro princípio que com ela colida num caso concreto (o que não

ocorre com a proporcionalidade) pode ser bem ilustrada com a citada

“desapropriação indireta” 100. Nela, o Direito determinaria, em prol do princípio da

continuidade do serviço público, a manutenção da obra pública edificada mesmo

diante do apossamento de bem imóvel sem o mínimo respeito ao devido

processo legal.

E, assim sendo, comprova-se que o valor da boa fé será sempre

ponderável num caso concreto, o que não ocorre com o postulado da

proporcionalidade.

Em outros cenários, podemos exemplificar que a boa fé estará contida

como um dos princípios que, dentre outros, entrarão no juízo da

100 O caso da “desapropriação indireta” é explicado em minúcias no Cap. II, 6.

98

proporcionalidade, o que realça ainda mais a diferença pragmática entre ambos

os conceitos.

Tal situação, destarte, pode ser colhia na atividade sancionadora

administrativa, porquanto nesta tarefa o agente público levará em conta não

apenas a boa fé, mas também o grau de ofensa à legalidade, a ocorrência ou

não de prejuízo ao erário, dentre outros fatores.

Diante do exposto, apresentam-se, por estes refinamentos teóricos e

práticos, as diferenças que se afiguram mais relevantes entre a

proporcionalidade e a boa fé.

5.3. Moralidade administrativa.

Como visto, as primeiras construções científicas e claramente

registradas, sobre os antigos objetos moral e boa fé, surgem perante a filosofia

grega (Cap. I). E, nelas, já se apontavam características muito próximas sobre

os dois signos.

A rigor, as virtudes, conforme Aristóteles 101, poderiam ser intelectuais

ou morais. As virtudes intelectuais seriam adquiridas naturalmente pela

experiência e capacidade de cada um, tal como a sabedoria, a compreensão, a

sagacidade, etc. Ou seja, seriam qualidades aferíveis no plano interior.

Já as virtudes morais, ao contrário, seriam aferíveis no plano exterior,

não sendo adquiridas por condição natural e interna. Por isso, Aristóteles

afirmava que elas sempre surgiam através dos hábitos, dos atos que 101 Ética à Nicômaco, p. 64.

99

praticamos, isto é, do resultado histórico de nossas ações, independentemente

do sentimento interior e da condição natural 102.

Portanto, mesmo diante duma fraqueza interior, o sujeito poderá revelar

uma virtude moral pela ação contrária a essa debilidade. Estão relacionadas

com prazeres e dores, já que a excelência moral apareceria para aquele que

age se abstendo dos prazeres corporais e se deleita com a própria abstenção.

Quem sofre e suporta a dor é valente, enquanto quem sucumbe aos desejos é

covarde. São exemplos (ou espécies) de virtudes morais a generosidade, a

caridade, a temperança, etc.

Nesses termos, pois, a boa fé aparecia como espécie (ou exemplo) de

virtude moral, mas especialmente qualificada pela conduta reta e verdadeira do

sujeito em relação à sua promessa, devendo, por essa razão moral, abster-se de

descumpri-la, mesmo diante das mais terríveis dores internas e mesmo diante

das maiores e prazerosas tentações.

Estabelece-se, pois, uma primeira diferença (semântica) entre moral e

boa fé, qual seja, a primeira seria gênero da qual a segunda seria espécie.

A moral se referia a todo e qualquer tipo de virtude adquirida pela ação

reiterada, tal como a generosidade e a caridade, enquanto que a boa fé seria

uma virtude especial do hábito, caracterizada pela virtude do agir coerente com

a promessa.

Do ponto de vista etimológico, os dois termos já não aparecem

diferenciados por mera relação de gênero e espécie. A expressão moral, que

provém do termo latim moralis, significava “relativo aos costumes”, enquanto que 102 Idem.

100

a expressão “boa fé”, de bonna fides, significava pacto de confiança, de

fidúcia.103

De outra parte, ao verificar a moralidade jurídica, e, ainda, mais

especificamente, a própria moralidade administrativa, constaremos outras

diferenças ainda mais significativas.

Com efeito, aponta-se pacificamente que o conceito da moralidade

administrativa surgiu na França, com Hauriou104, a partir da tese de que o

agente público não deveria se preocupar apenas em cumprir à lei (stritu sensu),

mas especialmente atender ao “conjunto de regras tiradas da disciplina interior

da Administração”.

Disto, surgia a obrigação de cumprir a lei e também mais aquilo que se

entendia por “moralidade administrativa”.

Em nível nacional, a moralidade administrativa (ao lado da legalidade,

impessoalidade, publicidade e eficiência) foi positivada como princípio

explicitado no art. 37, caput, da Constituição da República de 1988. Por tal

razão, atualmente são inúmeras as obras brasileiras com referência específica

ao assunto 105.

Seu conceito, efetivamente, é o que mais se assemelha com a boa fé,

haja vista que, além da aproximação semântica de ambas as expressões, suas

103 Bonna fides - vide Capítulo I, item 2. A definição de moral pode ser encontrada no Dicionário latino-português, de Ernesto faria, p. 621. 104 Hauriuou. Précis Élémentaires de Droit Administratif, Paris, 1926, p. 197. 105 Destacamos os seguintes autores do tema: Marcelo Figueiredo: “O Controle da Moralidade na Constituição”; 1997; Tese de Doutorado. PUC/SP. 1997; e “Probidade Administrativa”; Malheiros, 1995; Marcio Cammarosano; “O Princípio Constitucional da Moralidade e o Exercício da Função Administrativa”, Editora Fórum, 2006; José Augusto Delgado; “Princípio da Moralidade Administrativa; RDA, v. 25. P. 457; setembro de 1951; Celso Antonio Bandeira de Mello, Revista de Direito Tributário, São Paulo, vol. 69, p. 180-207.

101

funções no sistema são as mesmas, isto é: a de princípio axiológico do direito

administrativo. 106

Como melhor expressão de seu significado jurídico, adotamos a definição

oferecida por Marcio Cammarosano em sua magistral tese de doutoramento, a

qual, pela retidão teórica e metodológica, convém transcrever:

“Como há normas jurídicas que consubstanciam, explícita ou

implicitamente, valores e preceitos sacados desta ou daquela ordem moral,

violar estas normas é violar, a um só tempo, o Direito e a Moral. O ato que viola

norma deste tipo, do ponto de vista jurídico é inválido; do ponto de vista moral é

imoral. (...) O que não nos é dado fazer é associar referido princípio direta e

indiretamente à moral comum, vigente na sociedade num certo momento

histórico, como se toda a ordem moral supostamente prevalecente tivesse sido

juridicizada por força do mesmo. Para o Direito só é relevante a ofensa a ele

perpetrada. Mas sua reação é mais acentuada diante da invalidade (ofensa

jurídica) decorrente de ofensa a valor ou preceito moral juridicizado. E é mais

acentuado porque o próprio Direito assim estabelece. Na medida em que o

próprio Direito consagra a moralidade administrativa como bem jurídico

amparável por ação popular, é porque está outorgando ao cidadão legitimação

ativa para provocar o controle judicial dos atos que sejam inválidos por ofensa a

valores ou preceitos morais juridicizados. São esses valores ou preceitos que

compõe a moralidade administrativa.”. 107

106 Sobre as funções no sistema, confira Cap. II. 6, nota 43. 107 “O Princípio Constitucional da Moralidade e o Exercício da Função Administrativa”, Editora Fórum, 2006, p. 112/113.

102

No núcleo da moralidade administrativa existe, pois, a proteção dos

valores morais juridicizados, e, partir daí, podemos extrair uma importante

distinção com a boa fé administrativa, qual seja, o âmbito de proteção dos

valores assegurados.

O princípio da boa fé administrativa, como visto anteriormente (item 3

deste Capítulo), se volta na proteção de que a Administração atuará de acordo

com o comportamento esperado juridicamente numa atividade que tenha por

finalidade tutelar o interesse público.

Logo, diz respeito ao dever de exercer todo e qualquer tipo de

comportamento esperado e protegido juridicamente, quer seja decorrente de

uma norma moral ou não.

É, de fato, muito mais abrangente que a moralidade.

Disto, permitimos concluir que o âmbito de aplicação da boa fé diz

respeito ao que é esperado em termos de exercer o mandato de tutelar o

interesse público, enquanto que a moralidade administrativa, desvinculada a

isso, diz respeito ao dever específico de respeitar as normas morais

juridicizadas.

Ainda podemos trazer algumas situações práticas que muito bem

ilustrariam o alegado. Vejamos.

A alteração de uma política pública no meio de sua execução, a fim de

melhor atender o interesse público segundo a avaliação do administrador

competente, não viola a moralidade administrativa, mas, por certo, viola o dever

de boa fé, isto é, atenta contra a confiança depositada pelos administrados de

103

que a política pública seria concluída, razão pela qual poderiam ter feito até

investimentos nesse sentido.

Nesse caso, poder-se-ia suscitar, de um lado, a indenização àqueles que

se prejudicaram com a ocorrência de comportamento inesperado (à luz da

proteção ao comportamento esperado, que está na boa fé), mas não caberia,

evidentemente, a tipificação da conduta do administrador como violadora da

moralidade administrativa, pois nenhuma regra moral juridicizada teria sido

ofendida, até porque a alteração nesse caso – repita-se - foi movida pelo

interesse público, com pureza de espírito.

Assim sendo, se limitássemos a boa fé ao conceito da moralidade

administrativa, a solução da indenização jamais poderia ser colocada na

situação acima.

Outrossim, o inverso também pode ocorrer, ou seja, poderá haver quebra

do dever de moralidade administrativa ao mesmo tempo em que a manutenção

deste ato se faça necessária para preservar a boa fé de terceiros atingidos.

Num caso hipotético, imaginemos um servidor que escuta o preço de uma

das propostas do certame (feita pelo licitante A) e o comunica para um dos

licitantes que pretende favorecer (licitante B). Contudo, vence a disputa pelo

menor preço um terceiro concorrente (licitante C), que, nada tendo a ver com a

imoralidade administrativa cometida, pretende da Administração o

comportamento normalmente esperado, qual seja, que lhe nomeie como

vencedor do certame e lhe adjudique o objeto contratual. Sendo assim, não

obstante existir na espécie violação ao dever de moralidade (e, diga-se, grave,

104

punindo-se pessoalmente o servidor), proteger-se-á a confiança, depositada

pelo licitante vencedor, de que agindo licitamente e oferecendo o menor preço,

ser-lhe-á garantida a vitória, e, assim, o ato do julgamento não será anulado

mesmo diante do cometimento da imoralidade administrativa. Isto é: típico

conflito entre a proteção da moralidade administrativa e da boa fé, o que justifica

a distinção.

Entretanto, alguém poderia sustentar que a diferença traçada entre boa fé

e moralidade no direito administrativo apenas seria possível se tomado o

conceito de moralidade administrativa segundo Cammarosano.

E a provocação merece registro, uma vez que há quem entende que a

moralidade administrativa possui valor autônomo, isto é, sem a necessidade de

referenciá-la a outro valor moral juridicizado, mas apenas voltada para o dever

de cumprir modelos de comportamento aceitos, por regras de costume, numa

sociedade, num determinado espaço-tempo 108.

Entretanto, ainda que consideremos como mais adequada a definição

acima (o que, embora não concordamos, temos a obrigação científica de

considerar), ainda assim a diferença entre os institutos paradigmáticos

subsistiria, e, aliás, de forma ainda mais acentuada.

Ora, se a boa fé se reporta a comportamentos esperados com base na

pauta de valores juridicizada para o exercício da função administrativa (item 4

deste Capítulo), e se a moralidade administrativa cuidasse de controlar o ato

108 Nesse sentido, invocamos Marya Sylvia Zanella Di Pietro, em “Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 111, que defende a autonomia do princípio, muito embora, nas razões esposadas, associa o conceito de moralidade com a proporcionalidade, razoabilidade, economicidade, finalidade, dentre outros princípios.

105

administrativo com base no respeito aos “bons costumes” sacados fora do

ordenamento jurídico (ainda que fruto de consenso social), aí estaria a enorme

diferença entra ambas: enquanto a primeira se relaciona com o direito positivo, a

outra se voltaria para o mundo dos costumes.

Portanto, ainda que existam inegáveis aproximações entre os institutos

paradigmáticos, o trabalho, neste tópico, tem a simples missão de frisar que o

cientista do direito deverá tratar da boa fé com autonomia, e não apenas como

referência vaga e reflexa nos estudos de moralidade administrativa, já que, pelas

diferenças apontadas, e ainda que sejam fruto de refinamentos excessivos,

decorrem conseqüências práticas relevantes sobre o controle dos atos

administrativos.

5.4. Probidade administrativa.

A probidade, do ponto de vista etimológico e semântico, abrangeria a

moralidade e a boa fé numa só toada. E isto se dá pela amplitude de seu

significado, que geralmente é retratado pela acepção inversa da improbidade

(por isso passaremos a tratar da probidade pelo seu antônimo).

No “Dicionário Jurídico” de De Plácido e Silva encontraremos:

“ÍMPROBO. Do latim in e probus, entende-se mau, perverso, corrupto, devasso,

desonesto, falso, enganador. É atributivo da qualidade de todo homem ou de

toda pessoa que procede atentando contra os princípios ou as regras da lei, da

106

moral e dos bons costumes, com propósitos maldosos ou desonestos. O

ímprobo é privado de idoneidade e de boa fama.” 109

Juristas dedicados ao estudo do tema enxergam a carga semântica da

improbidade sempre ligada à imoralidade ou a desonestidade, conforme

disposto por Marcelo Figueiredo: “Improbidade. Do latim improbitate.

Desonestidade. No âmbito do direito o termo vem associado a conduta do

administrador amplamente considerado. Há sensível dificuldade doutrinária em

fixar-se os limites do conceito de ‘improbidade’. Assim, genericamente comete

maus-tratos à probidade o agente público ou particular que infringe a moralidade

administrativa.” 110

Nesses termos, é evidente que a probidade administrativa se

confundiria com a boa fé subjetiva, da mesma forma que a má fé se inter-

relacionaria com a improbidade.

Ocorre que, ao volvermos os olhos para os temas dentro do sistema

jurídico, encontraremos uma profunda diferença. Enquanto que a boa fé é um

princípio jurídico aberto, na medida em que representa um valor que permeia

todas as demais normas do sistema, o direito insere a improbidade como uma

regra jurídica, ou seja, como uma estrutura fechada, constituída pela descrição

de uma hipótese e a previsão de uma conseqüência respectiva, a realizar-se

quando da ocorrência da moldura fática nela prevista (vide Cap. II, 6).

109 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 416. Realçando esse aporte jurídico-intelectivo do termo, é o significado que lhe atribui Aurélio Buarque de HOLANDA, como falta de probidade, mau caráter, desonestidade. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 925). 110 “Probidade Administrativa”, Editora Malheiros, 4° Edição, p. 23/25.

107

Afirma-se que a improbidade é uma regra jurídica e não um princípio

porque sua positivação no direito nacional assim se processa. Com efeito,

dispõe o §4º do art. 37 da Carta Magna: § 4º - Os atos de improbidade

administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função

pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e

gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

E a lei que estabelece essas molduras fáticas com a previsão de uma

conseqüência respectiva é a Lei Federal 8.429/92, a qual tipifica como ato de

improbidade as hipóteses de incidência previstas taxativamente no art. 9 (atos

de improbidade que provocam enriquecimento ilícito), no art. 10 (atos de

improbidade que causam prejuízo ao Erário), e no art. 11 (atos de improbidade

que atentam contra os princípios da Administração Pública).

Assim sendo, a improbidade será, no direito nacional, aquilo que a lei

define como tal (podendo incluir ou não a boa fé administrativa numa hipótese

de subsunção), enquanto que a boa fé administrativa, como princípio, tem seu

conteúdo haurido do regime jurídico de direito administrativo, e assim, muito

mais ampla e abstrata, incidirá como valor aplicável em toda atividade pública.

5.5. Segurança Jurídica.

O Direito preordena-se a regular a vida em sociedade, a fim de propiciar

uma convivência ordenada e harmônica. Os indivíduos, organizados num Estado

de Direito, necessitam saber de antemão de que forma devem se comportar,

108

conhecer o que é proibido ou o que é permitido. Além do mais, as pessoas

atuam em função destas ordenações, gerando relações e conseqüências

devidamente programadas.

Isso tudo proporciona tranqüilidade e segurança, conferindo ao Direito a

credibilidade necessária para regular a vida em sociedade.

Assim sendo, o princípio que assegura a previsibilidade do Direito,

protegendo a manutenção das relações jurídicas e suas conseqüências

estabilizadas, é exatamente o que convencionamos chamar de “segurança

jurídica”.

Os postulados da irretroatividade e do direito adquirido, bem como as

regras da decadência e da prescrição são, todos eles e por isso mesmo,

decorrências daquela.

Por estas razões, afirma-se que a segurança jurídica é um princípio

geral do Direito. E, assim sendo, funciona como substrato do próprio

ordenamento jurídico, o que afirmou Celso Antônio, apoiado em Garcia de

Enterría.111

Diante desta abrangência, é evidente que a segurança jurídica se inter-

relaciona com praticamente todos os demais princípios do sistema. A própria

legalidade, num ponto de vista, pode ser considerada como desdobramento da

necessidade de previsibilidade do Direito. Da mesma forma opera-se diante da

boa fé, já que, em certas ocasiões, o ordenamento protege o valor da confiança

legítima também em prol do valor da segurança jurídica.

111 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 123.

109

Nesse sentido, Fernando Dias Menezes de Almeida, em excelente

artigo sobre “Segurança Jurídica e Confiança Legítima”, observa que a primeira,

com o sentido de atender à exigência de previsibilidade, abrangeria

inegavelmente os princípios de proteção de direitos adquiridos, não-

retroatividade, estabilidade das relações contratuais e da própria confiança

legítima, o que estabelece, sem sombra de dúvidas, um intercâmbio vivo com a

boa fé. 112

Todavia, é mister esclarecer que, em outras situações, o valor de

proteger a previsibilidade do direito e das relações estabilizadas se diferenciará

e até mesmo entrará em choque com o valor que protege terceiros contra atos

de má fé.

E, nesse passo, haverá necessidade de sopesamento entre os

princípios aparentemente sobrepostos, para se saber qual deles prevaleceria à

luz do Direito.

Exemplo desta situação está contido expressamente no art. 54 da Lei de

Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/99), que disciplina: Art. 54. O direito da

Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis

para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados,

salvo comprovada má-fé.

Está claro, na primeira parte da redação legislativa, que o prazo

decadencial serve para evitar que se anule atos eivados de vício num futuro

muito distante, exatamente porque a segurança jurídica recomendaria manter 112 “A segurança jurídica e a proteção à confiança em matéria de Direito constitucional e administrativo e seu acolhimento pela jurisprudência constitucional no Brasil” - In: Anna Cândida da Cunha Ferraz. (Org.) - Direitos Humanos Fundamentais: Doutrina, Prática, Jurisprudência - Osasco: Edifieo, 2009, v. 2, p. 165-194, cit. p. 172.

110

seus efeitos que já se estabilizaram no decorrer do tempo e que já provocaram

inúmeras relações jurídicas.

Todavia, ao adentrar na questão conflituosa a má fé daquele que pratica

o ato contrário ao direito, o legislador, num típico juízo de ponderação,

relativizou o princípio da segurança jurídica para permitir que o ato anulatório

alcance período retroativo superior aos cinco anos originalmente previstos como

limite razoável.

Aqui, valeu-se da máxima de que ninguém pode se aproveitar de sua

torpeza, que é corolário típico da proteção da boa fé.

Portanto, o Direito, quando diante da hipótese mais grave de violação ao

princípio da boa fé, pode conferir peso maior à sua proteção do que à própria

segurança jurídica.

5.6 Dever de boa administração.

Guido Falzone, na Itália, já demonstrava em 1953 que a atividade

administrativa, como exercício de um dever especial ou de uma função, teria de

ser bem realizada, o que significa o dever de utilizar o meio mais idôneo,

oportuno e conveniente para a satisfação do interesse público. 113

113 “Nel ribadire ora tale doverositá degli enti pubblici e nel porla in risalto come uno dei caratteri della funzione amministrativa pubblica, rileviamo preliminarmente che d’un dovere di um buon esercizio della funzione amministrativa, intenso come dovere del migliore suo adempimento attraverso l’uso dei mezzi Che siano i piu idonei, piu opportuni e convenienti per Il soddisfacimento dell’interesse pubblico Che costituisce Il fine especifico di quella particolare attività dello Stato, e cioe di un dovere di buona amministrazione per gli enti pubblici puo paslarsi sostanzialmente, nello stesso con cui di un tale dovere puo dirsi per ogni altra funzione, variando, per tali enti, soltando La natura speciale degli interessi tutelati.” (Guido Falzoni, em Il Dovere di Buona Amministrazione, Parte I, Milano, Dott. A. Giuffre, Editore, 1953)

111

No Brasil, Celso Antônio vislumbrou que o princípio da eficiência,

positivado pelo art. 37, caput, da Constituição da República, nada mais seria do

que uma faceta do dever de boa administração, acrescentando ainda que o

gestor público, no exercício de competência discricionária, sempre teria o dever

de adotar a solução excelente prescrita pela norma. 114

Extrai-se, daí, que o dever de boa administração se relaciona com a

qualidade dos meios escolhidos para se atingir resultados mais favoráveis ao

interesse público.

Sua diferença com o dever de boa fé é muito tênue. Nesta, o dever de

conduta não se fixa necessariamente na adoção do melhor meio, mas no

respeito pela adoção do meio que já era previsível. Aqui, protege-se

preferencialmente o valor da confiança; acolá, o valor da eficiência.

A partir destas premissas conceituais é possível estabelecer conflitos,

diante de casos concretos, entre a boa fé e o dever de boa administração,

sobretudo no campo do controle de políticas públicas.

Suponha a divulgação de uma campanha pública de incentivo e fomento

a determinado setor econômico, gerando investimentos excepcionais por

terceiros de boa fé que confiaram naquela atuação administrativa. Ocorre que,

em razão de fato superveniente, revoga-se repentinamente a diretriz adotada em

razão de se adotar outro meio para melhor atender o interesse público.

Na espécie, será evidente que a conduta administrativa atendeu o dever

de boa administração, da mesma forma que, de outro lado, frustrou a confiança

legítima depositada pelos administrados envolvidos na campanha original. Com 114 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 122

112

efeito, poder-se-ia sustentar a manutenção do ato revocatório em prol do dever

de boa administração, relativizando-se à proteção da confiança. De outro turno,

o Direito reservaria àqueles que experimentaram prejuízos pela quebra da

expectativa legítima o direito a uma indenização, como nítida expressão que o

ordenamento jurídico confere conseqüências distintas aos dois princípios postos

em paradigma (boa fé e boa administração).

113

Capítulo IV – Incidência do princípio da boa fé

administrativa.

1. Introdução. 2. A boa fé e o ato administrativo. 2.1. Sujeito. 2.2. Motivo. 2.3. Causa

2.4. Finalidade. 2.5. Formalização. 3. A boa fé e o processo administrativo. 3.1.

Processo e procedimento. 3.2. A boa fé no processo administrativo federal. 4. A boa fé

em face do exercício de competência vinculada e discricionária. 5. A boa fé e os

contratos administrativos. 5.1. Contratos da Administração e contratos administrativos.

5.2. Os contratos regidos pela Lei Federal 8.666/93.

1. Introdução.

Já vimos nos capítulos anteriores que a boa fé é um princípio

fundamental do direito administrativo e que, nessa qualidade, aplica-se em toda

atividade administrativa.

Tem conceito próprio, mas incide em faixas de otimização, sendo

sempre ponderável no caso concreto pela coexistência de outros princípios que

o direito administrativo também protege, tal como a legalidade, a segurança

jurídica, a moralidade, e outros.

Diante desta estrutura, a boa fé administrativa incide no direito de forma

dinâmica, sofrendo múltiplas influências conforme as mais variadas espécies da

atuação administrativa.

O papel do cientista, nessa linha, será o de averiguar e descrever a

incidência da boa fé nas espécies de atuação em que ela se afigura de forma

114

mais evidente, desdobrando-a nas relações e conseqüências que se façam

pertinentes.

Contudo, ressalva-se, desde já, que esse trabalho não tem a pretensão

dissecar todas as possíveis incidências concretas da boa fé no direito

administrativo, até porque tal mister seria impossível, tendo em vista serem

infinitos os fenômenos casuísticos.

Sem embargo, veremos que sua aplicação é notável nos mais diversos

campos da atividade administrativa, sendo cada vez mais crescente sua

encampação pelo direito positivo e seu reconhecimento pela jurisprudência.

2. A boa fé e o ato administrativo.

A unidade mais nuclear da atuação administrativa é o ato administrativo.

Diz-se, por isso, que ao estudar a tipologia do ato administrativo pode-se

compreender o Direito Administrativo como um todo.

Para bem apreendermos seu conceito, mister se faz recorrer, uma vez

mais, ao grande administrativista brasileiro Celso Antônio Bandeira de Mello,

segundo o qual o ato administrativo consiste em: “declaração do Estado (ou de

quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público),

no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências

jurídicas complementares da lei a titulo de lhe dar cumprimento, e sujeitas a

controle de legitimidade por órgão jurisdicional”. 115

115 Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Ed., cit. p. 378.

115

Trata-se, destarte, da maneira pela qual o Estado, via de regra, declara

sua atividade, gerando conseqüências jurídicas (direitos e obrigações).

Sua tipologia percorre etapas de perfeição, validade e eficácia. A

perfeição é o ciclo necessário para a formação do ato, sem o qual este não

adquire existência jurídica como tal. Validade é a qualidade da adequação do

ato às exigências do ordenamento jurídico, muito embora ele possa ter

percorrido o ciclo de formação (daí que se pode afirmar que o ato inválido é, por

essência, ilegal ou viciado, pois formado de forma contrária ao Direito). Eficácia,

por sua vez, seria a aptidão do ato que já lhe permitiria a produção de seus

típicos efeitos. 116 117

Já a boa fé administrativa, como princípio que veicula um dever de

atuação conforme um comportamento esperado juridicamente para o exercício

da função administrativa de tutelar o interesse público se liga, portanto, às

condições de validade do ato. Este último, se editado de forma contrária às

exigências daquela será, por conclusão lógica, considerado inválido.

O problema é que nem sempre a condição potencial de invalidade de

um ato levará, como conseqüência imediata, na sua retirada no mundo jurídico

pelo instituto da anulação, haja vista que, além do princípio da legalidade, outros

incidem e, por vezes, podem influenciar a decisão de manter os efeitos do ato

viciado, ou ainda de corrigir seus defeitos.

116 Idem, p. 380/381. 117 Contudo, frisa-se desde já que o estudo completo e suficiente da tipologia do ato administrativo extrapolaria a extensão deste trabalho, razão pela qual o que nos interessa, em foco, diz respeito apenas aos itens que reputamos mais relevantes quando considerados este em relação à boa-fé administrativa.

116

Nesse contexto, será importante didaticamente averiguar qual o papel

desempenhado pela boa fé administrativa considerando cada um dos requisitos

de validade do ato administrativo, sendo estes os mais conhecidos:

sujeito/competência, motivo (de fato e de direito), finalidade, causa e

formalidade. 118

2.1. Sujeito.

Quanto ao sujeito, tem-se que o ato administrativo deve ser editado por

agente competente, isto é, por quem detenha as atribuições legais para seu

exercício.

Ademais, pelo fato de que o vício exclusivamente de competência não

contamina essencialmente o motivo, a causa e a finalidade do ato administrativo,

a violação ao princípio da legalidade será menor, e, portanto, a incidência da

boa fé será bem mais variada, levando à necessidade de analisá-la diante de

quatro hipóteses, abaixo destacadas.119

118 Além da doutrina em geral, registra-se que a Lei Federal 4.717/65 (Lei da Ação Popular) traz, no seu art. 2º, a relação de vícios que, de certa forma, se assemelham à relação proposta neste trabalho - Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. 119 Colhemos na obra de Ricardo Marcondes Martins quatro vertentes fáticas que são extremamente didáticas para analisar as diversas aplicações da boa fé: a) boa fé da Administração e do administrado; b) má fé de ambos; c) boa fé da Administração e má fé do administrado; d) má fé da Administração e boa fé do administrado; e tudo isso nos desdobramento de atos restritivos ou ampliativos de direito. (“Efeitos dos Vícios dos Atos Administrativos”, Malheiros, 2008, p. 320/323.

117

(a) Administração e administrado não agem com má fé.

(a.1) Quando o ato for ampliativo de direito e o administrado está de boa

fé, o Direito deve protegê-lo, pois legitimamente confiou que a atuação

administrativa seria regular (isto é: editada por agente competente), e, assim,

não haverá invalidação do ato.

Protege-se, pois a boa fé objetiva em decorrência da confiança legítima,

e, portanto, independe se o vicio de competência se deu em decorrência de ato

doloso.

Um bom exemplo pode ser extraído num julgado do Tribunal de Justiça

de São Paulo, no curso da Apelação nº 990.09.331147-0, onde uma pessoa

integrante da Administração Indireta (sociedade de economia mista) e que

estava gerenciando um contrato administrativo de limpeza pública (exercendo,

portanto, atividade administrativa) firmou um termo de confissão de dívida com o

prestador do serviço sem observar sua adequada competência interna.

Neste caso, quando o pacto não foi honrado e empresa credora ajuizou

a respectiva cobrança mas, no bojo da execução, o defeito de competência foi

levantado como pretensão para anular o título. E destarte, vejamos a conclusão

chegada pelo Judiciário, conforme a ementa que abaixo transcrevemos:

“EXECUÇAO DE TITULO EXTRAJUDICIAL Instrumento de Confissão de

Dívida. Alegação de nulidade e inexistência do título de crédito - Título

subscrito por apenas um Diretor, enquanto o Estatuto Social prevê a

necessidade de assinatura de dois diretores para firmar contratos em nome da

118

sociedade de economia mista - Condições do Estatuto da empresa

contratante que não podem ser impostas ao terceiro de boa-fé -

Ressarcimento de eventual prejuízo que deve ser postulado junto ao Diretor

que não foi diligente. Pretensão negada.”

A exceção deste comando ocorreria quando a edição do ato

dependesse do exercício de uma competência discricionária, situação esta que

levaria à necessidade de sua ratificação pela autoridade competente.

Com efeito, a atuação administrativa dependerá, nesse caso, do juízo

pessoal do agente público sobre a oportunidade e conveniência da solução

adotada, o que, evidentemente, somente poderia ter sido exercido pelo titular do

cargo ou função.

Ademais, caso a autoridade competente não faça a mesma escolha do

agente anterior, a revisão do ato então deverá ocorrer, mas com efeitos ex nunc,

isto é, preservando-se os efeitos hauridos em favor do administrado de boa fé.

(a.2) Quando o ato for restritivo de direito, a situação se inverte e

revisão sempre se impõe, devendo o processo administrativo ser anulado a

partir do momento em que houve a decisão do incompetente, e a partir daí

retomado pela autoridade competente.

Isto ocorre porque a proteção jurídica resguarda o administrado de boa

fé contra o comportamento inesperado da Administração, e, assim, como o ato

editado por agente incapaz lhe causou prejuízo, é evidente que não poderá

subsistir.

119

Outrossim, importa anotar que incide na espécie, reforçando a

conseqüência acima, o princípio do devido processo legal previsto no art. 5º,

incisos LIV e LV, da Constituição da República, o qual, carregado com as cargas

adjetivas e substantivas exigiria que a atuação punitiva ou de perdimento de

direitos fosse feita mediante um processo legal e ao mesmo tempo justo.120

(b) Administração age de má fé e administrado de boa fé.

Nessa situação, as conseqüências do exemplo anterior não se alteram.

Aliás, se o direito protege o administrado de boa fé contra o vício de

competência praticado sem dolo pela Administração, com muito mais força o

acolherá quando esta agir de má fé.

Quando o ato for restritivo de direito, parece crível, portanto, que a

solução da revisão do ato seja realmente concretizada.

E, no que tange aos atos ampliativos de direito, interessante notar que a

conseqüência do item a.1 também deve ser mantida, não se anulando o ato

mesmo que a Administração tenha agido de má fé.

Suponha, por exemplo, que determinado agente público tenha avocado

a competência de um cargo que não lhe pertence, até mesmo para obter

vantagens pessoais. Ocorre que, no curso de suas atividades, declarou a

aposentadoria (compulsória ou voluntária, tanto faz) da forma como requerida

pelo servidor de boa fé, concedendo-lhe, assim, os benefícios dela decorrentes.

120 Sobre o aprofundamento do tema o princípio do devido processo legal, consultar Carlos Roberto Siqueira Castro, em “O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade”, Forense, Rio de Janeiro.

120

Pois bem, o vicio da incompetência por ato de má fé, mesmo assim, não

autorizará a cassação do ato que ampliou a esfera de direitos do servidor de boa

fé, e ainda que a investidura desonesta no cargo possa levar à punição pessoal

do agente.

Fosse o contrário, seria um caminho aberto para perseguições, pois

bastaria que o administrador, com ânimo para impedir alguém de boa fé de

prover seus direitos, agir propositadamente para tornar o ato administrativo

respectivo contaminado com o vício da incompetência.

Com efeito, aí estaria, realmente, a força da proteção da confiança

legítima que o ordenamento confere, ou seja, de resguardar a parte que, de boa

fé, confia na atuação legítima da parte contrária, sobretudo no exercício da

função administrativa, onde impera a presunção (relativa) de legitimidade dos

atos, independentemente mesmo se houve quebra por razões de ordem

subjetiva ou objetiva.

(c) A Administração está de boa fé, mas o administrado age de má fé.

Aqui a situação se altera, pois a proteção jurídica da boa fé não estará

mais ao lado o administrado. Ele próprio atua de má fé, e, nessa medida o

Direito o repreende.

Destarte, o alvo da tutela jurídica será a própria a sociedade, lesada

objetivamente se houver desrespeito à norma de interesse público.

121

Imaginemos, por exemplo, que determinado administrado tome

comprovadamente ciência do vicio de competência e, munido de má fé, omite tal

defeito a fim de obter benefícios.

Nesta situação, é liquido e certo que o Direito não poderá permitir a

manutenção do ato, determinando a remessa do procedimento ao agente

competente para re-analisar a questão e, se for o caso, para cassar a decisão

anterior.

Já no ato restritivo de direito, a questão da má fé do administrado nem

se coloca de maneira relevante, pois este não agiria propositadamente para

obter prejuízo.

(d) Ambos estão de má fé.

A questão apenas não se coloca nos atos restritivos de direito, porque,

como já observamos, o administrado não agiria propositadamente para obter

prejuízo.

Nos demais casos, teremos efetivamente a hipótese de violação mais

grave da boa fé no exercício da função administrativa. E, provavelmente, terá

ocorrido conluio entre as partes, razão pela qual a anulação do ato se impõe,

somada à responsabilização pessoal do agente e do beneficiário do ato, na

forma da lei.

122

2.2. Motivo (de fato e de direito).

Motivo é a situação de fato e de direito que serve de fundamento para a

edição do ato administrativo.

O pressuposto de fato é a ocorrência de determinada situação que

permite ou obriga a prática de um ato administrativo. E o pressuposto jurídico se

refere à norma legal que serve de fundamento para a prática do ato,

funcionando, pois, como corolário do princípio da legalidade.

Logo, a ausência de motivo, ou a invocação de motivo falso ou

inadequado provocariam, via de regra, a anulação do ato administrativo.

Aqui, portanto, não se coloca as vertentes da má fé pelo lado da

Administração Pública ou do administrado. Com efeito, tanto o erro ou a má fé

na detecção do motivo levariam do mesmo jeito à invalidação do ato.

Tomemos o exemplo da licença para construir. É evidente que na

ausência do pressuposto de fato (cumprimento das regras de edificação

exigidas) e/ou do pressuposto jurídico (norma permitindo ou não proibindo

aquela edificação) não poderá ser expedida a licença, independentemente da

boa ou má fé dos envolvidos na relação jurídica específica.

Incide na espécie, e de maneira prevalente, o princípio da legalidade e

da típica proteção da boa fé da sociedade (boa fé administrativa, na acepção

objetiva), no sentido de que a Administração exerça o comportamento esperado,

de quem tutela o interesse público e não do particular que pretende construir.

123

De outro turno, assevera-se que a boa fé administrativa também poderia

incidir no motivo defeituoso para salvaguardar terceiros que inocentemente

tenham confiado na atuação administrativa e deles obtiveram ampliação de

direitos (aqui, também falamos da proteção à boa fé objetiva).

Nesse cenário, a melhor hipótese estaria na aprovação de loteamento

irregular, quando, há anos ou décadas atrás, terceiros de boa fé adquiriram seus

lotes e neles estabeleceram suas residências. No problema sugerido, se não

houver o risco de grave lesão a outros princípios tutelados (como segurança e

meio ambiente), a ponderação entre legalidade (para anular o ato) e boa fé de

terceiros se resolverá em favor desta, mantendo-se os efeitos da posse e da

propriedade.

Logo, quando se estiver diante da situação acima, o aplicador do direito

deverá realizar um juízo de proporcionalidade entre a legalidade e boa fé de

terceiros, a fim de saber, sempre no caso concreto, se os efeitos do ato devem

ser preservados ou não.

Foi exatamente isto que decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no REsp

141.879 / SP, cuja ementa e trecho do voto abaixo transcrevemos:

“Loteamento. Pretensão de anulação. Boa-fé. A teoria dos atos

próprios impede que a Administração Pública retorne sobre os

próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na

regularidade de seu procedimento.”

(...)

124

“Sabe-se que o princípio da boa fé deve ser atendido também pela

administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu

comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado

pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os

próprios passos depois de estabelecer relações em cuja seriedade os

cidadãos confiaram.”

2.3. Causa.

A causa do ato administrativo é aferida mediante uma relação de

adequação lógica entre o motivo do ato e seu próprio conteúdo. O que está em

jogo, precipuamente, é a atuação proporcional da Administração, como muito

bem destacou Celso Antônio. 121

Desta feita, a relação entre boa fé e proporcionalidade é antiga e bem

detectada por Gonçales Perez 122, sobre a qual já se nos posicionamos quando

diferenciamos os dois institutos no Cap. III, item 5.2.

A proporcionalidade é um postulado fixo de interpretação, a fim de

verificar se atuação administrativa foi realizada de maneira necessária,

adequada e ponderada diante dos vários bens que muitas vezes se chocam no

caso concreto. 121 Curso de Direito Administrativo, 25ª Edição, p. 401. 122 El Principio General de Buena Fe em el Derecho Administrativo – Civitas – 1989, cit. p. 71. “Podría entenderse que una atuación desproporcionada es contraria a las exigencias de la buena fe, en cuanto el sujeto adopta una conducta que no es la conducta normal y recta que podría esperarse de una persona asimismo normal. No es normal exigir algo más de lo que es necesario exigir para cumplir el fin perseguido. No actúa de buena fe el que grava a otro innecesariamente, el que impone limitaciones superiores a las necesarias para cumplir la finalidad pretendida o exige prestaciones demasiadas. El principio de proporcionalidad vendrá a coincidir en ciertos aspectos con el principio de la buena fe.”

125

O que sobreleva anotar, assim, é que a proteção ao comportamento

esperado impedirá que a Administração atue além dos limites racionalmente

previstos pelo comando legal. E não poderá fazê-lo intencionalmente e nem por

erro, pois em ambos os casos haverá violação ao Direito.

Quando a Administração concede, com dolo ou por erro, um direito

aquém ou além do que faria jus o administrado, deverá revê-lo, da mesma forma

que procederá quando restringir os direitos de forma desproporcional.

Por isso é que na espécie se aplicam os mesmos desdobramentos

quanto ao defeito do motivo (item anterior), incidindo a boa fé na proteção da

sociedade sobre a correção dos atos administrativos e na proteção de terceiros

de boa fé, mediante ponderação no caso concreto sobre a manutenção ou não

dos efeitos gerados pelo ato em exame.

2.4. Finalidade.

A finalidade consiste no atributo de que o ato administrativo deve ser

editado para alcançar o resultado pretendido pela norma jurídica. Trata-se, pois,

do pressuposto teleológico.

Ocorrerá o chamado “desvio de poder” quando um ato administrativo for

preordenado a atingir finalidade diversa daquela pretendida pelo ordenamento

jurídico para a sua categoria.

Nesse particular, já demonstramos, conforme a posição de Celso

Antônio (Cap. III, item 5.1), que a finalidade diversa se daria: a) quando o agente

126

busca uma finalidade alheia ao interesse público ou b) quando o agente busca

uma finalidade, ainda que de interesse público, mas alheia à categoria do ato

que utilizou.

No caso do desvio de poder descrito na hipótese ‘a’, verificaremos que

haverá confusão entre o dever de finalidade e o dever de boa fé administrativa,

na sua acepção objetiva.

Isto porque, se a boa fé supracitada representa o dever de exercer o

comportamento esperado na tutela do interesse público, e se o ato analisado

incorreu em desvio dessa finalidade, evidente será a intersecção de ambos.

O Direito, nesses casos, invalidará o ato desvirtuado da finalidade,

independentemente da intenção do agente público ou do administrado

especialmente atingido.

Da mesma forma, a proteção do princípio da boa fé que poderia

neutralizar a cassação dos efeitos do ato também seria aquela descrita nos itens

anteriores 2.2 e 2.3, isto é, para manter estabilizados os efeitos experimentados

por terceiros de boa fé.

Quanto ao desvio de poder descrito na alínea ‘b’ (quando o agente

busca uma finalidade, ainda que de interesse público, mas alheia à categoria do

ato que utilizou), o caso é bem peculiar.

O desvio aqui não atingirá a finalidade de interesse público, e, portanto,

terá menos repulsa do ordenamento. A finalidade principal e esperada na

atuação administrativa é alcançada, e, assim, pode-se dizer que a boa fé

objetiva da sociedade foi preservada.

127

Todavia, de outro lado, haveria violação à boa fé subjetiva, porquanto o

agente público, muito embora possa ter alcançado o resultado esperado pela

norma em termos de interesse público, aproveitou-se disto para buscar

finalidade diversa da categoria específica do ato.

Tome-se o caso hipotético da desapropriação de imóvel que realmente

atinge a finalidade do interesse público, mas que está contaminado por motivo

de vingança contra o expropriado. De um lado, atingiu-se o comportamento

esperado pela sociedade na boa utilização do imóvel, agora publicizado. Mas,

de outro turno, infringiu-se da maneira mais grave possível o dever ético de uma

parte para com a outra (Administração versus proprietário expropriado), tomando

a propriedade de alguém com absoluta desonestidade.

No cenário tormentoso acima, apenas a ponderação no caso concreto,

com uso do postulado da proporcionalidade em sentido estrito 123, é que nos

poderia dizer se o Direito deve acolher a proteção da boa fé subjetiva contra o

desvio de poder, anulando o ato expropriatório; ou se deve preservar a boa fé

objetiva da sociedade, e, assim, manter o bem publicizado em prol de seu uso

voltado ao interesse público.

Logo, se o imóvel expropriado ainda não estiver sendo fruído

coletivamente (aguardando, por exemplo, a edificação de um prédio escolar), a

anulação do ato expropriatório se impõe, uma vez que esta solução, num juízo

de proporcionalidade estrita, atenderá por completo a boa fé subjetiva em

123 Vide Cap. III, item 5.2.

128

mínimo prejuízo da boa fé da sociedade, que ainda poderá receber da

Administração uma outra alternativa.

Entretanto, se o imóvel estiver em plena fruição pela coletividade, o

desfazimento do ato, muito embora possa reparar o status quo da violação da

boa fé subjetiva, traria consigo um efeito colateral muito alto e por isso

indesejável em termos de proporcionalidade estrita, qual seja, o de suprimir a

continuidade de um serviço público relevante à milhares de cidadãos. Caberia,

pois, ao expropriado o direito à uma indenização, inclusive moral, pelo agravo

sofrido, bem como se faria necessário punir pessoalmente a conduta do agente

desonesto, muito embora a utilização pública do imóvel tivesse de ser mantida.

2.5. Formalização.

A formalização é um requisito de validade ligado à maneira pela qual o

ato de deve ser exteriorizado. Ela é menos importante que o motivo, a causa ou

a finalidade (é bem verdade), porque não atinge o núcleo do ato administrativo,

mas nem por isso será sempre irrelevante. Serve para proporcionar o efetivo

controle dos atos administrativos. Exemplos desta natureza seriam a

necessidade de contrato escrito, a maneira específica de uma determinada

publicidade, ou ainda a forma exigida para sua exteriorização (como Portarias,

Atos, Resoluções) etc.

129

Desta forma, há necessidade de desdobrá-la nas mesmas quatro

vertentes que utilizamos no vício de competência (cf. item 2.1 deste Capítulo).

(a) Administração e administrado não agem de má fé.

(a.1) Quando o ato for ampliativo de direito e o administrado está de boa

fé, o Direito deve protegê-lo, pois legitimamente confiou que a atuação

administrativa seria regular (isto é: formalizada adequadamente), e, assim, não

haverá invalidação do ato.

Imagine-se a convocação administrativa para a entrada em exercício de

um servidor sem a edição da chamada “Portaria de Nomeação”. No exemplo,

proteger-se-á, pois, a confiança depositada pelo servidor nomeado, e, portanto,

independentemente se o vício de formalização ocorreu em decorrência de má fé

administrativa.

(a.2) Quando o ato for restritivo de direito, a situação se inverte e

revisão do ato se fará obrigatória.

Os motivos para tanto são os mesmos elencados no item 2.1, no

sentido de proteger a boa fé do administrado, que sofreu restrição, contra o

comportamento inesperado da Administração, bem como, por incidir, na espécie,

130

o devido processo legal, adjetiva e substancialmente (princípio este a orientar

que o informalismo deve ocorrer em prol do administrado; nunca contra 124).

(b) Administração age de má fé e administrado de boa fé.

Nessa situação, as conseqüências do exemplo anterior não se alteram.

Aliás, se o direito protege o administrado de boa fé contra o vício de

competência praticado sem dolo pela Administração, com muito mais força o

acolherá quando esta agir de má fé.

Quando o ato for restritivo de direito, parece crível, portanto, que a

solução da revisão do ato seja realmente concretizada.

E, no que tange aos atos ampliativos de direito, interessante notar que a

conseqüência do item a.1 também deve ser mantida, não se anulando o ato

mesmo que a Administração tenha agido de má fé.

Suponha, por exemplo, que o administrador tenha deixado de expedir a

Portaria de Nomeação narrada no item ‘a.1’ intencionalmente, por motivo de

perseguição. Pois bem, o vicio da formalização, com muito mais razão, não

autorizará a cassação do ato que ampliou a esfera de direitos do servidor de boa

fé.

124 Sobre o aprofundamento do tema o princípio do devido processo legal, convém consultar Carlos Roberto Siqueira Castro, em “O Devido Processo Legal e os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade”, Forense, Rio de Janeiro.

131

(c) A Administração está de boa fé, mas o administrado age de má fé.

Nesse ínterim, os argumentos e as conseqüências são rigorosamente

iguais ao contido no item 2.1 deste Capítulo, alínea ‘c’.

Em suma: no ato ampliativo a situação se inverte, e o Direito

repreenderá a má fé do administrado, impedindo que este obtenha benefício

valendo-se de sua torpeza. No ato restritivo, a questão da má fé do administrado

nem se coloca de maneira relevante, pois não agiria propositadamente para

obter prejuízo.

(d) Ambos estão de má fé.

A questão apenas não se coloca nos atos restritivos de direito, porque,

como já observamos, o administrado não agiria propositadamente para obter

prejuízo.

No caso dos atos ampliativos, teremos efetivamente a hipótese de

violação mais grave da boa fé no exercício da função administrativa. E,

provavelmente, terá ocorrido conluio entre as partes, a fim de impedir a

formalização adequada do ato e o conseqüente controle pela sociedade.

Nessa esteira, evidente que a invalidação do ato se impõe, somada à

responsabilização pessoal do agente e do beneficiário do ato, na forma da lei.

132

(e) Exceção à regra: a formalização é uma condição legal da validade

do ato.

Quando a formalização se constituir numa condição legal da validade do

ato, o defeito respectivo importará na invalidação deste independentemente da

posição de boa ou de má fé (subjetiva) dos envolvidos na relação específica

(Administração versus administrado atingido pelo ato).

Um exemplo interessante seria a ausência de publicidade em jornal de

grande circulação para abertura do procedimento de concorrência pública,

conforme previsto pelo art. 21 da Lei Federal 8.666/93 125. A maneira pela qual o

ato de chamamento deve ser exteriorizado não seria uma formalização

irrelevante, mas verdadeira condição legal para a validade de todo o

procedimento licitatório, haja vista que somente por meio desta será possível

garantir uma multiplicidade de princípios administrativos, a saber: acesso

universal aos administrados; ampla competitividade; isonomia; possibilidade

maior de obter proposta mais vantajosa, a própria legalidade, dentre outros.

125 Art. 21. Os avisos contendo os resumos dos editais das concorrências, das tomadas de preços, dos concursos e dos leilões, embora realizados no local da repartição interessada, deverão ser publicados com antecedência, no mínimo, por uma vez: (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) I - no Diário Oficial da União, quando se tratar de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública Federal e, ainda, quando se tratar de obras financiadas parcial ou totalmente com recursos federais ou garantidas por instituições federais; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) II - no Diário Oficial do Estado, ou do Distrito Federal quando se tratar, respectivamente, de licitação feita por órgão ou entidade da Administração Pública Estadual ou Municipal, ou do Distrito Federal; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94) III - em jornal diário de grande circulação no Estado e também, se houver, em jornal de circulação no Município ou na região onde será realizada a obra, prestado o serviço, fornecido, alienado ou alugado o bem, podendo ainda a Administração, conforme o vulto da licitação, utilizar-se de outros meios de divulgação para ampliar a área de competição. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 8.6.94)

133

Por estas razões, a boa intenção das partes envolvidas (Administração

e vencedor da licitação) será irrelevante diante da imposição formalística.

Assegurar-se-á a boa fé administrativa (objetiva), em prol da sociedade, de que

a conduta administrativa deve ocorrer de acordo com os standards

objetivamente juridicizados (no caso: a forma específica de uma publicidade)

3. A boa fé e o processo administrativo.

3.1. Processo e procedimento.

A priori, cabe situar que a expressão “processo administrativo” irá se

referir neste tópico a uma relação jurídica processual centrada

predominantemente na existência de um conflito ou litígio a ser dirimido na

esfera administrativa 126, a fim de distingui-la da expressão “procedimento

administrativo”, a qual abrangeria todo e qualquer iter sucessivo e

desencadeado de atos concatenados logicamente à edição final de um ato

administrativo 127.

E assim se procede porque, em razão de cortes metodológicos, o

estudo da boa fé no procedimento administrativo forçosamente recairia no ato

administrativo, o que já foi abordado no item 1 deste Capítulo.

126 Aqui adotamos a definição de Sergio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, em “Processo Administrativo”, Malheiros, 2º Edição, p. 35. 127 Sobre a expressão “procedimento administração” confira Celso Antônio Bandeira de Mello, em Curso de Direito Administrativo, Malheiros, p. 477.

134

Já o processo administrativo, pela conceituação acima, dispõe de

componentes peculiares que mais o distanciam do ato administrativo. E, por fim,

está no processo (e não no procedimento) o âmbito da lei federal que será

analisada em fico daqui para frente e que contém férteis positivações da boa fé

que nos interessará.

3.2. A boa fé no processo administrativo federal.

Para o ente federal, a boa fé já se constitui num princípio

expressamente positivado no campo do processo administrativo, conforme

disposto no art. 2º, Parágrafo Único, inciso IV, da Lei Federal 9.874/99. 128

No entanto, é possível sustentar seu influxo nessa seara antes mesmo

da lei citada, porquanto toda atividade que se sujeita ao regime jurídico de direito

administrativo deve obediência a este princípio (o que já vimos no Cap. II.5).

Não obstante, a boa fé também emergiria como decorrência lógica do

devido processo legal, esculpido no art. 5º, incisos LIV e LV da Carta Magna 129,

128 Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito; II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades; IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; 129 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

135

mormente no seu aspecto substancial, que exige um processo legal e ao mesmo

justo (justo no sentido de razoável, proporcional, honesto e leal)

Desta feita, é possível concluir que boa fé administrativa incide sobre

toda e qualquer disciplina processual da Administração Pública Direta e Indireta,

quer seja em nível federal, estadual, distrital, ou municipal.

As hipóteses que melhor retratam sua permeabilidade nesse campo,

sem prejuízo de outras, podem ser assim arroladas: a) no direito ao efetivo

contraditório; b) na vedação da aplicação retroativa de nova interpretação; c)

como elemento de ponderação à segurança jurídica, na questão do prazo

decadencial; d) na proibição da reformatio in pejus antes da cientificação do

interessado; e) na obrigação de conduta do administrado.

(a) A boa fé no direito ao efetivo contraditório.

São inúmeros os conceitos e dimensões sobre o direito ao contraditório,

sobretudo no campo do direito processual civil.

Em todas elas, o referido princípio também aparece ligado e como

conseqüência lógica da positivação do devido processo legal, conforme art. 5º,

incisos LIV e LV da Lei Fundamental.

Naquilo que nos interessa, que é a esfera do direito administrativo,

Sergio Ferraz e Adilson Abreu Dallari se ocuparam do tema de forma muito

profícua, pontuando-o nos seguintes termos:

136

“A instrução do processo deve ser contraditória. Isso significa que não

basta que a Administração Pública, por sua iniciativa e por seus meios, colha os

argumentos ou provas que lhe pareçam significativos para a defesa dos

interesses do particular. É essencial que ao interessado ou acusado seja dada a

possibilidade de produzir suas próprias razões e provas e, mais que isso, que

lhe seja dada a possibilidade de examinar e contestar os argumentos,

fundamentos e elementos probantes que lhe sejam desfavoráveis. O

princípio do contraditório exige um dialogo: a alternância das manifestações das

partes interessadas, durante a fase instrutória.” 130

De outra parte, o art. 3º, II e III, da Lei Federal 9.784/99, ao prescrever

que é direito do administrado ter ciência dos autos e das decisões, formular

alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de

consideração pelo órgão competente 131, também positiva o princípio do

contraditório no âmbito do processo administrativo federal.

De todo exposto, extraímos, sem sombra de dúvida, que a boa fé está

por trás de uma das facetas do contraditório, qual seja, a de proibir que a

Administração considere qualquer argumento, fato ou prova que seja

desfavorável ao administrado antes de lhe oportunizar o direito de conhecê-los

e/ou de se manifestar sobre eles.

130 Processo Administrativo, Malheiros, 2ª Edição, p. 92. 131 Art. 3º. O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: (...) II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;

137

E isto ocorre porque, se a boa fé veicula a obrigação de uma atuação

previsível pela Administração, é evidente que esta não poderá se valer de um

elemento novo em prejuízo do administrado, surpreendendo-o. Qualquer

atuação diversa daria ensejo a um comportamento inesperado – que é um

pecado mortal contra a boa fé.

Em suma, podemos dizer que a proibição do julgamento com base em

elemento novo não seria outra coisa senão o próprio componente de lealdade

contido no contraditório.

Daí porque a boa fé penetra no princípio do contraditório,

potencializando seu significado e alcance.

A atuação desconforme a esse padrão de boa fé dará ensejo,

evidentemente, a invalidação do ato, salvo se não houver decorrido prejuízo

algum contra o administrado.

(b) A boa fé na vedação da aplicação retroativa de nova interpretação.

No art. 2º, Parágrafo Único, inciso XIII, da Lei Federal 9.784/99, consta

outra projeção da boa fé, conforme se apura do seguinte comando: “Parágrafo

Único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

(...) XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o

atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova

interpretação.”.

Desta feita, a norma em comento protege nitidamente o princípio da

confiança de que a Administração, ao adotar uma certa interpretação, assim o

138

fará para os todos casos análogos, razão pela qual o administrado acredita num

comportamento esperado, numa conduta previsível.

A alteração da interpretação sedimentada provoca, por isso mesmo,

sobressalto indesejável, encarna conduta contraditória ao comportamento

anterior (venire contra factum proprium), efeito este que o Direito tende a

minimizar exatamente quando determina que a nova postura incida apenas em

casos futuros.

Tem-se, aqui, um excelente exemplo de veiculação da boa fé objetiva,

pois consubstanciada conforme uma pauta de comportamento pré-estabelecida

pelo ordenamento jurídico e que tem por finalidade proteger a confiança do

administrado na previsibilidade da atuação administrativa.

Ademais, salienta-se que nessa situação a boa fé se confundiria com a

proteção da segurança jurídica, o que não ocorrerá, contudo, em outras

passagens da mesma lei de processo administrativo federal, quando, em sentido

contrario, colocará estes mesmos princípios em choque e sopesamento. 132

(c) A boa fé como elemento de ponderação à segurança jurídica, na

questão do prazo decadencial.

A boa fé, como dito, ora pode incidir no processo administrativo como

elemento de ponderação à segurança jurídica.

132 Sobre a diferença entre boa fé e segurança jurídica, vide Cap. III, item 5.5.

139

O caso em concreto está contido no art. 54 da Lei Federal 9.874/99 133,

na medida em que este relativiza a segurança jurídica para evitar que um

terceiro de má-fé se aproveite do prazo decadencial.

Tem-se que o exemplo acima foi abordado de maneira mais detalhada

no Cap. III, item 5.5 (aqui, remetemos à leitura).

Sem embargo, reafirma-se que a segurança jurídica tem por finalidade

manter estabilizados os efeitos jurídicos já assimilados pela sociedade, a fim de

que o próprio Direito seja previsível. Daí porque estabelece prazos de

decadência e de prescrição. Já a boa fé nem sempre age nesse sentido.

Procura, muitas vezes, tutelar especialmente a conduta humana diante dos

deveres objetivos e subjetivos de verdade, lealdade, coerência, e assim, não

permite que determinado indivíduo (administrador ou administrado) venha se

valer de um comportamento desleal, inclusive para se aproveitar dos efeitos da

própria segurança jurídica.

(d) A boa fé na proibição da reformatio in pejus antes da cientificação do

interessado.

Nessa passagem da lei de processo administrativo, a lei federal nada

mais faz do que trazer um desdobramento especialíssimo da boa fé no princípio

do contraditório que foi objeto de comentário no item ‘a’.

133 Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé

140

Aqui, esta influenciará ainda mais o sentido e alcance do direito ao

contraditório pela inserção da regra disposta no art. 64, a qual proíbe o

julgamento gravoso em sede recursal (reformatio in pejus) antes que o

administrado seja cientificado e que formule suas alegações. 134

Tem-se, pois, que o administrado não poderá ser surpreendido com a

majoração de uma decisão desfavorável antes de saber exatamente sobre tal

possibilidade e antes que tenha o direito de se manifestar em defesa contra o

risco deste gravame.

Trata-se, portanto, de regra que faz valer o princípio da boa fé na

atividade administrativa processual, na medida em que protege o administrado

contra uma atuação inesperada e repentina do órgão recursal.

(e) A boa fé na obrigação de conduta do administrado

Diferente do que se ocorreu nos casos anteriores, a proteção da boa fé

no processo administrativo, pelo art. 4º, passa a se preordena a regular

especialmente a conduta do administrado. 135

134 Art. 64. O órgão competente para decidir o recurso poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência. Parágrafo único. Se da aplicação do disposto neste artigo puder decorrer gravame à situação do recorrente, este deverá ser cientificado para que formule suas alegações antes da decisão. 135 Art. 4o São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo: I - expor os fatos conforme a verdade; II - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III - não agir de modo temerário; IV - prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos.

141

Nele, a boa fé aparece como dever geral de postura do administrado

envolvido na relação processual. Aliás, todas as obrigações especialmente

arrolados ao lado da boa fé no art. 4º - I - expor os fatos conforme a verdade; II -

proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III - não agir de modo temerário IV -

prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos

fatos - são meras decorrências desta.

O influxo da boa fé nessa vertente se dará de forma objetiva e subjetiva.

Impedirá, nesse sentido, que a má-fé (subjetiva) seja meio para alcance

da decadência ou que o administrado se valha de prova falsa, da mesma

maneira em que obriga o administrado a prestar informações e colaborar com o

esclarecimento dos fatos, numa nítida posição de lealdade objetiva com a

Administração e com terceiros.

Esta situação demonstra, uma vez mais, a incrível profusão da boa fé

no regime jurídico de direito administrativo, reforçando a idéia de que o estudo

do tema – aqui não esgotado – jamais deveria ser amesquinhado.

4. A boa fé em face do exercício de competência vinculada e discricionária.

Em decorrência do princípio da legalidade, a atuação administrativa

pode ocorrer com maior ou menor grau de liberdade na escolha da alternativa

que melhor atenda o interesse público.

Daí decorrerá a existência de exercício de uma competência vinculada

ou discricionária, conforme o caso.

142

Celso Antônio averba com extrema lucidez: “No interior das fronteiras

decorrentes da dicção legal é que pode vicejar a liberdade administrativa. A lei,

todavia, em certos casos, regula dada situação em termos tais que não resta

para o administrador margem alguma de liberdade, posto que a norma a ser

implementada prefigura antecipadamente com rigor e objetividade absolutos os

pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este

obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista.

Nestes lanços diz-se que há vinculação e, de conseguinte, que o ato a ser

expedido é vinculado.

Reversamente, fala-se em discricionariedade quando a disciplina legal

faz remanescer em proveito e a cargo do administrador uma certa esfera de

liberdade, perante o quê caber-lhe-á preencher com seu juízo subjetivo, pessoal,

o campo de indeterminação normativa, a fim de satisfazer no campo concreto a

finalidade da lei.” 136

Fica a seguinte lição do grande mestre: na vinculação, a conduta do

administrador é a mais objetiva possível, já que a lei predetermina apenas uma

alternativa; na discricionariedade, o exercício da competência comporta, diante

do caso concreto, margem de liberdade na atuação administrativa para eleger a

alternativa que satisfaça a finalidade legal.

Resta-nos, destarte, averiguar de que forma a boa fé interage diante do

exercício vinculado ou discricionário.

(a) No exercício de competência vinculada. 136 Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 25ª Edição, p. 247.

143

Como visto, a atuação administrativa se apresentará com uma única

alternativa possível.

Nessa conjectura, a boa fé no aspecto subjetivo será totalmente

irrelevante para o ato administrativo, pouco importando a intenção do agente

quando expediu o ato.

Um bom exemplo seria o exercício de competência no ato que declara a

aposentaria compulsória de um servidor público, ao completar setenta anos.

Com efeito, ainda que haja comprovado desejo de vingança pessoal pela

autoridade administrativa, a aposentadoria se imporá, de qualquer forma,

quando o servidor perseguido se enquadrar objetivamente no comando legal. 137

Já no aspecto objetivo, a boa fé incidiria de duas maneiras.

Quando a expedição do ato em competência vinculada não provocar o

efeito colateral de prejudicar terceiros, o dever da conduta administrativa

vinculada atenderá, ao mesmo tempo, o princípio da legalidade e da boa fé.

De outro turno, quando houver prejuízo de terceiros de boa fé, a

proteção à confiança legítima pode funcionar, num juízo concreto de

ponderação, como causa externa de afastamento para sua edição, ou ainda, no

caso do ato ser anulatório, poderá servir para manter seus efeitos estabilizados.

Relembre-se, nesse ínterim, da aprovação irregular de loteamento que

provoca, aos adquirentes de boa fé, a confiança legítima de que a atuação

administrativa era regular. Inobstante o ato de invalidação encerrar um exercício

137 Diz-se que a má-fé é irrelevante para o ato administrativo, uma vez que a conduta desonesta do administrador pode dar ensejo, é bem verdade, na apuração de responsabilidade pessoal por ofensa à moralidade e/ou improbidade.

144

de competência vinculada, já vimos que a jurisprudência, em prol da boa fé

destes terceiros, bloqueará a expedição do ato anulatório e determinará a

manutenção de seus efeitos. 138

Nessa linha, inclusive, caminha também a jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, sendo pertinente citar dois casos emblemáticos.

No julgamento do MS 26.603, o STF decidiu que a infidelidade partidária

não se aplicaria aos casos já praticados antes da data em que o Tribunal

Superior Eleitoral apreciou a consulta n. 1.398/DF, tendo em vista que somente

a partir desta resposta é que se passou a rechaçar uma prática até então

reiterada. Invocou-se, na ocasião, a seguinte vertente da proteção à confiança:

“a subsistência dos atos administrativos e legislativos praticados pelos

parlamentares infiéis: conseqüência da aplicação da teoria da investidura

aparente”.

No julgamento do RE 197.917, o STF decidiu emitir nova interpretação

sobre a proporcionalidade entre população e número de vereadores,

determinando a redução do número de assentos na Câmara Municipal de um

determinado Município, o que teria efeito erga omnes. Contudo, em nítido juízo

de sopesamento entre os efeitos da legalidade e da boa fé, o STF fixou que a

regularização não poderia alcançar retroativamente aqueles Vereadores

138 Foi exatamente isto que decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 141.879 / SP, cuja ementa e trecho do voto abaixo transcrevemos: “Loteamento. Pretensão de anulação. Boa-fé. A teoria dos atos próprios impede que a Administração Pública retorne sobre os próprios passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu procedimento.”

145

ocupantes das cadeiras em excesso que, de boa fé, confiavam na interpretação

em vigor dos Tribunais Eleitorais que os diplomaram.

O mesmo juízo de ponderação ainda pode ser verificado nas leis de

efeito concreto que concedem anistia a imóveis cujos requisitos para o

licenciamento da edificação não foram completamente atendidos, mas cuja

omissão administrativa, há muito tempo, provocou a estabilidade de relações e

efeitos a inúmeros administrados.

Nesse último exemplo, contudo, interessante anotar que a acepção da

boa fé na anistia não será tipicamente a tutela da confiança legítima numa

atuação administrativa regular, tal como ocorreu nos casos acima. Em rigor, ela

decorreria simplesmente da proteção dos administrados diante da maneira que a

Administração atua de forma consolidada e há muito tempo. Aqui, o que se

busca evitar é a apenas a incoerência da postura administrativa, no sentido de

promover o saneamento de uma situação há muito tempo admitida e cujos

efeitos da invalidação repentina trariam ainda mais insegurança jurídica.

Noutras situações, entretanto, é fundamental deixar claro que esse

mesmo juízo de ponderação não recomendaria a prevalência pelo vetor da boa

fé como causa excludente da invalidação do ato ou até mesmo da manutenção

de seus efeitos.

Ora, suponha-se a aprovação irregular de loteamento em “área de

risco”, ou seja, em local cujas normas de engenharia não permitiram qualquer

edificação, sob pena de deslizamento ou desabamento. Nesta situação,

146

evidentemente que a proteção à confiança não poderá excluir o ato de

invalidação.

Logo, de todo exposto é possível concluir que a boa fé incide

objetivamente no exercício de competência vinculada, sendo que o critério de

eleição em favor desta ou da legalidade será, como sempre, o juízo de

proporcionalidade no caso concreto. 139

(b) No exercício de competência discricionária.

Neste tipo de atuação administrativa, a boa fé incide em todas as suas

formas, sobretudo no aspecto subjetivo.

Isto porque, tratando-se de exercício de competência no qual o

administrador exerce juízo pessoal para definir o ato administrativo, o aspecto

subjetivo de sua conduta também será, por obvio, mais relevante.

Imaginemos a revogação de um convênio com determinada entidade

sem fins lucrativos e que tinha por objeto o repasse de verbas para

desenvolvimento de projetos sociais, com a justificativa de destinar o recurso

para outros projetos que, segundo juízo de oportunidade e conveniência do

administrador, melhor atenderiam o interesse público. É certo que, não havendo

uma zona de certeza a recomendar a continuidade do convênio como a melhor

forma de atender o interesse público, ter-se-ia típico exercício de competência

discricionária.

139 O juízo de proporcionalidade é explicado no Cap. III, item 5.2.

147

Ocorre, entretanto, que havendo comprovação de que a revogação do

ajuste foi motivada por questões de foro interno, como, por exemplo, para

prejudicar a entidade gerida por grupo político adversário, a intenção do agente

será relevante para determinar a anulação do ato, e tudo isso ocorreria mesmo

que a alternativa eleita também pudesse atender a reclamos legítimos.

Na hipótese, é evidente que a proteção da boa fé subjetiva impedirá que

a entidade conveniada seja substituída em decorrência de ato doloso da

autoridade administrativa. O Direito, aqui, rechaça a má-fé da maneira mais

veemente possível.

De outro lado, o exercício de competência discricionária também poderá

ser sindicado no plano da boa fé objetiva. Nesse mister, a regra do controle seria

a mesma que autoriza a intervenção judicial quando o ato discricionário

transborda os postulados da razoabilidade e proporcionalidade, e assim viola,

por excesso, todo e qualquer princípio do regime de direito administrativo.

Nesse sentido, mostram-se perfeitamente válidas as ilações de Juarez

Freitas, em obra dedicada ao controle da discricionariedade:

“Existe discricionariedade administrativa imune a controle? Existe ato

exclusivamente político cujo controle seria defeso ao Poder Judiciário? Não, pois

é inarredável a vinculação aos princípios e direitos fundamentais. Ao menos

negativamente, o controle latu sensu precisa sindicar, em fundo calado, os vícios

decorrentes de excessos, desvios e insuficiências no exercício de competências

administrativas. Não fosse assim, o ato exclusivamente político e não-sindicável

orbitaria num espaço do juridicamente irrelevante, o que se mostrou sem

148

sentido. Nesses termos, o controle não será total, sob pena de ser usurpatório,

mas os vícios decorrentes da inadequação sistêmica serão sempre

controláveis.”140

Logo, ainda que o gestor público, em competência discricionária, não

tenha agido dolosamente, mas apenas desproporcionalmente, o dever de boa fé

na melhor acepção do comportamento esperado no exercício de função

administrativa impedirá, por óbvio, sua atuação além do mínimo necessário,

sobretudo quando esse excesso provoca lesão a terceiros que seria

desnecessária.

Deveras, de todo exposto, pode-se bem extrair a magnitude do princípio

da boa fé no direito administrativo, bem como sua alta carga de permeabilidade

nesse regime, a qual incide com diversas facetas no exercício de competência

vinculada ou discricionária.

5. A boa fé nos contratos administrativos.

5.1. Contratos da Administração e Contratos Administrativos.

A Administração Pública estabelece, como ente capaz de gerar direitos

e obrigações, diversas relações contratuais que podem estar submetidas ao

regime civil ou administrativo.141

140 Discricionariedade Administrativa e o Direitos Fundamental à Boa Administração, Malheiros, 2007, p. 123.

149

Partindo desta premissa, e ainda que haja divergência a respeito, adota-

se a definição de Maria Sylvia Zanella di Pietro, segundo a qual “A expressão

contratos da Administração é utilizada, em sentido amplo, para abranger todos

os contratos celebrados pela Administração Pública, seja sob regime de direito

público, seja sob regime de direito privado. E a expressão contrato

administrativo é reservada para designar tão somente os ajustes que a

Administração, nessa qualidade, celebra com pessoas físicas ou jurídicas,

públicas ou privadas, para a consecução de fins públicos, segundo regime

jurídico de direito público.”. 142

Assim, para os fins deste trabalho, interessa anotar que o Poder

Público poderá estar numa relação contratual onde impera o regime privado

(chamada simplesmente de contrato da Administração), ou o regime público

(chamada de contrato administrativo).

E isso tudo será extremante relevante para definirmos a boa fé

aplicável, pois, sendo a boa fé um princípio geral de direito, mas projetada de

forma peculiar em cada regime jurídico, chega-se a conclusão inexorável de que

nos contratos administrativos impera a boa fé administrativa enquanto que nos

demais contratos vigora a boa fé comum ao direito civil (esse ponto de vista

também foi sustentado no Cap. I, itens 4 e 5).

141 Exemplo de que a Administração celebra contratos sob regime do direito civil está no inciso I, do §3º, do art. 62, da Lei Federal 8.666/93, o qual prescreve que os contratos de seguro, financiamento e locação na posição de locatário detém conteúdo, predominantemente, de direito privado. 142 Direito Administrativo, 23ª Edição, Editora Atlas, p. 251.

150

Interessa-nos, destarte, analisar mais detidamente a boa fé projetada

nos chamados “contratos administrativos”, os quais são submetidos ao regime

de direito público de que trata basicamente a Lei Federal 8.666/93.

5.2. Os contratos regidos pela Lei Federal 8.666/93.

São inúmeras as passagens da boa fé administrativa nos contratos

regidos pela Lei Federal 8.666/93.

(a) Exigência de vinculação ao edital de licitação ou ao termo que a

dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta do licitante.

Consta no art. 55, X, da citada lei, que a Administração deverá

estabelecer cláusula que disponham sobre a exigência de vinculação ao edital

de licitação ou ao termo que a dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta

do licitante.

Tal mandamento representa clara expressão do dever de boa fé

administrativa, na medida em que obriga a Administração agir de forma coerente

diante das regras da licitação que pré-estabeleceu e até mesmo com os

licitantes que participaram do certame sem sucesso. Explico.

Quando o Poder Público define o objeto contratual no Projeto Básico

para colocá-lo em disputa (art. 7º, §2º, I), em cima dele estabelece as regras de

151

habilitação e de elaboração de propostas, sobre as quais (e apenas sobre as

quais) os licitantes poderão ser igualmente comparados e avaliados.

Logo, a manutenção das regras do edital (ou do termo equivalente) e da

proposta, no instrumento contratual, são fundamentais para que a conduta

administrativa seja coerente com o procedimento de escolha do contratado.

Em caso contrário, a Administração produziria uma licitação pública

absolutamente desleal, no qual as regras do jogo seriam meramente “cortinas de

fumaça”, porquanto totalmente desvinculadas daquilo que realmente se

pretendia contratar.

No mesmo sentido, o dever de vinculação ao ato convocatório é bem

retratado por Marçal Justen Filho, em obra dedicada a “Licitações e Contratos

Administrativos”, pelo que vejamos: “O contrato administrativo filia-se ao ato que

lhe deu origem. Haja ou não licitação formal, o contrato é produto de atos

anteriores, que lhe dão determinada configuração. Por isso, todo contrato deve

ser interpretado em consonância com o ato convocatório da licitação ou com as

condições norteadoras da dispensa ou inexigibilidade da licitação.” 143

Daí porque incide o dever de boa fé, determinando um comportamento

esperado na fase contratual fidedigno e vinculado àquele adotado na fase pré-

contratual.

Sua projeção ocorreria tanto no aspecto subjetivo e/ou objetivo, ou seja,

independentemente da presença de dolo na conduta do agente quando, na fase

contratual, resolveu se desvincular do procedimento de escolha.

143 Comentários à Lei de Licitação e Contratos Administrativos, Dialética, 11ª Edição, p. 495.

152

Interessante anotar ainda que este dever de vinculação é típico da

pauta de valores especialmente projetada pela boa fé administrativa, já que, no

campo do direito civil não seria possível obrigar o particular, nesses termos, a

firmar contratos com base nos procedimento internos de seleção, em razão do

princípio da liberdade de escolha que ali vigora.

(b) A boa fé na obrigação do contratado em manter, durante a fase

contratual, as mesmas condições de habilitação e qualificação exigidas na

licitação.

A regra é decorrente da obrigação prevista no art. 55, XIII, da citada Lei

Federal 8.666/93. Volta-se ao dever de boa fé do contratado. Com efeito,

espera-se daquele que se dispõe a contratar com o Poder Público que ostente

capacidade não apenas para vencer uma licitação, mas efetivamente para

executar o contrato durante toda sua vigência.

Atentaria contra o dever de boa fé admitir que um licitante pudesse, com

a finalidade única de vencer o certame, apresentar qualificações apenas naquele

momento, para, em seguida, delas abrir mão e assim provocar risco de

descontinuidade na prestação em que se obrigou atender.

A norma em comento encarna, nessa seara, a boa fé objetiva e

subjetiva, protegendo não apenas a Administração como contratante, mas

também a toda sociedade que espera do contratado que honre as condições de

executar o pacto cuja finalidade é o próprio interesse público.

153

(c) A boa fé na anulação do contrato administrativo.

O art. 59, parágrafo único, da Lei Federal nº 8.666/93 ao mesmo tempo

em que prevê a anulação dos contratos administrativos – em nítido atendimento ao

princípio da legalidade – põe a salvo o contratado quando lhe garante o direito à

indenização do que houver executado.

Eis o precitado dispositivo: Art. 59. A declaração de nulidade do contrato

administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele,

ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos. Parágrafo

único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o

contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e

por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja

imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.

Nesses termos, a boa fé seria o termômetro de que o Direito precisa

para minimizar ou não os efeitos jurídicos da anulação contratual, concedendo

ou negando o pleito indenizatório. Se a causa da nulidade não for imputável ao

contratado, significa que este agiu de boa fé no curso contratual e, portanto, não

poderá ser prejudicado patrimonialmente pelos efeitos da regularização de uma

legalidade ferida. De outro lado, se a causa lhe for atribuível, por presunção

legal desapareceria a boa fé, e, assim, o ordenamento passaria a lhe punir com

a perda do direito à indenização.

Tem-se, na hipótese, dupla incidência da boa fé, objetiva e/ou subjetiva.

Uma em prol do contratado, ao proibir que a Administração se escuse do dever

154

indenizatório quando o motivo da nulidade é sua própria torpeza. E outra em prol

da sociedade, ao proibir que o contratado venha a fruir de verba reparatória

mediante ilegalidade que ele próprio provoca ou que, ao menos, concorre.

Sensível a este cenário, a jurisprudência hodierna do Superior Tribunal

de Justiça já vem reconhecendo na boa fé o fundamento por de trás do

parágrafo único do art. 59, conforme exposto na ementa do julgado abaixo

colacionado.

REsp 547196 / DF. RECURSO ESPECIAL 2003/0019993-2. Relator(a)

Ministro LUIZ FUX (1122). Data do Julgamento 06/04/2006. Data da

Publicação/Fonte DJ 04/05/2006 p. 134. REPDJ 19/06/2006 p. 100. RDR vol.

40 p. 220.

2. Alegação de invalidade pela própria parte que o engendrou, resultando na

violação do princípio que veda a invocação da própria torpeza ensejadora de

enriquecimento sem causa.

3. Acudindo o terceiro de boa-fé aos reclamos do Estado e investindo em prol

dos desígnios deste, a anulação do contrato administrativo quando o

contratado realizou gastos relativos à avença, implica no dever do seu

ressarcimento pela Administração. Princípio consagrado na novel legislação

de licitação (art. 59, Parágrafo Único, da Lei n.º 8.666/93).

(d) A boa fé na manutenção da equação econômico-financeira.

155

Nesse tópico, talvez temos a incidência mais relevante do dever de boa

fé na relação jurídica contratual regida sob o direito público.

De início, cumpre assinalar que o regime jurídico caracterizador de um

contrato firmado pela Administração como espécie de contrato administrativo

reside na possibilidade legal que é conferida ao gestor público no sentido de

desestabilizar unilateralmente as cláusulas inicialmente ajustadas – em oposição

ao preceito civilista do pacta sunt servanta. 144

Tais prerrogativas são denominadas de “cláusulas exorbitantes” e estão

previstas no art. 58 da citada lei, conferindo o direito ao Poder Público de

unilateralmente modificar e rescindir o contrato, dentre outros poderes.145

Assim sendo, permite-se institucionalmente ao Estado, como parte na

relação contratual, afetar o princípio da boa fé, uma vez que seria defeso à parte

contrária exigir seu componente fundamental, qual seja, um comportamento

previsível de que manterá a conduta inicial tal como se obrigou.

Entretanto, aí é que entraria, como contrapeso à insegurança causada

pela “cláusula exorbitante”, o direito à manutenção do chamado equilíbrio

econômico-financeiro, isto é, do dever de preservar em toda execução

contratual, com ou sem alteração unilateral, a mesma proporção entre os

encargos e o lucro da proposta inicial do contratado.

144 Celso Antônio Bandeira de Mello anota que a doutrina praticamente unânime reconhece esses traços como sendo caracterizadores do chamado “contrato administrativo”, reconhecendo-lhe as mesmas características que lhes são imputadas no Direito francês (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 25ª Edição, p. 612). 145 Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado; II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta Lei;

156

Tal preceito está expressamente previsto em nível constitucional (art.

37, XXI) 146 e legal (art. 58, §§ 1º e 2º, da Lei 8.666/93) 147, o qual, como

verdadeiro limitador no uso dos poderes exorbitantes pela Administração,

obrigará a revisão proporcional e eqüitativa do valor contratual.

Em outras palavras, podemos dizer que a lei garante o direito de

alteração unilateral, o que gera insegurança e incoerência de conduta por si só,

mas garante, como contrapeso, a intangibilidade da condição econômica

inicialmente estabelecida.

Daí sustentar que o direito à manutenção do equilíbrio econômico-

financeiro encontra fundamento na boa fé, no sentido de proteger

patrimonialmente o contratado diante da imprevisibilidade administrativa.

Nesse sentido, intuitivamente já assinalava Celso Antônio: “Com efeito,

o Estado não é especulador e não se pode converter em explorador ganancioso.

Em relação que pressupõe um voluntário atrelamento de vontades

convergentes, onde primam os deveres de lealdade e boa fé, descabe à

Administração procurar esquivar-se ao dever de restaurar o equilíbrio econômico

segundo cujos termos obteve a vinculação espontânea de outrem”. 148

146 XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. 147 §1º. As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado. § 2º. Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual. 148 Contratos administrativo: fundamentos da preservação do equilíbrio econômico-financeiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 211, p. 26, jan/mar 1998.

157

A posição acima ainda é reforçada pelo escólio de Edilson Pereira

Nobre Junior: “A consagração constitucional e legal do equilíbrio econômico-

financeiro dos contratos administrativos, de fundo moral, encontra, sem dúvida,

respaldo no princípio que impõe à Administração agir segundo a boa-fé. (...) Não

se nega, de forma alguma, a competência da Administração, tradicionalmente

reconhecida sob a denominação de cláusulas exorbitantes, em determinar a

rescisão unilateral dos contratos administrativos. Recomenda-se, ao revês, que

seja precedida de maneira equitativa, pena de enfrentar a boa-fé.” 149

E, por derradeiro, vale citar a posição do STJ no curso do julgamento do

RMS 1694/RS, conforme sua ementa a seguir transcrita: “ADMINISTRATIVO -

CONTRATO DE ESTÁGIO EM PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE SAÚDE

PÚBLICA - REMUNERAÇÃO VINCULADA A DOS RESIDENTES MEDICOS - BOA-FÉ

- EQUILÍBRIO ECONÔMICO - CONGELAMENTO - SE O ESTADO, EM CONTRATO

FIRMADO COM ESTAGIÁRIOS, LHES PROMETE REMUNERAÇÃO IGUAL A QUE

PAGA AOS MÉDICOS RESIDENTES, NÃO PODE, NO CURSO DO CONTRATO

ROMPER ESTA IGUALDADE, EM DETRIMENTO AOS ESTAGIÁRIOS. OS

CONTRATOS ADMINISTRATIVOS NÃO ESTÃO IMUNES AOS PRINCÍPIOS DA BOA-

FÉ E DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO.”

(e) A boa fé na aplicação de penalidades decorrentes do contrato

administrativo.

149 Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Editora Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 215/217.

158

A Lei Federal 8.666/93 estabelece que a inexecução total ou parcial do

contratado poderá acarretar, além de sua rescisão, na aplicação de penalidades

administrativas.

A disciplina está contida nos artigos 87 e 88, os quais prevêem as

seguintes sanções: a) advertência; b) multa, c) suspensão temporária de

participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por

prazo não superior a 2 (dois) anos; d) e declaração de inidoneidade para licitar

ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos

determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a

própria autoridade que aplicou a penalidade. 150

150 Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: I - advertência; II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato; III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior. § 1º Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente. § 2º As sanções previstas nos incisos I, III e IV deste artigo poderão ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo processo, no prazo de 5 (cinco) dias úteis. § 3º A sanção estabelecida no inciso IV deste artigo é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessado no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitação ser requerida após 2 (dois) anos de sua aplicação. Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei: I - tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no recolhimento de quaisquer tributos; II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação; III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados.

159

Diante deste quadro, pois, será possível traçar algumas projeções da

boa fé administrativa.

De início, assevera-se que uma das finalidades da aplicação da

penalidades administrativas consiste em registrar o histórico comportamental

daqueles que contratam com o Poder Público. E isto ocorre porque o elemento

confiança, fundamental na relação contratual, desapareceria por completo

quando, pelos registros anteriores, não se poderia mais esperar uma conduta

idônea do promitente executor do pacto.

Nessa alçada, é evidente que a boa fé incide como requisito da

contratação administrativa.

Noutro pólo, a boa fé funcionaria como elemento valorativo para a

Administração exercer o juízo de proporcionalidade na aplicação e na dosimetria

das penalidades.

Como visto, o direito protege o inocente e repulsa a má-fé em diversas

situações, e isto também ocorre na regência dos contratos administrativos.

Destarte, quando a inexecução contratual ocorrer sem a presença da má-fé, a

conseqüência será a eleição de pena mais branda ou até mesmo a exclusão

sancionadora pela irrelevância do comportamento reprovável. E o contrário

também produziria o efeito de valorar o comportamento ofensivo como mais

grave e punível com maior rigor.

Hodiernamente, o entendimento acima encontra ressonância pela

jurisprudência, e um dos exemplos que melhor retrata a posição ora defendida

160

está no julgamento recente do REsp 914087 (DJ 29/10/2007, p. 190), pelo

Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa assim se destaca:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO

DO ART. 87 DA LEI N. 8.666/93.

1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau

assim ementado (fls. 186): DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO

ADMINISTRATIVO. INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE

ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666/93. MANDADO DE SEGURANÇA.

RAZOABILIDADE.

2. Cuida-se de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade

militar que aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em

licitação devido ao atraso no cumprimento da prestação de fornecer os

produtos contratados.

3. O art. 87, da Lei nº 8.666/93, não estabelece critérios claros e objetivos

acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mas por

óbvio existe uma gradação acerca das penalidades previstas nos quatro

incisos do dispositivo legal.

3. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais

relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade,

fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato,

inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem

perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser

informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade

no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual.

161

4. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade

aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87,

da Lei nº 8.666/93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade,

adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do

contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade.

5. Apelação e Remessa necessária conhecidas e improvidas.

162

PARTE III – CONCLUSÃO

Concebendo o Direito de forma sistemática, gravitam em sua órbita e se

inter-relacionam postulados lógicos e normas jurídicas, as quais consubstanciam

regras fechadas de comportamento bem como princípios, sendo estes últimos

veículos abertos que carregam valores penetráveis em todo ordenamento ou a

um determinado regime jurídico.

A boa fé consiste num importante princípio axiológico, que se espraia

em todo ordenamento e também no regime jurídico de direito administrativo.

Contudo, percebe-se que ainda faltam pela doutrina estudos

aprofundados sobre o fenômeno de sua incidência no direito administrativo,

carecendo de metodologia que a descreva aprioristicamente como objeto da

filosofia e da história do direito, que a transporte no regime jurídico de direito

administrativo, e, a partir daí, que se estabeleçam suas diferenças com outros

institutos (pois somente assim seria possível lhe conferir autonomia científica), e,

por fim, que sejam identificadas suas principais aplicações e desdobramentos na

prática jurídica.

Pretendeu-se nesse trabalho, portanto, resgatar as origens da boa fé

para depois analisá-la dentro da esfera do direito administrativo.

No campo da filosofia, os gregos, a fim de minimizar os riscos da

imprevisibilidade da conduta humana (o que atentava contra a vida em

sociedade), conceberam a boa fé como objeto de proteção à promessa, e,

163

portanto, impondo a necessidade da coerência entre a palavra e a ação futura

de cada membro da sociedade. Esse foi germe da boa fé subjetiva.

Avançando sobre o tema, os gregos ainda perceberam que o registro

dos comportamentos na chamada “teia de relações” (conforme a nomenclatura

batizada por Hannah Arendt) permitia, depois de um certo tempo de

observações, identificar certos arquétipos constantes e virtuosos da conduta

humana, os quais deveriam ser praticados pelos membros da sociedade

independentemente de sua vontade. Teciam-se, assim, as primeiras idéias da

boa fé também no seu aspecto objetivo.

Posteriormente, a boa fé passa pela história do direito, se tornando

protagonista no direito romano, que a insere no campo do direito civil, e depois

no direito germânico, que aperfeiçoa seu aspecto objetivo. Seus traços

conceituais, contudo, são os mesmos apreendidos pela filosofia grega.

No Direito Brasileiro, é positivada inicialmente como princípio do direito

civil pelo Código de 1916, mas no aspecto subjetivo. Como princípio geral de

direito, tem início pela Constituição Republicana de 1988, ao tratar do dever de

solidariedade em contraposição às liberdades absolutas. Já em 2002, o Código

Civil a traz de forma abrangente, reproduzindo as principais regras subjetivas e

objetivas da doutrina alemã.

No campo do direito administrativo, tal princípio surge como

conseqüência lógica desse regime jurídico, o qual se baseia num conjunto de

regras e princípios regulador da relação de administração de quem tutela

interesse público indisponível.

164

Assim, se o direito administrativo hodierno funda-se na delegação de

poder do povo para o Estado numa perfeita relação de administração (art. 1º,

parágrafo único, da CF), inegável seria reconhecer que, nessa situação de mero

representante e guardião do interesse coletivo, o dever de boa fé, isto é, o de

corresponder à confiança depositada na tutela de interesse que não lhe

pertence, consiste num princípio fundamental para o exercício da atividade

administrativa.

Por todas essas razões, a boa fé no direito administrativo é influenciada

e colorida singularmente em relação à sua projeção nos outros ramos do direito.

Apresenta conceito próprio que assim pode ser sintetizado: dever de

corresponder à confiança depositada pelo cidadão na tutela do interesse

público, conforme os padrões de conduta exigidos e juridicizados pela

sociedade numa relação de espaço-tempo.

Abrange as acepções objetiva e subjetiva. Por isso inclui a proteção à

confiança, bem como os deveres éticos de fidelidade, lealdade, veracidade e

honestidade, tanto numa relação jurídica especial como, fora dela, diante da

sociedade como um todo.

A boa fé administrativa também adquire propriedade científica quando é

possível diferenciá-la de outros institutos afins, o que justifica ainda mais a

necessidade de seu estudo analítico. Dentre os conceitos diferenciados estão o

desvio de poder, a proporcionalidade, a moralidade, a improbidade, a segurança

jurídica e o dever de boa administração.

165

Por se tratar de princípio com alto grau de abstração, seu âmbito de

incidência na atividade administrativa é muito fértil, sendo infinitas as

possibilidades fáticas nas quais a boa fé pode figurar.

As atividades mais relevantes para o influxo da boa fé e que foram

abordadas neste trabalho dizem respeito ao ato, processo e contrato

administrativos, bem como diante do exercício de competências vinculadas e

discricionárias.

O magno princípio poderá funcionar como motivo bastante para

determinar a invalidação dos atos praticados pela Administração Pública, bem

como para impor sua manutenção ou preservação de seus efeitos.

E tudo isso pode ser constatado nas atividades acima arroladas e ainda

em outras que a dinâmica do direito combinada com a evolução da sociedade

podem revelar.

Daí porque a conclusão final que se pode estabelecer é a de que a boa

fé consiste num princípio fundamental também para o direito administrativo,

sendo notável e extremamente permeável seu âmbito de aplicação. Ademais,

encontra cada dia mais respaldo pela jurisprudência brasileira.

Urge, por tais evidências, sua assimilação ordenada e sistematizada

pelos cultores do direito administrativo, tarefa da qual este trabalho,

modestamente, procurou contribuir.

166

PARTE IV – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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