A COZINHA DOS CABEÇAS-CHATAS
-
Upload
antonio-galeno -
Category
Documents
-
view
679 -
download
12
Transcript of A COZINHA DOS CABEÇAS-CHATAS
Alberto S. Galeno(Da comissão Cearense de Folclore)
Uma Excursão pelo campo da culinária,da História e do Folclore dos cearenses
Alberto S. Galeno
Capa:Gildasio Maia
Revisão:Feo. Lima Freitas
Coordenação:Feo. Lima Freitas
Impressão:RBS Gráfica e Editora Ltda.
G l53c Galeno, Alberto S.A cozinha dos cabeças-chatas:
Uma excursão pelo campo da culinária, dahistória e do folclore dos cearenses. - Fortaleza:RBS,200360p.
1. Culinária, Ceará
CDD 394
Surge uma cozinha: a dos cabeças chatas 7A participação dos vaqueiros 9O ciclo das charqueadas 10Uma comida inglesa no Ceará 12Os animais silvestres e seu preparo 13Ainda comida de índio: as tanajuras 14O peba na pimenta 16Umas estranhas pombas conhecidas por avoantes,pombas-de-bando ou arribações 16Algumas particularidades 18Como cuidar das avoantes 19Os peixes e sua história: o reinado do bacalhau,a vez do pirarucu e d'outros peixes 20A vez do pirarucu 22O Surubim 23Ramon, o restauranteur 24A revolução da lagosta 25Os produtos da cana-de-açúcar 26A chapada do Araripe e suas riquezas naturais 27O "piqui" na alimentação dos caririenses 30A "piquizada" 31A umbumzada 32O feijão da chapada 33Feijão, comida de "sustança" 34O feijão verde, prato de inverno 35O pirão de feijão 36A feijoada cearense 36Uma sopa excelente 37O baião de dois 38O arroz 38Os caldos como fonte de alimentação e de cura 39Nos leilões da Igreja 42Nas ruas e praças de Fortaleza, o "de-comer"dos cabeças-chatas 43Nossosre~escos 44Nossas guloseimas 45
Milho, comida de índio 46Cachaça com tira-gosto de carne assada 47Café, a bebida predileta dos cabeças-chatas 49Chá, bebida de doente 50Nas comemorações familiares: comidas, usos ecostumes dos cearenses 52Milagre da Genética 57Merendas e sobremesas 59
Data dos primeiros dias da colonização do
Ceará o aparecimento da cozinha dos cabeças-
chatas, uma cozinha de pratos rústicos, porém
saborosos e nutritivos. O seu receituário achava-se
aqui mesmo, ou, quando não, chegado da África
distante. Os índios participavam dessa cozinha com o
seu "de-comer" simplório: o milho verde, cozido ou
assado, o milho transformado em farinha, pipoca ou
angu. Outra leguminosa de grande aproveitamento
era a mandioca, de cuja massa preparavam a farinha
e os beijus e tapiocas. Preparavam ainda com a
mandioca o caulim, bebida de alto teor alcoólico. Já as
frutas silvestres, como o caju, a mangaba e o murici,
dosados com a farinha de mandioca e o mel das
abelhas, davam como resultado o chibé, uma
gororoba muito apreciada. Havia uma técnica para o
preparo do peixe e da caça: eram moqueados no
borralho dos fogões a lenha. Por último, a paçoca,
7
uma mistura de carne assada com farinha de
mandioca, amassada nos pilões de pedra.
Da África, vieram as avozinhas angolanas com
os seus quitutes melhor temperados: a panelada, o
sarrabulho, a buchada, o mungunzá, o cuscuz e o
vatapá. Para as sinhás e a criançada filhas dos
senhores de terra, elas criaram uma infinidade de
bolos e doces por demais saborosos. Surgiu dessa
forma a cozinha dos cabeças-chatas, uma criação de
índios, negros e vaqueiros.
8
Deixamos por último para falar da participação
do São Francisco nestes eventos, por considerá-Ia a
mais importante de todas. Eles abasteceram de carne
e leite a cozinha dos cabeças-chatas, proporcionando
a criação dos mais variados "de-comer". Com a carne
dos bois, as avozinhas angolanas puseram em prática
as suas comedorias, oferecendo-nos seus cozidos, as
paneladas, buchadas, sarrabulhos e tantos outros "de-
comer" considerados de grande "sustança". Depois,
eles próprios - os vaqueiros - dariam mostras de seus
conhecimentos culinários introduzindo a carne assada
na brasa com o pirão de leite, um "de-comer" muito
simples, mas que nem por isso, desagradaria o
paladar de personagens como o Presidente Afonso
Penna e a cineasta Florinda Bulcão. Das vacas,
obteríamos o leite necessário ao consumo individual e
à feitura da coalhada, dos queijos e da manteiga. Vem
dessa época, o costume anti-higiênico de beber leite
cru. Pois acreditavam os vaqueiros que o leite em
estado natural era de grande "sustança", daí
9
preferirem ingeri-Io cru e não cozido. Esse costume,
desaconselhado, permanecia até recentemente no
sertão cearense, constituindo uma ameaça aos
consumidores de contraírem as epizootias próprias do
gado vacum.
o mais importante legado deixado pelo boi viria
com as charqueadas, a primeira indústria cearense.
Com o crescimento dos rebanhos, surgia a matéria-
prima necessária à chamada indústria da carne
prensada. Os animais, depois de abatidos, tinham as
carnes salgadas e prensadas, o que resultava no
charque. Em um só ano, seriam abatidas cem mil
reses no Ceará, destinadas à produção do charque.
As avozinhas angolanas teriam daí por diante,
vísceras bovinas em abundância para o preparo de
paneladas e buchadas. O charque, carne muito
apreciada, concorreria com a carne dos animais
silvestres na cozinha dos cabeças-chatas. Novas
10
receitas apareciam para o tempero do feijão ou o feitio
da paçoca.
Mas não seria só na culinária que o novo
produto faria sucesso. O mais importante achava-se
na Economia. Era o charque como artigo de
exportação, como produtor de riquezas. Os carros-de-
boi rodavam pelos sertões abarrotados com a
mercadoria para ser exportada através do Porto de
Aracati. Em compensação, cidades como as de Icó,
Sobral e Aracati apresentavam-se engalanadas com
os seus sobrados, ostentando o luxo próprio das
metrópoles. O boi achava-se em todas as partes. Na
alimentação, na vestimenta dos homens, nos móveis
e nos próprios meios de transporte - os carros-de-boi
e as liteiras! Criava-se desta forma o fenômeno
denominado pelo historiador Capistrano de Abreu de
"civilizaçãodo couro".
11
Comida de ingleses, o rosbife entrou para o
nosso cardápio não lhe faltando consumidores. Em
seu preparo, tornam-se indispensáveis carnes
especiais como o filé, o patim e a chã-de-dentro, as
quais, depois de limpas e condimentadas, são postas
a cozinhar em banho-maria. Antes, as carnes são
dispostas e costuradas em formato de lombo, não
devendo permanecer no fogo por mais de trinta
minutos, pois uma das condições do rosbife é ser
constituído de carnes semi-cruas. O rosbife é muito
encontrado em Aracati, nos hotéis e restaurantes da
cidade. Uma influência inglesa.
12
Abundavam os animais silvestres em terras
cearenses, vindo muitos deles a dar-lhes
denominação na língua dos índios. Desta forma,
teríamos, geograficamente, Jaguaribara (terra da
onça), Aratanha (serra das araras), Jaguaribe (rio das
onças), Pacatuba (furna das pacas) e muitas e muitas
outras. Havia, também, uma maneira especial de
prepará-Ias. As caças eram moqueadas no borralho
das fogueiras, isto é, assadas no braseiro, enroladas
em folhas de bananeira. A receita as tornava muito
saborosas. O mesmo era feito com os peixes. Na
Praia da Baleia, em Itapipoca, os nativos costumam,
ainda hoje, dar o mesmo preparo ao peixe cangulo
pescado na mão. Também em Miraíma, uma
cidadezinha próxima a Sobral. Lá, homens, mulheres
e crianças nas passagens de trens da RVe ofereciam
aos passageiros os peixes por eles apanhados em um
açude público e preparados conforme o receituário.
Sendo que desta vez o pescado era servido com
acompanhamentode tapioca ou beiju.
13
Sempre que desabam as primeiras chuvas do
ano na Ibiapaba dá-se a caça às tanajuras. É quando
os insetos, abandonando os formigueiros, voam em
busca de outras paragens. Ora, comer tanajuras é
velho hábito alimentar dos ibiapabanos, herdado de
seus avoengos tabajaras e conservado até hoje. As
formigas, nessa fase do ano, encontram-se gordas e
ovadas, constituindo uma tentação para os serranos.
Então, saem todos - homens, mulheres e meninos -
munidos de folhas de coqueiro a persegui-Ias.
Enquanto não as derrubam, cantam eles um jargão
que diz: "Cai, cai tanjura que o teu pai tá na gordura".
Sob o impacto das folhas da palmácea, os insetos vão
caindo e sendo guardados nos patuás dos caçadores.
Alguns deles se apressam em devorá-Ias, arrancando-
Ihes as cabeças e as asas e comendo-as mesmo
cruas. Uma vez cheios os patuás, as tanajuras são
14
levadas para as cidades da serra - São Benedito,
Viçosa, Ipu e outras -, e vendidas aos litros mediante
preços elevados. Ricos e pobres gostam de saborear
tanajuras, havendo, para elas, várias maneiras de
prepará-Ias: uns guisam em cacos de barro no próprio
óleo, ou nos óleos vegetais. Já as pessoas
sofisticadas preparam-nas na manteiga de garrafa.
Tanajuras guisadas! - eis uma boa pedida nos bares
e hotéis da Ibiapaba.
15
Outra comezina muito apreciada dos
ibiapabanos é o peba, apesar de sua triste fama de
comedor de defuntos. O "peba na pimenta", eis um
dos pratos apreciados na cozinha regional. O
animalejo, depois de morto e esquartejado, é cozido
numa viandande de pimenta-do-reino, alho, vinagre,
óleo e sal. É servido com acompanhamento de farofa
ou pirão, como tira-gosto da apreciada cachaça
ibiapabana.
CUm& eAtAwJb pemiJaA ~
pe1J~, pemiJaA-ck-h~ewaMJb~
Elas vêm não se sabe bem de onde. Há quem
assegure partirem elas da África rumo ao Rio Grande
do Norte e, daí, para os Estados vizinhos: Paraíba,
16
Pernambuco, Ceará e Piauí. Outros que procedem de
Fernando de Noronha. O certo, porém, é que as
avoantes, pombas-de-bando ou arribações chegam
aos sertões cearenses sempre nos meses de verão.
São milhares, quando não milhões de pombas
formando verdadeiras nuvens. Vêm sedentas e
famintas, baixando sobre os cursos d'água e os restos
das plantações existentes, devastando tudo. Os
fazendeiros as maldizem, pois os dejetos das aves
prejudicam as pastagens, tornando-as impróprias para
a alimentação dos rebanhos. Quem as festeja são os
matutos, a gente pobre dos sertões. Para estes, as
avoantes constituem uma verdadeira dádiva dos céus.
Depois de armarem-se de espingardas, de paus e de
fachos, iniciam-Ihes o massacre. A carne das
arribações é muito apreciada, podendo ser consumida
com o simples tempero de sal e assada no braseiro. É
como fazem os roceiros pobres. Os ovos, de tamanho
irregular, são comidos cozidos. Nas grandes secas
que flagelaram o Ceará - 1877 e 1888, as avoantes
foram um lenitivo para a massa de flagelados. Delas
17
ocuparam-se historiadores como Rodolfo Teófilo e
Gustavo Barroso.
As arribações possuem algumas
particularidades que as diferenciam das outras
pombas, como sejam: fazem os ninhos coletivos,
deixando que o sol Ihes choque os ovos; evitam as
serras e os demais lugares frios; desaparecem não se
sabe para onde. Um comportamento esquisito, não
resta dúvida. Elas se encontram sob a proteção da lei,
sendo o seu abate, terminantemente, proibido.
Contudo, o que o órgão encarregado de protegê-Ias -
o IBAMA - não consegue fazer é livrá-Ias da ação dos
caçadores. Apanhá-Ias é um costume secular dos
sertanejos cearenses.
18
Como já foi dito, a gente dos matos se contenta
em saborear as avoantes assadas na brasa, com o
simples tempero de sal e acompanhamento de farinha
de mandioca. Nem mesmo o óleo comestível se
tornava necessário, uma vez que as aves são, por si,
gordurosas. Todavia, existem outras maneiras de
prepará-Ias: fritas no óleo ou recheadas, à maneira
das galinhas ou dos perus; com azeitonas e ervilhas,
o que as torna por demais saborosas.
19
oJ pe4U fi J/lJ1J Ikibwv: (y \RiJuJk kh~, (j; UfJ3 k pW1!tuew e;J'~
peim
Antes mesmo da chegada às nossas cozinhas,
os peixes contam com a sua história. Comecemos
com o bacalhau, um habitante das águas geladas da
Noruega. Embora sem o prestígio do salmão e do
caviar - manjar de banqueiros e de majestades -, o
bacalhau dispunha das preferências da Igreja. E, tanto
é assim que durante a Semana Santa ele substitui o
boi nas mesas dos católicos. O que se deve comer
nesses dias é o bacalhau. Seria enfadonho se
fossemos enumerar quantas receitas há sobre o
preparo do alimento. Contentamo-nos em indicar a
quantidade destes e os temperos. A aplicação ficará
por conta das cozinheiras.
O bacalhau, da mesma forma que os homens,
também possui classe. Há o bacalhau de primeira e o
de segunda classe. O de primeira é aquele de grossas
20
postas, o mais indicado para ser assado no forno,
afogado no azeite doce ou óleo de oliva. Já o de
segunda, é o bacalhau pequeno, magro e cheio de
espinhas, cozido geralmente no óleo de coco ou no
leite de vaca. É o bacalhau do povo. Houve tempo em
que um e outro abundavam nas padarias de
Fortaleza. Os lusos vendiam-nos de mistura com os
subprodutos do trigo e ainda com os condimentos
indispensáveis: o azeite doce, o óleo de oliva, as
ervilhas e azeitonas. Sem esquecer as castanhas e o
bom vinho do Porto. Por sua vez, as farmácias com
ph- vendiam a Emulsão de Scott, um nutriente
preparado com o óleo do fígado de bacalhau, remédio
sem igual na recuperação dos adolescentes
desnutridos. Assim, permaneceu até fins da década
de 1920.
21
o bacalhau, no entanto, seria desbancado
pelos grandes peixes dos nossos rios como o
pirarucu, o surubim e outros. Ainda na década de
1920, o peixe dos rios amazônicos constituía o "de-
comer' dos trabalhadores na construção civil. De
carne muito saborosa, o pirarucu era comido assado
na brasa, com farinha de mandioca. Foi por essa
época que aconteceu um envenenamento em massa
dos trabalhadores do açude Poço dos Paus, em
construção. Eles comeram do peixe, o peixe estava
deteriorado e o resultado foi a intoxicação dos
"cassacos", seguida de numerosas mortes. O
acontecimento logo entraria para o folclore da região,
explorado pelos forrozeiros que cantavam ao tom da
harmônica - "Lá no Crato não tem mais doutor/Foram
todos para o Iguatu/Eles foram cuidar do povo/Que
comeu da carne/Do pirarucu".
Pois, como dizem os "cabras da peste",
desgraça pouca é tiquim. Fica-se a troçar da
desgraça, como se esta não bastasse.
22
Outro peixe volumoso e de grande aceitação no
interior cearense era o surubim, este do Rio São
Francisco. Embora sem a fama do bacalhau e do
pirarucu, o surubim era gostoso e muito apreciado dos
cearenses. No folclore regional, o peixe figura nas
danças do bumba-meu-boi como um de seus
personagens.
23
Mais ou menos por essa época, instalava-se na
Praia de Iracema o restaurante Ramon, um inovador
da cozinha cearense. O espanhol começara por
desbancar peixes como o beijupirá, dando prioridade
à cavala, à garoupa e à cioba. Gozava de muita fama
a sua cavala frita no azeite doce e regada a água de
coco. Ou a cioba cozida com acompanhamento de
pirão. Não faltavam no estabelecimento do espanhol
os degustadores dos bons pratos. Até que na década
de 1950, com a construção do Porto do Murucipe, o
mar revolveu a Praia de Iracema, destruindo tudo,
inclusive o estabelecimento de Ramon. O golpe foi
duro demais para o espanhol, que, não resistindo,
terminou por suicidar-se.
24
A nenhum outro habitante das águas salgadas
estaria reservado o sucesso obtido pela lagosta. Uma
revolução lhe estaria reservada não só na culinária,
como, principalmente, na economia dos cearenses.
Logo ao findar a Segunda Grande Guerra, deu-se a
investida dos empresários estrangeiros da pesca
sobre as nossas costas. lanques, franceses e
japoneses aqui aportavam em busca do pescado
regional, deparando-se com os imensos lagostais
inexplorados nas costas cearenses.
Coube a Mr. Davies, um aventureiro norte-
americano, ser o primeiro na exploração que se
iniciava. Milhares de toneladas do produto foram
colhidas e exportadas para os mercados europeu e
norte-americano. Na balança comercial, a lagosta
alcançava preço, passando a competir com o algodão,
os couros e a cera de carnaúba. Surgiram milhares de
empregos para os nossos homens do mar. Na
culinária, o crustáceo derrubava o peru na mesa dos
burgueses. Surgiam receitas na cozinha dos cabeças-
25
chatas: lagosta ao Termidor. Uma revolução, como se
vê.
No Ceará, os produtos da cana-de-açúcar, tais
como a garapa, o mel e principalmente a rapadura,
têm grande emprego na alimentação do povo. O
cearense não passa sem incluir no seu "de-comer"
uma ''tora'' de rapadura com acompanhamento de
farinha de mandioca. Enquanto isso, nas merendeiras
não é menor o consumo do caldo de cana. As
moagens nos engenhos interioranos começam,
geralmente, nos meses de maio e junho, terminando
no fim do ano. Afora a garapa, o mel e a rapadura,
eles produzem guloseimas sofisticadas como os
alfinins e as rapaduras batidas, com tempero de
cravo, canela e erva-doce. Todavia, a grande
produção dos engenhos não é a dos produtos
alimentícios retirados da cana-de-açúcar, mas a da
cachaça. São milhões e milhões de litros de bebida
que são obtidos da moagem dos canaviais e, depois
de prontos, exportados, em sua maior parte, para os
26
u{ eRnpwLv r& u{WLipe; e;~U1M
~3aA~
Estados sulinos e para a Europa. Uísque nacional, é
como chamam a cachaça cearense, considerando-se
a sua excelente qualidade.
Em meio à secura da "caatinga" cearense,
íamos encontrar o Cariri com os seus "de-comer", sua
história e seu folclore. Nos pés da serra, achavam-se
os sítios de cana com os seus engenhos puxados a
boi. Era neles onde se produzia a garapa, o mel e,
principalmente, a rapadura, produtos básicos na
alimentação dos cabeças-chatas e, nos altos da
Chapada, as fontes de águas cristalinas a vivificar
pequizeiros, umbuzeiros e tantas outras fruteiras
silvestres. Naquele paraíso terreal, as criaturas
encontravam condições para sobreviver,
isoladamente, graças aos produtos do próprio meio.
Pois era o que faziam os flagelados das secas e os
perseguidos das insurreições armadas dos tempos do
27
Império. O arvoredo dava-Ihes as fontes de que
necessitavam para a sobrevivência - o pequi, a
mangaba e tantas e tantas outras - e abrigo seguro
contra os adversários.
A Chapada serviu de asilo para os milhares de
flagelados das grandes secas de 1877 e de 1888 e
para os sublevados de Pinto Madeira e da Balaiada.
Por último, para Lampião e o Beato José Lourenço.
Estes escreveram a história da nordestinidade,
repetida oralmente pelo povo, de geração em
geração. Sim, os caririenses contavam com seus
beatos, seus cangaceiros e seus poetas. Um destes, o
mestre de rapadura Zé de Matos, um mestiço da
nação Cariri, conseguiu imortalizar-se embora pobre e
analfabeto. Seus versos ainda hoje são repetidos
pelos caririenses, cem anos após o desaparecimento
do poeta. Ele cantou as maravilhas da serra e as
proezas dos compatriotas. Certa vez, na Feira de
Missão Velha, a um vendedor que lhe negara um
caroço de "piqui", Zé de Matos respondeu com os
versos abaixo, ao mesmo tempo em que retratava as
benesses da serra:
28
Terra boa é o Cariri
Tem mangaba e tem "piqui"
Tem muita moça bonita
E cabra bom no jiquP
Mas, ao redor de sete léguas
Tem cabra fio d'uma égua
Que tem pena de um "piqui"!
1 Jiqui - cacete curto. 29
o "piqui", este o alimento básico na dieta dos
caririenses. Havia aqueles que o consumiam cru com
farinha de mandioca; outros, cru com farinha e
rapadura; outros ainda, assado na brasa. Assim
faziam os cabras da peste de que nos fala o poeta Zé
de Matos, cabras useiros e vezeiros no manejo do
jiqui. Porque a maneira mais freqüente e
recomendável de saborear-se o fruto do pequizeiro
era cozinhá-Io como tempero do arroz ou do feijão.
Sem dispensar o necessário cuidado, ao roê-Io, com
os espinhos acumulados na castanha do fruto. Ao
cozinhar, o pequi desprende um cheiro muito forte.
Outro emprego que lhe dão é no fabrico de óleos que
são utilizados tanto como tempero de comestíveis,
como na indústria de nutrientes. A safra do pequi
ocorre geralmente entre os meses de junho e
dezembro de cada ano, época em que as mulheres da
30
região engravidam em maior número. É a força do
"piqui", dizem os gaiatos.
Sabem as cozinheiras do Cariri preparar um
creme à base do "piqui", para o tempero dos
alimentos. É a "piquizada", cuja receita publicamos a
seguir, fornecida pelo professor Jesus Rocha. Ei-Ia:
coloca-se um litro de leite e dez pequis em uma
panela, preferentemente de barro, levando-a ao fogo.
Quando o leite começa a ferver, dá-se-Ihe uma
mexedura colocando-se um pouco de sal e os
temperos verdes - cebolinha, coentro e pimentão.
Deixa-se ferver por mais algum tempo. Nova
mexedura, podendo-se retirar a gororoba do fogo para
colocá-Ia sobre o arroz e o feijão já à espera na mesa.
31
Outra comida típica do Cariri é a umbuzada, um
creme preparado com os frutos do umbuzeiro. Uma
árvore providencial o umbuzeiro! Pois, nos anos de
seca, quando desaparece a água das fontes, é em
suas raízes que os serranos vão encontrar o líquido
de que necessitam para matar a sede. Seus frutos de
cor verde amarelecida são muito saborosos, sendo
empregados no preparo da umbuzada, creme do qual
já nos referimos. Esta é sua receita a nós fornecida
pelo professor Jesus Rocha: coloca-se em uma
panela meio litro de umbus amarelecidos e um litro de
leite, levando-se a mistura ao fogo. Os umbus devem
conservar as cascas. Quando a mistura estiver a
ferver, retira-se a mesma do fogo, colocando-a a
esfriar. Uma vez fria, a mistura deverá ser peneirada,
adoçada e colocada novamente a ferver. Dá-se nova
mexedura, podendo a umbuzada ser servida depois
de fria.
32
Havia nos altos da Chapada do Araripe uma
gramínea de tamanho um pouco maior do que o feijão
comum e de cor arroxeada. Era o andu, o feijão da
Chapada, de muito consumo pelos habitantes das
redondezas. Nos hotéis de luxo do Cariri, dada a
beleza das sementes, eram estas usadas como
enfeite das comidas. Eram, no entanto, as sementes
do andu muito amargas, exigindo de três a mais
lavagens antes de levadas ao fogo. A gente simples
do Cariri comia o seu feijão temperado com toucinho
ou óleo de pequi, dando graças ao bom Deus por tê-Io
dado graciosamente.
33
Alimento rico em sais, ferro e vitaminas, o feijão
é considerado "comida de sustança" pelos cabeças-
chatas, o que o torna insubstituível na dieta do povo.
Seus temperos mais usuais são pedaços de carne
fresca e de toucinho, afora os condimentos, como o
sal, alho, pimenta e vinagre. Para complementá-Io, a
farinha de mandioca e o arroz. O caldo do cereal é
recomendado para os anêmicos como restaurador da
saúde. Existem no Ceará muitas variedades de feijão,
sendo as principais, o mulatinho e o feijão de corda.
34
o feijão verde era considerado prato de
inverno, o anunciador da safra das leguminosas.
Terminada a estação das águas, quando as vagens
do cereal começavam a amarelar nos roçados, eram
colhidas, tendo os grãos cozidos juntamente com os
quiabos, maxixes e jerimuns, produtos da fase
invernosa. Outros preferiam temperá-Io com manteiga
de garrafa e queijo de coalho, afora os condimentos
indispensáveis. Com o advento das lavouras irrigadas,
o feijão verde deixou de ser prato de inverno para
tornar-se prato do ano inteiro.
35
Esta a maneira de preparar-se um dos pratos
mais nutritivos e saborosos da cozinha cearense: o
pirão de feijão! O cereal, depois de cozido, tem os
grãos esmagados e peneirados. A massa desta forma
obtida é temperada com cheiro verde, sal, vinagre,
alho e pimenta-do-reino. Adiciona-se uma quantidade
igual de farinha de mandioca, algumas colheres de
gordura de porco ou de óleo de soja, levando-se em
seguida de volta ao fogo. Dá-se algumas mexeduras
para, em seguida, recolhê-Ioe colocá-Io nas terrinas.
A feijoada cearense é inteiramente diferente de
sua congênere carioca, a começar pelo tipo de feijão
empregado, que é o de corda ou o mulatinho, uma vez
que no Ceará o feijão preto é de pouco ou nenhum
consumo. Quanto aos temperos, são poucos e muito
simples. Nada de condimentos em conserva, mas, tão
36
só pedaços de carne de boi e de toucinhos salgados,
alho, sal, vinagre, pimenta-do-reino e os
indispensáveis temperos verdes. Como cobertura, a
farinha de mandioca, devendo ser servida com
acompanhamento de arroz, farinha e macarrão. Há
quem goste de beber, na ocasião, alguns goles de
cachaça ou cerveja.
Com a massa do feijão cozido, pode-se obter
ainda uma excelente sopa. O produto, depois de ser
colocado numa panela ao lado de igual porção de
arroz ou macarrão, igualmente cozidos, recebe como
temperos cebola, vinagre, gordura de porco ou óleo
vegetal e os indispensáveis temperos verdes. Coloca-
se água em quantidade suficiente. Dá-se algumas
mexeduras. Depois de fervida, a sopa pode ser
retirada do fogo e servida.
37
o prato é composto de uma mistura de feijão e
arroz, tendo por temperos queijo de coalho, manteiga
de garrafa ou toucinho e carne de boi fresca.
Primeiramente, o feijão - dois terços do conteúdo - é
posto a cozinhar. E só depois de fervido é que se
adiciona o arroz - um terço do conteúdo - e os
temperos. Aguarda-se que o caldo seque para ser
retirado do fogo. É o baião-de-dois um dos pratos
mais populares da culinária cearense.
o arroz, feijão, a farinha de mandioca e o milho
são alimentos insubstituíveis na mesa do cearense. O
arroz, de mistura com o feijão, dá-nos como resultado
o balão-de-dois, um dos pratos mais apreciados da
nossa culinária. A leguminosa substitui o macarrão,
que é de menor consumo entre o povo. Houve tempo
em que o caldo de arroz era o alimento indicado para
os enfermos das doenças tifóides. Nestes casos, os
38
grãos da leguminosa deveriam ser pilados e nunca
beneficiados a motor, pois os grãos beneficiados
desta última forma, perderiam as granulações
avermelhadas contidas na entrecasca, nas quais se
achariam os nutrientes. No Cariri, prepara-se um aluá
que é feito na base do arroz. Contudo, nada para
comparar-se ao arroz doce, uma sobremesa
preparada com a gramínea, temperada com leite,
açúcar e canela.
Eram muitos, antigamente, os caldos na
cozinha dos cabeças-chatas. Muito apreciados pelos
comensais, os caldos eram tomados tanto pela sua
gostosura como pelas supostas qualidades
medicamentosas a eles atribuídas. Havia os caldos
preparados à base da carne de animais, como o boi, a
galinha e os peixes; outros, tomando por base
gêneros tais como: o arroz, o feijão, a farinha e as
39
hortaliças. Para as dondocas paridas, era
recomendado o caldo de galinha com
acompanhamento de torradas e de vinho do Porto.
Decorridas três semanas sob este regime, achavam-
se elas restabelecidas do parto. Já o caldo de arroz,
numa época em que não havia a penicilina, era
recomendado pelos médicos no tratamento aos
enfermos das doenças tifóides, o tifo e o paratifo. O
arroz empregado nesses caldos era pilado e não
beneficiado em máquina, o que lhe assegurava a
permanência das vitaminas. Um mês de tratamento
para os enfermos, Ihes resultava muitas vezes na
morte, certamente nem tanto pela enfermidade, mas,
pela forma errada de tratamento. O caldo de feijão -
de muita gostosura - era recomendado no tratamento
das anemias. Os grãos da leguminosa, depois de
cozidos e de peneirados, a massa era levada ao fogo
com temperos de vinagre, pimenta-do-reino, cebola e
um pouco de gordura. Muito rico em proteínas, o caldo
de peixes do mar - principalmente o de cangulo - era
recomendado no tratamento da perda de memória.
Para os fracos, os necessitados de riqueza e de
40
saúde, havia um similar chamado de "caldo de
misericórdia", preparado à base de farinha de
mandioca, sal, pimenta-do-reino e de uma colher de
gordura. Era um alimento de emergência para os
necessitados. Contudo, caldos de muita "sustança",
como dizem os matutos, eram aqueles preparados
com os derivados do boi, principalmente os mocotós.
Estes "levantariam até defunto", de acordo com o
imaginário popular. Muito tempero, notadamente alho,
pimenta-do-reino e verdura.
41
Antigamente, nas festas da Igreja, as grandes
surpresas ficavam por conta dos leilões a terem lugar
na última noite das comemorações. Então, era de ver-
se o patamar do templo repleto de mesas, sobre as
quais achavam-se as prendas ofertadas pelos ricos da
paróquia e que seriam arrematadas por outros ricos.
Guloseimas, bolos e doces. Os salgados, dentre os
quais os mais disputados seriam as galinhas cheias.
Tudo preparado por cozinheiras de muita fama na arte
culinária. O leiloeiro esforçava-se em exaltar-Ihes os
méritos, manjares que somente os ricos poderiam
saborear. Bolos cosmopolitas, trazendo a indicação
até dos pesos e medidas originais. No caso, o Luís
Felipe, que, de acordo com o leiloeiro, continha 200
libras de ''farinha do reino", 15 onças de manteiga e 25
gemas de ovo de galinha. Sim, essa era a linguagem
mesma da receita do bolo. O Sousa leão, o Glória dos
Bem-casados e o Amor em Pedaços não lhe ficavam
atrás. Nas bandejas, os sequilhos de goma feitos no
leite de coco e os "bolins". Compotas de doce de
42
laranja da terra, de leite e de goiaba. Sem esquecer
os licores mais apreciados das senhoras: os licores de
jenipapo, de tangerina e de café, tudo de acordo com
o paladar dos ricaços. Para os senhores, havia as
rechonchudas e luzentes galinhas cheias, recheadas
de farofa de azeitona e de ervilhas. Uma vez
arrematadas, seriam saboreadas com
acompanhamento de cerveja pelos devotos do santo
em festa.
Malgrado a desaprovação de alguns prefeitos
elitistas, nem por isso desapareceram das ruas e
praças de Fortaleza os vendedores ambulantes com
suas bancas e tabuleiros a venderem o "de-comer"
dos cabeças-chatas. Eles vendem de tudo ou quase
tudo: frutas, garapas e, principalmente, os produtos da
culinária regional. São muitas as nossas frutas
tropicais de grande consumo popular, tais como: a
43
banana, a manga, o mamão, laranjas, melancias,
abacaxis, melões, atas e cajus. Outras que fazem o
regalo dos turistas, como os sapotis, as serigüelas, os
cajás, as pitombas e as cajaranas. Temos ainda as
frutas silvestres, estas mais utilizadas no preparo dos
sucos e refrescos, como o jenipapo, o murici e
acerola. Tudo isso pode ser adquirido facilmente no
comércio de beira de calçada.
Apesar da concorrência das indústrias de
refrigerantes, continua grande, entre o povo, o
consumo dos refrescos preparados à base das frutas
regionais. Contamos nesse particular com espécies
produtoras de refrescos e de sorvetes
saborosíssimos, como o cajá e a graviola. Entretanto,
os refrescos de murici, coco e abacate são os da
preferência popular, afora o caldo de cana,
indiscutivelmente, o refrigerante de maior consumo,
com várias engenhocas em funcionamento no centro
da cidade. Tínhamos ainda o "pega-pinto", um
44
refresco saboroso e medicinal preparado com as
raízes de uma planta de mesmo nome. Antes do
invento da penicilina, a beberagem era recomendada
pelos médicos de Fortaleza no tratamento das
doenças venéreas. Com a destruição do Abrigo
Central, no pós-64, e a morte do garapeiro Mundico, a
bebida desapareceu de nossas garapeiras.
Os bolos da preferência popular - os chamados
mansapos - podem ser adquiridos nos tabuleiros de
beira de calçada, acompanhados de um catszlnho
feito na hora. São os bolos de milho, de batata, de
carimã e de goma da nossa cozinha, a cozinha afro-
brasileira. Há também os sequilhos, as roscas, os pés-
de-moleque, os suspiros e os bolinhos de goma,
igualmente apreciados. Ao lado, noutros tabuleiros,
encontram-se outros tipos de comestíveis. São os
cuscuzes, as tapioquinhas e os beijus molhados em
leite de coco. Outra cozinha. Esta, deixada pelas avós
Tapuias.
45
Comida, preferentemente dos índios, o milho
não podia estar ausente no "de-comer" dos cabeças-
chatas, uma gente de fortes influências aborígines. O
produto entre nós é consumido sob a forma de pipoca,
de farinha, cozido ou assado. Não são poucos nas
ruas de Fortaleza, os vendedores ambulantes com
seus fogareiros a oferecerem as espigas do produto,
umas cozidas, outras assadas. Desnecessário dizer
que nunca Ihes faltam fregueses.
46
Produtores das melhores cachaças do Brasil,
os cearenses viam-se, no entanto, impedidos de
consumir livremente a bebida de suas predileções,
porque havia ordem policial determinando aos bares e
botequins o dia, hora e locais nos quais a bebida
podia ser comercializada. Era proibido vendê-Ia nos
dias de Carnaval e, nos outros dias, depois das 20
horas. Desobedecer a esta determinação dava em
cadeia tanto para o vendedor, como para o
consumidor, insultosamente chamados de
cachaceiros. Uma discriminação odiosa, uma vez que
a burguesia podia beber livremente o seu uísque,
bebida do mesmo teor alcoólico da cachaça, sem que
fosse importunada pela autoridade policial. Então, por
que a discriminação? Questão de classe unicamente!
Felizmente, graças às conquistas democráticas
conseguidas ultimamente pelo nosso povo, o abuso
foi abolido. Já se pode beber cachaça em Fortaleza a
47
qualquer dia e hora sem o perigo de ser preso. Os
vendedores ambulantes, aproveitando-se da situação,
comercializam a bebida nas beiras de calçadas,
acompanhada de um tira-gosto muito do agrado dos
cabeças-chatas: carne assada na brasa com farinha
de mandioca!
48
ea#, (j; hebib p~ ~enb~-~
.>
Bebida estimulante, o café está para os
cearenses, a exemplo do chimarrão para os gaúchos.
É a bebida de todas as horas. O consumo da rubiácea
começa manhã cedo, como parte da primeira refeição,
repetindo, vezes sem conta, no decorrer do dia.
Oferecê-Ia aos visitantes vale como sinal de boa
acolhida e de bem-querer. Uma moça que não sabe
passar um café - dizem os matutos - não se encontra
em condições de casar-se. Mas, não é só por deleite
que os cabeças-chatas bebem a rubiácea. Pois esta
ocupa lugar destacado na farmacopéia do povo. É
indicado como curativo para a cefaléia. Para estancar
o sangue nos ferimentos, usa-se o café em pó. É
amargo, nos casos de embriaguez alcoólica. Na Praça
do Ferreira, a sala de visitas de Fortaleza, são muitas
as "cafezeiras", empunhando suas garrafas térmicas,
ocupadas em vender a bebida a quantos ali
permanecem.
49
Os chás não têm vez entre a gente do povo, no
Ceará, pelo menos como bebida de deleite ao
paladar. Existe, é verdade, quem os aceite como tal.
São as mulheres burguesas, as senhoras do "soçaite".
Estas são muito encontradiças nos estabelecimentos
especializados da Aldeota e da Beira-Mar, postas a se
deleitarem com os chás da índia, acompanhados de
biscoitos finos. Isso, entretanto, só entre as dondocas.
Por que, se entre as pessoas simples alguém Ihes
oferece um sucedâneo dos chás orientais, um chá-
mate, um capim-santo, um chá-de-canela ou de folha-
de-laranjeira, a resposta não se faz esperar: - Eu não
estou nem doente para beber chá. Na verdade, no
Ceará, a gente do povo bebe muito chá, mas por
necessidade, por força das doenças. Por deleite?
Nuncal Funciona entre nós uma farmacopéia deixada
pelos avoengos Tapuias de muita aceitação popular.
Desta farmacopéia, figura tudo quanto há de raiz,
semente, folha e casca de pau. Vejamos algumas
destas "mezinhas", com as respectivas indicações:
50
chás de macela, de casca de laranja e de folha de
mamoeiro, para combater os desarranjos estomacais;
para os desarranjos intestinais, os chás de casca de
marmeleiro e de folhas de goiabeira; para os
achaques do fígado, os chás de capim-santo e de
folha de torém; para os achaques dos rins, chás de
folha de abacateiro, de cabelo de milho e de caroço
de abacate; para combater o diabetes, chá de folha de
graviola; como calmante, chá de cidreira e de capim-
santo; no tratamento do câncer, leite de joanaguba;
chá de catuaba, para o tratamento da frieza sexual; no
combate aos catarros, lambedor de casca de
umburana de cheiro; como diurético, refresco de raiz
de 'pega-pinto'; no tratamento da tuberculose, o suco
de mastruz; como vermífugo, chá de raiz de
pepaconha (ipepacoanha); no tratamento dos catarros
crônicos, infusão de raiz de mussambê. O leitor,
sentindo-se necessitado de alguma dessas mezinhas,
poderá adquiri-Ia com o primeiro "raizeiro" que
encontrar abancado à beira da calçada. A "receita",
esta não lhe custará nada.
51
~~~:
~,UAeâ e;ef}á~ ~ ~eA
Era nas festas em famflla - nas comemorações
de aniversário, de casamentos, de batizados, a melhor
ocasião de apreciarmos os comes e bebes dos
cabeças-chatas, seus usos e costumes. Os casarões
senhoriais enchiam-se de convivas espalhados pelas
salas ou sentados ao redor das mesas, enquanto os
donos da casa esmeravam-se em atendê-Ios. Às
senhoras e senhoritas era servido o melhor da
criatividade caseira: os licores de jenipapo, de
tangerina, de café e de maracujá. Sem esquecer os
salgadinhos, os bolos e doces dentre os quaís
sobressaíam-se especialidades como o Luís Felipe, o
Amor em Pedações, o Glória dos Bem-casados e o
Sousa Leão, bolos de receita estrangeira, muita gema
de ovo, farinha de trigo e manteiga.
Aos senhores, por sua vez, seriam servidos os
vinhos do Porto, conhaque, uísque e cerveja. Cachaça
podia haver em casa, contudo, não seria oferecida
52
aos convivas. Exceto, se algum simplório lembrasse a
bebida maldita. Então, o dono da casa iria à sua
adega, de lá voltando com uma garrafa de marca
famosa. E dava a idade da cachaça, que logo seria
consumida, embora com o retraimento deste ou
daquele dos presentes. Preconceito de classe. Essa
prevenção contra a bebida do povo permanece até
hoje, não obstante a nossa evolução democrática. O
fato tem motivado reações como as do cantor
Martinho da Vila que, chegando ao Aeroporto Pinto
Martins, em Fortaleza, e pedindo uma cachaça ao
atendente do bar, este, de cara embaruscada,
respondeu-lhe que ali não se despachava tal bebida.
Havia, sim, uísque, vodca, cerveja, vinhos e
conhaques... Cachaça, não! Foi quando o cantor deu
um espetáculo não programado. - Antes havia estado
em Paris e Roma, onde bebeu a cachaça cearense,
sem dúvida, a melhor do mundo! Agora, chegava em
Fortaleza e não a encontrava. Como explicar o fato?
O atendente, no entanto, preferiu dar o silêncio por
resposta.
53
Nos banquetes da classe alta, o prato
dominante era o peru. Peru à francesa, à portuguesa
e à brasileira, que seriam servidos com
acompanhamento de vinhos e de cerveja. Também os
capões assados e as galinhas preparadas a cabidela.
Tempos depois, o peru seria desbancado pela
lagosta, uma especialidade da cozinha norte-
americana. Mais um modismo em nossa culinária.
Acontece que estávamos nos ocupando das
festas comemorativas na classe alta dos cabeças-
chatas. E o que direi das festas da classe média?
Nestas, em seus almoços e jantares comemorativos,
não havia lugar para o peru nem a lagosta. Havia, sim,
para o porco, o capão assado e as galinhas àcabidela, regadas a vinho e a cerveja. Por sua vez,
nos buffets, nada de bolos de receitas finas, os Luis
Felipe, Amor em Pedaços, Glória dos Bem-casados e
Sousa Leão, mas os manzapeos dos receituários das
avozinhas angolanas, os bolos de milho, de batata e
de carimã. Sem esquecer os pés de moleque, as
roscas e sequilhos, os pastéis, docinhos, cajus
cristalizados e tantas outras gostosuras. Como
54
refrigério, as cajuínas e os refrescos de cajá, graviolae abacaxi.
Os convivas comiam e bebiam "até cair de
costas", como dizia o povo, galhofeiramente, sempre
que se referia aos excessos da gula. E, como se não
bastasse, não faltaria quem não quisesse "levar uma
prova" para os que haviam ficado em casa. O marido,
o filhote adoentado ou a avozinha já avançada nos
anos. Eles iriam adorar! Uma vez dado o
consentimento pela dona da casa, as pilantras
enchiam as bolsas com muitas daquelas gostosuras.
Este, certamente, um costume sertanejo que se
espalhou na sociedade fortalezense, não faltando,
inclusive, aqueles que fizessem o mesmo que as
mulheres. Nessa prática tornaram-se famosos o poeta
e magistrado Carlile Martins e o folclorista Néri
Camelo, sendo que o último tivera um fim tragicômico.
Tendo participado das comemorações da Prefeitura
por mais um aniversário da "revolução" de 64,
excedera-se em comes e bebes. E, não satisfeito,
saíra com os bolsos cheios de tudo quanto havia de
bagulhos. Já na rua sentira-se mal. Levado para a
55
Assistência Municipal, lá chegara agonizante. Qual
não foi a surpresa dos atendentes ao colocá-Ia na
padiola? É que dos bolsos do enfermo caía uma
infinidade de pastéis, bolos e docinhos. Néri Camelo
morreu como deveria ter desejado: de barriga cheia e
cercado de comedorias.
56
o criatório das aves era antes feito de maneira
muito rudimentar. Os galináceos cujas raças
lembravam as conquistas do colonizador lusitano -
galinhas d'angola, caiena e outras - eram criadas
soltas e precariamente cuidadas. Em compensação o
lucro advindo do criatório, embora de excelente
qualidade, economicamente não compensava. A
postura das galinhas era de 15 à 20 ovos, e pintos
para se transformarem frangos demoravam pelo
menos 6 meses. Uma produção pouco
compensadora, como se vê.
Assim permaneceu até o após-guerra quando
foram instaladas as primeiras granjas e iniciando o
criatório industrial.
Novas raças foram introduzidas em confronto
com as nossas galinhas crioulas, agora apelidadas de
capoeiras, pé-duro e caipiras. Vieram as Loghorne, as
New Hampishire, a Rhode e as Plymond, galinhas
capazes de produzir até 300 ovos por ano. Mas não
57
taRBS GRÁFICA E EDITORA LIDA.
Rua Carlos Câmara, 1048 - GentilândiaFone: (85) 281.4911 - Fax: (85) 281.3676
E-mail: [email protected] 60.020-150Fortaleza - Ceará