A autoridade monetária no banco dos réus

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Adriana Teixeira de Toledo

A AUTORIDADE MONETRIA NO BANCO DOS RUS

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, da Universidade Gama Filho, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Mauro Dias

Rio de Janeiro 2005

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... de um Pas sem justia fogem os mais temperantes, os mais ambiciosos e os mais audazes. Porque a audcia, a ambio e a temperana trabalham para a economia, e a economia vive da segurana, cuja base a Justia. Rui Barbosa.

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AGRADECIMENTOS

Todo trabalho seja de que natureza for, acadmico ou no, demanda esforo e dedicao do seu autor. Mas imprescindvel para a concluso de qualquer obra o apoio e incentivo de pessoas prximas. Nesta oportunidade, no poderia deixar de agradecer aos coadjuvantes na realizao deste trabalho. Agradeo em primeiro lugar ao Banco Central do Brasil, Autarquia Federal da qual me orgulho de fazer parte, trabalhando h sete anos como procuradora, e que me inspirou a escrever sobre o tema escolhido. Aos meus colegas e superiores que tanto me ensinam e que, compreensivos, me deram a oportunidade de afastarme das atividades por 3 (trs) meses para a concluso do mestrado, proporcionando um estudo mais percuciente acerca da superviso bancria e suas conseqncias para a Autoridade Monetria. A dois colegas em especial, Jos Eduardo Ribeiro de Assis e Tnia Nigri, aos quais hoje tenho orgulho de chamar de amigos, agradeo por terem me incentivado a ingressar no curso da UNIVERSIDADE GAMA FILHO e que nas horas de aperto no hesitaram em colaborar para que eu encontrasse o caminho de tudo. Honrosa meno deve ser feita ao Professor Francisco Mauro Dias, meu orientador acadmico, que carinhosamente compartilhou das minhas dvidas e foi o guia incansvel na difcil tarefa de elaborar uma dissertao. No poderia deixar de mencionar meus agradecimentos s bibliotecrias da FEBRABAN, Olga e Elza, que me forneceram ajuda inestimvel nas pesquisas realizadas.

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Sempre

presentes,

meus pais

Luiza Toledo

e

Sebastio

Toledo,

fundamentais na realizao de mais este sonho, so os maiores destinatrios dos ideais de tica e transparncia que nortearam a elaborao deste trabalho acadmico. Ao companheiro e amigo Paulo Braga, que durante a realizao do trabalho esteve ao meu lado estimulando-me e acreditando na minha vitria muito mais do que eu mesma, s posso retribuir com amor, pois foi o que, sem dvida, deu-me incontestvel fora para seguir em frente. Agradeo, por fim, a Deus por ter feito me merecedora desta conquista, ao lado destas e de outras pessoas maravilhosas com as quais hoje compartilho o sucesso desta vitria.

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RESUMO

O presente trabalho tem por objeto uma anlise crtica da forma como o Judicirio vem tratando as questes que demandam indenizaes envolvendo a responsabilizao do Banco Central do Brasil em decorrncia das suas atividades de superviso bancria. A responsabilidade civil da Administrao Pblica tema que suscita grande polmica nos meios sociais e jurdicos, por envolver interesses particulares de pessoas de diferentes classes sociais e ao mesmo tempo de interesse pblico, j que envolve gastos do errio, suportado por todos. Agrava-se a situao quando se trata de responsabilidade do Banco Central, cuja atuao tem repercusso na rea econmico-financeira num grande espectro da sociedade capitalista em que vivemos. Chama-nos a ateno, a tendncia nacional dos Tribunais de execrar a Administrao Pblica, partindo da presuno de culpa para os entes estatais, contra todas as justificativas, na maioria das vezes, bastante razoveis se analisadas sob a tica dos princpios condutores da atuao estatal, perseguidores do interesse pblico, com relevante influncia do Poder Discricionrio. No defendemos a imunidade do Estado, mas uma forma de tratamento diferenciada da que vem sendo dada pelo Judicirio s questes de responsabilidade do Banco Central. Nestas hipteses, deve ser feita uma anlise profunda de todos os aspectos envolvidos na questo ftica por pessoas capazes de entender plenamente o mecanismo das atividades desenvolvidas pela Autarquia, sob pena de se prestar erroneamente justia. Esta a razo da importncia da especializao do Judicirio, j adotada em algumas reas, que tm apresentado bons resultados e devem ser copiados na rea financeira. Outro ponto que ser abordado a deficincia da legislao sobre a matria, j detectada pelos especialistas, que trabalham no intuito de apresentar propostas de mudana, em especial das Leis 4.595/64 e 6.024/74.

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SUMMARY

The present paper has the object of making a critical analysis of the form in which the Judicial power has been treating the issues demanding indemnities, involving the responsibility of the Brazilian Central Bank as a consequence of its bank supervision activities. The liability of the Public Administration is a matter which raises large polemics in the social and judicial means, since it involves private interest of people of different social classes and at the same time the public interest, since it involves expenditures from the Revenue, borne by all. The situation becomes even more serious when it comes to the liability of the Central Bank, the action of which has consequences in the economic-financial area reaching a large spectrum of the capitalist society in which we live. Our attention was called by the national trend of the Courts of focusing the Public Administration as guilty, assuming fault of the State entities against all justifications, most of times quite reasonable if analyzed under the optics of the principles guiding the state action, caring for the public interest, with relevant influence of the Discretionary Power. We do not defend the immunity of the State, but a differentiated treatment as compared to that being given by the Judicial Power to the issues of liability of the Central Bank. In theses cases, a deep analysis shall be made covering all aspects involved in the factual issue by persons capable of fully understanding the mechanism of the activities developed by the Autarchy, under the penalty of justice being done erroneously. This is the reason for the specialization of the Judicial Power, already adopted in some areas, which has been showing good results and shall be copied in the financial area. Another point to be covered is the lack of the legislation on the matter, already detected by specialists working to submit proposals of amendments, especially of Laws 4.595/64 and 6.024/74.

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SUMRIO

1 INTRODUO ......................................................................................................11 2 BANCO CENTRAL DO BRASIL ..........................................................................14 2.1 Histrico .............................................................................................................14 2.2 As funes primordiais .....................................................................................17 2.2.1 A poltica monetria ..........................................................................................18 2.2.2 A superviso bancria .....................................................................................19 3 A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAO PBLICA ...............................22 3.1 O instituto da responsabilidade civil ...............................................................22 3.2 A evoluo da responsabilidade estatal .........................................................27 3.2.1 Teoria da irresponsabilidade ............................................................................27 3.2.2 Teoria da responsabilidade com culpa .............................................................28 3.2.3 Teoria da culpa administrativa ..........................................................................29 3.2.4 Responsabilidade objetiva do estado ..............................................................29 3.3 A Evoluo da responsabilidade estatal no ordenamento jurdico brasileiro...........................................................................................................30 3.4 A teoria do risco ................................................................................................32 3.5 As condutas comissiva e omissiva .................................................................34 3.6 Responsabilidade por atos lcitos e ilcitos ....................................................35 3.7 A aplicao nos tribunais: uma indstria de indenizaes ..........................37 4 A RESPONSABILIDADE DO BANCO CENTRAL DO BRASIL NAS INTERVENES E LIQUIDAES EXTRAJUDICIAIS .................................. 40 4.1 A Lei 4.595/64 e a complexidade da atuao do poder fiscalizatrio ...........40 4.2 A Lei 6.024/74 e os instrumentos de atuao da autoridade supervisora... 43 4.2.1 Pressupostos para a interveno e liquidao .................................................44 4.3 A atividade fiscalizadora por outro rgo .......................................................48 4.4 A necessidade de reforma do ordenamento jurdico......................................54 4.5 A modernizao do sistema .............................................................................58 5 A SUPERVISO PELOS BANCOS CENTRAIS ESTRANGEIROS ....................61 5.1 Banco Central Americano........ .........................................................................61 5.2 Banco Central Europeu .....................................................................................62 5.3 Banco Central do Japo ...................................................................................66 6 UMA ANLISE DO CASO COROA BRASTEL ...................................................68 6.1 A origem .............................................................................................................68 6.2 A propositura da ao judicial .........................................................................70 6.3 A defesa do BACEN ..........................................................................................72

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6.4 A provvel soluo do caso .............................................................................78 7 PONTOS POLMICOS .........................................................................................83 7.1 A reforma do judicirio .....................................................................................83 7.2 A falta de uniformizao da jurisprudncia ....................................................84 7.2.1 A smula vinculante .....................................................................................85 7.3 A especializao das varas ..............................................................................87 7.4 O poder discricionrio do BACEN ...................................................................89 8 CONCLUSO ........................................................................................................97 9 REFERNCIAS ....................................................................................................100 ANEXOS - PROJETO DE LEI DO SENADO N 317, DE 2003 - RESOLUCAO 2.554

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LISTA DE ILUSTRAES

Quadro 1

Aes propostas contra o Banco Central do Brasil.............................39

Quadro 2 Volume de Empresas do Mercado Financeiro submetidas a regime especial, sob a Responsabilidade do Banco Central do Brasil ..........48

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BACEN BCE BB BCN BIS BOJ CC CF CPLG FDIC FED OCC SFN STJ STF SUMOC TRF

Banco Central do Brasil Banco Central Europeu Banco do Brasil Bancos Centrais Nacionais, membros da comunidade Europia Bank International Settlements Bank of Japan (Banco Central do Japo) Cdigo Civil Constituio Federal Comit de Superviso Bancria Basilia Federal Deposit Insurance Company (Seguradora do Sistema Financeiro Americano) Federal Reserve (Banco Central Americano) Office of the Comptroller of the Currency (Superintendncia do Controle da Moeda dos EUA) Sistema Financeiro Nacional Superior Tribunal de Justia Supremo Tribunal Federal Superintendncia da Moeda e do Crdito Tribunal Regional Federal

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1 INTRODUO

O estudo a ser desenvolvido tem por objetivo fazer uma anlise crtica a fim de encontrar o melhor tratamento questo da responsabilizao do Banco Central do Brasil pelo exerccio das funes atreladas superviso do SFN Sistema Financeiro Nacional. A preocupao acerca da matria vem do fato de que inmeras aes so propostas diariamente pelos diversos interessados a fim de se ressarcirem pelo Estado dos prejuzos causados pela quebra de instituies financeiras,

principalmente em torno da sua participao nas intervenes e liquidaes extrajudiciais disciplinadas na Lei 6.024/74. No desenvolvimento do trabalho foram abordados os aspectos operacional, legal e jurisprudencial da responsabilizao da autoridade supervisora, considerando principalmente a interdependncia das atividades desta funo com a poltica monetria. O ponto chave da anlise consiste em encontrar soluo para o seguinte questionamento: existindo tantos outros mecanismos de controle dos atos da Administrao Pblica, no seria conveniente restringir as possibilidades de responsabilizao do Banco Central do Brasil por seus atos no tocante s atividades fiscalizadoras, a fim de evitar intimidao na sua atuao e, principalmente, no coibir os abusos da decorrentes? Por outro lado, em respeito ao Estado Democrtico de Direito, o correto no seria mesmo dar tratamento isonmico a todos nestas questes, sem fazer qualquer

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distino em relao, por exemplo, aos entes da Administrao? O estudo dever trazer a melhor resposta. A questo surge da constante prtica, pelos administrados, de tentativas, muitas vezes inescrupulosas, de obter algum tipo de ressarcimento por parte do Estado, mediante argies aleivosas de irregularidade da atuao estatal: se a Administrao Pblica no agiu, teria incidido em responsabilidade por sua omisso; se atuou conforme os ditames da Lei, teria de ser condenada por no ter aguardado momento oportuno para agir... H de se reconhecer que a Administrao, se composta de agentes pblicos competentes, investidos de prerrogativas de agir, por vezes at discricionariamente, deve ter o mnimo de segurana para que seus atos no fiquem, invariavelmente, expostos, no particular, a este tipo de pretenses gananciosas e contrrias ao interesse coletivo, com amparo do prprio Poder Estatal no exerccio da funo de prestar a tutela jurisdicional. Para ilustrar como tem sido tratada a questo, faremos uma anlise detalhada de um caso emblemtico da jurisprudncia brasileira, dentre vrios que envolvem a liquidao das instituies do Grupo COROA BRASTEL, cujo processo judicial ainda no terminou, pendente de julgamento no STF Supremo Tribunal Federal. Seja qual for deciso final a ser proferida, a concluso que fecha a presente dissertao talvez possa contribuir para uma reviso da tendncia jurisprudencial de condenao do Banco Central do Brasil em casos da espcie, com reflexo para o universo de todas as atividades da Administrao Pblica ou, quando menos, para a reviso das prticas tcnico-profissionais adotadas pela Autoridade Supervisora nas medidas interventivas que lhe incumbe tomar por

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misso constitucional. Com esse propsito, foi feita esta anlise da atividade da Autarquia nas suas funes primordiais, a partir da prpria justificativa de sua criao e sua evoluo histrica.

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2 BANCO CENTRAL DO BRASIL

2.1 Histrico

O Banco Central do Brasil, autarquia federal integrante do Sistema Financeiro Nacional, foi criado em 31.12.64, com a promulgao da Lei 4.595/64. Antes da criao do Banco Central, o papel de autoridade monetria era desempenhado pela Superintendncia da Moeda e do Crdito SUMOC, pelo Banco do Brasil BB e pelo Tesouro Nacional. A criao da autoridade monetria no Brasil surgiu com a fundao do BB, por ocasio da chegada da famlia real. Curiosamente, sua funo primordial, conforme exarado no alvar de funcionamento, datado de 12/10/1808, era permitir ao Real Errio realizar os fundos de que depende a manuteno da Monarquia.1 Em 1821 D. Joo VI voltou para Portugal e levou consigo todo o ouro depositado no Banco, causando sua quase bancarrota (no obstante a sua liquidao formal somente tenha ocorrido em 11/12/1829). H entre estas datas um surto de emisso de papel-moeda. Seguiu-se um perodo no qual a emisso de moeda foi novamente controlada e delegada ao setor privado, o que causou uma sucessiva onda de criao e extino de bancos locais. Somente em 1892 o monoplio emissor retornaria ao Banco da Repblica do Brasil, que foi liquidado em 1900. O Banco do Brasil ressurgiu em 1906, aps o saneamento financeiro e oramentrio promovido no Governo de Rodrigues Alves. A instituio reunia as1

O texto do alvar, bem como do estatuto social do Banco do Brasil, se encontra na obra textos polticos da histria do brasil, de Paulo Bonavides e Roberto Amaral.

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funes de banco central e banco comercial. Aos poucos se constatou a necessidade de criar um banco central dedicado exclusivamente s suas atividades prprias. Em 1945, atravs do Decreto-lei 7.293, foi criada a Superintendncia da Moeda e do Crdito (SUMOC), que passou a dividir as atribuies de poltica monetria com o Banco do Brasil. Na exposio de motivos do decreto ficou consignado nas palavras do ento Ministro da Fazenda que:Desencadeado o processo cumulativo da expanso dos meios de pagamento, necessrio considerar, com urgncia, as bases da poltica monetria, instituindo definitivamente, em toda a sua amplitude, o sistema de banco central... Ante a urgncia das medidas, considero aconselhvel a criao imediata de uma Superintendncia da Moeda e do Crdito, com todas as faculdades de um banco central, a qual poder preparar a organizao deste e desempenhar-lhe as funes at a sua criao.2

A SUMOC, criada em 1945 com a finalidade de exercer o controle monetrio, tinha a responsabilidade de fixar os percentuais de reservas obrigatrias dos bancos comerciais, as taxas do redesconto e da assistncia financeira de liquidez, bem como os juros sobre depsitos bancrios. Alm disso, supervisionava a atuao dos bancos comerciais, orientava a poltica cambial e representava o Pas junto a organismos internacionais. A SUMOC nascia com o firme propsito de preparar o mercado financeiro para a criao do Banco Central do Brasil; no obstante, no incio da dcada de 60 ele ainda no havia sido criado, e o Brasil era um dos poucos pases que ainda no tinham tomado esta atitude. A situao foi resolvida com a edio da Lei 4.595/64, logo no incio do regime militar. Esta lei reordenou o Sistema Financeiro Nacional, criando o Banco Central e o Conselho Monetrio Nacional. Num primeiro momento, parecia que a idia era dar verdadeira autonomia ao BACEN, ao determinar, para a maioria dos seus dirigentes, mandatos fixos de sete anos, no podendo ser demitidos ad nutum.2

MAGALHES, Augusto F. R de. Os bancos centrais e sua funo reguladora da moeda. Rio de Janeiro: A Casa do Livro, 1971, p. 126.

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Entretanto, no regime militar, quando o Marechal Costa e Silva ascendeu ao poder, a regra foi invalidada destituindo-se o presidente do Banco Central, ento, Dnio Nogueira, para ser substitudo por Ruy Aguiar da Silva Leme, numa inequvoca manifestao da falta de autonomia da instituio. Nesta confusa delimitao de poderes, mantinha-se nas mos do Banco do Brasil competncia de autoridade monetria, apresentando-se mais forte do que o prprio Banco Central. Somente com o Decreto no 2.284, de 10 de maro de 1986 que tal situao foi alterada, com a extino da clebre Conta Movimento, mediante a qual o BB sacava automaticamente, junto ao BACEN, reservas para fazer frente s despesas do Estado. A noo de que o Pas precisava de uma nica e forte autoridade monetria veio se consagrar na Constituio de 1988, que estabeleceu dispositivos importantes para a atuao do Banco Central, dentre os quais destacam-se o exerccio exclusivo da competncia da Unio para emitir moeda e a exigncia de aprovao prvia pelo Senado Federal, em votao secreta, aps argio pblica, dos nomes indicados pelo Presidente da Repblica para os cargos de presidente e diretores da instituio. Alm disso, vedou ao Banco Central a concesso direta ou indireta de emprstimos ao Tesouro Nacional. A Constituio de 1988 previa, ainda, em seu artigo 192, a elaborao de uma lei complementar do Sistema Financeiro Nacional, que deveria substituir a Lei 4.595/64 e redefinir, assim, as atribuies e a estrutura do Banco Central do Brasil. Em 29 de maio de 2003, a promulgao da Emenda Constitucional n 40, trouxe mudanas em sua redao, pluralizando a edio daquele processo legislativo para os fins mencionados, com o seguinte texto:Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do Pas e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compem, abrangendo as

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cooperativas de crdito, ser regulado por leis complementares que disporo, inclusive, sobre a participao do capital estrangeiro nas instituies que o integram.

Atualmente, tramita no Congresso, o Projeto de Lei 317/2003, que visa dar novas diretrizes atuao do BACEN, com intuito de implementar um modelo de banco central mais autnomo3. (Anexo A)

2.2 As funes primordiais

As funes tpicas de um banco central, em qualquer pas, tiveram uma evoluo gradual, sempre atrelada ao desenvolvimento econmico e s constantes mudanas dos sistemas financeiros, de acordo com a evoluo monetria e creditcia. Em decorrncia da evoluo histrica, que proporcionou o surgimento dos bancos centrais em grande parte do mundo, tais entidades exercem funes consideradas clssicas de uma Autoridade Monetria, que so: emisso da moeda, execuo de servios do meio circulante, fiscalizao das instituies financeiras e operaes de mercado aberto. Historicamente, tm-se, ainda, as funes de administrador das reservas estrangeiras, gestor da poltica monetria, da poltica cambial e da poltica de crdito. O Banco Central do Brasil possui todas estas funes, previstas no art. 10 da Lei 4.595 de 1964. Neste trabalho daremos enfoque s funes de superviso bancria e poltica monetria. A primeira por constituir objeto principal do estudo e a segunda por ser considerada a mais relevante da Autarquia. Alm disso, as duas funes esto intimamente interligadas, e suas diretrizes influenciam na eficincia e na conduo uma da outra.3

A autonomia confere o poder de escolha das diretrizes a serem geridas pela Autarquia. No modelo atual, esta escolha feita pelo Conselho Monetrio Nacional CMN.

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Ao longo do trabalho, veremos como esta vinculao ocorre e o por qu de tanta discusso em torno da separao das funes.

2.2.1 A Poltica Monetria

Os objetivos primordiais de um Banco Central tais como o controle da estabilidade da moeda, a sua emisso e a manuteno da estabilidade financeira, esto atrelados Poltica Monetria, sendo sua principal funo a execuo eficiente desta poltica. Por sua vez, uma poltica monetria estvel vincula-se de forma diretamente proporcional sade do sistema financeiro, que cuidado atravs da difcil tarefa de superviso dos bancos. As autoridades responsveis pela conduo da poltica

monetria de um pas que no possua um sistema financeiro slido sofrero severas restries no cumprimento de suas atribuies. No caso brasileiro, pode-se afirmar que a estabilidade do Sistema Financeiro Nacional a garantia de sucesso do Plano Real. No existe moeda forte sem um sistema bancrio igualmente forte. No por outra razo que a Lei 4.595, que criou o Banco Central, atribuiu-lhe simultaneamente as funes de zelar pela estabilidade da moeda e da liquidez e solvncia do sistema financeiro. Para tanto, so diversos os instrumentos utilizados pela Autarquia no exerccio da Poltica Monetria, a exemplo da taxa de juros, o recolhimento compulsrio, as taxas de redesconto e as operaes de compra e venda de ttulos pblicos. to delicado o desenvolvimento desta funo que, para a maioria dos experts em poltica econmica, deve ser desenvolvida pelo Banco Central com

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exclusiva prioridade, sem interferncia de qualquer outro objetivo. Esta concepo sentida nas palavras do ex-presidente do BACEN, ARMNIO FRAGA NETO:Para o BC cumprir seu papel, fundamental que no haja dominncia de outros objetivos. Entenda-se por dominncia a existncia de algum outro objetivo que predomine sobre o objetivo bsico de fornecer sociedade uma ncora nominal. No pode haver dominncia fiscal (usar taxa de juros para reduzir o dficit pblico), cambial (ter determinada taxa de cmbio como objetivo) ou financeira (tolerar inflao por temer crise financeira).4

2.2.2 A Superviso Bancria

Embora no se apresente, necessariamente, como funo exclusiva de Banco Central, como bem nota ROSA MARIA LASTRA5, havendo Bancos Centrais que no exercem esta funo ou a dividem com outro rgo, como o caso dos Estados Unidos, a fiscalizao do Sistema Financeiro est intimamente ligada ao papel que exerce a Autoridade Monetria. No Brasil, a superviso das instituies financeiras privativa do Banco Central, conforme o disposto no art. 10 e incisos da Lei 4.595/64. Assim, o Banco Central brasileiro tem a atribuio legal do exerccio da fiscalizao das instituies que compem o SFN, aplicando-lhes as penalidades previstas, nela compreendendo-se a competncia de conceder autorizao aos bancos para funcionamento no Pas, para instalar ou transferir suas sedes ou dependncias, ainda que no exterior, para serem transformadas, fundidas, incorporadas ou encampadas, para praticar operaes de cmbio, crdito real e venda de ttulos e valores mobilirios, para ter seus prazos de funcionamento prorrogados e alterar seus estatutos. Tambm abrangendo-o estabelecer condies para a posse e exerccio de quaisquer cargos de administrao das instituies4 5

Folha de S. Paulo, 10.11.2002, p. A3. LASTRA, Rosa Maria. Banco Central e regulamentao bancria. Editora Del Rey, 2000, p.204205.

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privadas, como para o de quaisquer funes em rgos consultivos, fiscais e semelhantes. Como se v, bastante complexa a atividade de superviso do sistema financeiro, cujos objetivos supem as atividades de acompanhamento da situao econmico-financeira, a vigilncia permanente dos mercados e das pessoas que neles interferem e a verificao dos procedimentos adotados pelas instituies. Comenta a funo fiscalizadora do rgo JOS ANTONIO BERARDINELLI VIEIRA, ex-Diretor de Administrao do BACEN: A ao fiscalizadora e controladora do Banco Central tem por objetivos principais a estabilizao e a solidez do sistema, o aperfeioamento dos instrumentos financeiros e das instituies, no resguardo dos investidores e credores.6 Alm dessa extensa lista de atribuies da autoridade fiscalizadora, so raras as iniciativas por parte dos bancos na busca de metodologias de atuao estveis e que tragam mais segurana para o sistema. No se importando as instituies em implementar procedimentos que, independentemente da exigncia da autoridade, lhes seriam teis. Este comportamento acentua o problema da falta de regulamentao adequada, que carece de maior abrangncia e, inevitavelmente, leva a uma deficincia na superviso dessas instituies. Por outro lado, h que se reconhecer um grande esforo que vem sendo empreendido pelo BACEN, pelo menos a partir de 1998, com a edio da Resoluo 2.554 (Anexo B), exigindo dos bancos a adoo de controles nos moldes previstos nos princpios para controles internos estabelecidos pelo Comit da Basilia7.

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VIEIRA, Jos Antnio Berardinelli. Banco Central do Brasil: Organizao e Funcionamento. Braslia: BACEN, 1978, p. 125. O Comit de Superviso Bancria Basilia - CPLG, mantido pelo BIS Bank International Settlements, formado por autoridades de superviso autnoma e bancos centrais dos pases pertencentes ao G-10, de economia mais desenvolvida, e tornou-se referncia na elaborao de padres a serem seguidos internacionalmente em matria de superviso de sistemas financeiros.

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Sobre a aplicao destes princpios, afirmou CHESTER B. FELDBERG, Vice-Presidente Executivo do Grupo de Superviso Bancria do Federal Reserve Bank of New York - FED: Fortes sistemas de gesto de riscos e controles internos efetivos esto entre as mais importantes defesas que um banco pode ter contra mau gerenciamento, fraude e, finalmente, insolvncia.8 A adoo dos mencionados princpios se apresenta como meio eficaz para suprir as lacunas da legislao sobre as atividades do sistema, coibindo as prticas no desejadas e amparando, de forma prudente, o desenvolvimento da atividade de superviso pela autoridade responsvel.

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The Basic Elements of Bank Supervision, p. 43. No original: Strong risk management systems and effective internal controls are among the most important defenses a bank can have against mismanagement, fraud, and ultimately, failure. (traduo livre da autora)

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3 A RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAO PBLICA

Neste captulo, ser feita a abordagem do instituto conceitual do tema da responsabilizao da Autarquia Supervisora do SFN. Exporemos, inicialmente, os elementos da responsabilidade civil no mbito geral, tratando em seguida da sua evoluo na esfera pblica, finalizando com os parmetros estabelecidos no ordenamento jurdico atual e na jurisprudncia ptria.

3.1 O instituto da responsabilidade civil

A responsabilidade civil surge em face do descumprimento obrigacional, pela desobedincia de uma regra estabelecida em um contrato, ou por deixar, determinada pessoa, de observar um preceito normativo que regula dever jurdico. Segundo MARIA HELENA DINIZ, a responsabilidade civil est relacionada: A aplicao de medidas que obriguem algum a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razo de ato prprio imputado, de pessoas por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva) ou, ainda, de simples imposio legal (responsabilidade objetiva).9 O conceito de responsabilidade sempre esteve relacionado leso do direito, segundo ensinava h muito tempo o clssico SANTIAGO DANTAS: Quando que existe leso do direito? Existe em todas as vezes que o direito de algum frustrado pela circunstncia de no ser cumprido o dever jurdico que a ele correspondia. ...................................................................................................... ....................

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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume VII. Responsabilidade Civil. So Paulo: Editora Saraiva, 12 Edio, 1998, p. 34.

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Esta noo de leso do direito fundamental para compreender-se bem o tema que se passar a estudar, o tema da defesa dos direitos. Sempre que se verifica uma leso do direito, isto , sempre que se infringe um dever jurdico correspondente a um direito, qual a primeira conseqncia que da advm? J se sabe: nasce a responsabilidade.10 Nesse contexto, tem-se inicialmente, a responsabilidade civil contratual situada no mbito da inexecuo obrigacional e com o dever de cumprir com o pactuado. Regra j prevista no Direito Romano, a fora obrigatria dos contratos traz o princpio pelo qual as clusulas contratuais devem ser respeitadas rigorosamente, sob pena de responsabilidade daquele que as descumpre, por dolo ou culpa. O contrato faz lei entre as partes, podendo o seu inadimplemento gerar perdas e danos. O fundamento principal desta regra, na atual lei codificada brasileira, est no artigo 389 do Novo Cdigo Civil, que equivale ao artigo 1.056 do Cdigo Civil de 1.916.11 Paralela responsabilidade contratual, est a responsabilidade civil extracontratual oriunda do desrespeito ao direito alheio e s normas que regem a conduta, ou seja, a inobservncia de qualquer regra legal pode caracterizar esta responsabilidade, que tem previso nos artigos 186 e 927, caput, do Cdigo Civil atual. Pela doutrina clssica francesa e pela traduo do art. 1.382 do Cdigo Napolenico, os elementos tradicionais da responsabilidade civil so a conduta do agente (comissiva ou omissiva), a culpa em sentido amplo (englobando o dolo e a culpa stricto sensu), o nexo de causalidade e o dano causado.

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DANTAS, Santiago. Programa de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 376. O artigo 1.056 do Cdigo Civil de 1.916 foi objeto da obra intitulada Da Inexecuo das Obrigaes e suas Conseqncias. 5 ed., So Paulo: Saraiva, 1980, de autoria do Professor AGOSTINHO ALVIM.

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Seguindo esta concepo, nosso Direito Civil consagra como regra geral a responsabilidade com culpa, tida como responsabilidade civil subjetiva. Essa era a regra geral anterior e, agora, mantida na Lei n 10.406, de 2002. Ocorre que, em algumas situaes concretas, provar a culpa desnecessrio; pois h hipteses em que se aplica a inverso do nus da prova, cabendo ao ru provar que no agiu com culpa. Este fato no transmuda a natureza da responsabilidade subjetiva para objetiva. Questo interessante em torno dos elementos da caracterizao da responsabilidade a exigncia do dano, ou seja, o ato ilcito nunca ser de mera conduta, sempre haver um delito material, pois o dano o elemento determinante do dever de indenizar. Sem o dano no haver responsabilidade. E o que seria o dano? A histria mostra que o instituto evoluiu, pois se conceituava o dano como sendo a efetiva diminuio do patrimnio da vtima, no alcanando, portanto, o dano moral que no passado no era indenizvel (hoje expressamente reconhecido no art.186 do CC). Atualmente, considera-se o dano como sendo a subtrao ou diminuio de um bem jurdico, qualquer que seja sua natureza. Assim, dano leso de um bem jurdico, vindo da a diviso do dano em patrimonial ou moral. H quem critique a redao do art. 927 do Cdigo Civil por no incluir a indenizao decorrente do ato ilcito que simplesmente violar direito, sem causar dano, pois a norma exige a prtica de ato ilcito causador de dano para criar o dever reparatrio, fugindo, segundo os crticos, o ordenamento jurdico do seu verdadeiro intuito de proteger o lcito e reprimir o ilcito. Nesse campo, importa atentar para a circunstncia de que s se considera ato jurdico o ato que produz efeitos, seja lcito ou ilcito, no podendo o

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ordenamento se preocupar em disciplinar um ato inexistente no mundo jurdico, ou seja, o nada. Afastando a regra da responsabilidade subjetiva como preceito mximo, o Direito Comparado - principalmente o Direito Francs, precursor da maior parte das idias socializantes -, passou a admitir uma outra modalidade de responsabilidade civil, aquela sem culpa. Segundo nos informa CAIO MRIO, dos estudos de SALEILLES e JOSSERAND, pela aplicao da Teoria do Risco12, surgem, no ano de 1897, as primeiras publicaes sobre a responsabilidade civil objetiva. O estrondo capitalista sentido na Europa com a chamada Segunda Revoluo Industrial, precursora de um novo modelo produtivo, trouxe conseqncias jurdicas importantes: pela Teoria do Risco iniciaram-se os debates para responsabilizao daqueles que fornecem atividades coletividade. Verificouse, a par dessa industrializao, uma maior atividade estatal, bem como a explorao econmica na sociedade massificada, o que justificaria a aplicao daquela teoria emergente. Mesmo com resistncias na prpria Frana, a teoria da responsabilidade sem culpa vingou no Direito Comparado, atingindo tambm a legislao do nosso Pas. O art. 15 do Cdigo Civil de 1.916 representa a primeira tentativa moderna em consagrar a nova regra, trazendo a responsabilidade civil do Estado por atos comissivos de seus agentes. Emerge, portanto, a responsabilidade civil por ato de outrem, conceito ligado responsabilidade sem culpa.

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PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Aponta que entre os franceses a conscientizao da teoria do risco deu-se porque no mais se acreditava na efetividade da teoria da culpa, insuficiente pelas mudanas sociais sentidas no comeo do sculo na Europa. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 4 Edio, 1993, p. 19.

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Em complemento a tal dispositivo civil, a Norma Fundamental em vigor13, em seu art. 37, 6, refora a responsabilidade civil objetiva do Estado, regra geral no nosso ordenamento jurdico aplicada aos entes pblicos, precursoramente a contar da Constituio de 1946. Interessante aferir, nesse contexto, que o Poder Pblico foi o primeiro ente atingido pela responsabilidade sem culpa, porque pela amplitude de sua atuao frente aos cidados, passou a criar riscos de eventuais prejuzos. Verdade que em nosso Pas, o aperfeioamento destes direitos sociais dse, sobretudo aps o Milagre Brasileiro dos anos 70, com a massificao das atividades privadas e o incremento do movimento consumerista. Em 1985, surge a Lei 7.347, que possibilita a defesa coletiva, intentada por rgos legitimados, como o Ministrio Pblico. Aps, a Constituio de 1988 trouxe em seu bojo todas as tendncias socializantes, a defesa dos consumidores como norma principiolgica, a reparao de danos imateriais ou morais, o conceito de funo social da propriedade e os direitos naturais da pessoa humana. Mais tarde, em 1990, o Cdigo de Defesa do Consumidor consagra a responsabilidade sem culpa como princpio inerente defesa dos vulnerveis nessa relao negocial. Com tal previso, pode-se concluir que houve a consagrao da responsabilidade sem culpa tambm nas relaes privadas. Ao lado do movimento consumerista, surgiu no Direito Comparado a tendncia de proteo do Bem Ambiental, tendo como fiel escudeira a responsabilidade sem culpa dos causadores de danos ambientais. No Brasil, a previso legal de responsabilidade civil objetiva por danos ao meio ambiente anterior prpria Lei Consumerista, pela regra sintomtica do art. 14, 1, da Lei 6.938, de 1.981.

13

Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988.

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Mais recentemente, os ambientalistas encontraram reforo legal na Lei da Ao Civil Pblica, e tambm na Constituio Federal, que traz a proteo ao meio ambiente como norma fundamental, sem prejuzo de outras legislaes ordinrias que previam a imputao penal por crimes contra o ambiente natural e artificial.

3.2 A evoluo da responsabilidade estatal

A responsabilidade da Administrao Pblica, que, como visto, encontra-se entre os casos de responsabilidade objetiva previstos em nossa legislao, passou por uma longa e vagarosa evoluo at chegar ao estgio atual. Os passos desta evoluo so explicados em todos os textos doutrinrios que pesquisamos sobre o assunto, mostrando a influncia do Direito francs nesta conquista. A clareza do professor SRGIO CAVALIERI FILHO14 e a magistral prtica de SILVIO DE SALVO VENOSA15 nos ajudaram a delimitar as caractersticas de cada fase, as quais passo a expor.

3.2.1 Teoria da irresponsabilidade

Na poca do Estado absolutista vigorou o princpio da irresponsabilidade, pois a simples idia da responsabilizao pecuniria do Estado era vista como um entrave perigoso execuo de suas atividades. As expresses: O rei no erra e O que agrada ao prncipe tem fora de lei retratam aquela fase. Desse modo,

14

CAVALIERI FILHO, Srgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2004. 15 VENOSA, Slvio de Salvo. Responsabilidade Civil. 3 ed. So Paulo: Atlas Editora, 2003.

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qualquer responsabilidade seria imputada ao prprio agente pblico, o que fazia com que a maioria das aes de indenizao resultasse frustrada, tendo em conta a insolvncia dos funcionrios. Com o tempo, a noo de que o Estado era o ente todo-poderoso, confundida, nesse particular, com a velha teoria da intangibilidade do soberano, e que o tornava insuscetvel de responsabilidade quando causasse danos, foi substituda pela do Estado de Direito, segundo a qual deveriam ser atribudos a ele os direitos e deveres comuns de pessoas jurdicas.

3.2.2 Teoria da responsabilidade com culpa

Surge, ento, a teoria da responsabilidade com culpa, na qual se aceita a constatao de obrigao por parte do Estado no caso de ao culposa do seu agente. Entretanto, passava-se a distinguir, para esse fim, dois tipos de conduta estatal: os atos de imprio, dos quais no adviriam quaisquer responsabilidades, porque uma vez decorrentes do poder soberano do Estado seriam regulados pelas normas tradicionais de direito pblico, sempre protetivas do ente estatal; e os atos de gesto, que se aproximando mais dos atos de direito privado poderiam dar ensejo responsabilizao da Administrao Pblica. Logicamente, tal distino provocou grande inconformismo entre as vtimas de atos estatais, porque nem sempre era fcil distinguir qual a natureza do ato. Alm deste critrio duvidoso, a Jurisprudncia procurava separar as faltas dos agentes atreladas s funes estatais e as dissociadas da sua atividade, trazendo ainda maior dificuldade na responsabilizao.

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3.2.3 Teoria da culpa administrativa

Suprimindo a distino mencionada, surge a teoria da culpa administrativa, consagrada por PAUL DUEZ16, segundo a qual o lesado no precisava identificar o agente estatal causador do dano. Bastava-lhe comprovar o mau funcionamento do servio pblico, mesmo que fosse impossvel apontar o agente que o provocou, denominando-se o fato como culpa annima ou falta do servio. A falta do servio apresentava-se de trs formas: a inexistncia do servio, o mau funcionamento do servio ou o retardamento do servio. Em qualquer hiptese a falta do servio implicava o reconhecimento da existncia de culpa, ainda que atribudo ao servio da Administrao. Para a constatao de responsabilidade do Estado, cabia ao lesado o nus de provar o elemento culpa.

3.2.4 Responsabilidade objetiva do estado

Na ltima fase desta evoluo, surge a responsabilidade objetiva do Estado, independente de qualquer falta ou culpa do servio, desenvolvida no terreno prprio do Direito Pblico. Chegou-se a essa posio com base nos princpios da eqidade e da igualdade de nus17 e encargos sociais. Se a atividade que a Administrao desenvolve em prol de toda a coletividade, justo tambm que todos respondam pelos seus nus, pois se afigura injusto fazer com que um ou apenas alguns administrados sofram todas as conseqncias danosas da atividade administrativa.16

DUEZ, Paul. Autor francs, que escreveu a obra La responsabilit de la Puissance Publique, a quem se deve a sistemtica apresentao das trs modalidades da faute du service. 17 Para MELLO, Celso Antnio Bandeira de. o fundamento da responsabilidade estatal garantir uma equnime repartio dos nus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando que alguns suportem prejuzos ocorridos por ocasio ou por causa de atividades desempenhadas no interesse de todos. De conseqente, seu fundamento o princpio da igualdade, noo bsica do Estado de Direito. Curso de Direito Administrativo. 15a edio, Malheiros Editores, p. 866.

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3.3 A Evoluo da responsabilidade estatal no ordenamento jurdico brasileiro

No Brasil, no passamos pela fase da irresponsabilidade do Estado, pois mesmo falta de dispositivo legal especfico, a tese da responsabilidade do Poder Pblico sempre foi aceita como princpio geral e fundamental de Direito. A Constituio de 1824, em seu art. 178, n 29, estabelecia que Os empregados pblicos so estritamente responsveis pelos abusos e omisses praticados no exerccio de suas funes, e por no fazerem efetivamente responsveis aos seus subalternos. A Constituio de 1891, em seu art. 79, continha disposio idntica responsabilizando os funcionrios pblicos pelos abusos e omisses em que incorressem no exerccio das suas atribuies. Entretanto, tais dispositivos jamais foram considerados como excludentes da responsabilidade do Estado e sim consagradores da responsabilidade pessoal do funcionrio. Entendia-se haver solidariedade do Estado em relao aos atos de seus agentes. Cuidava-se da responsabilidade fundada na culpa civil, para cuja caracterizao era indispensvel a prova da culpa do funcionrio. A primeira vez em que houve expressa regulamentao sobre

responsabilidade civil do Estado foi quando editado o Cdigo Civil de 1916, que em seu art. 15 dispunha: As pessoas jurdicas de Direito Pblico so civilmente responsveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrrio ao Direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano". A norma, apesar de ambgua, fez prevalecer entendimento na doutrina de

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que a natureza da responsabilidade estatal era subjetiva18, com base na teoria da culpa, ainda com base na idia da representatividade do Estado pelo funcionrio. Ainda na vigncia do mencionado art. 15 do CC de 1916, alguns autores, valendo-se da mesma ambigidade, inspirados nas idias dos autores europeus, principalmente na Frana, sustentavam a tese da responsabilidade objetiva19 do Estado, que dispensa o elemento subjetivo para sua caracterizao. Finalmente, na Constituio de 1946, em seu art.194, foi expressamente acolhida em nossa ordem jurdica a teoria da responsabilidade objetiva: As pessoasjurdicas de Direito Pblico Interno so civilmente responsveis pelos danos que os seus funcionrios, nessa qualidade, causem a terceiros. A meno ao elemento culpa surgia

apenas no seu pargrafo nico para tratar da ao regressiva contra seu servidor, da a concluso de que a ao a ser proposta pela vtima contra o Estado tinha natureza diversa, porque dispensava o elemento subjetivo. Aps sua introduo no texto constitucional brasileiro, a regra da responsabilidade objetiva foi reproduzida em todas as Constituies, at mesmo nas de 1967 e 1969, outorgadas pelo regime militar, definindo-se como de natureza objetiva a responsabilidade estatal, com fulcro na teoria do risco administrativo, em que apenas se cogita da relao de causalidade entre o fato e o dano. Ou seja, provado que o dano sofrido pelo particular conseqncia da atividade administrativa, o dever de indenizar da Administrao impor-se- por fora do dispositivo constitucional que consagrou o princpio da igualdade dos indivduos diante dos encargos pblicos. Atualmente, a Constituio de 1988 disciplina em seu art. 37, pargrafo 6o, que:18 19

Responsabilidade subjetiva: elementos fato + dano + nexo + culpa/dolo. Responsabilidade objetiva: elementos fato + dano + nexo.

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As pessoas jurdicas de direito pblico e as de direito privado, prestadoras de servios pblicos respondero pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsvel nos casos de dolo ou culpa.

Em verdade, a responsabilidade estatal conseqncia lgica, inevitvel da noo de Estado Democrtico de Direito. A sujeio de todos ordem jurdica posta base de sustentao do direito constitucional, de modo que aquele que causa leso a outros est obrigado a reparar o dano, incluindo-se a o Estado.

3.4 A teoria do risco

Vrias teorias foram lanadas a fim de justificar a responsabilidade do Estado na sua atuao administrativa: a da culpa administrativa, a do risco administrativo e a do risco integral, tendo ampla aceitao na doutrina a teoria do risco administrativo. A expresso nessa qualidade, inserta na norma constitucional vigente, evidencia que o constituinte adotou da expressamente a teoria estatal, do risco

administrativo

como

fundamento

responsabilidade

porquanto

condicionou a responsabilidade objetiva do Poder Pblico ao dano decorrente de sua atividade. Assim, a responsabilidade da Administrao estar plenamente

caracterizada quando houver relao de causa e efeito entre a atividade do agente pblico e o dano sofrido pelo administrado, sem exigncia do elemento subjetivo. Por outro lado, o Estado no responder quando o dano decorrer de fato praticado pelo agente fora do exerccio das suas funes, quando decorrer de fato exclusivo da vtima, caso fortuito ou fora maior e fato de terceiro, porque nestas hipteses no haver o elemento nexo. Caso contrrio, se mantivesse a responsabilizao da Administrao nas

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condies em que no se verifica o nexo de suas aes com o dano, estar-se-ia adotando a teoria do risco integral, rejeitada na maioria dos ordenamentos jurdicos, por se tratar de forma abusiva de responsabilizao do ente estatal. Ao contrrio, a teoria do risco administrativo baseia-se no risco que a atividade pblica gera para os administrados e na possibilidade de lhes causar danos, impondo a alguns membros da comunidade um sacrifcio ou nus suportado pelos demais. Para RUI STOCO, esta teoria funda-se na necessidade de recuperar o equilbro afastado na ocorrncia de leso pela Administrao:Para compensar essa desigualdade criada pelo prprio Estado, todos os demais componentes da comunidade devem ocorrer para a reparao do dano individual. O risco e a solidariedade social so, pois, segundo anotou Onofre Mendes Jnior (Natureza da responsabilidade da administrao pblica, 1951, p. 142), os suportes dessa doutrina que, por sua objetividade e partilha de encargos, conduz mais perfeita justia distributiva, razo pela qual tem merecido o acolhimento dos estados modernos, inclusive no Brasil, que a consagrou pela primeira vez no art. 194, da Constituio Federal de 1946.20

Resta observar que, segundo a melhor doutrina, decorrente da teoria do risco a natureza objetiva - e no subjetiva - da responsabilidade da Administrao Pblica, que dever arcar com os danos causados por sua atividade,

independentemente de culpa. Para esta teoria, o que deve ser pesquisado a simples relao de causalidade entre o ato do agente pblico e a leso. O dano sofrido pelo indivduo deve ser visualizado como conseqncia do funcionamento do servio pblico, no importando se esse funcionamento foi bom ou mau. Ou seja, independe da verificao da qualidade do servio pblico a responsabilidade da Administrao, quando esta causar dano. Trata-se da fora do princpio da igualdade dos nus, que, segundo CAIO20

STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretao Jurisprudencial. 2 edio Revista e Ampliada. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 314.

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MRIO DA SILVA PEREIRA21, exige a reparao do dano, pois a forma democrtica de distribuir por todos a respectiva conseqncia conduz imposio pessoa jurdica do dever de reparar o prejuzo causado.

3.5 As condutas comissiva e omissiva

Importante o registro de que a atividade administrativa a que alude o art. 37, pargrafo 6o da Constituio, a princpio, engloba no s a conduta comissiva como tambm a omissiva, em que pese haver doutrina, capitaneada por CELSO ANTNIO BANDEIRA DE MELLO, sustentando a responsabilidade subjetiva para as atividades de conduta omissiva da Administrao. Para o constitucionalista, no podemos generalizar, devendo a anlise partir do ponto da caracterizao da causa ou condio da leso:Quando o dano foi possvel em decorrncia de uma omisso do Estado (o servio no funcionou ou funcionou tardia ou ineficientemente) de aplicarse a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado no agiu, no pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E se no foi o autor s cabe responsabiliz-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto : s faz sentido responsabiliz-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar o evento lesivo. Deveras, caso o Poder Pblico no estivesse obrigado a impedir o acontecimento danoso, faltaria razo para impor-lhe o encargo de suportar patrimonialmente as conseqncias da leso. E conclui o prof: Logo, a responsabilidade estatal por ato omissivo sempre responsabilidade subjetiva, pois no h conduta ilcita do Estado (embora do particular possa haver) que no seja proveniente de negligncia, imprudncia ou impercia (culpa) ou, ento, deliberado propsito de violar a norma que o constitua em dada obrigao (dolo). Culpa e dolo so justamente as modalidades de responsabilidade subjetiva.22

Segundo a opinio de SRGIO CAVALIERI FILHO23, neste ponto preciso distinguir se a omisso genrica ou especfica, apenas se enquadrando na responsabilidade subjetiva a primeira. E acrescenta trecho da obra de Guilherme21 22

PEREIRA, Caio Mrio da Silva. Instituies de Direito Civil. Forense: Rio de Janeiro, 1966, p.466. MELLO, Celso Antnio de Bandeira. Prestao de Servios Pblicos e Administrao Indireta. 2a ed., So Paulo, Ed. RT, 1979, p. 144-145. 23 CAVALIERI FILHO, Srgio. Programa de Responsabilidade Civil. 5 ed., So Paulo: Malheiros, 2004, p.248.

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Couto de Castro onde o autor afirma:no ser correto dizer, sempre, que toda hiptese de dano proveniente de omisso estatal ser encarada, inevitavelmente, pelo ngulo subjetivo. Assim o ser quando se tratar de omisso genrica. No quando houver omisso especfica, pois a h dever individualizado de agir.

Os Tribunais tm reconhecido a omisso especfica do Estado quando a inrcia administrativa a causa direta e imediata do no impedimento do evento, como nos casos de morte de detento em penitenciria e acidente com aluno de colgio pblico durante perodo de aula. Ou seja, s existe responsabilidade objetiva se o ato da Administrao for causa do dano. Se for apenas condio do dano, a responsabilidade ser dependente da demonstrao de culpa. A polmica, aqui apontada, em torno da natureza da responsabilidade estatal, evidencia um tanto da dificuldade de aplicao do instituto, que se apresenta de tal relevncia nos dias de hoje a ponto de embaraar o desenvolvimento das atividades pblicas em todas as suas esferas.

3.6 Responsabilidade por atos lcitos e ilcitos

De uma outra viso, observa a Doutrina que defende o binmio da responsabilidade objetiva/subjetiva, que a dplice existncia est na prpria fundamentao da responsabilidade. Conforme ensinamento de BANDEIRA DE MELLO24, a justificativa da responsabilidade administrativa, no caso de

comportamentos lcitos, a j mencionada repartio equnime dos nus provenientes de atos ou efeitos lesivos, enquanto, para os comportamentos ilcitos dos agentes pblicos, o princpio fundamental o da legalidade. Curiosa outra distino, feita por alguns autores, imputada s expresses

24

MELLO, Celso Antnio de Bandeira. Elementos de Direito Administrativo. Ed. RT, S. Paulo, 1980, p. 252-253.

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ressarcimento e indenizao, que seriam modos de compensao financeira distintos para atos lcitos e ilcitos, respectivamente. Segundo a narrao de FERNANDO FACURY SCAFF, A conseqncia prtica desta diferenciao se encontra no montante devido a ser pago ao prejudicado pelo ato danoso. No ressarcimento apenas se cobre a perda econmica ocorrida, havendo compensao de direitos. J na indenizao h um plus, que corresponde a um montante superior a uma compensao de direitos, sendo um verdadeiro pagamento pelo dano causado, alcanando outros itens, tal como o de lucros cessantes.25 A base desta distino o fato de que o interesse pblico deve sobrepor-se ao privado e, por isso, os atos lcitos do Estado, que eventualmente impliquem em prejuzo a terceiros, possibilitam a estes direito apenas de receber um montante igual ao da perda econmica ocorrida, ou seja, a um ressarcimento. J os atos ilcitos, uma vez que no esto revestidos do interesse pblico necessrio para sua motivao, ensejam o recebimento de verdadeira indenizao. Esta teoria encontra vrios adeptos como RENATO ALESSI (Lillecito e la responsabilit degli enti pubblicci, p.121 e s.), YUSSEF SAID CAHALI (Responsabilidade civil do Estado, p.1-2) e WEIDA ZANCANNER BRUNINI (Da responsabilidade extracontratual da Administrao Pblica, p. 35-6). Sem desmerecer a importncia das obras mencionadas, discordamos desta teoria, pois no deve a responsabilidade da Administrao Pblica ficar presa dicotomia apresentada, porque no nos parece tenha sido esta a inteno do legislador. Tambm neste sentido a opinio do autor FERNANDO SCAFF para quem no faz sentido a distino:

25

SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade do Estado Intervencionista. So Paulo: Ed. Saraiva, 1990, p.70-71.

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Uma vez que limitar o montante a ser pago pelo dano ocasionado em razo do ato praticado ter sido fruto de uma atividade lcita ou ilcita algo que fere a mais elementar noo de justia, posto que, para o indivduo que foi lesado, o que importa a recomposio integral de seu patrimnio, sendo-lhe irrelevante se o ato que lhe causou o prejuzo foi ou no baseado na legalidade.26 Portanto, devem ser as expresses indenizao e ressarcimento tratadas como sinnimas, no tendo sustentao o fundamento da distino, afinal a responsabilidade da Administrao Pblica persistir por quaisquer danos causados em decorrncia dos seus atos sejam estes lcitos ou ilcitos.

3.7 A aplicao nos tribunais: uma indstria de indenizaes

Ao longo dos anos de advocacia, temos visto que, muitas vezes, o Poder Judicirio usado como meio esprio para obteno de indenizaes injustas ou indevidas. Ao lado de outros fatores, isto se deve tambm falta de legislao especfica sobre cada hiptese que o legislador ou o prprio constituinte pretendeu amparar. Apresenta-se excessivamente ampla a previso legal para as hipteses de indenizao, ficando a cargo do Judicirio a deciso pelo pagamento respectivo, o qual se baseia exclusivamente naquela norma aberta demais, em especial quando se trata de responsabilizao da Administrao Pblica, que, por isso mesmo, acaba, na maioria das vezes, sendo condenada. Desta forma, a legislao, que deveria proteger os direitos efetivamente lesados, utilizada para a realizao de uma verdadeira indstria de indenizaes, j que o seu uso no tem parmetros, nem limites.

26

Idem.,

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No caso das aes de responsabilidade propostas em face do Banco Central, vemos o Poder Judicirio tratar a questo de forma muito simplista, sem estudos aprofundados e sem entender a especificidade das matrias julgadas, o que leva, muitas vezes, reforma injusta dos atos legitimamente praticados pela Autarquia e conseqente condenao patrimonial do ente pblico. A complexidade do assunto e a dificuldade de sua aplicao so sentidas pela doutrina, nas palavras de YUSSEF SAID CAHALI: No obstante a expressividade e rapidez das conquistas alcanadas pelo Direito em matria de responsabilidade civil do Estado impendem reconhecer que muitos aspectos remanescem controvertidos, muitos pontos ainda no foram dilucidados, a latere questes outras exsurgem, emaranhadas na complexidade da aplicao de alguns princpios agora j definitivamente assentes, mas que no prescindem da colocao de regras outras hauridas de um variegado de reas do Direito, promscuas no direito constitucional, no direito administrativo, no direito civil e no direito processual civil27. Sem embargo do entendimento geral de reconhecimento do dever de reparao que gravita sobre o Estado, e que vem a constituir exigncia de sujeio indiscriminada dos poderes pblicos ao imprio do Direito, certo que o modo como se tem entendido, qualificado e constitudo aquele dever ressarcitrio continua sendo objeto de acirradas polmicas na doutrina e na jurisprudncia, no se tendo ainda definido, satisfatoriamente, os exatos parmetros que o determinam. Logicamente, o avano legal alcanado, por influncia do Direito Francs, de efetiva responsabilizao do Estado-Administrao, no deve ser desvalorizado, tampouco desprezado, mas deve sim ter um limite. Caso contrrio, os entes da Administrao sero dispensveis na estrutura de um sistema que s faz julgar e reformar as decises daqueles, desconsiderando toda e qualquer obedincia aos princpios de direito estabelecidos.27

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 2a ed., Ed. Malheiros: So Paulo, 1996, p. 12.

600 500 400 300 482 200 100 0com aes trabalhistas sem aes trabalhistas

3914 56 14 55

358

liquidaes extrajudiciais

intervenes

RAET

Apresentamos o grfico a fim de ilustrar a situao atual no tocante utilizao do sistema judicirio para obteno de indenizaes em face da Administrao com o nmero de aes propostas contra o Banco Central, com fundamento apenas na atividade de superviso28. A escala mostra com destaque o nmero de aes para cada tipo de interveno pela autarquia: liquidao extrajudicial, interveno extrajudicial e regime de administrao especial temporria. Mostra ainda a diferena do volume de aes, quando somadas aquelas propostas em decorrncia das relaes trabalhistas das instituies submetidas a um dos regimes. Alm disso, no ltimo trabalho de contingenciamento realizado no Banco Central do Brasil, os nmeros revelaram que estas aes, comparadas s aes de outras naturezas, representam a rubrica oramentria mais cara para a Autarquia.

28

Os dados foram obtidos no sistema de controle de feitos judiciais da Procuradoria do Banco Central do Brasil BCJur, na data de 03.03.2005.

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4

A RESPONSABILIDADE DO BANCO CENTRAL INTERVENES E LIQUIDAES EXTRAJUDICIAIS

DO

BRASIL

NAS

A responsabilidade estatal, assunto de extrema complexidade, que se agrava ainda mais em se tratando da atividade da Autoridade Supervisora do SFN, de inegvel interesse para todos os entes da sociedade capitalista em que vivemos. E dentro do modelo de Estado de Direito, a Administrao Pblica em geral subordina-se ao ordenamento jurdico posto, estando obrigada a reparar os danos causados por suas aes ou omisses. Sem excluir o Banco Central do Brasil desta regra, preciso ter muito cuidado ao fazer sua aplicao para que no ocorram distores srias, a ponto de prejudicar o exerccio das atividades primordiais para as quais foi criada a Autarquia, em especial, a superviso bancria, cuja complexidade abordamos a seguir.

4.1 A Lei 4.595/64 e a complexidade da atuao do poder fiscalizatrio

Desde a edio da Lei 4.595/64, a evoluo do SFN, marcada pelo fenmeno da globalizao, que trouxe consigo a sofisticao dos mercados, tem dificultado o acompanhamento tempestivo da realidade pelo ordenamento jurdico. Diferentemente dos setores de produo e comrcio, para os quais a globalizao ocorre de forma mais lenta, por meio dos blocos econmicos, dos acordos tarifrios e da integrao entre processos industriais localizados nos diferentes pases, no setor financeiro, a velocidade da integrao mundial extrema atravs das redes de comunicao de dados entre os centros financeiros mundiais.

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A tendncia de liberao dos fluxos internacionais de capitais e de ampliao das regras de conversibilidade entre as moedas. Mas no se pode dizer que seja esta dinmica a nica razo que explica as falhas do sistema pelos prejuzos causados aos investidores e correntistas de bancos nacionais. O Brasil tem o maior e mais complexo sistema financeiro na Amrica Latina, com quase 200 bancos, que se distribuem por mais de 17 mil agncias e aproximadamente 15 mil postos de atendimento adicionais29, mas cujo desenvolvimento nos ltimos trinta anos foi profundamente marcado pelo crnico processo inflacionrio que predominou, nesse perodo, na economia brasileira. A longa convivncia com a inflao possibilitou s instituies ganhos proporcionados pelos passivos no remunerados, como os depsitos vista e os recursos em trnsito, compensando ineficincias administrativas e perdas decorrentes de concesses de crditos que se revelaram, ao longo do tempo, de difcil liquidao. Com isto, as instituies financeiras brasileiras, como regra geral, perderam a capacidade de avaliar corretamente riscos e analisar a rentabilidade de investimentos, bastando, para auferir grandes lucros, especializar-se na captao de recursos de terceiros e apropriar-se do denominado "imposto inflacionrio". Assim, por anos a fio, os bancos extraram seus lucros da espiral inflacionria. Ganhavam tanto na compra e venda de ttulos pblicos, que as perdas decorrentes da m administrao e da excessiva exposio a riscos passava despercebida. Mas poderia passar despercebida fiscalizao da autoridade supervisora ou a fiscalizao era deficiente?

29

Informaes obtidas na pgina do Banco Central http://www.bcb.gov.br

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A legislao, desde a criao do Banco Central, pela Lei 4.595/64, j atribua entidade responsabilidade sobre a verificao da estabilidade das instituies financeiras atravs da competncia privativa da fiscalizao, in verbis: Art. 10 Compete privativamente ao Banco Central do Brasil: .................... VIII- exercer a fiscalizao das instituies financeiras e aplicar as penalidades previstas .............. X conceder autorizao s instituies financeiras, a fim de que possam: a) funcionar no Pas; b) instalar ou transferir suas sedes, ou dependncias, inclusive no exterior; c) ser transformadas, fundidas, incorporadas ou encampadas. Diante deste aparato legal e todo o poder da decorrente para uma superviso prudencial, no deveria haver motivo para que o Sistema Financeiro apresentasse desordem. Mas, a verdade que o Plano Real, plano econmico implementado pelo Governo dos anos 90, revelou a situao catica dos bancos. Foram descobertos contas-fantasma, operaes suspeitas, emprstimos malfeitos ou fictcios, fraudes, investimentos desastrosos, de tal forma que o BACEN se viu obrigado a realizar, desde logo, as medidas interventivas mais drsticas, sem antes tentar outras menos gravosas. Numa atitude irremedivel, naquele momento, o BACEN promoveu a liquidao de grandes bancos como o Econmico, o Nacional, o Bamerindus, o Banespa e o Banerj, dentre outros, produzindo um verdadeiro abalo no Sistema. Neste quadro, questionvel se o BACEN vem cumprindo efetivamente o seu papel, previsto no ordenamento, traduzido no Manual de Superviso divulgado no final de 2002: - Os objetivos que orientam as atividades de Superviso so:

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proteger a estabilidade do SFN, assegurando que as instituies financeiras que negociam com o pblico continuem merecedoras da confiana nelas depositada; assegurar que as instituies financeiras no assumam riscos que no possam controlar dentro de limites prudenciais, baseados em sua solidez financeira e em sua capacidade gerencial; promover maior transparncia nas informaes prestadas ao pblico pelas instituies financeiras; assegurar, pelo monitoramento e pela verificao direta, que as instituies financeiras executem suas atividades, observando as leis e a regulamentao.30

Se o Plano Econmico revelou a necessidade de atitudes to gravosas nos anos 90, significa dizer que o escopo da superviso pela autoridade competente no foi bem sucedido, pois o alcance dos objetivos acima elencados dispensaria qualquer medida interventiva. Mas onde est a falha? Qual a razo de tantos insucessos? Para

desvendarmos o problema, precisamos analisar o procedimento previsto na Lei interventiva e os pressupostos nela estabelecidos.

4.2 A Lei 6.024/74 e os instrumentos de atuao da autoridade supervisora

O Banco Central do Brasil, no exerccio de comando da superviso bancria, intervm nas instituies financeiras ao detectar indcios de prtica de atos de gesto que oferecem risco aos credores, ou de prtica reiterada de infraes legislao bancria ou, ento, de quaisquer fatos passveis de decretao da falncia, determinando um conjunto de medidas que se compatibilizem com o mecanismo de preservao sistemtica dos interesses dos investidores.30

Manual da Superviso, Viso Geral da Superviso, Processos e Metodologias de Superviso, Aspectos gerais, Modelo de superviso, Objetivos da superviso (2-20-10-10-7) BACEN, 2002, publicado no site www.bcb.gov.br

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H no direito ptrio trs tipos de intervenes estatais discricionrias31: a administrao especial temporria, a interveno extrajudicial e a liquidao extrajudicial. O primeiro deles, o regime de administrao especial temporria RAET, disciplinado no Decreto 2.321, de 25 de fevereiro de 1987, impe a perda do mandato por parte dos dirigentes da empresa, sem afetar o andamento regular das atividades da instituio. Esta medida visa proteger as instituies financeiras publicas ou privadas contra gestes temerrias ou fraudulentas capazes de colocar em risco os credores e os depositantes. Ao adotar o regime de interveno, o Banco Central afasta os administradores da instituio e assume a gesto direta, por meio de um interventor por ele nomeado, suspendendo as atividades normais. Tal medida, de carter acautelatrio, tem por finalidade evitar o agravamento das irregularidades, de modo a manter afastados os riscos patrimoniais. Mais gravosa, a liquidao extrajudicial medida, de carter definitivo, adotada quando presentes indcios de insolvncia irrecupervel, ou quando detectadas infraes s normas que regulam a atividade ou a instituio. Tem por escopo a venda dos ativos existentes para possibilitar o pagamento dos credores.

4.2.1 Pressupostos para a interveno e liquidao

Entre as condies legais para a interveno, podem-se enumerar trs, bsicas, que constam do texto da Lei 6.024, quais sejam: Art. 2o Far-se- a interveno quando se verificarem as seguintes anormalidades nos negcios sociais da instituio:31

Ao lado desta, existe outra modalidade de interveno, a contratual, quando incluem esquemas institucionais, tais como seguros de depsitos.

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I - a entidade sofrer prejuzo, decorrente da m administrao, que sujeite a riscos os seus credores;II- forem verificadas reiteradas infraes a dispositivos da legislao bancria no regularizadas aps as determinaes do Banco Central do Brasil, no uso das suas atribuies de fiscalizao;

III- na hiptese de ocorrer qualquer dos fatos mencionados nos arts. 1o e 2o do Decreto-Lei no 7.661, de 21 de junho de 1945 (Lei de Falncias)32, houver possibilidade de evitar-se a liquidao extrajudicial. Art. 3o - A interveno ser decretada ex oficio pelo Banco Central do Brasil, ou por solicitao dos administradores da instituio se o respectivo estatuto lhes conferir esta competncia - com indicao das causas do pedido, sem prejuzo da responsabilidade civil e criminal em que incorrerem os mesmos administradores, pela indicao falsa ou dolosa. As hipteses legais para a decretao da liquidao extrajudicial encontramse delineadas no art. 15 da mesma Lei: Art. 15 - Decretar-se- a liquidao extrajudicial da instituio financeira: I - ex officio : a) em razo de ocorrncias que comprometam sua situao econmica ou financeira especialmente quando deixar de satisfazer, com pontualidade, seus compromissos ou quando se caracterizar qualquer dos motivos que autorizem a declarao de falncia; b) quando a administrao violar gravemente as normas legais e estatutrias que disciplinam a atividade da instituio bem como as determinaes do Conselho Monetrio Nacional ou do Banco Central do Brasil, no uso de suas atribuies legais; c) quando a instituio sofrer prejuzo que sujeite a risco anormal seus credores quirografrios; d) quando, cassada autorizao para funcionar, a instituio no iniciar, nos 90 (noventa) dias seguintes, sua liquidao ordinria, ou quando, iniciada esta, verificar o Banco Central do Brasil que a morosidade de sua administrao pode acarretar prejuzos para os credores; II - a requerimento dos administradores da instituio - se o respectivo estatuto social lhes conferir esta competncia - ou por proposta do interventor, expostos circunstanciadamente os motivos justificadores da medida. 1 O Banco Central do Brasil decidir sobre a gravidade dos fatos determinantes da liquidao extrajudicial, considerando as repercusses deste sobre os interesses dos mercados financeiro e de capitais, e, poder, em lugar da liquidao, efetuar a interveno, se julgar esta medida suficiente para a32

A Nova Lei de Falncias, Lei de 11.101, de 9.02.2005, descreve as condutas ensejadoras da decretao da falncia no seu art.94.

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normalizao dos negcios da instituio e preservao daqueles interesses. 2 O ato do Banco Central do Brasil, que decretar a liquidao extrajudicial, indicar a data em que se tenha caracterizado o estado que a determinou, fixando o termo legal da liquidao que no poder ser superior a 60 (sessenta) dias contados do primeiro protesto por falta de pagamento ou, na falta deste, do ato que haja decretado a interveno ou a liquidao. Diante dos fatos apontados, exclusiva da autoridade supervisora a deciso de intervir ou liquidar uma instituio financeira. Tal ato revestido de julgamento de convenincia e oportunidade que, devido situao singular, invocando a defesa do interesse pblico, via de regra contestada ou pela sua prematuridade ou por ser demasiadamente tardia a sua implementao. O que ocorre, principalmente, quando presente o intuito de obter alguma indenizao da Autarquia. O sistema criado pela Lei 6.024/74, j ultrapassado para os dias atuais, coloca o Banco Central em posio de agente fiscalizador, mas com ampla atuao no processo, deixando Autarquia o papel de juiz, de executor e at mesmo de elaborador dos destinos de qualquer instituio financeira. Tarefa difcil! Esta dificuldade apontada por EDUARDO LUNDBERG, segundo o qual, no exerccio desta atuao de fiscal do SFN, leva-se em considerao principalmente a caracterstica que parte do conceito de que a atividade bancria especfica e merece um tratamento distinto dos demais atuantes do mercado capitalista na hiptese de quebra.33

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Diz Lundberg: Instituies financeiras tm caractersticas distintas das demais empresas. A primeira e mais bvia diferena que trabalham com uma mercadoria singular: dinheiro, ou seja, a moeda e a poupana dos indivduos e das empresas. Mas no exatamente esta caracterstica que justifica a necessidade da interveno governamental, mas sim o necessrio atributo de credibilidade a ela associada. Evidentemente, todas as empresas precisam algum grau de credibilidade junto aos seus clientes e fornecedores para operar. Entretanto, para as instituies financeiras, este atributo essencial. Ningum confia seu dinheiro a um banco se no houver a segurana de que ele ser devolvido nas condies pactuadas. LUNDBERG, Eduardo in Rede de proteo e saneamento bancrio, artigo publicado no site www.bcb.gov.br

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Da, pois, a necessidade de que o BACEN disponha de mecanismos geis para atuar sobre o mercado. Sobre isso, j nos alertou o ilustre professor Dr. FRANCISCO JOS DE SIQUEIRA, atual Procurador-Geral do Banco Central: H sempre um risco potencial decorrente da explorao da atividade bancria, que representa uma contnua ameaa ao direito alheio, pelo simples fato de que a maior parcela dos recursos movimentados pela empresa no pertence ao titular do negcio, mas a terceiro, numa proporo desigual, em que, muitas vezes, os fundos prprios mal correspondem dcima parte dos recursos alheios, a depender dos parmetros de ajustamento fixados pela autoridade responsvel pela superviso bancria. Em meio a esse quadro de risco natural da atividade, so adotados clssicos instrumentos de preveno de crises no sistema financeiro, no plano da regulao oficial, a exemplo do aumento compulsrio dos fundos prprios, da imposio de limites de concentrao de riscos, do alinhamento dos prazos de intermediao bancria, da obrigao de provisionar crditos no realizados, da instituio de mecanismo de proteo de depsitos, alm da atuao do Banco Central como emprestador de ltima instncia.34 Nesse contexto, verifica-se que a funo de saneamento do mercado, a cargo do BACEN, no se restringe ao afastamento das instituies bancrias do mercado, mas tambm responsabilidade de atuar preventivamente, evitando que o mal ocorra. Disto decorre a necessidade de aparelhar a autoridade pblica de um arsenal normativo suficiente para lhe permitir o manejo oportuno dos mecanismos postos sua disposio, visando o saneamento preventivo do sistema bancrio, com a soluo dos problemas de liquidez momentnea, que so inevitveis neste segmento da atividade econmica. Ao lado disso, tambm importante para o pleno funcionamento do sistema a manuteno da confiana na autoridade supervisora escolhida, que atua no exerccio do Poder Discricionrio, cuja necessidade acentuada no mbito da

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SIQUEIRA, Francisco J. de. O Papel do Banco Central no Processo de Interveno e Liquidao Extrajudicial. In: Publicado na obra Interveno e Liquidao Extrajudicial no SFN 25 anos da Lei 6.024/74, Jairo Saddi (Org.). So Paulo: Ed. Texto Novo, 1999.

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atividade singular desenvolvida no mercado financeiro, por razes que sero abordadas frente, no Captulo 7. Abaixo, o quadro mostra o volume de empresas do mercado financeiro submetidas a regime especial, sob a responsabilidade do Banco Central do Brasil, e revela o grau de responsabilidade a cargo da Autarquia, num momento de solidez do sistema financeiro que o Pas apresenta atualmente.EMPRESAS EM REGIME ESPECIAL

Atualizado em 11/04/2005 TIPO DE EMPRESA Consrcio Banco Corretora de cmbio, ttulos e valores mobilirios Distribuidora mobilirios Outras Arrendamento mercantil (leasing) Financeira Cooperativa de crdito Crdito imobilirio Associao de poupana e emprstimo TOTAL de ttulos e valores TOTAL 29 17 12

10 8 5 2 2 0 0 84

Fonte: site do BC www.bcb.gov.br

4.3 A atividade fiscalizadora por outro rgo

Diante das inmeras dificuldades vislumbradas e algumas efetivamente apontadas para o exerccio da atividade fiscalizadora pelo Banco Central do Brasil,

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vem a lume a discusso sobre a supresso da superviso do mercado financeiro como parte das suas atribuies. Mencionada discusso tangncia, de forma incisiva, a polmica questo de dar mais autonomia ao BACEN35, pois a tarefa de controle das atividades do crdito est intimamente ligada com a programao na planificao da economia. Em outras palavras, o que j dissemos, no Captulo 2, sobre as funes primordiais do Banco Central do Brasil e repetimos: existe forte ligao entre o desenvolvimento da poltica monetria e a superviso do SFN. E para a evoluo dos debates, deve haver um consenso a respeito da relao de interdependncia existente entre as duas funes. Segundo o Diretor Geral do BIS, ANDREW CROCKET, Os bancos centrais devem reconhecer o papel da poltica monetria em sua capacidade no intencional de acomodar o crescimento da instabilidade financeira e, por sua vez, as autoridades de superviso prudencial ou preventiva devem reconhecer que a principal causa do alastramento de problemas entre instituies financeiras tem origens macroeconmicas.36 A prtica internacional, nesse domnio, ambgua: em metade dos casos a superviso separada do BC, na outra metade no . Isto conseqncia natural da histria e da cultura de cada Pas, criando instituies especficas em cada lugar. No h mesmo um modelo institucional hegemnico. E, por isso, o Brasil tem que encontrar seu caminho baseado nas prprias experincias. Segundo a opinio de GUSTAVO FRANCO, professor de economia e expresidente do BC, no caso brasileiro, a agitao em torno da separao das funes

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Autonomia do Banco Central o poder de escolha e gesto das diretrizes a serem executadas, ou seja, completa independncia em relao ao Poder Executivo que o criou. CROCKET, Andrew. O Papel da Poltica Monetria e da Superviso Bancria na Estabilidade de Sistemas Financeiros. In: Artigo publicado no stio do Banco Central do Brasil: www.bcb.gov.br.

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de fiscalizao bancria do Banco Central, tem uma boa dose de oportunismo poltico, e muito pouca reflexo sobre os temas envolvidos.37 J para o atual Ministro da Fazenda, Dr. ANTNIO PALLOCCI FILHO, a autonomia desenhada para o Banco Central do Brasil depende disso, pois deve distinguir com clareza a relao entre a Autarquia e o Governo: Deve-se distinguir o papel do Governo de definio das regras de poltica nesses setores do papel das agncias de gesto da poltica definida pelo governo. O principal objetivo do desenho garantir a definio de objetivos de poltica setorial sem interferncias discricionrias de curto prazo e, dessa forma, reduzindo-se o risco das polticas pblicas serem determinadas por interesses setoriais privados, contrrios ao bem-estar social.38 Na Inglaterra, em maio de 1997, numa reforma, que parecia revolucionria, do sistema bancrio, o Primeiro Ministro ingls retirou do Banco Central as funes de regulador e supervisor do sistema em favor de uma nova agncia criada para este fim. L, num Pas onde as instituies esto sobejamente amadurecidas, a troca de endereo no fez muita diferena, nem para pior, nem para melhor, mas no se pode ter certeza que teria o mesmo efeito em outro lugar. A segregao das funes, por mais prximos que estejam os canais de comunicao e a vontade de cooperao entre os rgos responsveis pela superviso e poltica monetria, institui competncias distintas para pessoas jurdicas distintas, cada uma com as preocupaes prprias da sua esfera. No Brasil, apesar da certeza de que o BACEN tem tarefas demais a seu cargo e que a sua eficincia talvez pudesse melhorar se lhe diminussem as responsabilidades - suprimindo do seu papel a funo fiscalizadora-, existem pontos,

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FRANCO Gustavo H. B. O Banco Central e a Segregao da Superviso Bancria. In: Artigo publicado no JB, de 16.05.1999. PALLOCCI FILHO, Antnio. Poltica econmica e reformas estruturais. Divulgado em maio de 2003, no site www.fazenda.gov.

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levantados no artigo de GUSTAVO FRANCO, que evidenciam as qualidades da unificao das atividades. Para ele, o Banco Central, rgo naturalmente responsvel pela poltica monetria, que tem como um dos principais instrumentos o controle da taxa de juros, tender mant-la sempre na alta, sem a preocupao com a solidez do sistema financeiro, j que seria da competncia de outra agncia. Outro fator preocupante a disputa por espaos existente entre as entidades responsveis pela regulao do mercado, o que leva a um afastamento entre elas e dificulta no relacionamento de cooperao que deve existir para que o novo modelo d certo. Vivenciamos alguns exemplos do malefcio decorrente desse obstculo em torno da matria de sigilo bancrio. O terceiro ponto seria a dificuldade de conduo das atividades de emprestador de ltima instncia pelo BACEN para socorro aos bancos, mesmo na sua modalidade mais simples que o redesconto, pois nesta atividade preciso conhecer a fundo a situao da instituio necessitada e isto no se daria plenamente com as informaes sendo captadas por outra instituio,

principalmente no ambiente de disputa que existe no mercado. Por tudo isso, parece ilusria a hiptese de que a superviso funcionaria melhor se operada por outro rgo, diferente do BACEN. Num sistema financeiro complexo como o que se apresenta o nosso, a plena informao dos dados fundamental para a boa manuteno da sua rigidez e ainda assim, com toda autoridade, o BACEN pode cometer erros. Portanto, reputamos errnea a proposta contida no Projeto de Lei 317/2003 (Anexo A), em votao no Senado, de transferir a funo de superviso para outra agncia. O fato de o modelo ter sido bem sucedido em outros Pases no nos d a

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certeza de que ser benfico para o Brasil. Ao contrrio, h que se temer que a sua adoo poder representar aumento da burocracia e dos gastos pblicos, ampliando o leque de possveis demandados para o administrado tirar dinheiro dos cofres pblicos. imperativo que os nossos Parlamentares avaliem bem a proposta em curso. Outra proposta de mudana desse sistema a conduo do processo de liquidao das instituies financeiras pelo Judicirio. A exemplo do que ocorre com o processo de falncia atualmente processo de recuperao de empresas e falncia39 - o juiz passaria a conduzir o processo de liquidao, conferindo-lhe uma natureza judicial, diversa da atual. Trs anteprojetos para a reforma da Lei 6.024/74 esto sendo estudados e incluem a mudana da natureza especial da extrajudicialidade do processo de liquidao, transformando-a judicial. Porm, so extensas as discusses sobre a matria. Uns defendem a transformao e outros acham que a mudana em nada melhoraria a eficcia do processo. Segundo JAIRO SADDI40, para os que defendem a manuteno do processo extrajudicial conduzido pela Autarquia, dois41 argumentos so irrefutveis: a) a posio privilegiada do BACEN e b) o conhecimento especializado da matria bancria. O primeiro diz respeito ao fato de que, sendo o Banco Central credor privilegiado em relao aos demais crditos, se apresenta mesmo como parte essencial do processo de liquidao. Quanto ao segundo argumento, no obstante a possibilidade de especializao das Varas, a verdade que atualmente o Judicirio

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A recente reforma do procedimento falimentar, pela Lei 11.101, de 09.02.2005, passou a dar esta nomenclatura. SADDI, Jairo. Algumas propostas de mudana para a Lei 6.024, artigo publicado em Interveno e Liquidao Extrajudicial no Sistema Financeiro Nacional- 25 anos da Lei 6.024/74, p. 297. Na verdade, o autor menciona quatro argumentos em favor da manuteno da liquidao extrajudicial, mas em vista de que ele prprio refuta dois deles, preferimos exclu-los.

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no est familiarizado com operaes bancrias ativas e passivas e isso pode causar srios entraves num processo dessa natureza. Para o autor, a transformao da liquidao em processo judicial a melhor soluo em face de trs razes bsicas: Constitui-se a primeira razo da transparncia do processo judicial em comparao com o extrajudicial. A segunda, por sua vez, consiste na prpria essncia da natureza jurdica da liquidao extrajudicial. H dois elementos bsicos na rbita desse processo: a fixao de valores e a converso em bens e direitos para satisfao dos credores... . O ltimo argumento refere-se prpria responsabilidade do liquidante judicial, que ter maior controle sob seus atos, aes e omisses, responsabilizando-se, se assim for o caso, sem contar com o fato de que, via de regra, liquidantes extrajudiciais so exfuncionrios de carreira do Banco Central que, pela prpria natureza do cargo pblico que ocupam (ou ocuparam), no tm a experincia necessria para o trato com assuntos privados e mercantis. de se reconhecer que so verdicos os argumentos levantados para a sustentao da transferncia da conduo do processo liquidatrio para o Judicirio, mas nossa posio que a melhor soluo seria uma mudana parcial deste sistema, dando atribuies de controle do procedimento aos Juzes, mas com a participao da Autoridade Supervisora nos momentos decisrios; participao sempre valiosa na conduo de processos que envolvem atividades do mercado financeiro. A total supresso da participao do BACEN nas liquidaes pode trazer resultado ainda pior, pois se os processos de liquidao extrajudicial no esto alcanando a eficcia esperada quando conduzidos pelas mos de quem mais entende do assunto, no se pode espera melhor resultado da conduo pelo Poder Judicirio, que tem tantas outras prioridades ante a higidez do Sistema Financeiro. Tome-se como exemplo os processos falimentares que, dirigidos pelo Judicirio luz de princpios como a manuteno da atividade comercial e da oferta

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de empregos, no tm sido suficientemente satisfatrios na recuperao de empresas com problemas financeiros. Talvez a reforma ocorrida na Lei Falimentar traga melhores resultados.

4.4 A necessidade de reforma do ordenamento jurdico

Ao lado das falhas do sistema que podem ser corrigidas pela Administrao, h necessidade de melhoria do sistema legal. A base jurdica que se tem hoje sobre a matria de superviso lacunosa e ultrapassada, apesar das reformas advindas ao longo dos anos. Precisa haver mudanas, principalmente nas Leis 4.595/64 e 6.024/74, editadas sob a ordem de outro cenrio econmico. A Lei 4.595 de 31.12.64, que criou o Banco Central e estabeleceu as suas competncias, est completamente defasada para os tempos de hoje, no dando Autarquia o suficientemente necessrio para uma boa atuao no mercado dinmico em que se apresenta o SFN. Esta falha legislativa reconhecida pelos atuantes no mercado, como ARNOLDO WALD42, que considera a Lei 4.595 ultrapassada, pois, segundo ele, ...no prov adequadamente a defesa dos interesses dos cidados brasileiros, nem municia a autoridade monetria com instrumentos capazes de salvaguardar o sistema financeiro nacional dos riscos inerentes sua insero num mercado financeiro globalizado. Como exemplo, podemos citar a confusa e inapetente definio do que seja uma instituio financeira, contida no art. 17 da Lei 4.595:Art. 17 - Consideram-se instituies financeiras, para os efeitos da legislao em vigor, as pessoas jurdicas pblicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessria a coleta, intermediao ou aplicao

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WALD, Arnoldo. A Emenda Constitucional 40 e a autonomia do Banco Central. Artigo publicado na Revista de Direito Bancrio, do Mercado de Capitais e da Arbitragem 20, p. 17.

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de recursos financeiros prprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custdia de valor de propriedade de terceiros. Pargrafo nico. Para os efeitos desta Lei e da legislao em vigor, equiparam-se s instituies financeiras as pessoas fsicas que exeram qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.

A redao do artigo era satisfatria para aquela poca, quando havia uma separao bem clara entre as instituies financeiras e as demais. Hoje, com a maior fluidez das fronteiras do mercado financeiro, o texto da Lei 4.595 representa um entrave para o exerccio da superviso pelo BACEN. Quanto Lei 6.024/74, que trata das medidas de interveno nas instituies financeiras, apesar de mais nova, no diferente o sentimento. A Lei, publicada no ano de 1974, quando o mundo se despedia da velha ordem do regime de Bretton Woods43, para ingressar na era das taxas de cmbio flutuantes, dos capitais internacionais volteis, dos derivativos e da globalizao, contribui para a ineficincia da funo de superviso pelo BACEN. Advinda de um perodo de nossa histria em que a Economia no tinha a expressividade que apresenta hoje, a lei permanece em vigor e, apesar de todo o esforo de modernizao, com o advento do Decreto-lei 2.321/87 e a Lei 9.447/97, a verdade que h dificuldades para sua aplicao ao mercado financeiro atual. Por isso, tambm devem ser corrigidas algumas regras da Lei 6.024/74 que colocam a Autarquia em situao crtica quando baseia seus atos exclusivamente na Lei de Intervenes. Nesse contexto, devem ser observados, principalmente, os Princpios de Direito esta