A Arte de Reduzir as Cabeças

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Psic. Rev. São Paulo, n. 15(2): 249-253, novembro 2006 Resenha 249 A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal * Sandra Dias ** O autor do livro, Dany-Robert Dufour, é filósofo, professor de Ciências da Educação na Universidade Paris VIII, diretor de programa no Collège International de Philosophie, publica regularmente ensaios no jornal Le monde Diplomatique e na revista Le Débat e tem dois dos livros traduzidos Lacan e o espelho sofiânico de Boehme e Os mistérios da trindade. Trabalhando na interface lingüística, estética e psicanálise, extrai conse- qüências da teoria dos discursos de Jacques Lacan, em particular do quinto discurso, nomeado o discurso do capitalista, 1 um discurso tão astucioso que anda muito bem, anda rápido demais, consome tudo e acabará por consumir a si próprio. Este capitalismo tardio que vigora na sociedade contemporânea, subjugando tudo, consome tudo: os recursos, a natureza e até os indivíduos que lhe servem, pois reduzidos ao estado de produtos de consumo. O título do livro indica assim a característica de nova configuração social que “reduz as cabeças”, isto é, reduz as mentes e portanto cria uma nova subjetividade. Assim, o traço característico da chamada época “pós-moderna”, sociedade “antropofágica” que tudo consome, é a redução das mentes. Para efetivar essa redução de espíritos e instalar-se um novo sujeito, um sujeito “pós-moderno”, o capitalismo operou a destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade, o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acres- centar também a do sujeito marxiano. O processo de quebra simultânea do sujeito moderno, o sujeito crítico kan- tiano, que surgiu nos anos 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido nos anos 1900 , sujeitos instalados em uma posição transcendental e referência para pensar nosso ser-no-mundo, tornam-se agora fluidos assim como o sujeito marxiano, sujeito da ideologia que situava uma referência ideal. * Dany- Robert Dufour. A arte de reduzir as cabeças: Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal (Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2005). ** Professora Titular do Departamento de Psicodinâmica da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. E-mail: [email protected] 1 Conferência de J. Lacan, pronunciada no Museu da Ciência e da Técnica de Milão, em 3 de fevereiro de 1973, publicado En Italie Lacan, Milão, La Salamandra, 1978, pp. 58-77.

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Psic. Rev. São Paulo, n. 15(2): 249-253, novembro 2006

Resenha 249

A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal*

Sandra Dias**

O autor do livro, Dany-Robert Dufour, é filósofo, professor de Ciências da

Educação na Universidade Paris VIII, diretor de programa no Collège International

de Philosophie, publica regularmente ensaios no jornal Le monde Diplomatique e

na revista Le Débat e tem dois dos livros traduzidos Lacan e o espelho sofiânico

de Boehme e Os mistérios da trindade.

Trabalhando na interface lingüística, estética e psicanálise, extrai conse-

qüências da teoria dos discursos de Jacques Lacan, em particular do quinto discurso,

nomeado o discurso do capitalista,1 um discurso tão astucioso que anda muito bem,

anda rápido demais, consome tudo e acabará por consumir a si próprio.

Este capitalismo tardio que vigora na sociedade contemporânea, subjugando

tudo, consome tudo: os recursos, a natureza e até os indivíduos que lhe servem,

pois reduzidos ao estado de produtos de consumo. O título do livro indica assim a

característica de nova configuração social que “reduz as cabeças”, isto é, reduz as

mentes e portanto cria uma nova subjetividade.

Assim, o traço característico da chamada época “pós-moderna”, sociedade

“antropofágica” que tudo consome, é a redução das mentes. Para efetivar essa

redução de espíritos e instalar-se um novo sujeito, um sujeito “pós-moderno”, o

capitalismo operou a destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade,

o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acres-

centar também a do sujeito marxiano.

O processo de quebra simultânea do sujeito moderno, o sujeito crítico kan-

tiano, que surgiu nos anos 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido nos anos

1900 , sujeitos instalados em uma posição transcendental e referência para pensar

nosso ser-no-mundo, tornam-se agora fluidos assim como o sujeito marxiano, sujeito

da ideologia que situava uma referência ideal.

* Dany- Robert Dufour. A arte de reduzir as cabeças: Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal (Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2005).** Professora Titular do Departamento de Psicodinâmica da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. E-mail: [email protected] Conferência de J. Lacan, pronunciada no Museu da Ciência e da Técnica de Milão, em 3 de fevereiro de 1973, publicado En Italie Lacan, Milão, La Salamandra, 1978, pp. 58-77.

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Como foi possível a liquidação do sujeito tão rapidamente na sociedade

ultraliberal?

Dufour aponta que essa mutação foi possível pela dessimbolização do mundo.

O mundo como alteridade radical se opõe ao sujeito, se o mundo como alteridade –

o Outro social, se altera, o sujeito também se transforma, pois ele não é causa de

si, mas se enlaça e se constitui a partir do Outro. O Social concebido como Outro é

uma exterioridade radical em relação ao sujeito, é também o lugar terceiro na fala e

também o lugar da lei que antecede o sujeito e na qual ele tem que se engajar para

se constituir. O Outro anterior ao sujeito ocupa o lugar do terceiro que nos funda,

sendo um sistema simbólico e imaginário. Em sua função imaginária, O Outro se

encarna na história através de diferentes figuras: a Natureza, Deus, o Rei, a Phisis,

a Razão, o Proletariado, e em sua função simbólica é uma estrutura de ficção que

“trabalha na formação dos sujeitos marcando-os com uma marca específica que

lhes permite enfrentar a questão jamais definitivamente organizada da origem

(Dufour, 2005, p. 37).

Entre o Outro e o sujeito se estabelece uma dialética, na qual o sujeito é

tanto sujeição, “subjectus”, como resistência ao Outro. O “sujeito só é sujeito por

ser sujeito de um grande Sujeito (ibid., p. 39) e basta declinar no lugar do grande

Sujeito ou do Outro que teremos as figuras que estão no centro das diferentes

configurações sociais: a Phisis, Deus, Rei, Povo, Mercado. O grande Sujeito da pós-

modernidade, a figura do Outro social, é o Mercado, pois na virada neoliberal se

constituiu uma sociedade que situa o mundo e todas as relações como mercadorias.

Assim, “o triunfo do neoliberalismo trouxe consigo uma alteração do simbólico”

(ibid., p. 14), isto é: do Outro. Se o Outro se altera, o sujeito também se transforma,

pois esse sujeito desse grande Sujeito – o Outro – é o sujeito que se insere no laço

social como sujeito consumidor.

Assim, assistiu-se à destruição do sujeito crítico, neurótico e ideológico, essa

morte programada do sujeito concomitante à mutação do capitalismo em sua fase

tardia denominada neoliberalismo, ocupado em desfazer todas as formas de trocas

que prevaleciam e substituindo-as por um referencial que as avalize o absoluto ou

metassocial das trocas, em síntese: na atualidade, a troca mercadológica tende a

dessimbolizar o mundo.

Toda figura transcendente que vinha fundar o valor é doravante recusada, há

apenas mercadorias que são trocadas em seu estrito valor de mercadorias.

Hoje, os homens são solicitados a se livrar de todas as sobrecargas simbó-

licas que garantiriam suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado

em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de modo

que nenhuma outra coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional,

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transcendente, transcendental...) possa constituir um obstáculo à sua livre

circulação. Disso resulta uma dessimbolização do mundo. Os homens não

devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, eles de-

vem, simplesmente, se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada

da mercadoria. (Ibid., p. 13)

Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação

antropológica porque é aniquilada a garantia simbólica das trocas entre os homens

alterando o pacto social e a própria condição humana. Dufour ressalta que nosso

ser-no-mundo não pode mais ser o mesmo a partir do momento em se deixa de

depender da busca da conciliação com esses valores simbólicos transcendentais

que sempre tiveram o papel de fiadores da vida humana em sociedade, mas fica-

se vinculado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da circulação

da mercadoria

Essa nova ideologia, em relação às anteriores, não começou visando ao ho-

mem diretamente, por meio de programas de reeducação e de coerção, ela apenas

introduziu um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperan-

do que o resto viesse na seqüência: que os homens se transformassem no momento

de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como a única coisa real. Os

homens não devem se conciliar com valores simbólicos transcendentes: devem se

submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria.

Nessa nova economia de mercado, tudo é vendável, tudo tem um preço,

inclusive o próprio sujeito, pois reduzido a mercadoria, o que leva o autor a situá-lo

como um sujeito “esquizóide” no modelo deleuziano. O novo adestramento do ser

humano efetua-se em nome de um “real” (a mercadoria) que é melhor acatar com

resignação do que se opor, onde não convém mais o sujeito crítico antecipando uma

deliberação conduzida em nome do imperativo moral da liberdade, nem tampouco

o sujeito neurótico tomado de uma culpabilidade compulsiva; o que se exige agora

é um sujeito precário, acrítico e psicotizante, um sujeito aberto a todas as conexões

comerciais e a todas as flutuações identitárias.

Nessa nova sociedade, de economia neoliberal, o trabalho não é mais

a base da produção do valor. O capital não é mais essencialmente constituído

pela mais-valia (Mehrwert, em Marx) originada da superprodução apropriada

no processo de exploração do proletário. O capital aposta cada vez mais nas

atividades de alto valor agregado (pesquisa, engenharia genética, Internet, in-

formação, mídia…), que dispensam em grande parte o trabalho assalariado, e

centra-se numa economia virtual que consiste, essencialmente, em criar muito

dinheiro com quase nada, vendendo muito caro o que ainda não existe, o que

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já não existe ou o que pura e simplesmente não existe, correndo o risco de criar

impérios de papel prontos a desabar de modo brutal.

O capitalismo atual não se interessa mais só pelos bens e por sua capitali-

zação, não se contenta mais com um controle social dos corpos, mas visa também,

sob a aparência de liberdade, a uma profunda reestruturação das mentes. Tudo deve

entrar no mundo da mercadoria, todas as regiões e todas as atividades do mundo,

inclusive os mecanismos de subjetivação, e para isso ele aposta cada vez mais na

desinstitucionalização. Ele busca destruir a dependência simbólica indispensável

à formação humana e à vida em sociedade, restando apenas as relações de força e

o excesso de violência.

Dufour indica que o ser humano vive constantemente sob duas formas de

domínio: a dominação política ou social tal como definida por Marx (o conjunto

de meios pelo qual um grupo exerce poder sobre outros e pelo qual ele dissimula

seus próprios interesses a fim de manter a dominação) e a dominação simbólica

ou semiótica. Ele ressalta que, da primeira, o homem pode escapar, no entanto,

ele não pode escapar da segunda, sob pena de se perder totalmente. Dessa forma,

a revolta contra as instituições fortaleceu o capitalismo, pois a idéia de que “toda

ação pedagógica é uma forma de exercício de poder” ou de que “a cultura é uma

forma de repressão, de alienação” acabaram por provocar uma fratura na relação do

sujeito com as diferentes modalidades em que o Outro social se encarnava: o pais, a

família e a pátria, enfim todo e qualquer Ideal, toda e qualquer narrativa (religiosa,

estado-nação, povo trabalhador) e a relação com os grandes textos fundadores.

O sujeito moderno que, para viver na cultura, tinha muitas vezes que re-

nunciar ao desejo, foi substituído por subjetividades, o que pode ser considerado

mais libertário e menos controlável pelas ainda existentes instituições de poder.

Mas decaído de sua faculdade de juízo, impelido a gozar sem entrave e não mais

se referindo a nenhum valor absoluto ou transcendente, o novo “homem novo” é

mais um produto da “arte de reduzir as cabeças”, do que uma subjetivação em sua

afirmação criadora e transformadora de si e do mundo. Pois a democracia liberal

dialógica apenas produziu um novo sujeito, um subjetus – o submisso agora ao

Mercado, o grande Outro da pós-modernidade (Dufour, 2005, p. 27).

O Outro da pós-modernidade – o Mercado – se utiliza de práticas, verda-

deiras práticas de socialização que mantêm uma verdadeira servidão voluntária

através do fetichismo da mercadoria presente nas presentes práticas discursivas

que norteiam a relação entre os socius. O mercado cria tanto a falta (pseudofalta)

como também o objeto que ilusoriamente a tampona, operando uma dissolução per-

manente desse próprio objeto de consumo que apresenta como a solução para todo

mal. Essa demanda aparece como um estado de contínua solicitação, exasperação,

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enfatização; uma vez que o objeto é sempre descartado quando não está mais na

moda; é uma demanda desenganchada da dialética do desejo porque é o objeto que

mostra o que falta ao sujeito e não a falta do sujeito que o dirige ao objeto (segundo

a metonímia do desejo). O sujeito contemporâneo não vai ao shopping center para

buscar o que lhe falta, mas vai ao shopping center para saber o que lhe falta.

Dufour sublinha que o Homo sapiens está sendo transformado pela indústria

cultural em Homo zapiens, referindo-se ao hábito de “zapear” a TV com o uso do

controle remoto, no qual tanto as crianças como os adultos permanecem longas

horas do dia, e está transformando a humanidade num bando de carneiros, cuja

única capacidade é consumir.

Por essa lógica, ser cidadão é ser consumidor e ser sujeito é ser feliz, isto é:

poder ter tudo que sua vontade aspira, num equívoco que a satisfação da demanda

equivale a do desejo. O autor baliza suas conclusões retomando a tese do mal-estar

na civilização de Freud, postulando que na sociedade atual há um só mal-estar na

civilização: o discurso capitalista, porque essa nova modalidade de gozo apresentada

aos sujeitos na sociedade contemporânea rejeita a castração e a eleição forçada do

sujeito do inconsciente, constituindo uma subjetividade absoluta, que se impõe

como vontade no mundo, sem que nada que a limite, nem nada que a divida em

sua verdade.

Por conseguinte, verifica-se na pós-modernidade uma excessiva presença

do objeto, o poder do objeto de consumo que enlouquece e impede o sujeito de

realização simbólica de toda e qualquer falta e implica a redução do laço social à

ideologia narcisista que prescreve um estatuto isolado, monádico, fechado sobre

si mesmo do sujeito. Daí os novos sintomas, práticas pulsionais fora do regime

significante: as toxicomanias, as bulimias, as depressões, puras técnicas de gozo

que, ao incidirem no plano das relações sociais, produzem o fenômeno da segrega-

ção, do racismo e da violência, que aumentam vertiginosamente de acordo com a

aceleração do consumo.