A Arte Do Direito - Francesco Carnelutti

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ARTE DO DIREITO Seis Meditações sobre o Direito

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ARTE DO DIREITOSeis Meditações sobre o Direito

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Francesco Carnelutti

ARTE DO DIREITOSeis Meditações sotre o Direito

Traduzido por Paolo Capitanio

2- edição

2005

D I T O R A í D I S T R I B U I D O R A

CAMPINAS -SP

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Ficha Catalográfica Faculdade de Biblioteconomia - PUC-Campinas

340 C276a

Carnelutti, FrancescoArte do direito/ Francesco Carnelutti. 2- ed. Campinas: Bookseller, 2005.88p. 21cm

ISBN 85-7468-353-1

1. Direito I. Título.

CDD 340 CDU 34

índice para catálogo sistemático

Direito 340

Coordenação Editorial: Maria do Carmo BononCapa: Dauid Jordan

Revisão: Luiz Fernando Campassi PalermoDiagramação: Soíange Rigamont

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Bookseller Editora Ltda.Rua Luzitana, 100 - BosqueFone/Fax: (19) 3236-4924

E-mail: [email protected] - SP

Tradução e reprodução proibidas, total e parcialmente Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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Sumário

Nota do Tradutor............................................................ 7Introdução....................................................................... 9O que é o Direito? ......................................................... 13O que é a Lei?................................................................. 23O que é o Fato?............................................................... 35O que é o Juízo?............................................................. 49O que é a Sanção?.......................................................... 63O que é o Dever?............................................................ 75

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naturalmente porque não existem as condições para exaltar entre os combatentes. Necessitava da luz de um céu tropical para iluminar esta luta e sua resolução.

Finalmente adverti que estudar o direito e a arte significa atacar a partir dos dois lados diversos o mesmo problema. Por desconcertante que seja esta afirmação, chegou para mim o momento de fazê-lo. O mesmo pro-blema, digo, conforme o perfil da função e da estrutura.

A arte, como o direito, serve para ordenar o mundo. O direito, como a arte, tem uma ponte do passado para o futuro. O pintor, quando escrutava o rosto de minha mãe para pintar o retrato que, mais que qualquer outra obra, mostrou-me o segredo da arte, não fazendo mais do que adivinhar. E o juiz, quando escruta no rosto do acusado a verdade de sua vida para saber o que a sociedade deve fazer dele, não faz mais do que adivinhar. A dificuldade e a nobreza, o tormento e o consolo do direito, como da arte, não podem representar-se melhor do que com essa palavra! Adivinhar indica a necessidade e a impossibilidade do homem ver o que vê somente Deus.

Embora eu sinta profundamente a verdade dessa idéia, não me ocultam as dificuldades assim como os perigos, que apresenta sua explicação. Mas dificuldades e perigos fazem-me sempre tentado. E me seduz, ante tudo, o desejo de dedicar aos juristas da América Latina e a suas Faculdades de Direito (de onde nossos irmãos de que, nós europeus, continuamos chamando de novo mundo, unem-se com forças juvenis a nosso antigo tra-balho) algumas páginas, que me tem inspirado a eterna formosura do direito.

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Peço desculpas pelo atrevimento de haver escrito estas páginas em espanhol, embora quase não conheça o idioma de Don Quijote, sujeitando o manuscrito so-mente às correções ortográficas e gramaticais.

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Há duas razões para esta temeridade. A primeira se refere ao perigo da tradução. Por imensas que sejam as condições e o cuidado do tradutor, uma perda da força expressiva é inevitável como uma dispersão na transformação da energia. Embora o estilo deste livri-nho desgraçadamente não possa ser o de um espanhol, contudo, é o meu estilo.

Isto é verdade, mas não toda a verdade. Devo insistir, sob pena de não ser sincero, que havendo começado a escrever em espanhol por exercício e continuado por prazer. Algo semelhante ocorreu-me quando, encontrava-me refugiado na Suiça, em 1944, escrevi La Guerre e Ia Paixs. Não se pode contar facilmente tal aventura. Sente-se como uma expansão da personalidade. Milagre da palavra! Não tão somente se fala sem pensar senão que não podemos pensar mais que falando. Enquanto não se encarna, o pensamento não é tal pensamento. Pois não tanto se fala quando se pensa espanhol. Agora quem conhece a voluptuosidade do pensar compreende a tentação.

Posto que não soube resistir, pequei. E para apagar o pecado não há mais que dois meios: a pena e o perdão.

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O conceito de direito, como sabem todos, liga-se estreitamente ao conceito de Estado. Provavelmente para saber o que é direito devemos perguntar o que é Estado. A ascensão ao menos apresenta-se mais cômoda a partir desta parte.

Com efeito, Estado é uma palavra mais transpa-rente que direito. Uma vez eu ouvi um crítico dizer que Miguel de Unamuno era destruidor de palavras. Eu não sei se esta qualificação é exata; de toda forma, não creio que haja necessidade de quebrar palavras ou, ao menos, certas palavras quando deixam ver, como um vaso de cristal, seu conteúdo. Uma palavra cristalina é, precisamente, Estado. O verbo latino stare é o que se vê através do cristal; e com isso transparece uma idéia de firmeza, do que aí está. O povo, enquanto alcança uma certa firmeza, converte-se em Estado. Entre o povo e o Estado encontra-se a mesma diferença que entre os tijolos e o arco de uma ponte. O Estado é verdadeira-mente um arco; veremos, mais tarde, como chamam as ribeiras, que se juntam por meio dele.

Há, sem dúvida, uma força que mantém os tijolos unidos no arco. Mas essa força não opera até que o arco termine. E como se faz para findá-lo? Eis aqui o problema. Os engenheiros sabem que o arco, enquanto constrói-se, necessita da armação. Sem armação o arco pode resistir depois de terminado; mas, antes, sem a armação não se sustentará, o arco seria lançado à terra.

O direito é a armação do Estado. O direito é o que se precisa para que o povo possa alcançar a sua esta-bilidade.

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Agora a palavra direito começa também a deixar ver seu conteúdo. O cristal estava um pouco fosco,

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nossas reflexões têm servido para limpá-lo. Acaso uma palavra ainda mais clara é a latina ius. Eu creio que o latim é o mais transparente de todos os idiomas do mundo. Os glotólogos1 até agora não descubriram o vínculo entre o ius e iungere, todavia, não duvido que na mesma raiz destas palavras manifeste-se uma das mais maravilhosas instituições do pensamento humano. O ius une aos homens como o iugum liga aos bois e como a armação aos tijolos.

Um pouco menos clara é a palavra direito, mas a mesma também contém a idéia do vínculo; não é a reta uma linha que une dois pontos? Os pontos são os homens que formam o povo, e a linha, precisamente, o vínculo que os mantém unidos em um só conjunto.

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Eu sei bem que, neste momento, brota na mente dos que me lêem, uma grave objeção: embora a estrutura do Estado com a armação do arco da ponte seja compatível, não se pode ter uma identificação por completo, posto que a armação está destinada a cair depois que o arco seja terminado, mas o direito, ao contrário, está destinado a durar. O direito existe desde que o mundo é mundo, e, enquanto o mundo seja mundo, deverá existir.

Não é verdade? Aqui está minha dúvida; mais bem e sinceramente, minha oposição. Eu creio na eternidade do Estado ou, mais exatamente, na duração do Estado até o fim do mundo; mas Estado e direito não são o mesmo, ao menos se esta última palavra é tomada em seu significado mais amplo e puro: o Estado é o arco,

1. Nota do tradutor: a palavra é comum em português e espanhol, e deve ser entendida como estudioso da linguagem, especialista em ciência da linguagem.

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que pode estar com ou sem a armação; jurídica chama-se esta espécie de Estado que a necessita; mas não pode afirmar-se que esta necessidade valha para o Estado mais que para o arco e, para tanto, que o Estado jurídico seja a forma única e perfeita de Estado; tão só nessa arrogância de juristas nos permite ver no Estado, como atualmente existe, algo semelhante a um arco perfeito.

Há, pois, a possibilidade de um Estado puro, quer dizer de um Estado sem direito? Como não? Não há a possibilidade de um arco sem armação? Pode, contudo, parecer que aqui a comparação conduza-me para longe do caminho. Naturalmente, é possível, e para assegurar se estamos ou não estamos bem orientados não conheço outro meio para fazer como o capitão da nave que pergunta às estrelas. Duas estrelas podem mostrar-nos o correto caminho: a experiência e a razão.

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Um arco sem armação é, segundo nosso entender, um Estado sem direito. A história, direis, não conhece nada semelhante. Eu poderia responder que a história apresenta, portanto, Estados que necessitam mais ou menos de direito; e esta é também uma experiência de muito valor: por exemplo, Inglaterra, e Alemanha pode-riam utilmente comparar-se sob este perfil. Mas, trata-se de um princípio de evolução, que não está ainda o suficientemente maduro para poder embasar uma con-clusão segura.

Mas bem convém observar o Estado em suas for-mas microscópicas, quer dizer em formas originárias, de onde saiu sua vida. Esta forma microscópica e originária do Estado chama-se família. Prima societas in coniugio est disse Cícero; contudo, mais preciso seria se tivesse dito: prima respublica, em lugar de prima societas; respublica, com efeito, e não societas significa Estado.

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E a família romana era verdadeiramente um Estado em miniatura: por que não dizer a semente do Estado? O pater famílias nos apresenta a figura, melhor que de um pai, de um chefe; muito menos o poder geral que o poder jurídico, na sua forma mais rigorosa, como ius uitae et necis, em seu caráter. Então, direis, se no poder jurídico está o caráter verdadeiro da família, há aqui também direito; e o arco da família necessita de armação. A família romana, sem dúvida, e a família moderna, também, se é uma família paga; não vejo, infeliz-mente, nenhuma oposição entre modernidade e paganidade. Portanto, ao lado da família romana e de outros tipos de família antiga, há também a família cristã, a que não se caracteriza pela presença, senão, ao contrário, pela ausência do direito; quando as relações entre marido e mulher ou entre pais e filhos se regulam pela força do direito, não merecem o nome de família cristã; e é sabido que não basta chamar-se cristão para ser o que significa este apelativo. Pode ocorrer que nem todas as famílias cristãs de nome sejam cristãs de fato; não podemos, portanto, negar a existência de famílias de tal maneira unidas, entre o cristianismo e também alguma vez fora deste, que não requerem armação de direito. Os arcos sem armação são raros ainda; mas o pensador observa com atenção e com maravilha vendo neles o princípio do Estado na sua pureza.

Atenção, disse, e maravilha. Também o camponês, olhando os pedreiros, quando tiram a armação do arco, depois de terminarem, maravilha-se porque não vê o que ocupa o lugar desta sustentação exterior e crê, em sua ignorância, que não exista nada que os homens não possam ver. O camponês não é homem da ciência; mas sob um certo perfil não encontrou uma diferença essencial entre os lavradores do direito e os do campo. Onde esta, com efeito, o jurista, que se perguntou como pode um conjunto de homens estar unido sem o apoio da

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armação, quer dizer do direito? Eu acabo por temer que, deste lado, nós juristas valemos ainda menos que um camponês, o qual, sem embargo, não sabendo o que é que o mantém unido aos tijolos do arco sem armação, sabe, ao menos, que a armação foi retirada; precisa-mente eu temo que sejam muitos os juristas que não consideram nunca, sob esta luz, a estrutura e, poder dizer, o segredo de certos conjuntos sociais. Também para a maioria de nós, infelizmente, o que não se vê não pode existir. Não faz falta, portanto, uma ampla meditação para descobrir este segredo.

Por que o pai e o filho cristãos, para regular suas relações, ainda as mais importantes relações não neces-sitam de direito? Porque, simplesmente, o pai ama o filho e o filho ama o pai. Agora, a sabedoria do povo traduz amar por querer bem, quer dizer, querer o bem do amado, o que não se explica de outra maneira que o reconhecimento que o bem do amado é o bem do amante e reciprocamente. Assim, o bem de um e de outro é o bem da mesma pessoa. Como os tijolos se mantêm unidos, depois que o arco está construído, em virtude de uma força interior, também uma força interior une os homens e faz de uma multidão uma unidade; uniuersum, disseram os romanos, para significar o mi-lagre da versio in unum, quer dizer o das partes que formam o todo. Quem não ouviu, neste momento, a suave oração, que para seus discípulos o Mestre dirige a seu Pai: ut unum sint?

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Eu não creio que sejam necessárias outras palavras para explicar minha comparação; o direito é a armação do Estado. Enquanto falte a força interior ou, franca-mente, enquanto falte o amor, a vida do Estado está em perigo sem direito, como a existência do arco sem ar-

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mação. No Estado de direito não podemos ver, pois, a forma perfeita de Estado. Os juristas são vítimas, neste ponto, de uma incrível ilusão. O Estado de direito não é o Estado perfeito mais do que possa ser perfeito o arco antes que os pedreiros o tenha construído.

O Estado perfeito será, ao contrário, o Estado que não necessite mais de direito; uma perspectiva, sem dúvida muito distante, imensamente distante, mas certa, porque a semente está destinada indubitavelmente a trans-formar-se em árvore carregada de folhas e de frutos.

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A primeira verdade, que estas reflexões logram ilu-minar, concerne a natureza do direito. Os juristas mo-dernos, quer dizer, os juristas positivos, tem o costume de conceber o direito como ordenamento do povo; jus-tamente este conceito condiciona a identificação corren-te do direito e do Estado. Mas bastaria um pouquinho de atenção para advertir o equívoco; quando o direito se concebe como ordenamento jurídico, se confunde o que qualifica pelo que é qualificado; jurídico não significa mais do que atinente ao direito e por isso não podem ser o mesmo substantivo e adjetivo.

Direito, pois, não consiste no ordenamento senão no que ordena, quer dizer que une ou, de uma maneira mais realista, que liga; e, portanto, é uma força. E para investigar como opera e, ante tudo, aonde chega, o primeiro passo está em descobrir esta verdade. Força, dunamis, diziam os gregos. O contraste da estática com a dinâmica ilumina ainda mais a relação do direito e do Estado. O primeiro não pode ser, como crêem os modernos, o mesmo que o segundo, precisamente por-que não pode identificar-se a causa como sendo o efeito. Força não significa mais do que a idoneidade de algo para transformar o mundo. E o direito significa, por sua

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vez, essa idoneidade. Meu propósito fora conhecer seu curso e sua fonte.

Uma força é o direito, mas não a força original. Ao contrário, uma força secundária: o que os alemães costumam chamar Ersatz.

E qual é a original? Aqui os juristas necessitam ver a verdade cara-a-cara. Quando numa família o direito chega a ser supérfluo, quer dizer, quando a armação pode cair sem que caia o arco, o que ocupa o lugar do direito chama-se amor. Uma verdade, pois, como o sol clareia as coisas mais deslumbram os olhos. E, portanto, os juristas olham as coisas e não o sol; se o observassem saberiam que o original desse substituto não é mais do que o amor. Enquanto os homens que não saibam amar necessitam de juiz e policiais civis para mantê-los uni-dos. Quer dizer: enquanto os homens não saibam amar temos que obrigá-los.

Eis aqui outra palavra que não necessita ser des-membrada para mostrar o seu conteúdo: um homem obrigado é um homem amarrado, e um homem amar-rado não tem liberdade. Sujeita-se o homem, que não logra fazer o bem verdadeiro não pode fazer bem para si próprio nem para todos os demais, ainda os juristas, falam continuamente de liberdade sem escutar o fundo desta imensa palavra. Quando conseguimos escutá-lo, mais uma vez nossas idéias invertem-se, e liberdade, em lugar de poder fazer o que gostamos, significa o poder de fazer o que não gostamos. Entre os homens, os que não conseguem o seu próprio sustento, o mais forte, quando mata o mais fraco para comer sozinho, não é livre senão servo; não deveria ter usado sua força para matar o outro senão para sustentar o outro, não obstante, sua própria fome, merece chamar-se liberdade. A

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liberdade, em suma, não é o poder sobre os demais, senão sobre si mesmo: não dominium aíterius sim dominium sui. Eis o porque do antigo aforismo: ubi societas ibi ius, eu proponho acrescentar: ubi libertas ibi non ius.

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Agora a semelhança com o arco, ajuda, contudo, a compreender mais profundamente o valor do direito. Um arco. Uma ponte. Como se chamam as margens, já dito no princípio, que se juntam por meio dele? Voltemos ainda a tomar o caso dos dois homens, que não tem como manter um ou outro. O homem mais forte, que mata o adversário para comer sozinho, qualifica-se rigorosamente como homo oeconomicus, o qual não cuida de nada fora de seus interesses. A esquerda da ponte a terra chama-se, pois, economia. O homem mais forte, o qual deixa de sustentar o mais fraco, qualifica-se, ao contrário, como fiomo moralis, que não pode separar o próprio das coisas dos demais. A direita da ponte o nome da terra é moralidade.

Dois opostos, os quais podemos representar com as figuras expressivas do lobo e do cordeito: homo homini lúpus e homo homini agnus. A humanidade não pode transpor o abismo, que separa as duas margens, sem uma ponte estendida de uma a outra. Esta ponte atrevidíssima recebe o nome de direito. Precisamente, uma linha reta, a qual une dois pontos.

Mas os dois pontos representam duas terras ou, melhor dizendo, a terra e seu oposto. Como se chama, pois, o oposto da terra? Os homens simples compreen-deram-me pensando simplesmente que o direito ajuda ao homem em seu caminho fatigoso, o qual ascende da terra ao céu.

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Isto é, pois, o direito? E este é o jurista, que quer saber o que é o direito? Não sabe, afinal, nada de pre-ciso. Expressa-se, em suma, mais do que como um douto como um poeta.

Precisamente aqui está a diferença entre minha juventude e minha velhice de jurista. O jovem tinha fé na ciência; o velho a perdeu. O jovem acreditava no saber; o velho sabe que nada sabe. E quando o saber junta-se com o saber que não sabe então a ciência converte-se em poesia. O jovem contentava-se com o conceito científico de direito; o velho sente que neste conceito perde-se seu impulso e seu drama, e, portanto, sua verdade. O jovem queria os contornos cortantes da definição; o velho prefere os matizes da comparação. O jovem não crê senão no que via; o velho não crê mais no que não pode ver. O jovem estava à esquerda; o velho passou à direita da ponte. E para representar esta terra, onde os homens se amam e amando-se conseguem a liberdade, tampouco serve à poesia; o jurista quis ser músico para fazer com que os homens sintam este encanto.

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O que é a Lei?

Os juristas de outrora não conheciam nenhuma diferença entre direito e lei. Com efeito, estes dois conceitos tem, indiscutivelmente, um elemento comum: a idéia de ligar. Mas qualquer pessoa, que tenha uma certa cultura, sabe que, enquanto direito é um conceito exclusivamente jurídico, não se pode dizer o mesmo da lei, posto que não somente os juristas senão também os cultivadores de cada ciência e, no primeiro termo, das ciências naturais, empregam a mesma palavra: natura-listas, físicos, químicos e astrônomos perante todos.

No primeiro perfil, pois, sob qual é o problema da lei, deve examinar-se, conforme a relação entre lei ju-rídica e lei natural: Trata-se de duas espécies do mesmo gênero ou, ao contrário, lei jurídica é um conceito totalmente diverso de lei natural?

Os juristas atuais tratam a lei jurídica não somente como coisa diversa senão como um oposto da lei natural. É a reine Rechtslehre, quer dizer a escola pura do direito, a que conseguiu purificar também o conceito de lei jurídica opondo-a a de lei natural: esta concerne ao que é e aquela ao que deve ser; o primeiro, diria-se que é um conceito ontológico, e deontológico o segundo.

Propriamente lei natural expressa um vínculo entre um prius e um post; os naturalistas, depois de Newton, falam de uma consecutio necessária de dois estados da natureza: o primeiro anterior e o segundo, imediata-mente, posterior. Nestes termos, a lei natural idenfica-se com a causalidade ou, ao menos, serve para descobrir a causalidade: quando dois estados da natureza são

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necessariamente consecutivos, basta a existência do primeiro para que o homem possa estabelecer a existência do segundo. Assim, compreende-se o supremo descobrimento de uma lei natural: quando possui uma destas leis, o homem pode abrir uma janela sobre o futuro. Agora, se suposta a existência de um estado da natureza, podemos estabelecer o estado consecutivo antes de que exista, como não ver que a lei natural também expressa não tanto o que é quando o que deve ser?

Kelsen, contudo, pensava que o mundo natural fora dominado pela causalidade e não pela finalidade: não há nada de deontológico na natureza. Sob este aspecto são totalmente diversos, mas bem opostos, o mundo das coisas e o mundo dos homens, quer dizer a matéria e o espírito. Mas, embora a escola de direito puro não seja certamente antiga, muita água já passou debaixo da ponte desde que estas idéias foram concebidas e, docilmente, a maioria dos juristas as aceitaram. Na verdade, a evolução das ciências naturais nos últimos tempos pode chamar-se mais propriamente de uma revolução. De um lado, é o mesmo conceito da lei, como consecutio necessária de dois estados da natureza, o que se alterou, substituindo a necessidade pela probabilidade e destruindo assim a fé na infalibilidade das leis; por outro lado, a diferença, melhor a oposição, entre a causalidade e a finalidade acaba por desaparecer e cada dia mais os naturalistas descobrem, nos setores mais diversos, que o que parecia uma pura consecutio causalis é, mais propriamente, uma consecutio finalis, quer dizer que a causa e o fim distinguem-se tão somente na mente limitada dos homens, os quais dizem por quê somente porque não acabam de ver o para que, oculto ao seus olhos.

É por isso que, sem faltar com o respeito a Kelsen e a sua escola, eu duvido que o termo primeiro de sua

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definição opositiva de lei jurídica a lei natural seja verda-deiramente exata.

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O que podemos certamente dizer da lei jurídica é que esta lei descobre mais claramente a relação de fina-lidade no lugar de causalidade entre os dois membros do conjunto. Este caráter deve-se ao fato de que a lei jurídi-ca foi construída pelos homens; assim a mesma opõe-se a lei natural como lei artificial.

Contudo, sob o perfil da estrutura, a lei jurídica e a lei natural assemelham-se como duas gotas de água. Há numa como noutra um prius e um post, e a lei expressa o vínculo entre eles. Quando o naturalista disse: posto que o homem nasceu deve morrer, é o mesmo que o jurista declara: posto que um homem matou outro homem, deve ser morto. Mas o problema, acerca da lei jurídica, é o do porquê os homens necessitam construir leis jurídicas ao lado das leis naturais.

Eu creio haver meditado este problema por toda a minha vida. Agora, ao ponto que alcancei, ousaria dizer que esta razão é a mesma pela qual os pintores e os poetas representam a natureza em seus quadros ou em seus versos. Esta proposição, sem dúvida, apresenta um aspecto paradoxal ou ao menos problemático e merece algumas explicações.

* * *

Enquanto os naturalistas fizeram admiráveis pro-gressos acerca das leis naturais, não passou o mesmo com os moralistas, pelo que concerne à lei moral. Na-turalmente, esta diferença não pode carecer de razão; e a razão encontra-se na dificuldade, incomparavelmente mais grave, que se opõe a conhecer o espírito e o corpo. O meio necessário para conhecer é a análise;

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agora sim, se a causalidade natural deixa-se separar numa variedade de leis, de maneira que os naturalistas não falam nunca da lei senão das leis naturais, para o moralista não parece possível um trabalho semelhante; e assim continua quase sempre falando de lei e não de leis morais.

Mas a inferioridade do estudo da moralidade em comparação com a causalidade manifesta-se muito mais claramente no que os moralistas não conseguiram con-ceber sua lei como consecutio necessária de dois feitos do espírito; um prius e um posí. O moralista limita-se a tirar a conclusão e não põe premissas.

Explico-me. O dever ser da lei natural é, precisa-mente, a ilação de duas premissas: uma, como dizem os juristas, de fato e, outra, de direito; o fato, que constitui o prius, e o vínculo, que constitui a lei: o fato é que um homem nasceu; a lei estabelece que os homens, que nasceram, morrerão; por tanto, este homem, que nasceu, deve morrer. Ao contrário, o dever ser da lei moral carece de premissas; este modo de ser é, no fundo, o que Kant, sem saber explicar-se mui claramente a dificuldade, quer-se demonstrar falando da categoricidade de seu imperativo.

Pois bem, a falta de premissas constitui um verda-deiro caráter da lei moral, ou, pelo contrário, um fenô-meno de miopia dos moralistas? Não é um deboche, naturalmente, que eu queria dirigir a esta ilustre classe de filósofos senão, mais modestamente, uma contribui-ção, que acaso um jurista pode levar à suas meditações. Provavelmente a situação do jurista é mais cômoda para observar os fatos do espírito e, assim, as relações entre eles. E, dos juristas, o penalista tem, com este fim, as maiores possibilidades.

O penalista? O que trata o penalista, não é o homem, cujo espírito deixa-se dominar pelo corpo?

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Precisamente; e é por isso que o penalista observa a reação do espírito a esta opressão. Eu creio que o estudo do espírito faz bem quanto mais o homem alheia-se da mediocridade: somente os dois opostos, os santos e canalhas, oferecem, a quem observam, sua alma desnuda. Aqueles são a luz; e estes, as trevas; mas, necessita-se das trevas para compreender a luz. Justamente falei da reação do espírito à opressão do corpo. Há alguém que ignore como chama-se esta reação? Desassossegamento. Uma palavra estupenda. O cachorro morde. Existe um cachorro que morde o homem, depois que fez o mal? Se o que fez um mal, padece de um mal, começa a mostrar-se as premissas da conclusão dos moralistas. Também, no setor espiritual o mesmo que no da natureza, o dever ser expressa a consecutio necessária de um fato a outro fato; pronto ao delito segue, naturalmente, a inquietação; quer dizer, quando existe o delito, também o remordimento deve existir. Assim, se o homem quer não padecer de desassossego, não deve cometer o delito.

Esta do remordimento é a mais conhecida mas não a única nem a mais importante entre as conseqüências necessárias do delito e, portanto, entre as manifestações da lei moral. Permitam-me aqui traduzir algumas linhas de um pequeno estudo sobre Moral e Direito, que escrevi em 1944, quando estava refugiado na Suiça: se não houvesse mais de que lei criminal neste mundo, a vida seria muito mais fácil aos delinqüentes do que é a realidade! Na realidade, o que cometeu um delito ou terá ou não terá remordimento; se o tiver, há aqui uma pena pela qual sofrerá muito mais do que com a prisão; se não o tiver, o que é bem possível, as coisas irão ainda piorar para ele porque, neste caso, ele cometerá novos delitos ainda: esta é a mais terrível e, por sua vez, a mais simples das conseqüências do delito. Deveria-se investigar o suplício do assassino, o qual, havendo ma-

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tado um homem, necessita esquivar-se da justiça para, ainda, matar. O primeiro delito, como a primeira guerra, pode procurar prazer; mas que é do último delito ou da última guerra? Minha conclusão era que o mais alto descobrimento da ciência, cujo valor supera todos os méritos de todos os homens de ciência do mundo, é esta humilde verdade: que o bem procura o bem e o mal procura o mal. Mas eu não conheço o nome de nenhum grande homem, ao qual este descobrimento esteja unido. O inventor, na sua grandiosidade, deve ter sido este homem, que empregou a mesma palavra, "bem" ou "mal", para significar o que se faz e o que se tem, o benefício ou o malefício, a felicidade ou a infelicidade (La Crisi dei Valori, Roma, 1945). Assim se mostra a unidade fundamental de todas as leis, sejam leis naturais, sejam leis morais, e se revela a moral por meio da natureza. Não creio tampouco que este possa chamar-se um descobrimento se há séculos e séculos os conceitos da moral e da natureza contaminaram-se na fórmula do direito natural.

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Que o mal procura o mal e o bem procura o bem, é uma lei que não se pode faltar; mas para se averiguar necessita-se de muito tempo. Aqui está a razão da ad-moestação do Maestro: nolite judicate. O objeto do juízo é, em última análise, a qualidade, boa ou má, de uma coisa e para conhecer essa qualidade deve-se ver até o fundo. Pois bem, como nossos olhos não podem ver até o fundo, o juízo do bem e do mal é o fruto proibido.

Mas os homens, que não têm o tempo necessário para julgar, têm, contudo, necessidade de julgar. Não conheço um aspecto mais trágico da vida. Não podemos saber o que é bom ou mal; e, sem embargo, devemos fazer o bem e não o mal. Como se concilia esta

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contradição? Não há, para superar a dificuldade, outro meio que obedecer. O idioma espanhol, como todos os idiomas neolatinos, foram empanados na transparência desta palavra. Necessita-se regressar à forma latina original como composta de oò e de áudio para saboreá-la em sua pureza: a partícula ob, anteposta a audire, significa a espontaneidade do ouvir ou, mais exatamente, de escutar.

O que se escuta? O povo, em sua simplicidade, fala de uma voz que se escuta; e, para indicá-la, diz que todos os homens a levam consigo: consciência não significa mais que uma ciência, quae est cum nobis, que está conosco; e como cada ciência consegue escutando, seu pressuposto não pode ser mais do que uma capacidade de ouvir. O que se ouve não é, no fundo, mais do que os meninos ouvem dizer por seu pai quando estão prontos a fazer alguma coisa: faz ou não faz porque é bom ou é mal, quer dizer, porque a conseqüência de sua ação será boa ou má.

E por nenhuma outra razão do que por esta capacidade de ouvir que o homem é homem: uma verdade que ainda, uma vez mais a divina palavra não descobre, embora os homens não abram seus olhos para olhá-la: chamam-se, desde logo, sujeitos, e são complacentes com este nome, e opõem-se como sujeito aos animais, que são somente objetos e não sujeitos; mas não fazem reflexão que o sujeito é algo, que esta sob e não sobre outro{sub jacet)\ Obedecer, pois, não é mais do que sujeitar-se e, para tanto, ter consciência de nossa natureza, a qual consiste em ser sujeitos e não somente objetos.

* * *

Mas nem todos os homens sabem escutar. Não é o mesmo escutar e ouvir. Ouvem-se as palavras; o silên-

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cio escuta-se. Infelizmente, por mais que crê que o silên-cio, em lugar de tudo, seja nada. Nosso trabalho turba silêncio com uma multidão de sons; e a voz da consciên-cia fica sufocada. Não temos tempo de fazer silêncio; as necessidades da vida nos constringem a golpear o mar-telo; e desde outro lado, nossa arrogância inverte a significação do sujeito. Agora, quando o depois realiza a conseqüência do antes e um mal recebido segue o mal feito, já o antes está esquecido e, portanto, quando não há Deus no nosso lugar, amaldiçoa-se a causalidade.

Há, contudo, entre os muitos que fazem ruído, algum que escuta. O mais trágico dos povos da terra, cuja tragédia consistiu em encontrar-se mais próximo de Deus sem saber aproximar, os chamou profetas. E não deve maravilhar-nos se seus profetas não profetizaram mais do que o mal, posto que o povo não fazia mais que o mal. Como qualquer, ainda sem chegar a estes exem-plares extraordinários, um homem que exorta aos outros a fazer o bem e a não fazer o mal não pode deixar de ser um homem, que tem uma possibilidade maior do que os outros de escutar ou, o que é o mesmo, de ver no futuro. Assim a humanidade foi dividida sempre numa pequena minoria, que olha e que escuta o que a multidão não pode nem ver nem ouvir, e na multidão que olha e que escuta não o que estes homens conseguiram ver ou ouvir senão o que representam ter visto e ouvido. Assim, dentre alguns cegos, que tem um vislumbre, toma aos outros na mão e trata de guiá-los pelo extenso caminho.

O que fazem estes poucos homens não é nada de diverso do que fazem o poeta e o pintor: a arte, em suma. E não devemos crer que um e outro descreva tão só o que viu e ouviu, fisicamente, quer dizer, em outras palavras, o que existe no passado; o que não descreve senão o passado é um fotógrafo ou um cronista, não

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um poeta ou um pintor. O artista, na verdade, conta o que seus olhos e não os olhos da multidão alcançaram vendo o fundo da realidade, onde unem-se o passado e o futuro. Arte, portanto, também dos homens que buscam representar as leis do espírito como as leis da natureza. E se algum de meus leitores necessitasse concretizar esta idéia com um exemplo, o aconselharia pensar nos juristas romanos, que se não cultivaram a ciência do direito na sua significação mais moderna e própria, foram tais artistas, que conseguiram para Roma na história um posto não inferior a altura de Atenas.

* * *

O meio da representação da lei moral, que faz desta maneira, é a palavra. O praeceptum é um conceptum e, mais propriamente, um discurso ou conceito discursivo. E, enquanto representam a lei, os juristas podem chamar-se praeceptores propriamente porque tomaram {ceperunt) antes iprae) o que conta aos demais. Sob este aspecto, a lei jurídica, como representação da lei moral, é palavra.

Mas não basta a palavra para guiar os homens no longo caminho da vida, como não bastaria ao pastor guiar as ovelhas, se não empregasse também o cachorro e o cajado. Portanto, a representação das conseqüências do fato, bom ou mal, não pode limitar-se ao anúncio do bem ou do mal, que, mais tarde, naturalmente, seguirá. Se o filho não quer estudar, o pai não faz outra coisa que lhe predizer as suas lágrimas futuras, o filho, em noventa por cento dos casos, continuará rindo porque não crê: o pai deve converter as lágrimas futuras em lágrimas presentes para convencê-lo. Há aqui, ao lado da palavra, a bengala. É por isso que a lei jurídica, mais do que ser limitada ao anúncio da lei moral, e assim da conseqüência futura do mal passado, estende-se para antecipá-la, quer dizer a converter o mal futuro

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no mal presente; e converter em presente o futuro, o mesmo que o passado; não é representar?

Embora eu saiba que a mais alta virtude do artista é a medida e, para tanto, tenha sempre o medo de exagerar; como não ficar um momento a gozar ainda da transparência desta outra palavra? Se não obtivesse outra vantagem de meu encontro com meus companheiros americanos do que aquela de comunicar-lhes meu amor pela palavra, a longa viagem estaria plenamente justificada. Filósofos e juristas ao falar continuamente de representação e de representar assemelham-se ao camponês que, achando uma moeda sob a terra, não observa suas figuras e não estima seu valor. Veremos, mais tarde, o valor do presente; todavia, agora compreende-se, fazendo uma reflexão, que a representação implica num alongamento do presente, quer dizer, a extensão do presente a algo que, não sendo presente, não pode ser mais do que passado ou futuro. Veremos, digo, como pode explicar-se esta espécie de milagre; contemo-nos agora a observar a palavra com uma espécie de religião. Agora, a potência representativa da lei jurídica e, para tanto, da arte do direito supera, se não me engano, aquela de qualquer outra arte e o legislador merece a qualificação de artista, ainda, mais propriamente do que o poeta e o pintor, porque nem tanto descreve o povo o que seguira naturalmente ao bem ou ao mal, que fez o homem, quer dizer, o explica a lei moral, acerca do porquê adianta a conseqüência futura deste bem ou deste mal, juntando à conseqüência natural uma conseqüência artificial do fato humano.

Assim, comporta-se o legislador porque o homem teme ao homem mais do que teme a Deus. O mal, que seguirá, naturalmente, o mal, tarda muitas vezes em chegar porque Deus(que, segundo a sabedoria popular, não paga o sábado) é der Künstler des Wartens, o

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artista da espera, como lido numa página inesquecível de Lippert; e a insuficiência do homem, sobre todos, manifesta-se como defeito de paciência. Não bastaria a incredulidade sem este outro efeito para justificar a necessidade da estrutura da lei jurídica, como tratei agora de explicá-la.

* * *

Uma diferença, pois, encontra-se certamente entre as leis, natural e jurídica; ainda não pode formular-se em termos correntes: quer dizer, francamente, com a definição da escola de Viena. Tanto uma como outra lei representa, às vezes, o que é e o que deve ser. Também a lei jurídica representa uma consecutio necessária do futuro ao passado. Não há diferença entre elas sob este aspecto. A diferença deve buscar-se em outra parte. E para encontrá-la são ainda as palavras as que devem guiar-nos.

Uma dessas palavras, no binômio corrente, é o adjetivo natural. O contrário de natural não é artificial? A natureza opõe-se justamente à arte. A arte junta-se à natureza para enriquecer o mundo. E enriquecer o mundo é a tarefa do homem. O legislador, como o pintor com seus quadros ou o escultor com suas estátuas, executa esta tarefa com suas leis. O pintor ou o escultor, para cumpri-la constrói uma coisa nova tendo ante seus olhos um modelo. Também o mecânico é, ao lado do pintor ou do escultor, um artista. O mecânico fabrica o fantoche automático estudando o homem como o escultor ou o pintor. E a lei jurídica respeita a lei natural como o fantoche respeita o homem.

Há aqui, pela segunda vez, uma comparação. Ain-da, em lugar de ciência, um pouco de poesia. Precisa-mente. A comparação, com a poesia, serve para olhar mais no fundo do que a definição, quer dizer, a ciência.

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Já o conceito de artifício, frente à natureza, contém um pouquinho de pessimismo; mas temo que não seja su-ficiente. Entretanto, trata-se de representar um estado do mundo, a arte pode aproximar-se da natureza e algumas vezes, por acaso, parece superá-la; mas a lei jurídica não se assemelha ao retrato do homem, que não fala e não se move, senão o fantoche, que quer falar e mover-se. Para conhecê-la, não basta, pois, explicar sua função sem acrescentar sua irremediável inferioridade à função. O homem pintado pode parecer a verdade do homem-, o homem mecânico não pode deixar de ser um boneco. Eis aqui a utilidade, porque não dizer a necessidade, da poesia. O cultivador da ciência, depois de haver decomposto e recomposto o mecanismo, fica complacente observando-o. O poeta observa a distância que separa o artificial da natureza e suspira.

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O que é o Fato?

Nos tempos longínquos de minha juventude, um dos primeiros clientes, sobre a pele dos quais se consumiu pouco a pouco minha ignorância da lei e, o que conta muito mais, da vida, foi um engenhosíssimo vigarista cubano, que um dia discorrendo acerca de sua causa, aplicou com esta fórmula o princípio da divisão de trabalho entre nós: o direito o faz o advogado; mas o fato o sabe o preso. Assim, manifestava-se na mente de um profano a oposição do direito ao fato, que é familiar a todos os juristas; e melhor diria-se a todos os que com uma palavra mais ampla, para não deixar de fora nenhum dos que operam, ainda que materialmente, com o direito, os alemães chamam Rechtswahrer.

Mas, se queremos falar rigorosamente, a oposição não pode ser formulada entre o direito e o fato, senão entre o fato e a lei. Formulada em seus termos tradicionais, a distinção contém a ausência comum, que concerne à confusão do direito e da lei; o direito, como dissemos, e veremos melhor muito breve, melhor que a lei representa a síntese da lei e do fato: e será provavelmente esta síntese a mais difícil para explicá-la claramente.

É por isso que, uma vez que conhecemos a lei, agora o fato deve atrair nossa atenção.

* * *

Há uma palavra mais empregada do que fato? Eu creio que somente coisa pode disputar o primado. Uma e outra assemelham-se em certas moedas entre as que, a força de circular, não se distingue já a cara nem a cruz. Todo o mundo, para tanto, as emprega crendo

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conhecer sua significação e, portanto, quando alguém pergunta o que querem dizer, a resposta não segue com a facilidade esperada.

Sem dúvida, uma curiosidade da ciência do direito é que todos os juristas falam continuamente do fato jurídico e nem um só preocupa-se em explicá-la, ao lado do adjetivo jurídico, quer dizer, ao lado do nome direito, ao qual este adjetivo refere-se, também o substantivo fato, que o sustenta. O fato, em si mesmo, é uma espécie de ilha misteriosa no reino do direito. Somente nos últimos anos, algum entre outros ousou violar seu segredo.

O primeiro passo a ser atingido, se não me engano, na comparação dos dois termos, os quais anunciei pouco antes: fato e coisa. Muitas vezes, empregamos um ou outro com indiferença-, mas tal superficialidade não pode tolerar-se se queremos superar a esfera do empirismo.

A comparação compreende, por sua vez, unidade e diferença. O que devemos buscar, pois, pode chamar-se, em linguagem escolástica, o genus proximum e a differentia specifica entre os termos.- fato e coisa, factum e res.

Se de algo pode servir minha relativa cultura, não conheço um só filósofo ou jurista moderno, que haja sentido a necessidade de estabelecer, para suas investigações, este ponto de partida.

* * *

Coisa e fato são duas espécies, ou melhor, dois aspectos de um mesmo conceito, que pode ser formulado com a palavra objeto.

Bela palavra! Aliquid jacet ob. Algo jaz adiante. O objeto refere-se ao sujeito; e tivemos já ocasião de ver que, para tanto, o homem merece o nome de sujeito,

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enquanto estiver a observar. O que é, pois, o que jaz adiante? O mundo, responderá. Verdade. Mas o mundo é exagerado para poder vê-lo. Os sentidos do homem se parecem a janelas de uma casa, onde o mundo inteiro não pode penetrar. O quadro que se apresenta diante da janela: eis aí o objeto.

Quer dizer que o objeto determina-se mediante a atenção. Este sim é um conceito que a filosofia moderna ultimamente elaborou-, faço alusão, ante tudo, a Heidegger, sob o aspecto lógico, e a Bergson, sob o aspecto fisiológico. O paradigma da atenção encontra-se na atitude do caçador, quando fecha um dos olhos para mirar no pássaro. Para ver uma coisa é necessário não ver as demais. O mundo divide-se, assim, numa variedade de objetos. E objeto é o que do mundo podemos olhar.

Agora já compreendemos que o caráter principal do objeto é sua relatividade; um objeto é ademais a terra, o céu inteiro para o astrônomo que o contempla e, às vezes, o micróbio para o biólogo, que o observa.

Um objeto pode ser observado imóvel ou em movimento. Assim, formula-se, de forma rudimentar, a diferença entre os termos que estamos observando-, fato é a coisa que se move; e coisa é o fato quando está imóvel.

Quem não vê, todavia, como este rudimento esconde algum dos maiores problemas da filosofia? Estar imóvel ou mover-se. Que quer dizer? O problema do movimento é, no primeiro termo, o problema do tempo-, e o problema do tempo é o da vida. Assim, o estudo do direito, como de outra matéria, nos conduz, insensiveJmente, até o umbral do mistério.

O problema do tempo é um dos que a filosofia antiga não teve a possibilidade de resolver. E também para a filosofia moderna perdura, até o último século,

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esta dificuldade: Kant, com efeito, tem o mérito de nos haver dito o que não é, mas não de haver dito o que é o tempo; soubemos depois dele, que o tempo não é realidade; mas não sabemos ainda como se explica o que seja realidade. Até o último século, dizia-se; agora, o que se produziu no último século que possa nos ajudar a superar a dificuldade? Bergson teve, a este propósito, uma intuição de supremo valor quando indicou a importância para investigar o pensamento do que chama de íe procede cinematographique. Entretanto, a pergunta-, que alguma coisa está imóvel ou se move, que quer dizer?, é superlativamente difícil, embora seja possível, responder com uma definição, qualquer dificuldade de-saparece quando recorremos à comparação: a máquina fotográfica está imóvel e o filme move-se. A coisa assemelha-se à máquina fotográfica e o fato ao filme.

* * *

Detenhamo-nos, pois, um momento, se me permitem, neste ponto.

Como se chama o que se vê do mundo com uma olhada? A palavra que os latinos empregaram com tal objetivo, está, como quase sempre, plena de significação; species significa, precisamente, o que se vê, quer dizer, o objeto duma visão instantânea, fora do tempo. A species é o mesmo que a máquina fotográfica.

E como se chama, por sua vez, o contrário da species? A palavra latina genus tem mais significação; genus é o que gignit, e generatur é o que gera e se gera. O mundo, assim, não está fora senão dentro do tempo. O aspecto temporal distingue a espécie e o gênero, a coisa e o fato. A espécie é, o gênero deuiene. A espécie é um momento como a máquina fotográfica; o gênero é um desenvolvimento, como o filme. A primeira representa-se, geometricamente, com o ponto; a segunda, com a linha.

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Agora podemos voltar ao que já descobrimos a propósito da lei. A lei representa a consecutio necessária de dois fatos: o homem que nasceu deve morrer; o nascimento e a morte. Eis aqui os dois fatos. Mas representar é fazer com que o fato esteja presente; e não pode estar presente o que não pode abarcar-se com uma olhada; presente, pois, não é mais do que a species; o gênero, ao revés, desenvolve-se desde o passado no futuro.

É por isso que a lei, para cumprir sua tarefa, deve comprimir o fato numa espécie. Compreende-se agora por que a ciência moderna do direito converte o binômio latino species facti em única palavra: factispecies? No idioma corrente pode traduzir-se esta palavra pelo fato em questão; ainda assim, perde-se a fineza de sua significação, que concerne à redução do gênero em espécie: o fato, para se representar, comprime-se até que chega a ser uma coisa.

Não há nada mais gráfico do que o cinematógrafo para explicar-nos esta compressão. A maior janela, que a observação de tal procedimento oferece a quem investiga o segredo de pensar, consiste no que se chama encurtar ou ampliar o passo da projeção. Quem não viu representar o nascimento de uma flor com tal aceleração, a qual permite contrair em alguns instantes um longo desenvolvimento de tempo? O cinematógrafo, diria-se que possui a faculdade de encurtar ou de ampliar o tempo. Mas esta faculdade é um original ou cópia? Não há nada de original no que o homem consegue fabricar. A mais original das invenções não pode não ser uma invenção; e inuenire, no idioma latino, não quer dizer mais que achar. O original do cinematógrafo é o pen-samento. E o pensamento possui uma faculdade de encurtar ou de ampliar o passo infinitamente maior: a

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mariposa não pode voar sem mover-se; todavia, o pen-samento não pode transformar em imobilidade seu vôo.

* * *

Assim aflora no discurso a conversão do movimento na imobilidade. E assim opõe-se à lei ao direito. O eterno contraste entre o ser e o mover-se apresenta-se também ao jurista sub specie da oposição do fato à lei. A lei está; o fato move-se. A lei é um estado; o fato, um desenvolvimento. A lei é o presente; o fato não pode ser mais do que passado ou futuro. A lei está fora do tempo; o fato está dentro.

E assim compreende-se porque se luta por direito, como nos ensinou um dos maiores juristas alemães, quando o direito é luta. O direito vive desde o sinal da contradição. O mais íntimo desta vida é a luta da lei e do fato. A lei busca deter o fato e o fato fugir da lei. Veremos, mais adiante, como em juízo esta luta pode terminar.

De forma geral, a luta do direito reproduz, num de seus aspectos mais dramáticos, o esforço do homem para fugir do tempo. O que mais necessita o homem sobre todas as coisas, é a eternidade. O presente descobre a sua necessidade: esta problemática, mais precisamente esta contraditória contaminação do passado e do futuro, que uma vez chamei no man's land entre um e outro. Que coisa pode ser nem passado e nem futuro que não seja o eterno?

Não há, se não me engano, outro exemplo mais eficaz do que o do direito para que os homens sintam a necessidade de superar o tempo, quer dizer, para fugir da tormenta de voltar e ficar na paz do ser.

• * *

Dissemos: o íato desenvolve-se e, para tanto, foge da lei. Mas nem todos os fatos desenvolvem-se com a

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mesma velocidade. Há desenvolvimentos lentos, como a agulha2 marca as horas sobre o quadrante do relógio; e outros rápidos, como a agulha para marcar os segundos. Também as montanhas movem-se; mas os homens não podem pôr em relevo esta mudança ao longo de sua breve vida; e, para tanto, diz-se que as montanhas estão imóveis, ao contrário dos homens, os quais se movem.

Agora sim, enquanto, por exemplo, a lei astronô-mica enlaça os fatos dos astros, a lei jurídica liga os fatos aos homens. A primeira diz: posto que o sol nasceu, o sol vai morrer; e a segunda-, posto que um homem matou, o homem vai ser morto. Eis aqui os dois fatos, que a lei jurídica enlaça; dos homens que matam outro homem, o assassino e o carrasco.

Um homem. Carne primeiramente. Entre a carne e a pedra há a mesma diferença, enquanto a mudança, a qual existe entre as duas agulhas das horas e dos segundos. Ainda, como carne e pedra, há carne e carne. Carne é a cabeça do animal como a cara do homem. Vultus diziam os latinos, para indicar o rosto. E como recordar-, risum coííigit ac ponit temere et mutatur in horas?. O mérito desta denominação latina é o de expressar a mudança; não há outra parte do corpo que, como o rosto, instantaneamente mude-se.

Neste ponto já se começa a adivinhar quanto mais difícil seja a tarefa da lei jurídica em comparação com aquela da lei física, pois os fatos, que devem represen-tar, não deixam comprimir seu desenvolvimento numa species; o nome latino de vultus, enquanto expressa com a mutabilidade o caráter do homem, constitui o paradigma desta dificuldade.

2. Nota do tradutor: corresponde ao ponteiro do relógio. Mantivemos a mesma terminologia para não destoar das idéias que se seguem.

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* * *

Mas a investigação do fato, sob o perfil jurídico, não ficará cumprida sem buscar a razão da murabilidade levada, como vimos, ao extremo quanto aos fatos hu-manos.

Vuítus. O rosto do homem frente ao focinho do animal é algo que se muda. Por quê? Porque o rosto não é mais do que um espelho. De quê? Aqui, outra vez, o umbral mistério; e com isso, outra vez, a insuficiência da razão e a necessidade da poesia. Sem dúvida, no rosto algo se reflete; e isto que se reflete, o faz mudar. O prazer, a dor, a esperança, o medo, o desespero, o sorriso, o pranto, a serenidade, a obscuridade. Banalidade, ouço dizer, não é poesia. Se não houvesse mais que isto, certamente. Mas do que se necessita para reproduzir o ato do homem, quer dizer o homem que faz, é representar juntamente a serenidade e a obscuri-dade, o choro e o sorriso. Aqui está a diferença entre o fotógrafo e o pintor. Na fotografia um homem chora e sorri; somente o pintor pode, se é pintor verdadeiro, expressar conjuntamente seu sorriso e seu pranto.

Aqui, ainda, a diferença entre o retrato e a paisa-gem como formas de pintura. Não duvido que a primeira destas formas seja mais espiritual. E queria, se não me exigir uma excessiva digressão, explicar logicamente o que eu gosto de chamar de redobramento do movimento ou da mudança quando desde o corpo passa-se ao espírito; redobramento, precisamente, porque, ainda o corpo não faz mais do que progredir para o futuro, o espírito, ao contrário, progride e regride, fazia o futuro ou fazia o passado, quer dizer que não está sujeito à irreversibilidade do tempo. O corpo, numa palavra, vive dentro e o espírito vive fora do tempo. Não somente os homens comuns, como também os homens da ciência e,

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sobretudo, os homens da filosofia e também da teologia encontram tais dificuldades para separar o espírito do corpo que acostumam referir a um e ao outro, indistintamente; a irreversibilidade, quer dizer o tempo: e não se detém esta confusão, tampouco diante de Deus. Por acaso somente os juristas encontram em suas experiências, mais precisas ao menos, a impressão de que se o corpo não pode, o espírito tem a possibilidade de fazer, ao contrário, seu caminho, e de que assim sua uida é mais uida do que aquela do corpo. Portanto, segundo o que representa a natureza ou o homem, há um pintor do tempo ou um pintor da eternidade.

* * *

Exageros? O legislador é um artista? O legislador é um pintor? Onde estão, pois, seus retratos? Quando, num daqueles livrinhos, os quais formam ao redor de minha obra jurídica um aro de poesia, descrevi os códigos e ante tudo o código penal como uma galeria de figuras, minha razão não se deixou levar pela fantasia? Não há, verdadeiramente, na lei civil um retrato do vendedor ou do comprador como na lei penal do homicida ou do ladrão: dizendo que a venda é um acordo de duas pessoas para permutar uma coisa e uma soma em dinheiro ou que o homicida é um homem que matou outro homem não dá para ver nada nem do vendedor nem do comprador, nem do matador, nem do morto; e um retrato, no qual não se vê o retratado, não é um retrato.

Certamente, a arte do legislador é mais pobre do que aquela do pintor. Mas não há somente a pintura no campo da arte. Justamente a pintura está num extremo deste campo e a música no outro: entre elas, uma graduação da riqueza fazia a pobreza ou pudera dizer desde a corporação até a incorporação. Mas, se a qualificação

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do legislador como pintor substitui-se aquela do músico, a dificuldade, para não dizer, a extravagância do discur-so, aumenta ainda mais.

* * *

Contudo! O pintor não necessita de nenhuma colaboração para que o público goste de suas obras. Ao contrário, para o músico, a coisa é diferente. Aqui, encontra-se uma figura, que aos juristas é particular-mente familiar. Quem de nós não fala de intérprete e de interpretação? Interpreta-se a lei, interpreta-se o contrato, interpreta-se o testamento. Interpreta o juiz, interpreta o acusador, interpreta o defensor. Há a inter-pretação autêntica, a interpretação doutrinai, a interpre-tação jurisprudencial, declarativa, extensiva, restritiva, analógica e outras espécies ainda. Sem dúvida, o con-ceito de interpretação é um dos fundamentos da ciência do direito.

Mas não se interpreta somente no campo do direi-to. A figura do intérprete, na verdade, tem um posto de primeiro plano também na teoria da arte; mas não de qualquer arte, senão daquela forma de arte, a qual de-veria chamar-se arte discursiva em oposição à arte fi-gurativa, segundo a distinção elementar das duas formas de conceito, discurso ou figura. Eleonora, Duse ou Beniamino Gigli, Paganini ou Toscanini, os quais são intérpretes de música ou de poesia? O intérprete jurídico é seu irmão. A interpretação jurídica e a interpretação artística não são duas coisas diversas senão a mesma coisa. Se o direito não for arte, não haveria interpretação no seu campo. A interpretação jurídica é uma forma de interpretação artística; e se não tivesse este caráter não seria interpretação. A grandeza de Vittorio Scialoja e de Arturo Toscanini pertencem a uma só categoria.

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Interpretar. A palavra leva consigo a idéia de uma mediação, quer dizer, de uma conjunção. O intérprete une, diria-se, o produtor e o consumidor de arte. Ainda uma ponte. O intérprete não seria, pois, um artista. Mas o sentido comum rebela-se a esta negativa. Como Scialoja e Toscanini não são artistas? Mas como, por outro lado, poderiam ser artistas se a poesia ou a música não brota da sua fonte? E onde está, pois, a fonte? Como o recitador ou o concertista, tampouco o músico ou o poeta merece o nome de fonte da música ou da poesia. O homem, o maior artista entre os homens, não cria em nada. Sua tarefa e seu mérito não é o de criar senão o de inventar. Todos os artistas não são mais do que trovadores. O engano dos que concebem a arte como criação assemelha-se à ilusão do ignorante, que ouvindo a melodia brotar deste aparelho de rádio não sabe desde quão longe chega o som.

Em vez de considerar os intérpretes como artistas, a verdade é que todos os artistas não são mais do que intérpretes. A diferença entre Beethoven e Toscanini não está no que Beethoven não seja uma ponte também, senão que uma das margens unidas por esta ponte, não se deixa ver. E quando a nona sinfonia nos deleita, uma ponte junta-se ao outro para abrir-nos o caminho, o qual conduz à margem desconhecida.

* * *

Que tal? O código seria uma espécie de partitura?Reflitamos. As notas musicais, ao profano que as

observa, não dizem nada. E quando, num artigo do código lemos quem mata um homem será morto, que coisa se vê mais que nada? Um homem sem rosto não é um homem. Um homem não é homem senão quando é seu passado e seu futuro. Um homem é uma história. O irmão enfia o punhal no peito de seu irmão. E antes?

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E depois? Quem era o matador? E quem o morto? Duas histórias. Quem mata um homem envolve todo o problema do passado. E como a noção de delito envolve o problema do passado; assim, a noção da pena envolve o problema do futuro. Passado e futuro. Todo. Toda a vida. Toda a história.

Cada uma das artes busca expressar no presente o passado e o futuro. Não há nenhum pintor nem escultor que se contente com representação do que vê de seu modelo, senão o que adivinha, quer dizer, o que aquele era antes e o que será depois. Mas não há outra arte que, como a música, não represente mais do que o passado e futuro, quer dizer, somente o tempo: o objeto da música, mais do que esta ou aquela coisa, é a infinita riqueza da vida. E não há outra arte que, como a música, para representar esta riqueza infinita se sirva de uma pobreza franciscana. A mais humilde é a mais alta das artes. Outra vez, remontando o curso de minha vida, tive ocasião de reconhecer que não foi uma causalidade se antes que São Francisco, encontrei Beethoven. A semelhança da arte do direito com a arte musical, denunciada pela necessidade do intérprete, confirma-se na oposição da suprema ilimitação do fim com a suprema limitação do meio representativo; e o conhecimento do direito não pode chegar sem descobrir como se resolve esta contradição.

:!: :|: *

Como qualquer, ainda os fantoches do direito tivessem sua cara, quer dizer, a arte do direito pudesse assemelhar-se mais do que a música, a pintura, quantos foram e são ainda os juristas, que ignoram a diferença entre homem e fantoche, havendo ensinado e ainda ensinando, com adorável ingenuidade, como se o homicídio ou o furto fossem o que lemos no código e não o que sofremos na vida!

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O grande mérito de Enrico Ferri foi o de rebelar-se contra esta confusão; e sua vitória, portanto, teve lugar, ainda que ele não o soubera, no campo da metodologia. O progresso, desde a escola clássica à escola positiva e desde esta à escola técnico-jurídica, é propriamente metodológico; e o contraste metodológico, ainda que a maioria dos juristas não prestem atenção, tem sido muito mais forte o direito penal do que entre os civilistas. Ferri, precisamente, reivindicou o fato contra a lei: aqui está a significação de sua obra e o limite de sua ciência jurídica. Na verdade, o grande penalista italiano abriu violentamente as janelas do museu e mostrou aos juristas que seu mundo não se compõe somente de fantoches. O homem, não o fantoche, este foi seu grito.

# * *

Contudo, o mundo contem também os fantoches. E o problema do direito é a luta entre o homem e o fantoche. Na verdade, a lei não pode servir mais de fantoche para governar o homem. E se a ciência jurídica começou com o estudo do fantoche, não podemos reprovar-lhe em que não haja justamente reconhecido o ponto de partida. O problema em suma, não é nem o problema âo homem nem o problema do fantoche, senão o problema de um e do outro.

O fantoche é como a mão da lei. Sem mãos, como poderia a lei agarrar os homens? Os fantoches tratam de deter os homens, e os homens de fugir. Eis aqui, a luta sem conhecer qual delas não conhece o direito. É por isso que, como resultado do estudo da lei e do fato, os penalistas mais recentes formulam a distinção entre o delito instituto-jurídico e o deíito-fato, o problema do direito não está mais do que proposto: apresentam-se, assim, os dois termos, um contra o outro; mas o conhecimento do direito não se consegue sem ver como a luta desenvolve-se e compõe-se.

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na cena do direito deixando-o ao legislador, a obscurida-de, na qual viveu longo tempo o processo, não permi-tindo aos juristas concebê-lo nem como direito nem como objeto do direito; o sinal desta inferioridade teve-se na fórmula francesa da Procédure civile ou pénale, que se opunha ao droit civil ou penal. Precisamente, por meio da ciência alemã, o processo superou a menoridade convertendo-se a procédure civi le e pénale ao Prozessrecht, quer dizer, alinhando-se o direito proces-sual ao lado do direito material e perfilando-se esta dis-tinção como fundamental para o estudo do direito. E, sobretudo, por este mérito do pensamento alemão do-minar, ao longo de todos os oitocentos e ainda nos primeiros anos de novecentos, a ciência jurídica do mundo inteiro.

Naturalmente, nos primeiro tempos da exportação deste pensamento, os povos importadores não tiveram possibilidade critica. Os alemães eram dominadores e os demais dominados. Mas, pouco a pouco, como sempre acontece, o entusiasmo cedeu o posto a uma valorização mais eqüitativa dos méritos e dos defeitos. Na verdade, a ciência processual alemã é ainda superficial. Seu progresso a respeito da ciência precedente foi, sem dúvida, muito importante; mas, os alicerces faltaram ainda. A este respeito é mister notar que, logicamente, os fundamentos da ciência jurídica, como qualquer outra ciência, estão fora da mesma; assim se fala precisamente de investigações metajurídicas; e aqui se encontra a mais grave dificuldade para o investigador. Mas a ciência não desce em profundidade sem esta fadiga.

Justamente o sinal da superficialidade da ciência moderna processual é sua dominação. Uma vez se falava na Itália, de direito judiciário. Hoje este adjetivo não parece de bom gosto; a moda alemã não admite outra fórmula que não seja aquela de direito processual. E o

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mesmo jurista, o qual os fala, adaptou-se a esta moda sem nenhuma profunda reflexão. A incipiência da pala-vra processo, em comparação com juízo, passou-me inteiramente inadvertida-, e igualmente o parentesco de iudicium e ius. Foi só quando, crendo exausto meus interesses pelo direito, comecei, particularmente nas me-ditações genebrinas, a investigar os segredos da lógica, quando no juízo apareceu-me a essência não só do pensamento como do direito e, portanto, compreendi que o alicerce de um é o mesmo que o do outro. Ve-remos, mais adiante, a importância deste descobrimento.

* * *

Não pode duvidar-se que a palavra juízo tem uma significação única. Já observei que se as experiências dos glotólogos não valeram para descobrir as patentes do parentesco entre ius e iungere, o raio da inteligência chega mais distante; que faz o juiz senão unir as partes? Mas deste argumento não podemos ocupar-nos agora. Parece-me suficiente, neste momento, a observação de que propriamente a idéia fundamental da gnoseologia kantiana(e, provavelmente, seu mais grave erro) cresceu à sombra desta palavra: o juízo sintético seria, precisa-mente, o efeito de uma força unitiva imanente no espí-rito humano: e não necessito explicar minha reserva a respeito desta idéia, que reconhece ao homem o que é próprio de Deus. Todavia, existe a necessidade de unir; e o problema é, precisamente, o de saber de onde chega a força unitiva e como opera sobre os homens. Pode ser que os juristas tenham a posição mais favorável para ver algo mais longe.

Todos compreendem, mais ou menos, que o juízo é a semente do pensamento. Por que não diremos a célula? O pensamento desenvolve-se, justamente, como uma árvore; e se a seus discípulos incultos o Mestre não podia falar mais do grão de mostarda, os atuais co-

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nhecimentos biológicos permitem que a parábola seja levemente modernizada.

A célula, na verdade, possui certas faculdades, gerativas e formativas, sobre as quais teremos oportuni-dade de regressar. Mas, os biólogos não poderiam conhecê-la sem o microscópio e os lógicos não tem, infelizmente, um análogo instrumento a sua disposição. Realmente a natureza tem sido, com os lógicos, tão cruel que não podem ver com seus olhos a célula do pensamento? A tal pergunta, o jurista fica pensativo. Um microscópio lógico, certamente, não existe, contudo, a natureza encarregou-se de fabricar um tipo de juízo gigante, que os homens podem observar comodamente, sem mister de nenhum artifício. Aqui chega o momento para falar do processo. O que é, na realidade, o processo senão um juízo visto mediante uma potentíssima lente de aumento? Se há uma razão para falar do processo no lugar de juízo, é somente que o juízo tão ampliado perde a fisionomia. Necessita-se observá-lo de longe para recompor suas linhas e compreender sua natureza.

Na verdade, que fazem o juiz e as partes neste conjunto de atos, que se chama processo, civil ou penal, que não seja julgar? Beatos, juristas, a quem se descobre um mecanismo que seus companheiros de trabalho nos campos da ciência não podem simplesmente observar! Beatos e ingratos, porque, como os demais, habent óculos et non vident; se não é mister do microscópio, necessita-se ao menos a atenção, a mais simples e, por sua vez, o mais raro cuidado do pensador.

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O juiz e as partes. A primeira surpresa, que o espetáculo do processo procura, concerne a esta publi-cidade. As partes deveriam ser, logicamente, o objeto e

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não um sujeito do juízo; em suma, o julgado e não o julgador. Mas, o julgado tem que sofrer o juízo; e as partes, ao contrário, antes que sofram, operam diante do juiz. Como, pois, operam e por quê? Lutam, numa palavra. Lutam para convencer o juiz. Uma diz branco e outra negro. Muitas vezes, gritam mais do que falam. E o juiz escuta antes de julgar.

Branco e negro. Sim e não. Cara e cruz. O que significa este contraste? A dúvida. Dubium tem sua raiz no duo como dueilum. O duelo das partes personifica a dúvida e mostra o nascimento do juízo. Não logicamente, senão praticamente, o juízo necessita da dúvida. Mais dúvida, melhor juízo. Neste sentido, entende-se o energético dito de Unamuno: fé sem dúvida é fé morta. Tão necessária é a dúvida ao juízo que, na forma do processo, onde o contraste das partes naturais pode faltar, o direito cria duas partes artificiais (instrumentais, disse em minhas Lecciones sobre ei processo penal), o acusador e o defensor, cuja função não é mais do que cultivar e, diria, exasperar a dúvida.

O juízo, assim, toma a forma geométrica de um triângulo. A tríade hegeliana, se dirá. Certamente; mas não sobre o plano metafísico nem tampouco sobre o plano lógico, senão somente para explicar a história do juízo, e também a sua natureza se, no sentido de Viço, a natureza de uma coisa é o modo de seu nascimento.

• * *

Voltemos agora a atenção ao juiz, deixando as partes. O que faz o juiz quando julga? Mais claramente, por acaso, o fundo faz-se transparente em matéria penal.

Olhemos, pois. O juiz pergunta ao culpado. Pergunta às testemunhas. Pergunta às partes. Pergunta às coisas. Queria chamar, se pudesse, a todo mundo sob seus olhos.

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Sob seus olhos. Detenhamo-nos aqui. Chega-me a mente uma frase do mais trágico pensador da Alemanha atual, Martin Heidegger, quando diz, para explicar o conceito de presente: algo está adiante. Depois que a lei, compreendi, finalmente, a prova; ou melhor, o valor lógico da prova. O presente, o mais problemático dos aspectos do mais problemático dos conceitos, quer dizer, do tempo, não é mais que a zona iluminada diante do homem, que caminha levando uma lanterna. Assim faz o juiz; trata de iluminar todo o possível caminho, que se desenvolve diante dele. Assim, faz qualquer um que deve formar um juízo.

Pode-se, com rigor, formar-se um juízo sem dúvida, não se pode formá-lo sem prova. Mas, na maioria dos casos, a prova é de tal modo microscópica que, numa simples observada, não se deixa ver. O mérito deste juízo gigante, que se chama processo, é o de deixá-la ver. Aqui, o espetáculo nos permite o trânsito desde o campo prático até o campo lógico do juízo.

* * *

Enquanto o juiz pergunta, trata de ampliar o presente. Mas, num certo momento, termina de perguntar. O presente alarga-se até os limites do possível. E então?

O juiz não pode ficar ali. Ele escutou o acusado. Ele ouviu as testemunhas. Ele viu as pegadas do delito. Mas o delito não. Aqueles estão na zona da luz; este nas trevas. E ainda o juiz deve prosseguir. Vejamos, pois, o que significa esta continuação.

Passa-se, assim, desde o noto ao ignoto. E o ignoto parte-se em duas divisões: o passado e o futuro. É mister entender esta distinção. O passado, verdadeiramente, não pode ser incógnito posto que passou desde a possibilidade à existência; e não existe(quer dizer não ex-stat, não chega fora) o que não se conhece. Todavia,

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pode ser que o passado seja passado para um e não para outro homem. Neste sentido, ainda o passado pode ser ignoto. Futuro, ao contrário, diz-se o que permanece ignoto a todos os homens. Agora, o juiz é mister que caminhe numa e noutra direção. Numa encontra-se o delito; noutra, a pena. Falou-se do processo penal so-mente por razão de simplicidade; o mesmo, naturalmen-te, pode-se dizer do processo civil: por exemplo, a conclusão da venda e a entrega da coisa é passado, enquanto que o pagamento em dinheiro é ainda futuro.

O juízo é, pois, um salto do conhecido ao desco-nhecido: desde o passado do juiz, ao passado do acusado e depois ao seu futuro. Agora, sua natureza unitiva começa a descobrir-se: a função do juízo é essencial-mente a de unir, através do presente, o passado ao futuro. Um tarefa sobre-humana. É por isso pelo que a explicação filosófica do juízo pode encontrar no campo lógico o seu princípio não pode completar-se mais do que sobre o terreno metafísico; e nada mais que esta sobre-humanidade quis expressar o Maestro com seu enigmático nolite judicare.

* * *

Um salto no passado. O contrato no processo civil, que trata de sua execução, e o delito no processo penal, que tende a sua punição, são o passado; e, como pas-sado, história. Portanto, este juízo chama-se exatamente juízo histórico.

Aqui o ponto de conjunção entre o historiador e o juiz. O juiz e o historiador é um título dos estudos mais sugestivos de meu amigo Calamandrei. Com efeito, o juiz faz, como o historiador, história, ou melhor dito, historiografia. Somente que, na maioria das vezes, embora o historiador trate de grandes feitos, o juiz ocupa-se dos pequenos. Mas esta não é uma regra absoluta: há

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obras históricas dedicadas a buscar as coisas pequenas do passado; e há juizes, sobre quem o destino carrega o peso de castigar um povo: estes últimos tempos tem-se apresentado uma possibilidade tal e não deveria nenhum jurista pensativo ignorar que entre outras coisas, o problema atual da Alemanha é, com enormes dimen-sões, o problema da pena. Esta, pois, da importância dos fatos não constitui, entre o juiz e o historiador, a diferença essencial.

* * *

O historiador, quase sempre, detêm-se a julgar o passado. Mais certo, segundo o positivismo ou o idea-lismo, que são a cara e a cruz da mesma moeda, deve deter-se aqui. Induzir desde o passado o futuro está severamente proibido ao historiador moderno. Que a história seja mctgistra vitae qualifica-se como uma su-perstição, que, à luz da ciência moderna, houvera dissi-pado como a névoa ao sol. Será ou não será verdade; aqui não me interessa. Certamente, ainda que o histo-riador possa continuar depois o juízo sobre o passado, seu caminho pode também deter-se. Quem não pode deter-se a este respeito é o juiz. Para ele o juízo histórico não é mais que uma etapa. O juiz assemelha-se propriamente ao saltador, que toma a carreira para poder ampliar o salto. Seu juízo histórico é meio, não fim. Para ele conhecer o passado é a passagem obrigada para conhecer o futuro. Temos aqui, depois do juízo histórico, o que chamamos de juízo crítico.

Juízo crítico, não é uma tautologia? Juízo crítico eqüivale a céu celeste, sem dúvida. Mas se disse tam-bém: céu celeste; e posto que se disse, deve ter sua razão. Com efeito, céu celeste quer dizer o céu como deve ser para ser verdadeiramente céu: a verdade do céu, em suma. Igualmente, juízo crítico significa a ver-dade do juízo: o juízo que verdadeiramente serve para

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julgar. Descobre-se, nesta fórmula, a instituição de que o juízo sobre o passado não interessa senão para preparar o juízo sobre o futuro. Assim mesmo, o juízo histórico, mais que juízo consumado, é uma tentativa de julgar. O passado não tem valor mais que para preparar o futuro.

Qualquer um, sem embargo, pergunta-me: e o que tem de comum o juízo crítico com o juízo acerca do futuro? O que se entende por juízo crítico é o juízo do bem e do mal, que não se refere nada ao futuro: que o que eu fiz seja bem ou mal consoante ao passado e não ao futuro. Estamos seguros? E, por que esta ânsia do homem, que quer saber se o que fiz foi bom ou mal, se desta qualidade de sua ação não dependesse sua vida futura? Não somente o que é bom ou mal reage sobre o futuro senão, verdadeiramente, o futuro reage sobre o que é bom ou mal no sentido que se algum fato é bom ou mal não pode julgar-se sem conhecer o futuro: outro circulo lógico que somente a metafísica serve para resol-ver; o pecado mesmo pode ser uma benção para o homem se, através do arrependimento, o guia para a liberdade. E, verdadeiramente, a só razão que o homem tem para julgar a si mesmo ou a outro homem, não é mais do que aquela de regular a vida futura. Portanto, o problema futuro do bem e do mal identifica-se com o problema do futuro. Há um perfil, sob o qual a função do direito e a figura do juiz mais vivamente vislumbra-se? Quando eu digo, recentemente, que esta função se complica introduzindo o sobrenatural no natural, não tenho exagerado.

• * *

Mas o juiz, ao menos atualmente, não é livre para julgar como crê. Já o juízo histórico e mais o juízo crítico, ou poderia dizer-se, regularmente o segundo e, excepcionalmente, o primeiro seguem um caminho

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obrigado. Aqui se apresenta o problema, o qual os juris-tas denotam com a fórmula da aplicação da lei ao fato e, propriamente, concerne à combinação do abstrato e do concreto.

Deveria-se, antes de tudo, delinear o conceito de julgar quando o que julga é livre na sua fadiga. O juízo, dissemos, consiste na união do presente ao passado e ao futuro; quer dizer, o juiz alarga o presente. Se meus leitores recordam, ainda o que temos dito sobre a dife-rença entre o gênero e a espécie, poderão pensar também que o juízo converte a espécie no gênero; e, para tanto, busca o que o fato foi antes e será depois, sua geração, em suma, como gerado e como gerador. O presente forma, pois, uma parte do que se busca como um fotograma forma uma parte do filme. O problema se estabelece nos termos seguintes: dada uma parte encontrar a outra. Não é mister de maior explicação para desvanecer a legenda do juízo sintético: se for sintético, o juízo, dada às partes buscaria o todo. Quer dizer, que o todo constitui o meio para julgar e não o resultado de julgar-, uma parte não pode determinar-se sem o conhecimento de dois termos: a outra e o todo. Os homens, para julgar, necessitam, pois, ver o todo. Assim, ac!ara-se, uma vez mais, a necessidade da prudência predicada com a enérgica admoestação do Evangelho: como julgará quem não vê o todo? O mesmo Maestro disse também: como pode um cego guiar um outro cego? Como queira, a fonte do juízo é o sentido do todo; o sentido, diremos, e não o conhecimento, porque do todo não pode ter-se mais do que a intuição. A ordem, podemos dizer, no lugar do todo para indicar sua qualidade, que é sua bondade, pela qual cada causa tem sua própria conseqüência e não há nenhuma outra causa que tenha a mesma conseqüência como não há conseqüência que tenha a mesma causa. Agora, o sen-tido de ordem é o sentido de bom; assim, aflora a

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importância de bom sentido, como meio indispensável para julgar.

E, assim, volta-se a fadiga do juiz quando não tem suas mãos amarradas. A liberdade de julgar não é mais do que faculdade de ajustar segundo o bom sentido. Quando o juízo histórico sobre a existência do delito consegue um resultado positivo, o juiz, ainda que sem dar-se conta do mecanismo lógico e metalógico, não faz mais do que buscar o outro termo da fórmula algebraica, que veremos mais tarde: d (delito) + p (pena) = O; quer dizer, determina a pena que, segundo seu bom sentido, eqüivale ao delito; mas, como se consegue, dada uma quantidade, sua quantidade equivalente sem conhecer o todo? O bom sentido constitui assim, o pressuposto e, ao mesmo tempo, o segredo por não dizer o mistério do juízo.

* * *

Que, ao contrário, as mãos do juiz estão amarradas e, portanto, o juiz não seja livre para julgar segundo seu bom sentido, quer dizer que no lugar da ordem opera no juízo a lei.

Aqui o jurista, ou genericamente, o pensador não pode iludir o problema da relação entre a lei e a ordem. Naturalmente, ainda, uma comparação. O que é o todo: a luz ou as cores? As leis são a ordem como as cores são a luz ou como os sons ao silêncio. Da mesma forma que os homens não podem descobrir todas as leis, nas quais se decompõe a ordem, tampouco chegam a des-cobrir todos os sons ou as cores, os quais resultam da ruptura do silêncio ou da luz. Bastaria para demonstrá-lo, a experiência de que não há lei sem exceção; agora, a exceção não é nada menos que uma lei, que nossos pobres olhos não chegam a ver, como o infravermelho e o ultravioleta.

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Os juristas, por demais, tem pressentido desde o princípio esta verdade distinguindo o ius e a aequitas e concebendo esta última como uma justiça que não se deixa formular numa lei. O juiz, portanto, quando deve julgar segundo a lei, não pode adaptar, exatamente a conseqüência à causa, senão deve atribuir à causa uma conseqüência, que não é sua conseqüência; e à conseqüência uma causa que não é sua causa. Nestes termos, a análise do juízo explica o drama do direito. O direito tem necessidade da lei para guiar os homens; mas a lei o estorva para julgá-los.

* * *

Então o juízo descobre a luta, que se oculta no direito. A descobre e também a compõe? Tem-se aqui a raiz do problema.

Teoricamente, a resposta pode ser afirmativa. Te-oricamente, o juiz qualifica-se como um servidor da lei. O legislador está sobre e sob o juiz. Dura lex sed lex. Este é o papel.

E também a vida? Na realidade da vida, a luta do fato com a lei converte-se na luta entre o juiz e o legislador. Agora que o segundo está acima e o primeiro está abaixo, é mais aparência do que realidade. Na verdade, como o direito culmina no juízo, assim o juiz termina por julgar também o legislador. Quantas vezes, sobretudo nos processos correcionais, minha imaginação colocou diante do juiz o legislador, ao lado do acusado! E quando o legislador não consegue desculpar-se, o juízo acaba por condená-lo. Há, naturalmente, juizes e juizes; não todos tem hoje o coração do praetor romano; contudo, um juízo que não contenha uma dose, grande ou pequena, de correção da lei não é estável. Este santo engano, quase nunca deixa-se ver porque o juiz recorre à astúcia para encobri-lo com o juízo históri-

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co; não podendo rebelar-se contra a lei, rebela-se contra a história.

Assim, o direito verdadeiramente culmina no juízo, não somente porque sem juízo não poderia a lei operar, senão, mais profundamente, porque só em juízo pode compor-se a luta da lei e do fato. O legislador tem as insígnias de soberania; mas o juiz tem suas chaves. Tão certo é que a ciência do direito não pode reduzir-se a nomologia!

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O que é a Sanção?

Tratando de explicar a diferença entre leis naturais e leis jurídicas temos visto que estas segundas não se limitam a representação da lei moral, senão que se esforçam para juntar à conseqüência natural do fato uma conseqüência artificial; o homem que mata outro homem sofrerá não somente os tormentos de sua consciência, mas, também, um certo mal, que chamamos de pena. O juiz, precisamente, ao constatar que o delito existiu, estabelece a pena. Mas não basta estabelecê-la, pelo menos na maioria dos casos; depois de havê-la estabelecido, é necessário que seja infligida: não basta, em suma, a condenação a morte, se não se mata o assassino.

Se o direito, pois, culmina no juízo, não acaba ainda ou, pelo menos, não parece acabar com ele; o exemplo, na verdade, da condenação à morte perfila, ao lado do juiz, à fosca figura do carrasco. E assim o direito que, com o juízo, nos pareceu ascender às serenas regiões da luz, agora, diria-se que descende das profundidades da sombra. Veremos se esta abaixada não encontrou sua significação na descida de Jesus ao inferno depois de sua ressurreição.

* * *

A suspeita, por acaso, de que a tristeza da pena não seja mais do que aparência, aflora outra vez desde a palavra. Sanção, dizem os juristas. A mesma raiz que santol Há verdadeiramente algo de misterioso nesta coincidência. Antigamente, o réu chamava-se sacer, como uma coisa sagrada de Deus. Na vingança de Deus pensava-se então; e o carrasco era considerado o represen-

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tante de Deus, o qual se vingava. O erro não estava no mesclar Deus com estas coisas; chegará mais tarde Jesus para confirmar que o que se ocupa primeiramente os pecadores; somente se inverteu, desde então, o conceito de Deus. E, ao chegar a este ponto, devemos detê-lo.

Isto é, detenhamo-nos a considerar a sanção como uma medida que assegura o juízo. Se a boa vontade abundasse no mundo, não seria mister outra coisa além do juízo, como o processo mesmo seria supérfluo se todos os homens soubessem o que devem saber. Justa-mente para pôr remédio no defeito do pensamento é que serve a balança; e ao defeito de boa vontade serve a espada. Aquela representa o animus e esta representa o corpus do direito.

* * *

Os juristas, no tempo de meu noviciado, conheciam dois tipos de sanção, que chamavam execução e pena. Aquela tentativa de teoria geral, contida no primeiro volume de minhas Lições de Direito Processual Ciuil e que serviu de armação para a construção do edifício, o qual devia surgir mais tarde, não pode fazer outra coisa do que conformar-se com esta classificação. Mas, fazendo uma reflexão, bastava observar que de execução fala-se também enquanto a pena, para convencer-se que o binômio, assim formulado, não pode ser exato. Não tardei, pois, para me dar conta de que no posto de execução devia colocar-se a restituição: restituição e pena são, verdadeiramente, as duas espécies do gênero sanção. Mas as palavras não contêm mais do que a semente de uma instituição, a qual devemos desenvolver para compreender, às vezes, o genus proximum e a differentia specifica destes conceitos.

Acerca deste terreno venho trabalhando há pelo menos trinta anos. O primeiro passo foi a distinção estrutural, a qual se lê em minhas Lições mencionadas,

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fundada sobre o elemento do interesse: a restituição sacrifica o mesmo interesse que o direito tutela e a pena, ao contrário, um interesse diverso. Um passo; mas nada mais. O fundo, ainda, ficava longe. Para consegui-lo necessitava escavar desde o outro lado.

Quando, logo, compreendi que também sobre este tema a função prevalece sobre a estrutura, não soube dizer como que o caráter da restituição é satisfatiuo, e aflitivo o da pena: modo de pensar tão corrente como superficial. E, por que esta diferença? O porquê não podia descobrir-se embora eu continuara fixando minha atenção na restituição antes que na palavra. Não olvideis que eu ancorei nas margens do direito penal depois de longo vagar através das terras do direito civil: uma coisa semelhante na chegada desde o velho ao novo conti-nente. Um dia, a mais estranha de minhas aventuras acadêmicas fiz abrir-se com um golpe sobre a árvore de meu pensamento de uma gema surgida nos tempos de minha juventude e, desde então, o problema da pena dominou meu trabalho. Assim pude compreender que, embora observava o conceito da sanção sob o perfil da sombra, não podia revelar o seu segredo.

* * *

O lado da pena seria, pois, o lado da luz? Outra surpresa! Ainda na minha pátria, mais de um jurista acolheu uma afirmação análoga com certa ironia. E, como não, se o setor da pena assemelha-se ao inferno do direito? Sempre a concepção otimista do direito civil e a concepção pessimista do direito penal! Quando os juristas pensam na restituição não vêem mais do que a cara alegre do credor que recuperou seu dinheiro; e enquanto a pena não consegue ver mais do que a cruz do condenado chorando em sua prisão.

Desta superficialidade de observação não tardei, verdadeiramente, em dar-me conta, no que toca à san-

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ção civil, desde minha primeira tentativa de teoria geral, faz quase trinta anos, quando fiz uma reflexão que se o credor goza, o devedor sofre em virtude da restituição; o dinheiro que ganha aquele, saca-se do segundo; não há, pois, somente sorrisos como também lágrimas na execução civil: o direito, no campo civil, o que saca do devedor, o entrega ao credor. Contudo, onde está a raiz desta unilateralidade, pela qual os juristas não olham mais do que a cara da moeda? Não será, por acaso, a satisfação de ver, além do lado passivo, também o lado ativo do fenômeno, quer dizer, de tocar com sua mão o êxito âo direito? Este êxito é total quando o credor consegue, precisamente, a coisa, que constitui o objeto de seu direito; o que se chama de ressarcimento do dano não é, muitas vezes, mais do que um meio êxito; todavia, são raros os casos, nos quais o credor fica com as mãos vazias.

Muito diversamente aparecem as coisas noutro setor, onde não há mais que lágrimas e nenhum sorriso: se o condenado sofre, quem goza? Neste caso, a moeda não mostra mais do que a cruz e daqui brota o modo corrente de apresentar a distinção: função satisfativa da sanção civil e aflitiva da penal.

Devia dizer que, no campo civil, o direito chega ao fim da dificuldade, na maioria dos casos, restabelecendo a situação segundo suas normas; mas o direito penal não tem os mesmos recursos. Em suma, o civil ganha e o penal perde sua partida. E se nossa olhada não pudesse chegar mais longe, também a partida da ciência do direito poderia considerar-se perdida.

* * *

A esta altura do caminho, a situação seria a se-guinte: em matéria civil, a sanção é preventiva e repres-siva, e tão somente preventiva em matéria penal.

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Os civilistas, como disse, concentram a atenção sobre o iado repressivo, que se manifesta tirando a coisa do que não deve tê-la e entregando-a a outro, ao qual deve dela gozar. Assim, o direito reprime o ato contrário a suas normas resolvendo o que existe e o que deve existir. Mas o acordo não é e não pode ser perfeito por causa da irreversibilidade do tempo, quer dizer, da im-possibilidade de que o fato não seja fato: não podendo a restituição ser retroativa, busca-se pôr remédio nesta imperfeição com o ressarcimento do dano. Ao lado desta função repressiva, mais ou menos plena, põe-se a função preventiva da restituição, afirmada com maior ou menor claridade no plano científico, mas sempre reconhecida pelo sentido comum: o medo do ressarcimento do dano opera inevitavelmente como impulso contrário ao não cumprimento da obrigação e a restituição mesma, em sua pureza, implicando a inutilidade do esforço cumprido para se procurar o que se deve restituir, desaconselha para o futuro um esforço semelhante.

A matéria penal, ao contrário, não consente à sanção a tarefa de restabelecer o status quo ante e, para tanto, sua função repressiva. Aqui vale a sabedoria de Sêneca: nemo prudens punit quia peccatum est sed ne peccetur. O pecado, depois que existiu, não pode apagá-lo do mundo. Tudo o que pode conseguir-se é que não exista um novo pecado. As coisas podem restituir-se; mas não os atos. Não há restituição neste aspecto da vida. Assim, a função repressiva da sanção civil contrapõe-se à função preventiva da penal. E os juristas ficam nessa contradição.

* * *

É possível? O direito civil serve não tão somente para prevenir como também para reprimir o mal e o penal não serve mais do que para previni-lo? Uma cruz sem cara não é uma moeda. Diria-se que o direito

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impotente para a repressão não seja direito; nada mais do que uma metade de direito.

É por isso que o pensamento de Sêneca encontra uma invencível resistência no que poderia chamar-se de sentido comum dos juristas. Aqui, provavelmente, des-prenderam-se a ciência e a sabedoria. A ciência, dizem, deve ser essencialmente positiva: não crê no que não vê; e o que se vê é que factum infectum fieri nequit. O que existiu não pode não existir. A restitutio in integrum é ficção, não verdade. Portanto, não se poderia os se-quazes da escola positiva ultrapassar os limites da pre-venção sem renegar de seu positivismo. Contudo, não creio equivocadamente individualizando seu calcanhar de Aquiles nesta limitação. Contra a concepção puramente preventiva da pena opõe o sentido comum se um homem pudesse matar a humanidade inteira e, para tanto, ficasse sozinho, sua impunidade seria uma horrível injustiça. E não é pouco importante que, a este respeito, o sentido comum encontra-se representado por Kant.

Mas desde Kant pudera esperar-se não tão somente a formulação como a explicação desta exigência. O homem, que tem ficado só sobre a terra, deve ser cas-tigado: a tarefa do filósofo é a de aclarar-nos por quê. Para extinguir a humanidade? Se a desaparição de todos os demais é um mal, o que também o último deva desaparecer aumentará o mal em vez de diminuí-lo. Aqui está a falta da fórmula grociana: malum passionis ob malum actionis; dois males são mais que um mal só; e não pode demonstrar-se que o mal seja um remédio contra o mal. Maldita superstição, legitimada infelizmen-te por aqueles filósofos, quem, iludidos em que a nega-ção da negação seja uma afirmação e, portanto, que a pena opere negando o delito, caíram na mais perigosa das armadilhas, que o demônio haja tido no pensamento do homem! Posto que a negação expressa-se mate-maticamente com o número negativo, queria-se saber

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que matemático seja capaz de retirar da adição de dois números negativos uma quantidade positiva! Não lhe falta razão ao famoso chefe dos idealistas italianos quando não reconhece ao enumerar caracteres do raciocínio!

Manifestadamente, se a eficácia repressiva da pena deve explicar-se, um dos dois termos, delito e pena, necessitam ser contrário do outro na ordem da positivi-dade e da negatividade. Se o primeiro indica-se com d e o segundo com p, a repressão ou, mais francamente, a anulação do delito não pode explicar-se mais do que com o símbolo de uma das duas fórmulas seguintes: (+ d) + (-p) = 0; ou, diversamente, (-d)+(+p) = 0.

O problema é o de eleger a primeira ou a segunda.* * *

Logicamente, o problema não se resolve sem es-tabelecer onde está a negação, entre o delito e a pena. Quer dizer: onde está o ser e onde está o não ser.

Não há dúvida de que o delito seja um mal. E não é mister de outra premissa para se saber orientar depois que Santo Agostinho, um dos mais prodigiosos pensadores de todos os tempos, formulou a identidade do mal e do não ser. O primeiro dos dois termos do binômio toma, pois característica negativa. Com efeito, o delito nega a liberdade, se esta augusta palavra emprega-se em seu verdadeiro sentido: livre não é o homem, que pode fazer o que gosta, como o que tem o poder de fazer o que não gosta. Agora certo, se o delito apresenta-se com uma quantidade negativa, a fórmula algebraica da função repressiva da pena não pode ser mais do que a segunda: (-d) + (+p) = 0. Portanto, a proposição de Grocio mais do que ser retificada, deve ser invertida: no lugar de malum passionis ob malum actionis a pena poderá definir-se como bonum passionis propter malum actionis?

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Aqui se afere a diferença entre o tempo de Sêneca e o nosso: in médio stat Christus.

Sem dúvida, a pena é dolorosa. Se não fosse dolorosa não seria pena. Mas se dor e mal são o mesmo, como poderia explicar-se que o pai, amando seu filho, queira seu bem e castigando-o, procura-lhe um mal? Parece impossível que o equívoco de Grocio haja dominado e continue dominando o pensamento de tantos juristas de primeira força a respeito do problema da pena. Algumas vezes, o que falta à ciência é um pouco de humildade. O argumento do pai e do filho e da dor e da utilidade do castigo não tem, certamente, a dignidade de uma austera reflexão científica; vejamos, ainda, se não serve para desatar o mundo, o que somente a grosseria de nossas mãos podem deixar não resolvido.

A dor da pena pode ser física ou espiritual. Certamente, o progresso do direito penal segue o caminho, o qual conduz desde o primeiro até o segundo. Portanto, o sistema punitivo orienta-se sempre mais seguro até a reclusão como forma essencial da pena. Por que os penalistas não investigam a dor da reclusão? Com efeito, o estudo da pena e, em particular, desta forma de pena deixa-se a uma espécie de ciência inferior; que chamamos de ciência penitenciária; algo intermediário entre a ciência e a técnica; e a mesma limita-se, por demais, a uma descrição do ordenamento carcerário sem nenhuma tentativa de penetração em seu problema espiritual. Mas, ao contrário, não é como neste problema onde oculta-se o segredo da ciência jurídica penal.

Se a reclusão é considerada sob o aspecto estrutural, podemos primeiramente defini-la como uma medida de isolamento. Uma ilha está separada do resto da terra. Corta-se a comunicação entre o recluso e os demais. Os demais, entenda-se, os que formam o ambiente de

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sua vida: seu pai, sua mãe, sua mulher, seu marido, seus filhos, seus amigos. Quem pensa que a mulher é, como se diz, a metade do marido, e os filhos, ainda mais da metade do pai, chegará a definir a reclusão como uma mutilação. Então, da mesma maneira que o mutilado sente a dor do membro que já não tem, assim o recluso sente a dor de seus entes queridos, dos que já não pode gozar. Nada melhor do que o afastamento para aproximar o espírito daqueles a quem queremos.

O segundo aspecto da reclusão é a humilhação. O recluso deixa de se sentir um homem. O sinal de homem é o homem; e o recluso não tem mais nome. A essência do homem é a individualidade; e o recluso não tem mais individualidade. A necessidade do homem é falar; e o recluso deve calar-se.

Reflitamos. O delito é falta de amor: aos demais e a si mesmo. Ainda a si mesmo; a propósito do qual se deveria apreciar a profunda significação do caritas incipit ab ego.

Tira-se do réu tudo o que ele não amou; os outros e ele mesmo. Portanto, o recluso é, verdadeiramente, um mutilado, até de si mesmo. E pouco a pouco, cada vez mais, acaba por querer o que já não possui, os outros e ele mesmo.

Assim, pois, o que enquanto a restituição não toma algo de um homem senão para entregar a outro o que tirou do primeiro, a pena não faz mais do que tirar, revela-se como mera aparência. Na verdade, a pena toma também para dar. A diferença concerne somente ao beneficiado que, para a primeira, é outro homem e para a segunda é o mesmo, o qual padece com a sanção. Compreende-se agora, a significação das palavras, as quais formam a manchette de meu livrinho sobre o problema da pena? Não para tirar senão para procurar a liberdade serve a pena.

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E, pois, a pena serve para procurar a plenitudo hominis, que é a liberdade, não necessito explicar, ademais, seu caráter essencialmente positivo. Não o contrário, senão a negação da liberdade é a necessidade na sua significação originária e pura de insuficiência e, portanto, de não ser {nec esse). Assim, a forma penal descobre, incomparavelmente melhor do que a forma civil de sanção, a função e, com ela, a natureza do direito como a ponte para superar o abismo, que separa a economia e a moral, sendo a primeira o reino da necessidade e a segunda, o reino da liberdade.

* * *

Certamente há aqui uma visão otimista do direito em seu aspecto mais alto, que é o direito penal. A função da pena, tal como expliquei, refere-se melhor ao direito como deveria ser, não como é. Eu faço, como dissemos entre nós juristas, ius condendum mais que ius conditum. De acordo. Não tão só o Estado não pode reger-se sem armação como se a armação fosse ainda sumamente inperfeita. A esquerda, próximo a margem da economia, o trabalho está mais adiantado; à direita, perto da margem da moral, estamos ainda muito atrasados. Os homens cuidam sempre mais do haver do que o ser e, portanto, o mecanismo penal está incrivelmente atrasado a respeito do mecanismo civil.

A razão do atraso concerne, precisamente, a nossa ignorância sobre a função penal. Se a evolução da pena se desenvolve no sentido de substituir o sofrimento físico pelo sofrimento espiritual, os instrumentos penais na segunda fase são ainda os mesmos que os da primeira. Numa palavra, o problema da pena, que deveria resolver-se no da reclusão, continua considerando-se como um problema zoológico no lugar de ser um problema espiritual. A prisão concebe-se como a jaula de uma besta melhor do que como a célula de um monge. E os

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custodiados crêem de boa fé ter cumprido sua tarefa quando impediram fuga e a morte dos prisioneiros sem suspeitar no mínimo que o sustento mais necessário a estes desgraçados não é o pão para o corpo senão o pão para o espírito.

Como se chama, pois, o pão do espírito? E, a quem não lhe vem a mente, aqui, o sacramento, o qual consagra o amor de Deus na forma do mais puro alimento corporal? Assim a sanção punitiva, na aparência severa e cruel, revela sua verdade profundamente misericordiosa. O direito deve castigar; mas não como o carrasco, que goza vendo sofrer o condenado, senão como o pai que alcança, por procurar dor em seu filho, o cobre de amor. E a sombra do direito, que parece ser a pena, veste-se pouco a pouco com as suaves cores da aurora.

Eis aqui que a pena, que parecia e infelizmente ainda constitui a inferioridade do direito, vem, pelo contrário, a encontrar-se no seu ponto mais alto. Todos os aspectos do mundo ficam subvertidos quando os homens conseguem abrir os seus olhos. Enquanto o civil manifesta a corporeidade, o penal revela a espiritualidade do direito. E a humanidade, também neste setor de sua vida, ascende lentamente o caminho desde o corpo até o espírito.

O direito, dissemos, é um substituto da liberdade. Como tal deveria procurar os homens, dentro dos limites da substituição, o mesmo bem que a liberdade. Este bem é a paz. Mas a paz procurada mediante o direito não é mais do que um substituto da verdadeira paz. Este caráter de substituído particularmente manifesta-se quando o direito opera, na matéria civil, com a restituição: se o devedor paga o credor, inclina a cabeça, freqüente-

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mente não vê o momento de podê-la levantar e, assim, de voltar a começar a guerra. Sobre o terreno da economia o que cremos como paz merece mais verdadeiramente o nome de trégua. Aqui, ainda, a natureza da sanção não é mais do que a força. E quando no brasão do direito a espada figura ao lado da balança, a representação não carece de verdade.

Mas quando passamos à região da pena a paisagem muda de aspecto. Falo, naturalmente, de direito não como é senão como deve ser. Enquanto a restituição procura dinheiro que procura ou, ao menos, trata de procurar a pena? Nesta pergunta culmina o problema da sanção. A diferença expressa-se opondo, como vimos, o pão do corpo ao pão do espírito. Pelo contrário, em lugar de precipitar-se na sombra, o direito ascende pela pena à luz. E no lugar da força, algo de diverso serve para garantir o juízo. Procuraremos agora olhar no fogo desta luz para ver o que ocupa o lugar da força. Agora já pode duvidar-se de que o escudo do direito, onde, ao lado da balança figura a espada, represente melhor o direito do passado que o direito que está por vir.

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O que é o Dever?

O que são o direito, a lei, o fato, o juízo, a sanção? Algo se respondeu a estas perguntas. Algo, todavia, fica incógnito; e sob a consecutio necessária de um segundo fato ao primeiro, que descobre a lei, que encontra? A lei não tem, em última análise, mais do que um conteúdo descritivo do que acontece; todavia, por que acontece? Não necessita mais do que a impressão desta última pergunta para advertir que aqui deveria tocar-se, se é possível, o fundo de investigação.

Mas a lei não disse tão somente que dois fatos se seguem quando que se seguem necessariamente. O mesmo que a primeira, assim a última de nossas meditações nos oferece a ocasião para contemplar uma das palavras mais cheias de força intuitiva, que tenha o idioma latino ou qualquer de seus filhos neolatinos. Necessidade deriva, sem dúvida, de nec esse. Não ser. A primeira vista não se vê nada. Assim acontece sempre quando a luz é excessiva. E o ser emana demasiado esplendor, ainda quando se apresente em forma negativa, sob o aspecto do não ser.

Devemos, todavia, para tratar de compreender, ter o valor de olhar fixamente o sol. Deus, quando Moisés lhe perguntou: e como te chamas, Senhor? Respondia: eu sou O que és. O que és. Parece tautologia. Cada um de nós é o que somos, verdadeiramente? Cada um de nós é o que é e não é o que não é. Um homem é aquele homem, mas não é outro homem. Não esse, senão esse et non esse é a verdade do homem e, por demais, de todas as coisas. Um cavalo não é um cachorro. Uma rosa não é uma violeta. Eu não sou você. Deus só é sem não ser. Deus só não é as coisas somente,

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quer dizer, tudo o criado, senão tudo o criado e não criado. Quer dizer: Deus é o todo, e o homem ou qualquer outra coisa é uma parte .

Necessidade, pois chama-se a condição da parte.• * *

Parte. Eis aqui, ainda, uma palavra que, diante de tudo, os juristas empregam continuamente sem ter, parece, o tempo necessário para deter-se um pouco a considerá-la. Parte chamada por nós de vendedor e comprador, de credor e devedor, de marido e mulher, de acusador e defensor. Esta noção parece tão natural que fora tempo perdido o empregado para explicá-la. Mas, por que o vendedor e o comprador, o credor e o devedor, o marido e a mulher, o acusador e o defensor, chamam-se partes?

Eu não sei o que pensam os glotólogos também da origem da palavra. Segundo minhas notícias, nem sequer o parentesco entre pars e pario, mais do que entre ius e iungo, tem sido, ainda, descoberto com a ajuda do microscópio ou do telescópio. Mas, minha razão guia-me a compreender que sendo a parte o resultado de uma divisão do todo, o todo a engendra (par/f); e não por outra razão a parte é pouco {parum) ou pequena {parva) com respeito ao todo. Por que, se o homem não fora criado pelo todo, se chamaria parte?

Uma coisa é parte enquanto tem outra parte frente a si mesma. Só, uma parte, não pode existir. As partes são duas. Não há credor sem devedor, nem marido sem mulher, nem deveria haver acusado sem defensor. Não tão somente as partes são duas, senão que também são opostas. Frente, quer dizer, contra. O contraste parece o seu destino. Falando, todavia, com um pouco mais de prudência diremos, no sentido de Viço, sua natureza.

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E por que esta natureza? Um estudioso não pode ficar com seus porquês. Frente a uma e a outra. Há, pois, uma fronteira entre as duas? Ah! Como se gosta, agora, este conceito! Itália e França, França e Alemanha, Alemanha e Rússia; em meio, as fronteiras. Defesa ou sofrimento? A natureza da parte é o limite; e, contudo, tem o destino de superá-la. A parte, numa palavra, está na prisão. E o que anseia o prisioneiro chama-se liberdade.

Aqui, por ora, um sentido de liberdade, que nos serve para ligá-la à necessidade.

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A necessidade, pois, é a condição da parte. Ser e não ser. Uma parte é ela mesma e não a outra parte. Mas necessita não ser somente ela mesma. A que necessita é justamente a outra parte. O sentido de angustia, que é como a amargura desta palavra, descobre o sofrimento da parte por não ser tudo.

Agora se compreende o dever ser, na qual consiste a relação dos dois fatos juntos na lei. Ligando os dois fatos, a lei diminui a insuficiência da parte. O dever ser expressa a tendência da parte até o seu cumprimento.

Os homens, dissemos, são partes. Se os que cultivam outras regiões da ciência, incluso os filósofos, podem iludir-se acerca deste sujeito, não sucede o mesmo com os juristas, ao menos se presta atenção no seu modo de falar. Nem os biólogos nem os filósofos mesmos chamam de parte o homem; todavia, para o jurista é a palavra.

Pois bem, a de ser parte é a infelicidade do homem. E expressar, sem reservas, esta infelicidade é o verdadeiro mérito da filosofia mais moderna, a qual,

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justamente, dá-se o nome de existencialismo, não signi-ficando propriamente existência mais do que o ser da parte. Contudo, seu erro está em cultivar o desespero no lugar da esperança. O homem habita numa prisão; mas não há prisioneiro que não possa evadir-se. O caminho da evasão recebe o nome de deuer.

A última surpresa! O dever, até aqui, foi concebido como uma sujeição, não como uma liberação. O vínculo aparece como elemento fundamental da obrigação, des-de a famosa definição romana. De acordo. Os homens não podem ver o mundo senão invertido. Este é o resultado de ver no espelho, como disse São Paulo. Contudo, raciocinando acaba-se por compreender que o espelho inverte o que reflete. No fundo esta é a verdade, que expressei, no capítulo precedente, ao falar da pena, que não serve para tirar senão para procurar a liberdade.

* * *

Liga-se, pois, aos homens para liberá-los? Aqui, revela-se a sublime contradição do direito. Ao prisionei-ro, que não sabe evadir-se, o liberam mediante a força, seus amigos. A constrição para a liberdade: um parado-xo! Mas o paradoxo não é mais do que a excessiva verdade; excessiva para os homens, a quem também a verdade, melhor a verdade ante tudo, deve subministrar-se pouco a pouco.

Naturalmente, os juristas, ao longo dos séculos e séculos, não compreenderam nada de direito. Os ho-mens navegaram séculos e séculos antes de ter desco-berto o segredo da navegação. Os homens viam que o navio flutuava, ainda carregado e navegavam. Da mes-ma maneira, viam que dando as mãos dos que, quando não estavam amarrados, arrojavam um ponto e outro, poderia conseguir algo semelhante a paz; e as mãos

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foram amarradas. O jurista soube que amarrando-as conseguia este resultado, como o navegante soube que, fabricando o navio, podia atravessar o mar. E os juristas, como os navegantes, não cuidaram de outra coisa.

Assim, formou-se o conceito de dever como com-preensão no lugar de expansão da personalidade. Quer dizer, o dever concebeu-se como a projeção do mandato. Em lugar do que o conceito da moral dominasse o do direito, o segundo dominou o primeiro. E, assim como os homens formaram a idéia de Deus na idéia de si mesmo, assim também sujeitaram a moral a um processo de juridificação. O clássico exemplo desta necessidade, quer dizer, desta insuficiência de nosso espírito, vê-se na Crítica da razão prática, de onde nada menos que Kant não pode conceber, sem o imperativo categó-rico, o dever moral; tampouco para este grande pensador dever e mando podem separar-se; e da mesma maneira que o mando determina uma restrição, o dever moral, igual que o dever jurídico, resolve-se nas mãos amarradas. Pergunta-se como esta concepção pode estar de acordo com a moral como reino da liberdade!

Assim o dever ser é o elemento fundamental do direito, porque é seu elemento unitivo. E a diferença entre direito e moral concerne à força, de onde procede o dever: ab extra o ab intra. Precisamente porque também para os filósofos a moral é juridificada, como se fala, em seu campo, de autonomia, quer dizer, de autocomando; o imperativo categórico representa o protótipo desta figura.

Agora, enquanto o direito, ao não poder deixar que o dever desenvolva-se espontaneamente, o impõe, para o direito e não para a moral ao dever corresponde o poder. Tal correlação encontra-se somente no reino

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do direito. O dever jurídico depende, enquanto o dever moral não depende do poder.

Historicamente, quer dizer, casualmente precede o poder. É por isso que o primeiro saber jurídico o reconhece seu primado. No centro da jurisprudência romana encontra-se, sem dúvida, o ius, concebido não como o conjunto de leis e dos juízos senão como o poder de mandar. E como o que os antigos físicos chamavam a inércia, domina, sobretudo, o campo do saber, também em nossos tempos segue delineando o sistema sobre um pretendido binômio de direito objetivo e direito subjetivo.

Agora, prescindindo da unilateralidade desta con-cepção, que conhece o direito subjetivo com a espécie de poder, o que importa aqui é que a consideração histórica deve sobrepor-se a consideração lógica do fenômeno, e assim ao plano da causalidade e a finalidade. Quando, pois, a olhada desloca-se de um a outro plano, vemos inverter-se a relação entre dever e poder; se casualmente o dever deriva do poder, finalmente o dever domina o outro, posto que tão só para estabelecer o dever se estabelece o poder. O poder, numa pa-lavra, é meio e o dever é fim. Somente porque os homens não têm em seu espírito mais do que um átomo de liberdade, não conseguem cumprir seu dever se alguém não dispõe em mandá-los e castigá-los.

* * *

Assim, manifesta-se a relação entre o dever e o poder: a história reconhece o primado a este, e a lógica àquele. É, contudo, possível tal contraste entre a lógica e a história?

Por que não? Exclamaram os leitores educados no moderno historicismo. Eu sou antigo. Eu creio, ingenua-mente, na historia magistra vitae; e uma história ilógi-

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ca não poderia ensinar nada. Eu penso que quando a história nos parece contrária à lógica, o defeito deve imputar aos historiadores e não à história. E o que veremos pronto a propósito da história do direito, confirma-me na minha ingenuidade.

Quando os juristas e, particularmente, os filósofos perguntam-se como nasceu o direito, a resposta comum é que, num certo momento, um homem se pôs a mandar nos outros. Exatamente como quando a pergunta de como nasceu um homem, responde-se que, num certo momento, uma mulher pariu. Cômoda maneira de fazer a história! E por que pariu? O problema desloca-se do nascimento do filho à concepção. Não seria, pois, estranho se se falasse de uma concepção do direito. Mas, como não se vê ao outro, que forma o conjunto, diria-se que a concepção deve ser imaculada. Por acaso, não estiveramos muito longe da verdade.

Quando o direito é concebido como uma mescla da justiça e de força, com a balança e a espada em seu brasão, parece que a força da espada seja a força do direito, quer dizer, sua fonte. Mas, refletindo, não tarda em se revelar o engano entre a força que o direito produz e a força que produz o direito; a primeira é o trabalho do mecanismo, não a energia que a faz mover. A busca refere-se não ao porquê as partes devem obedecer ao legislador e ao juiz senão porque este e aquele podem e devem mandar. Quis custodiei custodes? Num certo momento a cadeia da força rompe-se; quer dizer, que não se consegue encontrar nem um primeiro que manda nem um primeiro que é mandado. Há, por fim, um mandante que manda sem que nenhum outro homem o conceda o poder e o imponha o dever de mandar. Quer dizer, que o direito tem sua raiz na obediência e não a obediência no direito. Uma vez mais se vê invertido o mundo.

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De todas as maneiras, é verdade. O chefe manda porque obedece; e os cidadãos obedecem não somente porque ele manda, senão porque mandando obedece. Em suma, o medo pode ser um meio do direito, mas não sua fonte. Sucede com o direito algo semelhante à transformação da energia; e o ordenamento jurídico é análogo a essas grandes centrais hidroelétricas, que se vêem nos vales de alta montanha, através do curso de um rio; a corrente elétrica é o que sai mas não o que ingressa no mecanismo. O problema se reduz, em última analise, a buscar a natureza da força original, que o direito não cria senão que transforma.

Há, num certo ponto da cadeia, um homem que se ocupa dos outros não porque deve, senão porque quer. Confesso que me encanta esta agudíssima intuição do idioma espanhol, que chega à identidade do verbo para expressar o amor e a vontade. Este artista anônimo e magno que é a multidão do povo, compreendeu, sem necessidade de guia filosófico, que se a vontade é o pico do espírito o amor é seu alicerce. E o mesmo povo, sobre a bigorna dos séculos, modelou a fórmula: ou por amor ou por força, para significar a autonomia ou a heteronímia da ação. Se ao chefe, para que mande aos demais, ninguém nele manda, Deus manda nele; fórmula com a qual Deus, segundo a milagrosa definição do Evangelho, charitas est. Eis aqui a fonte do direito, quer dizer, do dever. O rio que corre pelo fundo do vale de alta montanha, através da qual traça a grande central do direito, não é mais do que o infinito rio do amor.

Tão só porque os homens não sabem amar, neces-sitam o medo. Infelizmente, estamos muito atrasados neste caminho. E o direito alimenta-se mais com as

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águas de um riacho do que com as de um rio majestoso. Não há outra razão da dominante ignorância sobre as relações entre o dever e a moral, quer dizer, entre o dever e o amor. Para pôr remédio à exigüidade e, ademais, a descontinuidade da fonte, os engenheiros necessitam acumular a força; e o acumulador nos dá a impressão de que o direito nasça de si mesmo. Mas num certo ponto, quando falta o alimento, a força que sai do acumulador extingui-se. Nós italianos, particularmente, temos assistido a este espetáculo admoestador: as forças do medo não são infinitas. Se os juristas souberem ver que a revolução, longe de estar fora do direito, está sob o mesmo, suas idéias acerca do problema fundamental da ciência jurídica seriam mais claras. E, sobretudo, saberia-se que o imperativo categórico não é outro do que o mandamento extremo de Jesus quando deixou os seus discípulos para chegar à morte.

Pois bem, é possível que a lei jurídica, a qual, como vimos, não pode explicar-se mais do que pela lei natural, sirva, por sua vez, para explicar a lei natural. A ciência do direito, por acaso, devedora de seus fundamentos à ciência natural, está, pois, em condição de satisfazer sua dívida? Parece-me provável.

No fundo, as ciências naturais não tem mais do que um valor descritivo. Depois que o sol surgiu deve desaparecer ; há aqui a mais pura descrição? E por que desaparece? Quando o astrônomo responde que a terra gira ao redor do sol, não faz mais do que trocar as palavras. E por que o sol está imóvel e a terra move-se? O sol deve desaparecer como o homem deve morrer; o que permanece incógnito é a razão do dever. E por que se deve? Os naturalistas não tão só respondem senão tampouco formulam esta pergunta.

Naturalmente, o mesmo fazem aqueles filósofos, cuja filosofia funda-se sobre as conquistas das ciências

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naturais. A este respeito, não deve olvidar-se que a física de Newton constitui o pedestal da filosofia de Kant. Se os homens não se envaideceram por estas conquistas, nem o criticismo kantiano, nem o idealismo hegeliano, nem o existencialismo heideggeriano tivessem vindo ao mundo; mais simplesmente, a euforia dos posititivistas e dos idealistas não se houvesse precipitado na filosofia da angustia; quer dizer, na angustia da filosofia. Kant, diante de tudo, com seu imperativo categórico, não somente não responde senão que tampouco formula-se a pergunta: e por que o homem deve conduzir-se como se sua conduta fora lei para os demais? O dever, em outras palavras, é para ele, como para o naturalista, o termo primeiro. Assim se conhece a força, que sai desde a central hidroelétrica, e não aquela que a alimenta.

O dever une os fatos, assim como os homens, que não estejam já unidos. Nossos pobres olhos, que não conseguem ver a união, ajudam-se com o dever. O dever, como o direito, é um substituto. A verdade, essa verdade a qual veremos a cara se somos dignos, enquanto agora não podemos vê-la mais que refletida no espelho, é a unidade, não a divisão. O dever é o meio, que se oferece aos homens para que a divisão converta-se na idade. E a unidade do mundo chama-se amor. O amor une as estrelas do céu, o mesmo que aos homens da terra, para que possam formar a ordem do mundo. Se o sol fica imóvel e a terra gira ao seu redor, a razão dele é a mesma pela qual a mariposa revolteia sobre as flores do jardim. O mundo é belo e sua formosura é o selo do amor.

O mundo é belo e a tarefa do homem é a de fazer com que seja cada vez mais belo. Uma tarefa que o converte, verdadeiramente, em colaborador de Deus. No lugar de rodear-se para agradecê-lo, o homem acaba por crer-se o amo. A verdade do pecado cometido no

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nascimento do mundo é confirmada, se for necessário, pelo pecado cometido no Renascimento, quando o homem, uma vez mais quis comer o fruto proibido. Sua soberbia encontra a fórmula na confusão entre criação e invenção. E, ao considerar-se criador, o homem violou a ordem do mundo. Os homens assemelham-se às estrelas que, ao faltar-lhes seu caminho, tem desordenado o céu. Para reconduzi-los, pouco a pouco, sobre o justo caminho, a bondade de Deus permitiu que inventassem o direito.

E assim também a investigação do direito ab intra, o mesmo que a investigação ab extra nos revela os riscos da arte.

Quando examinamos a lei e o fato, foram os conceitos da representação e da interpretação os que nos levaram a descobrir a analogia entre o legislador ou o juiz e, mais que o pintor, o músico e o intérprete de melodias.

Logo, tratando de penetrar no segredo do juízo e da sanção e, portanto, de eliminar a cortiça para desnudar a medula do direito, abriu-se cada vez mais claramente aos nossos olhos a maravilha do amor, inesperada e, todavia, ineludível susbstância de um e da outra. Ficava ainda sem resolver o problema de como e do porquê desta substância transformar-se em direito; e também a última pergunta respondeu a análise do dever.

O direito nos pareceu, em suma, como uma das formas que toma o amor para operar entre os homens. E não ocorre o mesmo com a arte? Faz muitos anos, falando de um dileto discípulo perdido, tive na ocasião de presumir as relações da arte com a caridade. Mais tarde, se me apresentou a mesma ocasião enquanto às relações de graças e da justiça. Naturalmente, a primeira

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impressão foi de que a graça estava fora e precisamente sobre a justiça, da mesma maneira que sobre a arte está a caridade. Mas o caminho continuou, depois, guiado por uma invisível e bendita mão. E um dia, que foi o dia de estréia de minha vida(segundo a frase de Werfel, que me lembrei, numa carta inesquecível de meu amigo Couture), Deus me permitiu ver a minha maneira, que se o pintor não ama seu modelo de retrato não vale nada e se o juiz não ama o acusado em vão crê alcançar a justiça. Então compreendi que nem a caridade está fora da arte nem a graça fora do direito. Pode ser que o problema da arte, como o problema do direito, desde então, no lugar de resolver se haja convertido num mistério; mas meu espírito conseguiu, finalmente, a paz.

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