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ISSN 1809-2616 ANAIS IV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006 A ARTE, A PESQUISA E A CONSTRUÇÃO DO OLHAR PRINCIPAIS ABORDAGENS TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA ARTE BRASILEIRA, ENTRE OS ANOS 1975 E 1985 Ivair Junior Reinaldim 1 [email protected] Resumo: Este artigo de divulgação científica – resumo da monografia de especialização em História da Arte do Século XX, realizada nesta instituição de ensino, sob a orientação da professora Doutoranda Neiva Maria Fonseca Bohns – apresenta as principais abordagens teórico-metodológicas da arte brasileira, entre os anos 1975 e 1985, relacionando as publicações analisadas com o contexto sócio-político-cultural do período em que foram concebidas. A investigação considera também a possível existência de elementos e argumentos que constituam meios específicos para a abordagem da arte brasileira por parte dos autores considerados, pretendendo contribuir para uma maior reflexão dos textos e dos métodos utilizados na abordagem teórica da mesma. Palavras-chave: Historiografia da arte; Abordagens teórico-metodológicas; Arte brasileira. Giulio Carlo Argan afirma que “uma obra é vista como obra de arte quando tem importância na história da arte e contribui na formação e desenvolvimento de uma cultura artística”, concluindo assim, que “o juízo que reconhece a qualidade artística de uma obra, dela reconhece ao mesmo tempo a historicidade”. 2 Para o teórico, a obra só pode ser vista a partir de sua inserção na história, identificando-a “não como um reflexo, mas como agente” 3 nesse processo; não só ela é fruto de um contexto socio-histórico, como esse contexto é fruto da própria obra. Ambos estão a fazer-se, ao mesmo tempo, o tempo todo. 1 Bacharel em Gravura e Especialista em História da Arte do Século XX pela Escola de Música e Belas-Artes do Paraná – EMBAP. Mestrando em História e Teoria da Arte pelo Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – EBA-UFRJ 2 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte. In: ARGAN, Giulio Carlo; FAGIOLO, Maurizio. Guia de História da Arte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1994. p. 19. 3 ARGAN. Op. cit., p. 18. 71

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ISSN 1809-2616

ANAISIV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006

A ARTE, A PESQUISA E A CONSTRUÇÃO DO OLHAR

PRINCIPAIS ABORDAGENS TEÓRICO-METODOLÓGICAS DA ARTE BRASILEIRA, ENTRE OS ANOS 1975 E 1985

Ivair Junior Reinaldim1 [email protected]

Resumo: Este artigo de divulgação científica – resumo da monografia de especialização em História da Arte do Século XX, realizada nesta instituição de ensino, sob a orientação da professora Doutoranda Neiva Maria Fonseca Bohns – apresenta as principais abordagens teórico-metodológicas da arte brasileira, entre os anos 1975 e 1985, relacionando as publicações analisadas com o contexto sócio-político-cultural do período em que foram concebidas. A investigação considera também a possível existência de elementos e argumentos que constituam meios específicos para a abordagem da arte brasileira por parte dos autores considerados, pretendendo contribuir para uma maior reflexão dos textos e dos métodos utilizados na abordagem teórica da mesma.Palavras-chave: Historiografia da arte; Abordagens teórico-metodológicas; Arte brasileira.

Giulio Carlo Argan afirma que “uma obra é vista como obra de arte quando

tem importância na história da arte e contribui na formação e desenvolvimento de

uma cultura artística”, concluindo assim, que “o juízo que reconhece a qualidade

artística de uma obra, dela reconhece ao mesmo tempo a historicidade”.2 Para o

teórico, a obra só pode ser vista a partir de sua inserção na história, identificando-a

“não como um reflexo, mas como agente”3 nesse processo; não só ela é fruto de um

contexto socio-histórico, como esse contexto é fruto da própria obra. Ambos estão a

fazer-se, ao mesmo tempo, o tempo todo.

1 Bacharel em Gravura e Especialista em História da Arte do Século XX pela Escola de Música e Belas-Artes do Paraná – EMBAP. Mestrando em História e Teoria da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – EBA-UFRJ2 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte. In: ARGAN, Giulio Carlo; FAGIOLO, Maurizio. Guia de História da Arte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1994. p. 19.3 ARGAN. Op. cit., p. 18.

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Se para a obra essa relação é evidente, o que podemos dizer do texto que

trata dela? Apresentará ele também a mesma relação com o contexto histórico? A

resposta sempre será afirmativa, pelo menos se considerarmos os mesmos critérios

utilizados para análise da obra de arte. Acreditamos que a razão para fazermos tal

pergunta deve-se ao fato de que no Brasil ainda não possuímos uma quantidade

considerável de estudos referentes à historiografia da arte.4 Se o número de

publicações sobre a história e a crítica de arte aumentou nas últimas décadas – mas

nada que se compare aos mercados editoriais de outros países –, estudos sobre

metodologias ainda dão seus primeiros passos no Brasil.

Com base nestas constatações, propusemo-nos em nossa monografia de

conclusão de curso de especialização5 a identificar essas relações entre “obra” e

“contexto” em abordagens teóricas da arte brasileira, considerando alguns livros

importantes como “fonte histórica”. Mais do que historicizar tais textos, procuramos

também identificar as escolhas teórico-metodológicas de seus autores, verificando

se havia uma visão comum entre elas e, até que ponto, essa concepção poderia ser

fruto do cenário sócio-político-cultural do período analisado. Paralelamente,

trabalhamos com a hipótese de que tais textos, mais do que aplicar passivamente

metodologias desenvolvidas em outros países, apresentam elementos e argumentos

que constituem meios específicos para a abordagem da arte brasileira.

Para concretizar nosso objetivo, optamos por um recorte cronológico que

somasse dez anos: de 1975 a 1985. A própria escolha das datas já aponta para a

decisão de romper com uma concepção de arte brasileira dividida em décadas,

como se a mudança de dezena no calendário acarretasse rupturas caracterizadas

por uma conseqüente transformação no contexto e nas obras. Escolhemos, assim,

três livros publicados no período, com diferentes abordagens teórico-metodológicas

e que possuem relevância para a pesquisa em arte no Brasil. Apesar do número

considerável de publicações que pudemos identificar – salientando o já mencionado

crescente mercado editorial –, optamos pelos seguintes textos, em ordem

cronológica de concepção: Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo

brasileiro, de Ronaldo Brito;6 A querela do Brasil: a questão da identidade na arte 4 Consideramos aqui pesquisas que foram publicadas, possibilitando que um número abrangente de leitores tenham acesso às mesmas.5 Este artigo é fruto da pesquisa realizada para a monografia de conclusão do Curso de Especialização em História da Arte do Século XX, na Escola de Música e Belas-Artes do Paraná – EMBAP, em Curitiba-PR.6 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1985; ou a reedição consultada por nós: BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac&Naify, 1999. O texto foi originalmente concebido em 1975.

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brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari - 1922-1945, de Carlos Zílio;7 e

Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970: subsídios para

uma história social da arte no Brasil, de Aracy Amaral.8

O recorte histórico proposto, inegavelmente, apresenta uma questão de

grande pertinência, com seus mais variados desdobramentos: a ditadura militar. Em

todas as instâncias podemos identificar relações; algumas mais evidentes – ou já

bastante analisadas – e outras ainda pouco abordadas. Em relação à arte,

especificamente, referências ao período estão presentes em obras de um grande

número de artistas, atuantes nos anos 1960 e 1970. Mas, se em trabalhos

politicamente engajados isso é perceptível, há uma série de obras em que tais

relações são menos aparentes. Isso não quer dizer que sejam inferiores ou

alienadas. Não pretendemos desenvolver juízos de valor aqui. Só apontamos para o

fato de que toda obra é fruto de seu tempo, esteja isso bem claro ou não. Do mesmo

modo, se manifestos artísticos declararam posições, publicações de arte, como as

aqui analisadas, também construíram a história, politicamente falando, do modo

como Argan afirmou.

Assim, no contexto em que os livros analisados foram concebidos, podemos

identificar o início de uma política de “abertura”, decorrente da falência do “milagre

econômico”9 construído nos primeiros anos do governo militar. A proposta de

Ernesto Geisel (1974-1979) tinha como objetivo romper com uma série de

acontecimentos ocorridos desde o golpe militar de 1964, que tiveram a violência

como traço marcante, especialmente após dezembro de 1968, quando o Presidente

Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5, o AI-5.10 Com o General João

Baptista Figueiredo (1979-1985), ocorre uma continuidade no gradual processo de

abertura, principalmente com o decreto da Lei da Anistia, que concedia o direito de

retorno ao Brasil para os brasileiros exilados, sobretudo artistas e políticos. Contudo,

mesmo considerando este contexto importante na análise das obras, em nenhum

7 ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade na arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari - 1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. 8 AMARAL, Aracy A. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Nobel, 1984.9 Entre 1967 e 1973, ocorreu o chamado “milagre econômico”, fruto do modelo adotado pelos governos militares que consistia, em resumo, no crescente condicionamento do desenvolvimento brasileiro às exigências dos capitais internacionais. 10 O AI-5 ampliava e reforçava os poderes excepcionais conferidos ao Executivo por meio de medidas anteriores, entre as quais o AI-2, assinado em 1965 pelo Presidente Castello Branco, determinando a extinção dos partidos políticos, instituindo o bipartidarismo e a eleição indireta para Presidente da República. Instrumento de arbítrio largamente utilizado até o final do governo Geisel, o AI-5 restringia o poder de governar a um pequeno grupo de militares.

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momento reduzimos o estudo a uma relação determinista. Esse enfoque foi apenas

parte dos objetivos propostos; a outra, foi a análise teórico-metodológica dos textos.

TEORIA EM QUESTÃO: AUTORES, TESES, OBJETIVOS E METODOLOGIAS

Ronaldo Brito e o nesoconcretismoO livro Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, de

Ronaldo Brito – professor notório saber da Pós-Graduação em História Social da

Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ – foi editado

pela primeira vez no ano de 1985, na coleção “Temas e Debates”, da Funarte.

Contudo, em favor de uma análise histórica, é importante ressaltarmos que seu texto

foi elaborado uma década antes. Nesse intervalo de tempo, entre sua concepção e

sua primeira publicação, trechos foram divulgados em outras edições, constituindo

as mais conhecidas a da revista Malasartes, de 197611 e o texto Vértice e Ruptura,

editado no catálogo Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962), organizado

por Aracy Amaral, em 1977.12 Brito argumenta que uma revisão no momento da

publicação modificaria em profundidade o texto, mas também entendemos que esta

postura possa refletir uma constância em sua abordagem metodológica em relação

ao movimento neoconcreto e em relação à própria História da Arte.

O objetivo do livro, segundo o autor, é estudar as origens do neoconcretismo

e o seu desenvolvimento, identificando uma especificidade neoconcreta exatamente

no que esse movimento tem de contraditório: “circunscrito em linhas gerais às

ideologias construtivas, o discurso neoconcreto é ao mesmo tempo, de uma maneira

mais ou menos explícita, uma denúncia da crise dessas ideologias”.13 A tese de Brito

pode ser resumida na afirmação de que o neoconcretismo foi, simultaneamente, o

“vértice” da consciência construtiva brasileira e o agente de sua crise, oferecendo

possibilidades para sua superação no processo de produção de arte local. Assim, no

interior do movimento estariam “os elementos mais sofisticados imputados à tradição 11 Malasartes, Rio de Janeiro, n. 3, abr.-jun. 1976, p. 9-13. O ensaio publicado na revista corresponde ao texto das páginas 8 a 33, na edição da Editora Cosac&Naify. 12 AMARAL, Aracy A. (Coord.). Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977. p. 303-310. O ensaio corresponde ao texto das páginas 55 a 70, na edição da Editora Cosac&Naify, com algumas pequenas alterações. Na bibliografia do catálogo consta como “fonte inédita” o ensaio de Ronaldo Brito com o título Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro, de 1975. O ensaio foi escrito por encomenda de Marcos Marcondes e Luiz Buarque de Hollanda a Ronaldo Brito – e só foi publicado em 1985, pela Funarte, como já especificado.13 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac&Naify, 1999. p. 8.

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construtiva e também a crítica e a consciência implícita da impossibilidade da

vigência desses elementos como projeto de vanguarda cultural brasileira”.14 Para

ele, somente nos anos 1950 podemos encontrar uma verdadeira arte de vanguarda

no Brasil, afirmação que recebeu inúmeras críticas, em alguns casos enfatizando a

importância da Semana de Arte Moderna na construção de uma modernidade

específica para o Brasil e, em outros, questionando a pertinência da concepção de

um projeto teleológico da arte brasileira, que valoriza sobretudo, o abstracionismo

geométrico.

No desenvolvimento de sua tese, Brito utiliza o termo Projeto Construtivo

Brasileiro, relacionando o neoconcretismo a um passado ilustre: o das correntes

construtivas da História da Arte (Construtivismo, Neoplasticismo e Bauhaus); a via

que liga um ponto a outro é o concretismo, que apesar de ser considerado por Brito

o primeiro movimento brasileiro de vanguarda, ainda estava fortemente atrelado aos

ideais “mecanicistas” e “dogmáticos” dos movimentos internacionais. É o

neoconcretismo que dará o passo rumo à liberdade, reconhecendo, mas também

criticando e reelaborando as fontes, a partir das especificidades do meio brasileiro.

Na análise metodológica, sugerimos uma aproximação com o método

formalista da corrente Modernista, representada pelo crítico norte-americano

Clement Greenberg.15 Contudo, evidenciamos que, se podemos considerar Brito um

formalista, devemos realçar que o autor aplica tal método de modo muito particular.

Defendemos a idéia de que o crítico, mediante o uso de tal metodologia – o

pensamento de Greenberg torna-se paradigmático a partir da segunda metade do

século XX – procura aproximar a arte brasileira, a partir dos anos 60, com o que era

produzido em outros centros, como Estados Unidos, França, Itália, Alemanha, entre

outros.

Assim, se Ronaldo Brito opta por uma análise formalista do neoconcretismo,

isso não quer dizer que não se preocupe com a questão social. Seu texto pode ser

visto como uma necessidade em definir uma estratégia cultural nascida e

identificada com as especificidades do meio brasileiro – o movimento neoconcreto –,

revelando uma independência em relação aos centros internacionais. A postura de

Brito em defesa de uma cultura nacional – apesar de valorizar o neoconcretismo em

detrimento do concretismo – possui um sentido crítico, diferentemente da política

ditatorial ou das correntes populistas que também caracterizaram o mesmo período. 14 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac&Naify, 1999. p. 55.15 Os principais textos do crítico norte-americano encontram-se em: FERREIRA, Glória; MELLO, Cecilia Cotrim de (Org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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Nossa brasilidade é conquistada à medida que nos aproximamos criticamente de

outras culturas e a consciência cultural se dá pela consciência da diferença.

Carlos Zilio e a Querela do BrasilPublicada em língua portuguesa, em 1982, A querela do Brasil foi

apresentada inicialmente por Carlos Zilio como tese de doutoramento na Université

de Paris VIII, dois anos antes. O diferencial é que a tese de Zilio insere a arte

modernista num contexto mais amplo do que a grande parte das análises na área

das artes visuais costuma abranger. Nela, o autor procura identificar a existência de

uma “identidade cultural brasileira”, caracterizadora de um sentimento de

nacionalidade, numa tentativa de pensar a relação complexa entre arte e cultura.

Para isso, ele opta por um recorte, concebendo a obra de Tarsila do Amaral,

Emiliano Di Cavalcanti e Cândido Portinari como expressões de uma concepção de

arte articulada com a cultura brasileira.

Carlos Zilio não pode ser visto como um teórico propriamente dito,

enquadrando-se, na verdade, na categoria de artista-teórico. Para ele, escrever A

querela do Brasil possui o sentido de “atuar criticamente em relação às velhas

ideologias da arte, que pretendem uma divisão do trabalho na qual os críticos

pensam e os artistas são inspirados”.16 É interessante perceber que essa tendência

é uma postura bastante marcante em grande parte dos artistas brasileiros desde a

década de 1950, sobretudo em alguns membros do concretismo e do

neoconcretismo, sendo predominante numa geração ligada ao conceitualismo – no

final dos anos 1960 e década de 1970.

Se, para Brito, uma arte brasileira genuinamente de vanguarda só se daria

nos anos 1950, Zilio concorda com o senso comum de que as questões da

modernidade no Brasil são perceptíveis no início da primeira metade do século XX,

gradualmente ganhando força a partir da Semana de Arte Moderna (1922) e de seus

desdobramentos. Durante a pesquisa, identificamos a existência de um artigo

intitulado “A querela do Brasil” em uma das edições da revista Malasartes.17 Nele,

Zilio se concentra numa discussão genérica sobre política cultural, refletindo sobre a

hegemonia dos países colonizadores em relação aos colonizados. Conclui o texto

aproximando a discussão da realidade brasileira: para ele, o momento em que nasce

16 ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade na arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari - 1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. Introdução, s.p.17 Malasartes, Rio de Janeiro, n. 2, dez. 1975-fev. 1976, p. 8-10.

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a consciência cultural em nosso país seria o do Modernismo – o que é aprofundado

no seu posterior livro.

Zilio identifica no Brasil questões referentes à ambigüidade de uma cultura

plural, caracterizada pela miscigenação e que, por isso, teria dificuldade em

encontrar sua própria imagem. Reconhecido o estado da questão, o autor evidencia

que somente mediante a aceitação dessa multiplicidade é que os modernistas

conseguiram iniciar a construção de uma brasilidade, utilizando a arte como

conscientização política e colaborando para a afirmação de uma consciência cultural

nacional. Assim, Tarsila do Amaral, Emiliano Di Cavalcanti e Cândido Portinari não

pretenderam somente atualizar a pesquisa estética através das vanguardas

históricas, mas aproximar a arte brasileira da cultura de nosso país. Os modernistas

assimilaram as linguagens artísticas européias e, por meio da consciência da

realidade nacional da qual faziam parte, adaptaram-nas ao meio brasileiro, criando

uma arte que se caracteriza mais pela síntese do encontro entre culturas do que

pela simples assimilação de ideais internacionais.

Como método de abordagem, Zilio se utiliza da Iconologia de Erwin

Panofsky,18 método que procura referenciar a obra de arte com o contexto socio-

histórico de forma mais ampla, salientando a necessidade de inserção da arte

brasileira no contexto da cultura nacional e sintetizando, assim, tanto a postura de

Brito quanto a de Amaral. Ao remeter as obras de arte ao contexto socio-histórico,

sua preocupação principal é revelar uma estratégia consciente de construção de

identidade cultural pela apropriação e reflexão crítica de fontes estrangeiras. O

enfoque escolhido por Zilio não pode ser desligado de sua vivência política, de sua

experiência como militante durante a ditadura militar: nesse caso, a consciência

política passa necessariamente pela consciência cultural e ambas se dão pelo

conhecimento histórico.

Aracy Amaral e a função social da arteEm 1984, após ter escrito diversos livros cujo centro de interesse era o

Modernismo Brasileiro, tais como: Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas

(1970), Artes plásticas na Semana de 22 (1970) e Tarsila, sua obra e seu tempo

(1975), Aracy Amaral, então professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade de São Paulo – FAU-USP – escreve Arte para quê?: a preocupação 18 PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença. In: Significado nas artes visuais. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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social na arte brasileira, 1930-1970, obra que sugere uma mudança em sua postura

crítica, sobretudo na década de 1970. Podemos identificar uma abordagem que se

aproxima de um enfoque socialista, a partir de seu contato mais aprofundado com a

arte e a crítica da América Latina, voltadas para uma realidade social diferente da

européia ou da norte-americana.

A autora ressalta em seu livro a importância da “abordagem conteudística” na

produção artística – freqüentemente vista com certo preconceito num ambiente

acostumado com teorizações formalistas –, permitindo averiguar a constante

preocupação social na arte brasileira e na arte latino-americana, com maior ênfase a

partir da década de 1920. O interesse de Aracy Amaral é apontar para momentos da

história da arte produzida no Brasil, entre os anos de 1930 e 1970, em que os

artistas passam a se indagar sobre a função social de sua produção, seu público e

como colocar a obra a serviço de alterações da estrutura de uma sociedade injusta –

o que também é perceptível na América Latina como um todo, em grande parte da

produção artística do período.

Mais do que identificar uma estratégia cultural genuinamente brasileira, Aracy

Amaral procura analisar de forma mais ampla a questão social na arte em nosso

país, caracterizada pela miscigenação de culturas e pela existência de um ambiente

socialmente injusto, com uma elite minoritária privilegiada em detrimento de uma

maioria populacional explorada. Ela advoga a necessidade de uma “nova” História

da Arte, fundamentada em um processo de “socialização”: mediante a crítica a uma

arte dita “autônoma”, a autora defende uma postura engajada do artista e do teórico

– tanto o crítico, quanto o historiador da arte –, contribuindo para que um número

maior de pessoas tenha acesso à fruição artística, o que, segundo ela, possibilitaria

a conscientização dos problemas sociais.

Seu enfoque fortemente marxista é fruto de uma aproximação com a arte e a

crítica latino-americana, apontando para outras possibilidades de apreensão do

objeto artístico e de abordagem do papel do artista na sociedade. Aracy salienta a

necessidade de aproximação do Brasil com seus países vizinhos, destacando as

similaridades históricas e culturais: a realidade de países colonizados, com uma

condição social caracterizada pela má distribuição de renda e a constante

preocupação com a identidade cultural. Este enfoque também é fruto da

aproximação das idéias da autora com o pensamento de Ferreira Gullar19 nos anos

19 GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

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60, fortemente influenciado pelo Marxismo, após sua atuação no CPC – Centro

Popular de Cultura – da UNE – União Nacional dos Estudantes.

Em resumo, de modo bastante direto, a abordagem de Aracy contrapõe-se

aos acontecimentos políticos dos anos da ditadura militar e à conseqüente

“mistificação” do artista frente à dependência cultural e econômica, apresentando um

discurso ideologicamente combativo. O intelectual passa a ser um militante, a seu

modo, refletindo sobre a complexidade das relações sociais, políticas e econômicas

e, ao mesmo tempo, incentivando os artistas a se conscientizarem de seu papel

nesse processo. Portanto, para Aracy, a consciência cultural se dá pela consciência

social.

TEORIA E HISTÓRIA: EM BUSCA DA CONSCIÊNCIA CULTURAL BRASILEIRA

Podemos identificar na pluralidade de abordagens aqui analisadas uma

preocupação comum a todos os textos: a afirmação da consciência cultural

brasileira. A escolha de métodos e o embate com as obras têm um sentido muito

maior do que apenas a concepção de um livro. A arte e o texto são também

instrumentos de conscientização política, capazes de estimular a reflexão e o

questionamento do presente e, assim, “despertar” a consciência do

espectador/leitor. Se os livros analisados são “agentes” no sentido em que

caracterizam a própria complexidade social, também o são por nos conscientizar

dessa pluralidade. Portanto, a consciência cultural – que se dá no presente – é a

mãe da consciência histórica – o olhar sobre o passado.

Procuramos relacionar o desenvolvimento dos textos com o contexto da

ditadura militar, por acreditarmos que, historicamente, tal fato tenha marcado o país

de forma profunda. As estratégias desenvolvidas por cada um dos autores podem

ser vistas como tentativas de valorização de uma cultura nacional – um nacionalismo

genuíno – em contraposição a um nacionalismo politicamente “construído” tão

comum à época – seja o “populismo” dos partidos de esquerda, seja a ideologia

hegemônica e internacionalista dos governos ditatoriais.

De outro lado, nossa pesquisa destaca a necessidade de adaptação de

metodologias estrangeiras às especificidades da arte e da realidade brasileira. Cada

um dos autores, a seu modo, assimilou as características das metodologias que

fossem mais pertinentes a seus objetivos, procurando preencher as lacunas com

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sua experiência pessoal e sensibilidade para nosso contexto. A vivência junto ao

processo artístico e às mazelas da política cultural, mas também à realidade política,

econômica e social de nosso país, contribuiu na formação de nossos intelectuais e

na sua concepção de uma “arte brasileira” que não pode ser vista como simples

reprodução de estilos desenvolvidos em outros contextos. Acreditamos que somente

através das adaptações metodológicas seja possível um “olhar generoso” para uma

cultura nacional – o que, portanto, é válido para outros países –, reconhecendo

criticamente as relações com culturas estrangeiras e valorizando conscientemente

suas especificidades.

Mais do que identificar um corte histórico, defendendo a tese de que a

“consciência cultural” por parte dos teóricos da arte brasileira tenha nascido por volta

da segunda metade da década de 1970 e inícios da de 1980, pretendemos mostrar

que essa preocupação com a “identidade” é uma realidade histórica do Brasil – e

dos outros países latino-americanos. Ela sempre se fez presente e gradualmente

ganhou importância no século XX; mais evidente em alguns momentos, em outros,

menos. Mais do que relações estanques, procuramos identificar continuidades. Isso

posto, encerram-se temporariamente algumas questões, porém, nascem outras a

serem aprofundadas futuramente. Esperamos que, por hora, por intermédio deste

artigo ou da pesquisa propriamente dita, tenhamos contribuído para um melhor

entendimento das questões analisadas, estimulando a pesquisa em história e,

principalmente, na área de historiografia da Arte Brasileira.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Aracy A. (Coord.). Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950-1962. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.

_____. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970: subsídios para uma história social da arte no Brasil. 2. ed. São Paulo: Nobel, 1987.

ARGAN, Giulio Carlo; FAGIOLO, Maurizio. Guia de História da Arte. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. [Teoria da arte; 8]

BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985. [Temas e debates; 4]

_____. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo: Cosac&Naify, 1999. [Espaços da arte brasileira]

FERREIRA, Gloria; MELLO, Cecilia Cotrim de (Org.). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.

GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

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