A arquitetura dos sem-teto

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FAPESP AGOST01999 PUBLICAÇÃO MENSAL DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO vai lançar programa de incentivo ao jornalismo científico A arquitetura dos sem-teto Moradores de rua de São Paulo, Tóquio e Los Angeles encontram formas próprias para reutilizar materiais descartados pela sociedade de consumo P ág . 28 pág . 8

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Notícias FAPESP - Ed. 45

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FAPESP

AGOST01999

PUBLICAÇÃO MENSAL DA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

vai lançar programa de incentivo ao jornalismo científico

A arquitetura dos sem-teto Moradores de rua de São Paulo, Tóquio e Los Angeles encontram formas próprias para reutilizar materiais descartados pela sociedade de consumo

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lfJAPESP

Noticias FAPESP é uma publicação mensal da Fundação

de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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Prof. Dr. Carlos Henrique de Brito Cruz

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CARTAS Opinião contrária

A propósito do artigo "A defasagem entre a ciência e a tecnologia nacionais", as­sinado por Edgar Outra Zanotto, publicado na seção Opinião, edição de junho/1999, te­mos alguns comentários a registrar.

Em primeiro lugar, vale assinalar que a magnitude dos dados apresentados está na faixa que em engenharia é classificada como de ruídos (magnitude percentuais muito pe­quena); e, por essa razão, nada sinaliza para as conclusões apresentadas. Afirmações do tipo "há óbvia defasagem entre o grau de desenvolvimento científico e o grau de de­senvolvimento tecnológico no Brasil! É ine­gável que a geração de tecnologia no Brasil é insatisfatória e não tem apresentado sinais de crescimento relativo nos últimos anos" não encontram nenhum respaldo nos dados coletados. O pioneirismo da Petrobras na ex­ploração do petróleo em mar profundo e o su­cesso recente da Embraer, para citar os exem­plos mais ilustrativos, sãoeloqüentese mos­tram que tal afirmação é um gritante equívo­co do articulista.

As duas conclusões destacadas no final do artigo não se sustentam nem nos dados (ruídos) nem na realidade brasileira. Examinando-se percentuaisextremamentepequenos,coletados em apenas três fontes, e concluir que a produ­ção científica nacional cresce acima da média internacional é wna temeridade arriscada (Será que a intra-estrutura de produção científica bra­sileira cresce mais que a média mun-dial? Que média é essa?). O mesmo vale sobre a afirmação de que a ge­ração de tecnologia brasileira ainda apresenta nível insatisfatório.

Todavia, o que salva wn tanto o textoemquestãoéapreocupaçãocom a prática de pesquisa nas empresas nacionais, embora não tenha sido esse importante assunto o tema do artigo.

José Elias Laier Escola de Engenharia de São Car-los, USP-SC

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tão:"Em que países se originaram a devasta­dora maioria dos remédios, dos eletrodomés­ticos, dos utilitários e demais insumos e equi­pamentos com agregado tecnológico que tan­to facilitam a vida cotidiana?"

Sobre o outro comentário - "As duas conclusões destacadas no final do artigo não se sustentam nem nos dados (RUÍDOS) e nem na realidade brasileira ... concluir que a produção científica nacional cresce acima da média internacional é uma TEMERIDADE arriscada (grifo EDZ) ... "-esclareço que as conclusões do artigo supracitado concordam com as de eminentes cientistas que o anali­saram antes de sua publicação e com as de vários autores que nos precederam. A primei­ra delas, ainda que fosse incorreta, estaria longe de ser "temeridade arriscada".

A título de esclarecimento, reforçamos a explanação sobre a figura 1. Esta delineia, ano a ano, a relação entre o número de publicações científicas assinadas por autores vinculados a instituições brasileiras e o total de artigos mundiais sobre ciências exatas e tecnologia. É absolutamente clara a tendência de cresci­mento, acima da média internacional, da pro­dução científica nacional, indexada pelo lnsti­tute of Scientific I nformation (a mais respeitada base de referências científicas, com aproxima­damente 18 milhões de artigos, dos mais pres­tigiosos periódicos, coletados desde 1973 ).

Sendo o que nos consta, ficamos à dis­posição para esclarecimentos posteriores. Cordialmente, Edgar Outra Zanotto

1,2

0,8

0,6

0,4

0,2

o+------------------75 85

ANO 95

Resposta do Prof. Edgar Outra Zanotto:

Figura 1. Percentual de artigos publicados em periódicos indexados pelo ISI por autores vinculados a instituições nacionais, nos últimos 20 anos. (Fonte: webofscience.fapesp.br). A curva foi colocada para guiar os olhos.

Caro professor Laier, Ao fazer o seu comentário- " ... A mag­

nitude dos dados apresentados está na fai­xa de RUÍDOS (grifo EDZ) e, por essa razão, nada sinaliza para as conclusões ... "- o se­nhor confundiu "ruído" com grandezas de pe­quena magnitude!

Os dois exemplos destacados por V. Sa. (Petrobras e Embraer), além de umas pou­cas empresas nacionais que mantêm bem equipados centros de pesquisa, diligente­mente contabilizadas pelas ANPEI , são no­táveis exceções! Esse pequeno número de empresas de base tecnológica poderia até ser confundido com "ruído" no cenário mun­dial de alta tecnologia. Para ilustrar o proble­ma, sugerimos refletir sobre a seguinte ques-

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Sobre a publicação Ao receber o número 44 do Notícias FA­

PESP certifiquei-me de que cada edição dessa publicação é fato r de renovação e estímulo aos profissionais da área de C&T. Parabéns!

José Pereira Lopes Leal, Departamento de Ciência e Tecnologia ­

DCETISCTDE, São Paulo, SP

Solicitamos, por cortesia, uma assinatu­ra de revista Notícias FAPESP. Ela será uti­lizada com fins pedagógicos entre professo­res e alunos desta unidade de ensino e será mantida como acervo em nossa biblioteca.

H aro/do Silva ClubedeCiênciasAugusto Ruschi, Araucária, PR

Page 3: A arquitetura dos sem-teto

Editorial ................................... Pág. 4 Opinião .................................... Pág. 5 Notas ....................................... Pág. 6 O Genoma na TV ..................... Pág. 1 O Separação de células .............. Pág. 11 Novos frutos do Genoma ......... Pág. 12 Eliminação de vazamentos ...... Pág. 23 Livro ........................................ Pág. 32

FAPESP prepara

lançamento do Programa

José Reis de Incentivo ao Jornalismo

Científico Pág. 8

Laser e medicamentos aceleram a regeneração de células hepáticas

Pág. 13

Físicos brasileiros propõem novo mecanismo de

interação dos neutrinos com a matéria na Terra

Pág. 15

~ As adaptações ~ da flora da ~

Serra do Cipó, em ~ Minas Gerais, à

escassez de água Pág. 18

ÍNDICE

3

Pesquisa avalia diversas variedades de

laranja para uso industrial

Pág.24

Pesquisadores estudam fósseis de moluscos com 250 milhões de anos, encontrados no interior paulista

Pág.20

Um programa que permite a troca de dados entre computadores grandes e pequenos, de qualquer tipo

Historiador faz Dicionário

Enciclopédico do Cinema Brasileiro

Pág.31

Pág.26

Sem-teto de Los Angeles, São Paulo e Tóquio dão novas funções aos materiais descartados pela sociedade de consumo

Pág.28

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EDITORIAL

Múltiplos caminhos para compreender as mudanças do fim do século As ciências humanas não têm fornecido com a fre­

qüência que desejaríamos material para as capas do Notí­cias FAPESP. Seria talvez porque, fiéis à natureza deste produto - que, sendo institucional, é essencialmente jor­nalístico, fruto de um jornalismo especializado, científi­co-, temos buscado imprimir sempre nesse elemento de tão ricas possibilidades que é a capa de uma revista, por meio de uma frase sintética e de uma imagem, uma infor­mação nova e significativa da pesquisa científica e tec­nológica feita no Estado de São Paulo. As ciências huma­nas talvez se prestem pouco a essa redução jornalística. Aparentemente, mais adequada às suas traduções simpli­ficadas, seriam as ciências biológicas e as ciências da saú­de, com seus resultados que, mesmo quando parciais, me­ramente incrementais, falam tão de perto à nossa vida, à nossa sobrevivência e aos nossos temores mais fundamen­tais . Ou as ciências exatas, com suas descobertas que fas­cinam porque, parecendo tão precisas, propõem a cada passo um alargamento vertiginoso do mundo fisico em que estamos imersos. Ou ainda as inova-ções tecnológicas, que de certo modo

de rua, de cidades tão díspares como São Paulo, Los An­geles e Tóquio, aproveitam materiais descartados pela sociedade de consumo para construir seus abrigos que no­meiam casas; uma constatação espantada, depois de cri­teriosa investigação, de como conseguem extrair do que para nós se afigura uma situação limite uma dimensão úl­tima de dignidade humana, são, sem sombra de dúvida, contribuições para entendermos mais no cerne as mudan­ças políticas, econômicas e sociais deste final de século e, por que não?, alguma coisa mais da extrema plasticidade da natureza humana.

Do olhar científico sobre os sem-teto, que resultou inclusive numa exposição fotográfica no Museu de His­tória Cultural da Universidade da Califórnia (onde per­manecerá até 2 de janeiro de 2000), o leitor desta edição do Notícias FAPESP poderá saltar para algo tão comple­tamente diverso como "o diálogo entre as máquinas". Trata-se de uma matéria sobre um projeto de inovação tecnológica desenvolvido em parceria por pesquisado-

res da empresa Perrotti Informática e da Escola Politécnica da USP, cujo re­

nos prometem sempre um mundo mais confortável, mais manipulável , mais rico. Isso para ficar apenas em poucos campos sobre os quais a pesquisa in­veste.

"As ciências humanas constituem

sultado é um software de segurança que permite a troca de informações entre computadores de qualquer tipo. E o que é melhor: com a possibilidade de gerar já este ano negócios deUS$ 4 milhões. Mas será mesmo isso? Ou, em nos­

sa parcimônia em conceder espaço na capa da revista aos projetos da área de humanas, estamos involuntariamente refletindo um fenômeno que se passa

a quarta área que mais recebe bolsas e auxílios

da FAPESp''

A diversidade dos campos cientí­ficos e tecnológicos apoiados pela FA­PESP permite também a esta edição passar pela paleontologia, mostrando os resultados de uma pesquisa fasci­no âmbito da pesquisa paulista? Ques-

tão para refletir. Afinal, as ciências humanas constituem a quarta área que mais recebe bolsas e auxílios da FAPESP (investimento de R$ 33,5 milhões, em 1998, correspon­dendo a pouco mais de 12% do total de recursos distribuídos por área de conhecimento), mas têm, por exemplo, uma presença pouco expressiva nos temáticos da Fundação, que são projetos maiores, com objetivos mais ambicio­sos, quase sempre interdisciplinares e com metas de pes­quisa muito claramente definidas. Dentro desses projetos, que têm desempenhado um papel crucial para empurrar a pesquisa paulista até um patamar próximo dos países mais desenvolvidos, a participação das ciências humanas e so­ciais foi de apenas 4,5% dos R$ 26,7 milhões que lhes fo­ram destinados em 1998.

Sejam quais forem, no entanto, as reflexões que esses números possam suscitar, nesta edição as ciências huma­nas nos deram uma capa forte- e bela, apesar da dureza do tema. Uma nova compreensão sobre como moradores

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nante que envolve o achado de fósseis em São Paulo, e suas revelações sobre o mar que cobria o Sudeste brasileiro, muito antes do tempo dos dinossauros , e desembocar na fisica de partículas. Aí, um grupo de jovens pesquisado­res trabalha com a hipótese instigante de que os neutrinos, essas ainda mal definidas e misteriosas partículas, que não necessariamente precisam ter massa, podem interagir com a Terra muito mais do que se pensa.

Para concluir de forma circular, vamos voltar ao jor­nalismo científico, cuja busca paciente, incansável, é tra­zer os resultados da pesquisa científica ou tecnológica, mesmo a mais complexa, para a linguagem do senso co­mum. E isso porque a FAPESP, entendendo que bons jor­nalistas nesse campo podem melhor explicar aos contri­buintes para que serve e em que se investem parcelas do seu dinheiro em ciência e tecnologia, está dando início ao Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Cien­tífico, que também é objeto de matéria desta edição.

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OPINIÃO

Divulgação científica e sociedade

É inegável o impacto sobre a socie­dade causado pelo advento da ciência mo­derna no século XVII. A associação do método experimental e das matemáticas, característica da ciência moderna, am­pliou a possibilidade de aplicação de co­nhecimentos científicos para a solução de inúmeros problemas práticos de vital im­portância para os seres humanos. Desde então, como é bem conhecido, as feições e os rumos econômicos e culturais das nações têm sido em boa parte moldados pela evolução da ciência. Sendo assim, não é possível pensar em desenvolvimen­to e bem-estar de uma sociedade sem vin­culá-los ao papel desempenhado nesta pela ciência. A rigor, podemos dizer que a ciência, mediante os seus métodos de in­vestigação e teorias, a tua sobre a socieda­de em duas esferas distintas : como uma força produtiva (invenção tecnológica e organização do trabalho) e como uma fon­te de idéias (esfera cultural).

Em função de sua importância na transformação da sociedade humana, a ciência passou a figurar como um dos quesitos fundamentais da educação dos povos. Não é exagero afirmar que um país cujo sistema educacional retarde o desenvolvimento da ciência ou, mais de­sastroso ainda, não transmita a atitude científica de uma forma eficiente, esta­rá comprometendo inexoravelmente o seu futuro . Sendo assim, é necessário tanto um sistema educacional que pro­porcione uma formação científica sóli­da como também a mais ampla divulga­ção das mais recentes conquistas da ci­ência para o homem comum .

É claro que os cientistas formam uma comunidade especial presente em sociedades de estudos especializados e universidades em que trabalham. Entre­tanto , por sua própria natureza, a ciên­cia constitui um conjunto de conheci­mentos públicos, aos quais cada pesqui­sador acrescenta sua contribuição pes­soal , devidamente registrada para ser corrigida pela crítica recíproca e depois reelaborada . Por outro lado, a atividade da comunidade científica deve ser enten­dida não como centrada em si mesma, mas com elos de ligação com toda a so­ciedade que a financia e a preserva, es­perando dela os resultados de suas pes­quisas. Desse modo, o empreendimento científico possui um caráter eminente-

José Carlos Vaz de Lima

mente social. Isso torna a informação ci­entífica, especialmente para o leigo, urr meta necessária tanto quanto a inform< ção especializada, pois muitas decisõe avaliações e ações de profundas repe cussões sociais serão geradas por cid< dãos não-especialistas .

Portanto, volto a repetir, torna-~ mister, sobretudo se levarmos em conl a extrema rapidez dos avanços tecnoli gicos nesta época de globalização, um maior divulgação das mais recentes cor quistas do conhecimento científico, e: pecialmente em sua modalidade info mativa, voltada para o homem comu1 não-pesquisador.

Os meios de ligação entre a ciênci profissional e a comunidade em ger: têm sido , sobretudo desde a revoluçã industrial, no final do século XVIII começo do século XIX, motivo de prec cupação sistemática tanto por parte de cientistas como dos governantes. A cr ação de sociedades como a BritishAss( ciation for the Development of Science, em 1831 , e o desenvolvimento do jorna­lismo científico, crescente em nossos dias , tanto em jornais diários como em revistas científicas para leigos, atestam esse fato . Entre nós, as revistas Superin­teressante, Galileu e Ciência Hoje são um excelente exemplo.

Embora necessária, importante e de­sejável, a tarefa de divulgar o conheci­mento científico, principalmente as pes­quisas em andamento, não pode ser con­siderada fácil. A dificuldade radica-se na própria natureza do conhecimento cien­tífico, que possui a sua linguagem pró­pria altamente desenvolvida e em gran­de parte matematizada, não podendo, assim, simplesmente ser parafraseada com vistas a facilitar a sua compreensão. Não raras vezes , a divulgação popular corrompe e banaliza o conteúdo de um determinado conceito ou teoria científi­ca. O sensacionalismo, que é comum no jornalismo, não sendo propriamente adequado à boa imprensa, é mortal para a ciência e deve ser evitado a todo cus­to . Essas dificuldades, no entanto, não devem servir de motivo para que seres­trinja a divulgação do conhecimento ci­entífico. Muito ao contrário. Para que o leigo possa compreender adequadamen­te os mais modernos avanços da ciência e da tecnologia , deve lhe ser dada uma

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educação apropriada, sem a qual o leigo, enquanto cidadão, não poderá avaliar e muito menos julgar determinados resul­tados das pesquisas, sobretudo aquelas, como na engenharia genética, que levan­tam questões de natureza ética e envol­vem riscos ambientais. Em um passado recente, a questão nuclear era o centro de todas as atenções.

Francis Bacon, no século XVII , ao vincular poder e ciência, já insistia na questão da responsabilidade da ciência para com a humanidade. Com muito mais razão, nos dias de hoje, com a globaliza­ção, é desejável , e mesmo inevitável, um certo controle democrático da ciência. Para isso, um esforço de divulgação dos avanços da ciência e da tecnologia é não só uma necessidade como um dever so­cial. Por outro lado , uma educação cien­tífica deve preparar o cidadão para assi­milar informações de qualidade, aprimo­rando o seu juízo crítico e, conseqüen­temente , dando solidez a uma sociedade verdadeiramente democrática.

Deputado estadual, presidente da Comis­são de Cultura, Ciência e Tecnologia da As­sembléia Leg islativa do Estado de São Paulo .

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OThS OThSNOThSNO~SNO~SNO~ NO~S TIASNO~SNO~SNQTh~ nu~NO~SNO~S

Diretor Presidente reconduzido

O professor Francisco Ro­meu Landi, indicado na lista trí­plice votada pelo Conselho Su­perior da FAPESP no dia II de agosto, foi reconduzido ao car­go de Diretor Presidente da Fun­dação, para exercer um novo mandato de três anos. O ato de nomeação assinado pelo gover­nador Mário Covas foi publica­do no Diário Oficial do Estado, do dia 20 de agosto.

O professor Landi é enge­nheiro mecânico-eletricista gra­duadopelaEscolaPolitécnicada Universidade de São Paulo (USP). Doutorou-se em enge­nharia química pela mesma ins­tituição e fez pós-doutoramento no Laboratório Nacional de En­genharia Civil (LNEC), de Lis­boa, em Portugal, e no Building Research Establishment, em Garston, na Inglaterra.

Landi é professor titular de Engenharia Civil na Politécnica da USP, instituição da qual foi di­retor de 1990 a 1994. Nesse pe­ríodo, contribuiu para a estrutu­ração de boa parte dos laborató­rios e para a organização da Pós­Graduação e da Extensão dessa escola. Foi conselheiro da FA­PESP desde 1991 e presidente do Conselho Superior a partir de agosto de 1995, cargo que deixou quando foi nomeado para seu pri­meiro mandato de Diretor Presi­dente, em agosto de 1996.

Inscrições ao Prêmio Henry Ford

Estão abertas até o próximo dia I o de outubro as inscrições para o 4° Prêmio Henry Ford de ConservaçãoAmbiental, uma ini­ciativa conjunta da Ford Brasil e da Conservation 1 nternational do Brasil. O prêmio se distribui em quatro categorias: Conquista In­dividual, Negócios em Conserva­ção, Ciência e Formação de Re­cursos Humanos e Iniciativa do Ano em Conservação.

Maiores informações podem ser obtidas na Conservation 1 nter­national do Brasil, pelo telefone O (- 31) 441-1795, pela página na intemetwww. conservation.org.br ou, ainda, pelo endereço eletrôni­co premio @conservation.org.br.

Tecnologia aproxima usuários da Internet A Multicast, tecnologia

recente em engenharia de re­des que permite a participa­ção interativa de usuários da lnternetemeventos, foi utiliza­da em 19 de agosto, a partir do auditório da FAPESP, para transmissão de um ciclo de palestras promovido pelo Gru­po Técnico de Engenharia de Redes (GTER), ligado ao Co­mitê Gestor da Internet no Bra­sil. Graças a essa tecnologia, o encontro contou com apre­sença virtual de técnicos de empresascomoEmbratel, Em­brapa, AOL e IBM, e das uni­versidades federais do Para­ná, Minas Gerais e Rio Gran­de do Sul, entre outras, a par­tir do Rio de Janeiro, Porto Ale­gre e Brasília. A utilização do

recurso Multicast exige a ins­talação de dois softwares es­pecíficos para emitir e receber sinais de imagem e som, equi­pamentos para captação e transmissão desses sinais e uma conexão de boa qualida­de à rede mundial.

A FAPESP viabilizou a transmissão através da Rede ANSP-Academic Network at São Paulo e de suas conexões com a Embratel e outros pro­vedores, permitindo acesso de todos os participantes. A Fun­dação é o único ponto de trá­fego entre todos os provedores na cidade de São Paulo. A Multicast estende o alcance de eventos, permitindo a partici­pação de qualquer usuário da Internet.

Prêmio Jovem Cientista O XVI Prêmio Jovem Ci­

entista, que tem como tema Saú­de da População- Controle da Infecção Hospitalar, estará re­cebendo inscrições até o próxi­mo dia 30 de outubro. O prêmio, uma iniciativa do Grupo Ger­dau , da Fundação Roberto Ma­rinho e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq, tem na ver­são deste ano cinco categorias: Graduados, para pesquisadores que tinham menos de 40 anos de idade até 31 de dezembro de 1998; Estudantes, para alunos

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de escolas técnicas ou cursos su­periores, com menos de 30anos até a mesma data; Mérito Insti­tucional, que premia a institui­ção com maior número de can­didatos inscritos; Orientador, dirigido aos responsáveis pela orientação dos vencedores; e Jovem Cientista do Futuro, uma nova modalidade, que se desti­na a estudantes do ensino mé­dio. Maiores informações po­dem ser obtidas no CNPq, tele­fone O (-61) 348-941 O ou pela página na Internet http ://www. cnpq.br/jovemcientista.

Referência internacional

O consultor Andrew Mc­Laughlin, da Internet Corpo­rationfor Assigned Names and Numbers (ICANN) - novo or­ganismo internacional que está sendo criado para admi­nistrar os registras de domíni­os na Internet em todo o mun­do -, levantou a possibilidade de o sistema de registro desen­volvido pela FAPESP servir de referência para outros países. Responsável pela estruturação do ICANN, McLaughlin já manteve encontros internacio­nais com especialistas da área em Cingapura, Berlim e Santi­ago e, em visita à FAPESP, em 18 de agosto, destacou a eficiên­cia e a segurança do sistema brasileiro. Hoje, o registro. fapesp.bracolhe entre 500 e 600 novas solicitações diárias. Des­de 1996, o sistema passou de 7 mil para, pelo menos, 116 mil re­gistras até este mês.

Espanha incentiva setor privado

A Espanha pretende elevar seus gastos com pesquisa e de­senvolvimento, de 0,8% a 0,9% para I ,2% do PIB, nos próximos quatro anos, o que poderá repre­sentar um aumento de I 0% no orçamento do governo para ciên­cia já no próximo ano. O plano apresentado recentemente no Senado pelo ministro da Educa­ção e Cultura, Mariano Rajoy, deverá ser aprovado pelo gabine­te em outubro e pressupõe "au­mentos lentos e contínuos" do investimento público em pesqui­sa, "revisado anualmente".

As metas, segundo Rajoy, são encorajar o investimento pri­vado em pesquisa, fortalecer o caráter internacional da ciência espanhola e estimular a cultura c i­entífica na sociedade. Para isso, atenção especial deve ser dada a questões de emprego, incluindo contratos de longo prazo para pes­quisadores experientes em insti­tutos de pesquisa. O investimen­to espanhol a tua! em P&D é mui­to inferior aos 2,2% do PIB dos países da OCDE e os gastos pú­blicos ainda são maiores do que os do setor privado.

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NOThSNOThSNOThSNOThSNOThSNOTh~ NOThS OThSNOThSNOThSNOThSNO~~ OThSNOThS

Aproximando o conhecimento do desenvolvimento O deputado José Carlos Vaz

de Lima (PSDB), presidente da Comissão de Ciência e Tecnolo­gia da Assembléia Legislativa de São Paulo, foi recebido pelo Conselho Superior e di retores da FAPESP, em almoço na sede da Fundação, no dia 11 de agosto. O encontro é indicativo tanto da preocupação da FAPESP em in­teragir com o Legislativo, quan­to do interesse do próprio depu­tado Vaz de Lima e da comissão que ele preside em conhecer de perto iniciativas importantes na área de ciência e tecnologia em São Paulo. O Legislativo tem um papel fundamental no estabele­cimento da política científica e tecnológica do Estado e, vale lembrar, sua atuação foi decisi­va para a criação e instituição da FAPESP e, já em 1989, para a elevação do repasse de recursos do Tesouro para a Fundação, pre­visto na Constituição paulista, de 0,5% para I% das receitas tribu­tárias do Estado.

No encontro, o deputado Vaz de Lima ouviu do presiden­te da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, uma breve expla­nação sobre a preocupação cres­cente da Fundação com cami­nhos concretos para aproximar o conhecimento do desenvolvi­mento económico e social, ne­cessidade premente num país que registra uma séria deficiên­cia de P&D nas empresas. Indi-

cou que a preocupação de cará­ter económico se traduz em pro­gramas que levam a pesquisa para dentro da empresa, como os de Inovação Tecnológica em Parceria (PITE) e Inovação Tec­nológica em Pequenas Empresas (PIPE). E que a preocupação de caráter eminentemente social traduz-se em outros programas que levam o conhecimento ao poder público, como o de Apoio ao Ensino Público e o Programa de Pesquisas em Políticas Públi­cas. Brito Cruz falou ainda sobre o cuidado da FAPESP com a se­leção e o acompanhamento dos projetas de pesquisas, destinado a garantir que os recursos do con­tribuinte sejam aplicados da ma­neira mais consistente possível. Finalizou observando que hoje o desenvolvimento depende forte­mente da capacidade das nações

em gerar conhecimento, e que o Estado de São Paulo, com instru­mentos como suas três universi­dades públicas estaduais e a FA­PESP, tem uma grande contribui­ção a dar ao Brasil nesse sentido.

O deputado Vaz de Lima ob­servou, ao sair do encontro, que as pesquisas fmanciadas pela Funda­ção precisam ser divulgadas para um número crescente de cidadãos. Em sua visão, isso é muito impor­tante para que esses cidadãos te­nham a exata percepção do alto nível desses trabalhos e das formas como são aplicados os recursos pú­blicos investidos em pesquisa. É importante também para que se tomem conscientes da perspecti­vadeindependênciaedesenvolvi­mento que o progresso da ciência abre para a sociedade e dos novos recursos tecnológicos que a pes­quisa põe à sua disposição.

Vaz de Lima (à direita) com o presidente e os di retores da FAPESP: iniciativas relevantes em C& T

Liberdade de pesquisa com responsabilidade social Depois dos cortes dramáti­

cos nos gastos públicos no último ano, uma nova política de pesqui­sa promete mais liberdade para os cientistas holandeses estabelece­rem suas prioridades de trabalho, embora os interesses nacionais não devam ser esquecidos. Se­gundo a Nature de 29 de julho úl­timo, o ministro da Ciência, Loek Hermans, divulgou, no mês de junho, um novo plano para a po­lítica científica do país radical­mente diferente do que foi prati­cado por seu antecessor, Jo Rit­zen, e que enfatizava a associação da pesquisa com metas socioeco­nómicas. Na prática, esse plano acabou se traduzindo em cortes

orçamentários e no fracasso da tentativa de transferir recursos das universidades para a Organização para a Pesquisa Científica da Ho­landa-NWO, a agência nacional de fomento à pesquisa, procedi­mento que visava a uma definição mais centralizada das prioridades nacionais de pesquisa.

De acordo com o plano apre­sentado por Hermans, as univer­sidades passam a apresentar pla­nos estratégicos à NWO a cada quatro anos, e não mais relatóri­os bienais de progresso para o ministério. A agência vai elabo­rar um plano nacional de pesqui­sa baseado nas solicitações das universidades. E, ao mesmo tem-

po, para promover a consciência do potencial económico e dare­levância social da pesquisa, es­tudos prospectivas elaborados por um organismo independen­te, o Conselho Consultivo para a Política de Ciência e Tecnologia, serão colocados à disposição das universidades.

As mudanças indicam maior flexibilidade na alocação de re­cursos às universidades que, nos últimos vinte anos, estava condi­cionada a estatísticas obsoletas de números de estudantes. Tudo isso deve ampliar o papel das universidades na definição de prioridades para seu orçamento de pesquisa deUS$ I ,2 bilhão.

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Japão investe mais em genômica

O governo japonês pretende aumentar seu apoio à genómica através de duas iniciativas: um plano qüinqüenal para dobrar os investimentos em pesquisas nes­sa área( com oaportede2 trilhões de ienes em cinco anos, elevando, assim, os gastos com genómica a pelo menos 0,2% do PfB japonês) e um projeto para decifrar 30% das seqüências de genes expres­sos humanos até 2001, informou a Nature de 29 de julho passado.

A estratégia, anunciada em I 3 de julho último, por cinco mi­nistérios, vai centrar-se na aná­lise do genoma humano e na cri­ação de uma base de dados de po­limorfismos de nucleotídeos iso­lados, Snips, na população japo­nesa, que poderá levar a novos medicamentos e técnicas de diag­nóstico.

O plano inclui a criação de centros nacionais de pesquisa ge­nómica, até 2001, e a ampliação do apoio a investimentos de risco nessa área, num esquema similar ao do programa norte-americano Small Business Innovation Rese­arch (SBIR), de financiamento a pesquisas inovadoras com poten­cial comercial em pequenas em­presas (que, aliás, foi uma das fon­tes de inspiração do PIPE, o Pro­grama de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas da FA­PESP).

O plano está afinado com um programa de dez anos do go­verno japonês para ampliar 25 vezes o atual mercado de biotec­nologia do país, fazendo-o alcan­çar US$ 213 bilhões (25 trilhões de ienes) e ajudar na criação de mil novas companhias até 20 I O. Há um sentimento crescente en­tre pesquisadores e industriais de que a pesquisa em biotecnologia no Japão, particularmente nos projetas de genómica, está muito atrasada em relação ao Ocidente. A contribuição japonesa para o Projeto Genoma Humano, por exemplo, responde por apenas 8% do esforço total e, segundo o Ministério da Indústria e Comér­cio Internacional (MITJ), os in­vestimentos anuais em genómica, de US$4,77 milhões(560bilhões de ienes), são menos de um quar­to dos norte-americanos.

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

JORNALISMO CIENTÍFICO

Compreender e explicar Programa da FAPESP vai apoiar a formação de profissionais especializados em informação científica

AFAPESPlançará,nopróximodia 21 de outubro, o Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Cientifico, uma iniciativa que envolve empresas de comunicação, faculda­des e a Fundação com o objetivo de capacitar jornalistas na divulgação da ciência e da tec­nologia (veja, na página ao lado, a íntegra do programa). Com essa iniciativa, a Fundação dá mais um importante passo no cumprimen­to de um dos seus objetivos estatutári­os - a divulgação científica. Nomes­mo dia, será lançado o livro Do Labo­ratório à Sociedade, reunindo reporta­gens sobre 20 projetos temáticos puli­cados no Notícias FAPESP.

"O Programa José Reis de In­centivo ao Jornalismo Cientifico in­sere-se perfeitamente na filosofia da FAPESP de, em seus diversos progra­mas especiais, agir como ponte entre o sistema de pesquisa e vários seg­mentos da sociedade", assinala José FemandoPerez, diretorcientífico. Ele especifica: "Ponte entre o sistema de pesquisa e o ensino, por meio dos pro­gramas de melhoria da educação; en­tre a pesquisa e a indústria, por meio dos programas de inovação tecnoló­gica, e entre a pesquisa e o governo, através do programa de políticas pú­blicas". No caso do novo programa, na avaliação de Perez, a FAPESP e a mídia intermediarão o contato entre o sistema de pesquisa e a sociedade em geral.

"Esta relação é muito importan­te", diz o diretor científico da FAPESP Em primeiro lugar, segundo ele, por­que é o cidadão, em última análise, que financia o investimento em ciência e desconhece o impacto e a qualidade do que vem sendo realizado. Em segun­do lugar, porque um mínimo de infor­mação sobre ciência é essencial para o exercício da cidadania. "Hoje, a infor­mação contida em um exame de sangue pode afetar a empregabilidade e toda a inserção so­cial de um indivíduo, e ele precisa estar infor­mado", adverte Perez. "Além disso, será a in­formação científica que lhe permitirá posici­onar-se de forma equilibrada sobre assuntos que afetarão diretamente a sua vida, como o uso de transgênicos, por exemplo."

Parceria eclética O Programa José Reis de Incentivo ao

Jornalismo Cientifico foi concebido de for-

ma a envolver de maneira harmônica e inte­grada três segmentos: a empresa de comuni­cação ou a mídia acadêmica, a instituição acadêmica que fornece curso de jornalismo e o sistema de pesquisa, por meio do pesqui­sador. Está prevista a concessão de bolsas remuneradas concedidas pela FAPESP para estudantes de jornalismo e jornalistas gradu­ados, os quais trabalharão em estreita ligação

com aqueles três segmentos. A bolsa se des­tina a apoiar a execução de uma proposta de pesquisa, que resulte em documentos jorna­lísticos de divulgação e ao cumprimento de um programa de estudos.

À instituição acadêmica caberá fornecer cursos de introdução ao jornal is mo científico, sendo que uma das finalidades do programa é exatamente incentivar a criação desses cursos, que deverão serfreqüentados obrigatoriamen­te pelos bolsistas. Ao pesquisador cabe super­visionar a realização da proposta de pesquisa

8 fSP

e cumprimento do programa de estudos. Às empresas de comunicação ou à mídia acadê­mica caberá supervisionar o estágio profissi­onal do bolsista a elas vinculado e veicular as reportagens. "Existe uma preocupação em concilia r oferta e demanda, isto é, não adianta o curso gerarreportagens ou relatórios que vão ficarnagavetadasempresasdecomunicação", destaca Perez.

Ele cita, ainda, um artigo recen­temente publicado pela revista Na­ture, no qual se verifica que o nível de apoio ao investimento público em pesquisa é decorrente não do aumen­to da formação científica média da sociedade norte-americana, mas de um jornalismo científico capaz de sensilibilizar a sociedade para o po­tencial de beneficios que ela pode auferir do conhecimento e do próprio fascínio que a ciência exerce sobre a sociedade. "Com esse programa, queremos tornar a informação cien­tífica de qualidade uma rotina em nossa mídia", afirma.

Dupla homenagem A escolha do nome do cientis­

ta e jornalista José Reis para o novo programa da FAPESP tem um duplo significado. De um lado, homenageia­se um dos pioneiros do jornalismo ci­entífico no País. "Não temos medo de sermos repetitivos (o CNPq - Con­selho Nacional de Desenvolvimen­to Científico e Tecnológico possui o Prêmio José Reis de Jornalismo Cientifico)", diz José Fernando Pe­rez. "José Reis é um nome muito li­gado à história da FAPESP. A Fun­dação foi inscrita na Constituição paulista de 194 7, mas José Reis es­crevia sobre ela desde 1945. Mes­mo depois da Constituição, ele con­tinuou escrevendo artigos, um dos

mais importantes publicados na revista Anhembi, no qual fez uma espécie de rese­nha do que deveria ser a FAPESP e em que se percebe que ele era uma espécie de porta­voz de toda uma comunidade de pesquisa­dores do Estado de São Paulo."

Assin1, ao dar o nome de José Reis ao seu Programa de Incentivo ao Jornalismo Cientí­fico, a FAPESP faz uma homenagem a ele tam­bém pela sua contribuição à criação e consolida­ção da Fundação e, por extensão, à comunidade científica responsável pela instituição.

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Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico 1. Justificativa e Objetivos O fortalecimento do sistema de ciência e tecno­

logia de um país requer a divulgação adequada e sis­temática, por todos os meios de comunicação, dos re­sultados das atividades de pesquisa nele desenvolvi­das. Por um lado, o desenvolvimento desse sistema depende decisivamente do apoio da sociedade que o sustenta, da implantação firme e generalizada da ati­tude de valorização da busca e aplicação do conheci­mento. É evidente que esse apoio será tanto mais efe­tivo quanto melhor informada estiver a sociedade a respeito da extensão, potencial e limitações das ativi­dades de pesquisa. Por outro lado, são inúmeros os de­safios e problemas com que se defronta a sociedade como um todo em função da acelerada ampliação dos horizontes de aplicação da ciência. Até mesmo para o exercício intenso e equilibrado da cidadania, faz-se, pois, necessária a difusão ampla das informações ci­entíficas, pressuposto indispensável da tomada de de­cisões apropriadas.

O desenvolvimento experimentado pela pesqui­sa científica brasileira nos últimos 30anos, atestado por todos os indicadores relevantes de qualidade e quantidade, não tem sido acompanhado pela intensi­ficação, na mesma proporção, das atividades de divul­gação de seus resultados. De modo geral, a socieda­de brasileira não demonstra um interesse significati­vo pelo curso e pelos produtos da ciência. Isso se deve, em grande parte, à carência de jornalistas com moti­vação específica e formação adequada no campo do jornalismo científico. Nos países cientificamente mais desenvolvidos, o apoio da população aos investimen­tos em pesquisa científica e tecnológica é creditado à qualidade do jornalismo lá praticado.Assim, estudo re­centemente realizado pela National Science Founda­tion, publicado na revista Nature, vol. 394, p. 107, atri­bui a visão majoritariamente favorável da opinião pú­blica americana a respeito do impacto social das ati­vidades científicas e tecnológicas à intensa cobertura jornalística de que tais atividades são objeto nos dife­rentes meios de comunicação.

O presente programa tem por objetivo contribuir para a superação dessa carência, estimulando a for­mação de profissionais especializados no campo do jornalismo científico. Em suas linhas regulares de au­xílio, a FAPESP já apóia a divulgação de resultados de pesquisa no interior da comunidade dos pesquisado­res, na forma de auxílios à organização de eventos, à participação de pesquisadores em eventos e à publi­cação de livros, artigos e periódicos especializados. Com este programa, passará a apoiar também a divul­gação desses resultados para o público não especi­alizado.

Trata-se de conceder Bolsas de Jornalismo Ci­entífico, destinadas a apoiar a execução de propostas de pesquisa jornalística, que resultem na produção de documentos jornalísticos de divulgação, em veículos de comunicação de qualquer natureza- jornais, revis­tas, rádio, televisão, mídia eletrônica, etc.- e de um ou mais projetas ou programas de pesquisa, parale­lamente ao cumprimento de um programa específico de estudos. Esse programa deve incluir a realização de um Curso de Introdução ao Jornalismo Científico. Um dos objetivos específicos do programa é precisamen-

te estimular a criação de tais cursos, dentro e fora do âmbito acadêmico, eventualmente com o patrocínio de empresas de comunicação.

2. Bolsas de Jornalismo Científico A FAPESP concederá anualmente um certo nú­

mero de bolsas de Iniciação ao Jornalismo Científico, após processo de avaliação competitivo, a candidatos já aceitos como alunos por um Curso de Introdução ao Jornalismo Científico e como estagiários por empresa de comunicação ou departamento de comunicação de uma instituição de pesquisa.A bolsa é destinada a apoiar a execução de uma proposta de pesquisa jornalística, que resulte numa série de documentos jornalísticos de divulgação de um ou mais projetas ou programas de pesquisa científica ou tecnológica, em adição ao cum­primento de um programa de estudos que vise ao aper­feiçoamento no campo do jornalismo científico e à rea­lização de um estágio profissional de jornalismo cientí­fico em tal empresa ou departamento.

A realização da proposta de pesquisa jornalís­tica e o cumprimento do programa de estudos devem ser supervisionados por pesquisador experiente na área científica ou tecnológica a que se refira a pro­posta jornalística ou por jornalista com ampla e do­cumentada experiência profissional em divulgação de assuntos de Ciência e Tecnologia. Esse supervisor será o responsável pela solicitação perante a FAPESP. O estágio profissional deve ser supervisionado por jornalista vinculado à empresa ou departamento em que ele se realize.

As bolsas, com duração de seis meses e reno­váveis por no máximo mais 6 meses, terão valor com­patível com o nível de formação do bolsista. A alunos de cursos de graduação, serão concedidas bolsas de Iniciação ao Jornalismo Científico I, de valor correspon­dente ao das bolsas regulares de Iniciação Científica. Àqueles que tenham diploma de curso superior, serão concedidas bolsas de Iniciação ao Jornalismo Cientí­fico 11, de valor correspondente ao das bolsas regul~­res de Mestrado I. Àqueles que tenham o título de mes­tre, serão concedidas bolsas de Iniciação ao Jornalis­mo Científico III, de valor correspondente ao das bol­sas regulares de Doutorado I. A renovação da bolsa de­penderá do desempenho do bolsista, avaliado pelo seu relatório de atividades. Os candidatos às diferentes ca­tegorias de bolsa serão selecionados por meio de pro­cessos distintos de avaliação.

Durante o período de vigência da bolsa, o bolsis­ta não poderá manter vínculo empregatício, sendo-lhes vedada a realização de atividades remuneradas de qualquer natureza.

As bolsas apenas serão concedidas após a apro­vação do candidato em teste de proficiência em língua inglesa reconhecido pela FAPESP.

3.Projetos de Pesquisa Jornalística O candidato à bolsa deverá encaminhar à FA­

PESP uma proposta de pesquisa jornalística, avaliza­da por seus supervisores, que inclua no mínimo as se­guintes informações.

1. Título, resumo e orçamento do projeto, con­junto de projetas ou programa de pesquisa científica ou tecnológica que será objeto de sua pesquisa jorna-

9 PE. p

lística, e identificação das fontes de financiamento desses projetas.

2. Justificação da escolha desse projeto, con­junto de projetas ou programa de pesquisa científica ou tecnológica, em termos de sua relevância científi­ca, tecnológica, cultural, econômica ou social.

3. Identificação dos pesquisadores envolvidos nas pesquisas científicas ou tecnológicas que serão objeto da pesquisa jornalística.

4. Descrição e cronograma das atividades pre­vistas para a realização da proposta de pesquisa jor­nalística.

O trabalho do bolsista deve resultar em documen­tos de boa qualidade tanto do ponto de vista jornalísti­co como do ponto de vista científico. Em particular, de­verá abordar a história do desenvolvimento dos proje­tas científicos ou tecnológicos de que se ocupa, situá­los no contexto nacional e internacional, evidenciar sua relevância científica, tecnológica, cultural, social e eco­nômica e apontar seus possíveis desdobramentos. Oe­verá também aquilatar o impacto potencial da execução desses projetas na formação de recursos humanos, na difusão do conhecimento e na transferência de conhe­cimentos para os selares público e privado. Espera-se que os documentos produzidos sejam capazes de infor­mar o público e, ao mesmo tempo, de despertar seu in­teresse e educá-lo na área do conhecimento em ques­tão. Serão consideradas prioritárias propostas que se refiram a projetas de pesquisa científica ou tecnológi­ca apoiados pela FAPESP.

O aval da empresa ou departamento em que se realize o estágio deve implicar sua disposição, em prin­cípio, para veicular os documentos produzidos, caso os julgue de boa qualidade. Essa veiculação será item importante de avaliação do relatório final do bolsista.

4. Programa de Estudos e Curso de Introdução ao Jornalismo Científico

O candidato a uma bolsa deverá apresentar um programa de estudos, avalizado por seu supervisor, destinado a propiciar seu aperfeiçoamento no campo do jornalismo científico. Esse programa de estudos deve incluir a realização de um Curso de Introdução ao Jornalismo Científico, oferecido por instituição acadê­mica ou não, com duração mínima de um semestre letivo. O elenco das disciplinas, correspondentes, no mínimo, a 90 horas-aula, deverá proporcionar o tra­tamento, em nível introdutório, ao menos dos seguin­tes tópicos.

1. Metodologia e Filosofia da Ciência. 2. História da Ciência e da Tecnologia. 3. Ética da Ciência. 4. Temas centrais da ciência contemporânea. 5. Modos de organização e financiamento dos

sistemas de pesquisa, no Brasil e no exterior. 6. Mídias, linguagens e prática do jornalismo ci­

entífico. A solicitação de bolsa deve ser acompanhada da

descrição detalhada do curso de Introdução ao Jorna­lismo Científico a ser seguido, que inclua a carga didá­tica prevista, a lista das disciplinas, com as respectivas ementas, e a lista dos professores por elas responsá­veis. A qualidade do curso proposto será elemento im­portante no processo de avaliação das solicitações.

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

TELEVISÃO

Ciência no horário nobre Série sobre o Genoma-FAPESP veiculada pela TV Cultura de São Paulo obtém ampla repercussão

A TV Cultura de São Paulo exibiu, no mês de agosto, em seu horário nobre, a série Genoma: Em Busca dos Sonhos da Ciência, sobre o Programa Genoma-FAPESP, produ­zida, dirigida e apresentada pela jornalista Mônica Teixeira, e cuja realização teve o apoio da FAPESP, do Fundo Paulista de De­fesa da Citricultura (Fundecitrus) e da empre­sa Amercham Pharrnacia Biotech. Durante cinco noites, de 16 a 20, os telespectadores da emissora paulista e das emissoras educativas de todo o Bras i I, em rede, conheceram as ori­gens do Programa Genoma-FAPESP e as pesquisas que se desenvolvem no seu âmbito, descobriram o mundo da genética e da biolo­gia molecular, ouviram cientistas brasileiros e norte-americanos sobre os rumos dessas ciências e seus impactos na sociedade de hoje e do futuro .

Exibir um programa de informação científica no horário nobre da televisão brasileira foi um ato inova­dor e arriscado da TV Cul­tura, mas perfeitamente apoiado pelos espectadores, a julgar pelo grande núme­ro de correspondência rece­bida tanto pela emissora quanto pela FAPESP e a quantidade de pedidos de reapresentação e de aquisi­ção dos vídeos da série.

"Este é o primeiro ( es­pero que de uma grande lis­ta) contato que mantenho com vocês da TV Cultura. Não poderia deixar de para­benizar a mais inteligente emissora do País pelo trabalho apresentado ontem ( 16/08) sobre o Projeto Genoma. Apre­sentado de forma muito clara e interessante, o programa me fez começar a entender um pouco mais sobre esse assunto que sempre me deixou fascinado", escreveu o telespectador de 24 anos, Carlos Jorge, de Belém, Pará.

De São Paulo, um outro telespectador, Gilberto Tuttura Júnior, escreveu: "Gostei muito do primeiro programa Genoma que foi exibido, como foi dito no 'Opinião Nacional ' , num horário inovador. Foi muito bom te ruma opção inteligente durante o horário em que só se consegue ver novela ou tragédias".

Sensibilidade Muitas das correspondências traduziam

a emoção e o orgulho do espectador ao tomar

conhecimento da qualidade e da importância da produção científica brasileira. "O Projeto Genoma faz com que sintamos orgulho de sermos brasileiros, coisa rara ultimamente", escreveu Rejane Gontow, de Campinas, SP. E Waldir de Souza, de São Paulo, comentou: "Ao ver que brasileiros dedicam-se de corpo e alma para alcançar objetivos tão ilustres foi com o sentimento de brasilidade enaltecido que atentamente assisti a todos os capítulos da série".

Com um tema tão complexo, muitas ve­zes foi difícil absorver todas as informações da série. Isso, entretanto, não desanimou o público: "Foi muito prazeroso e instigante assistir a série Genoma. Embora em alguns

momentos o assunto ficasse mais complexo, mesmo sem uma compreensão mais ampla percebia que ali estava sendo dito algo impor­tante, talvez não totalmente compreendido, mas importante", foi a mensagem de uma te­lespectadora.

Os cientistas, normalmente tão afastados do grande público, tiveram seus nomes, ros­tos e realizações revelados. "Parabéns pela bela reportagem sobre Genoma. Vocês mos­traram os verdadeiros artistas deste país. Mes­mo atrás das cortinas eles mostram que o show is still going on", escreveuAlexander Razook, de Sertãozinho, SP. E Ricardo de Souza Cos­ta, eletricista de distribuição da Companhia Paulista de Força e Luz ( CPFL ), emBebedou­ro, SP, escreveu emocionado para a FAPESP: "Quero parabenizá-los pelo Projeto Genoma;

lO

nem imaginava que pessoas tão dedicadas e inteligentes de nosso país estavam pesquisan­do um assunto tão próximo e ao mesmo tem­po tão distante de todos nós. Sucesso! Muito sucesso! Que vocês possam alcançar todos os seus objetivos. Vocês ganharam um aliado, um admirador e um torcedor. Mesmo que muito pequeno, e sem muita influência, es­tou muito contente com as pesquisas que es­tão fazendo" .

No e-mail enviado, Ricardo recordou algo acontecido há muitos anos com ele, quando trabalhava como recepcionista no Hotel Pioneiro, em sua cidade. Numa oca­sião, uma pesquisadora lhe entregou umas folhas de pés de laranja, e pediu para guardar

na câmara fria do hotel. "Aquilo me marcou, pois me disseram que era uma pesquisadora muito conceituada e muito importante. Quan­do ela apareceu no documentário da TV Cul­tura eu me lembrei do acontecido e fiquei contente. Mesmo que por um simples e pe­queníssimo gesto, eu pude contribuir com esta tão importante pesquisa."

A pesquisadora a que Ricardo se refe­re é a agrônoma Victória Rossetti, a primei­ra mulher formada em Agronomia em São Paulo, e uma das maiores autoridades em doenças de citros. Quanto à contribuição à pesquisa a que o telespectador se refere, ela é dada anonimamente por cada cidadão, pois é ele quem financia a pesquisa cientí­fica . Os cientistas agradecem e retribuem com os seus trabalhos.

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CIÊNCIA

GENOMA CÂNCER

Separar para analisar Novo método, que separa populações celulares do tecido mamário, é ferramenta para projeto brasileiro

O pesquisador Michael O'Hare, da fi­lial inglesa do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer e do University College, de Londres, esteve no Brasil falando sobre uma nova metodologia desenvolvida por sua equi­pe que é ferramenta fundamental no projeto brasileiro Genoma Humano do Câncer. O'Hare é chefe do laboratório de pesquisas de Câncer de Mama e responsável por um método que separa as diferentes populações celulares presentes no tecido mamário.

Formado em Zoologia (Cambridge, 1966) e PhD pelo Instituto de Biologia do Câncer da Universidade de Londres, O' Hare, em palestra feita na FAPESP, no dia 16 deste mês de agosto, mostrou que cada um dos te­cidos que compõem a mama tem funções di­ferentes e expressa genes diferentes . Para pesquisar a mama é preciso identificar quais são as células estruturais, as epiteliais e quais as provenientes dos vasos que irrigam os te­cidos. A expressão dos genes, estudada pela equipe de O'Hare, se dá na forma de proteí­nas e para cada uma delas são gerados anticorpos que se ligam na superficie das cé­lulas. Os anticorpos são um recurso para des­tacar e identificar os diferentes subtipos de células. Daí a técnica ser chamada de sepa­ração celular.

O trabalho feito em Londres, de separar as populações celulares, beneficia os cientis­tas brasileiros. Quando os pesquisadores do Genoma Humano do Câncer recebem para estudo células limpas, sem a contaminação com outras células, eles têm um grau maior de confiança de que os genes analisados são realmente expressos numa população espe­cífica e assim identificam de qual célula pro­vém determinado gene. Já o trabalho brasi­leiro, de gerar as informações do gene, tam­bém beneficia o grupo de O 'Hare. "Eles têm arnetodologiadesepararenósternosamaneira de obter a informação do gene, que é o Projeto Genoma. São trabalhos complementares", diz Luís Fernando Reis, coordenador de RNA do Projeto Genorna Humano do Câncer.

A informação dos genes seqüenciados aqui através da metodologia Orestes (Open Reading Frames EST), desenvolvida por Andrew Simpson e Emrnanuel Dias Neto, do Instituto Ludwig em São Paulo e participantes do projeto brasileiro, volta para Londres, onde o grupo a estuda nas células previamente isola­das. "É um método elegante e eficiente", diz O'Hare sobre o Orestes, entusiasmado.

Não é para menos. Aplicando o Orestes no material do câncer de mama, tem-se a gama total de moléculas e proteínas possíveis que o

tumor de mama pode produzir. "É como se tivéssemos um bom dicio­nário dos genes da mama. Podere­mos consultá-lo toda vez que iden­tificarmos mudanças ocorridas nos tecidos de câncer. A técnica Orestes possibilita acrescentar novas 'pala­vras' no dicionário do câncer de mama", diz O'Hare. Para analisar um número grande de genes ao mes­mo tempo, o grupo de câncer de mama se vale da técnica do microarray (um grande número de seqüências de DNA fixadas numa fase sólida em que oRNA dos teci­dos é marcado para identificar quais dos genes imobilizados nessa fase correspondem ao RN A mensageiro do tecido).

Ganhos diários Assim corno nos laboratórios

O'Hare: ganhos de eficiência no trabalho conjunto do Projeto Genoma Humano do Câncer, os pesquisadores de Lon-dres fazem um banco de dados de tecidos tumorais congelados. Atualmente o laborató­rio de Câncer de Mama do Instituto Ludwig/ University College de Londres processa, ou seja, isola as células, de dois tumores ao dia, num total de 200 ao ano. As células sempre vêm de um tumor que acaba de ser removido durante urna cirurgia. Os pedaços analisados são conservados em nitro gênio e ficam dispo­níveis para análises futuras . "No Hospital do Câncer, isso é uma rotina. Os pacientes que passam por cirurgia são informados dos nos­sos projetos de pesquisa e nós guardamos pe­daços dos tumores no nosso banco", diz Reis. O Projeto Genorna Humano do Câncer já ge­rou mais de II mil seqüências.

A ligação dos laboratórios brasileiros com O'Hare vem desde o projeto piloto que deu início ao projeto brasileiro. Na época, foram geradas 1 O mil seqüências para testar a viabilidade do projeto. Parte do RNA utili­zado veio do laboratório de O'Hare. Mas, mesmo antes do projeto piloto, os grupos de Luís Fernando Reis e de O'Hare já trocavam materiais e metodologias. A partir de interes­ses similares, resolveram, juntos, descobrir maneiras de trabalhar com mais eficiência. Esse foi um dos fatores que levaram ao acor­do de cooperação entre a FAPESP e o Insti­tuto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. "Vir ao Brasil para estimulare facilitar o Pro­jeto Genorna brasileiro é uma demonstração da universalidade da ciência", diz O'Hare.

Depois do acordo, os centros de pesqui-

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sa conseguiram caminhar mais depressa e estimular quem trabalha neles. "Se estivés­semos sozinhos, dificilmente realizaríamos o trabalho completo", comenta o pesquisador inglês. O coordenador de DNA do Projeto Genoma Humano do Câncer, Andrew Simpson, ressalta o respeito adquirido pela ciência brasileira a partir das colaborações de alto nível estabelecidas recentemente. "São resultado dos projetas Genoma da FAPESP, que nos colocaram ao lado de quem está agin­do nas fronteiras", diz Simpson. Para ele, sempre que colaborações de qualidade como esta forem estabelecidas, aumenta o potencial do trabalho alcançado pela técnica Orestes. Entre outros acordos de cooperação, a empre­sa Oxford Glyco Sciences está gerando da­dos a partir de células isoladas em Londres, que complementam as pesquisas do câncer de mama no mundo e no Brasil.

Agora que já domina a metodologia de separar células, o desafio da equipe londrina é encontrar diferenças na expressão de RNA, nas células de pacientes com câncer de mama. Além disso, quer desenvolver novas drogas para reduzir a mortalidade e aumentar a qua­lidade e expectativa de vida dos pacientes. Quanto tempo levaria para esses métodos e remédios se tornarem rotina e beneficiarem pacientes? Previsões são sempre perigosas em se tratando de ciência, alerta O'Hare. Ain­da assim, arrisca dizer que este é seu grande sonho e que o veremos concretizado dentro dos próximos dez anos.

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CIÊNCIA

GENOMA

Novos e bons frutos Tecnologias são desenvolvidas no decorrer do Programa Genoma

O ambiente propiciado pelo Programa Genoma-FAPESP está gerando bons e impre­vistos frutos. Até agora, dois laboratórios es­tão se preparando para registrar descobertas ou iniciar metodologias antes impensáveis no Bras i I e que surgiram no decorrer do projeto. As pesquisadoras Eliana de Macedo Lemos e Lúcia Carareto Alves, da Faculdade de Ci­ênciasAgrárias e Veterinárias da Universida­de Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal , que participaram do seqüenciamento do ge­noma da bactéria Xylella fastidiosa, no âm­bito do Projeto GenomaXylella, já estão pre­parando uma descrição científica de como elaborar um meio de cultura definido para o crescimento desse microrganismo, com o qual trabalham desde 1994. A FAPESP pre­tende patentear a descoberta. Simultanea­mente, Luís Fernando Reis, do Instituto Lu­dwig de Pesquisas sobre o Câncer, que parti­cipa do Genoma Humano do Câncer, desen­volveu chips de DNA.

Para estudar e chegar ao genoma da Xy­lella, que está agora com 99,9% dos genes seqüenciados, os pesquisadores do projeto precisam fazer com que a bactéria cresça e se multiplique rapidamente e em grande quanti­dade. Para conseguir isso, se valem de meios de cultura onde a bactéria possa encontrar todos os nutrientes necessários à sua sobre­vivência. No Projeto GenomaXylella usam­se meios complexos, ou seja, meios cujas fon­tes de carbono e nitrogênio que os compõem não são definidas. Para o projeto, foram uti­lizados os meios PW, desenvolvido por M. J. Davis, e o SPW, do norte-americano J.S. Har­tung. Os constituintes dos meios PW e o SPW são materiais caros e importados. Com ades­coberta de Eliana Lemos e Lúcia Alves os componentes do meio de cultura podem ser comprados aqui mesmo.

Mas as vantagens do meio definido não são só conseguir fazer com que a bactéria cresça e se multiplique. Ele é valioso tam-

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1fi~tidiosa. X: o

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bém para a manipulação genética daXylella. Com o genoma praticamente fechado, os la­boratórios envolvidos no Genoma Funcional pesquisam uma maneira de modificar gene­ticamente a bactéria, alterando os prováveis genes responsáveis por sua patogenicidade. A idéia é obter mutantes e, para sua seleção, o pesquisador precisa saber exatamente os componentes do meio. Os cienti stas ainda não dominam os métodos para a manipula­ção genética da bactéria, mas ter um meio de­finido já significa um passo a mais nessa di­reção.

Como o genoma da bactéria estava qua­se pronto e a maior parte dos genes estavam anotados, Eliana, bióloga e bioquímica, e Lúcia, bioquímica e microbióloga, analisa­ram os dados armazenados no Laboratório de Bioinformática do Projeto Genoma Xy­lella. Sabendo que a maioria dos microrga­nismos utilizam glicose como fonte de car­bono para reações de síntese de moléculas importantes na obtenção de energia, como a ATP, as pesquisadoras analisaram os genes presentes naXylella , que, descobriram, pos­suía todas as enzimas necessárias ao meta-

holismo da glicose e do glicerol, outra fonte de carbono. Portanto, no meio para o cres­cimento da Xylella poderia ser usado tanto a glicose quanto o glicerol como fonte de carbono.

Voltando ao genoma Para definir a fonte de nitrogênio do

meio, as pesquisadoras analisaram nova­mente o genoma e observaram quais dos 22 aminoácidos a bactéria conseguia sintetizar. Um deles, o glutamato, era uma exceção. Isso significava que ele deveria estar presen­te no meio de cultura. Ficou faltando apenas a definição dos sais. Novamente o genoma mostrou que a bactéria tinha os genes rela­cionados com o transporte dos sais para den­tro dela. A membrana da Xylella é seletiva, e a porta de entrada é uma proteína por onde entram ferro, sulfato e magnésio. A análise do genoma também ind icou uma elevada quan­tidade de genes relacionados com a pirofos­fatase. Era o que as pesquisadoras precisavam para acrescentar o fosfato, na forma de piro­fosfato, ao meio de cultura.

O meio definido deXylella vai benefi­ciar pesquisadores do mundo todo e princi­palmente aqueles envolvidos no Genoma Funcional daXylella . "Ficou provado que é possível voltar ao genoma e resolver um pro­blema sério", diz Eliana Lemos. Desde a metade do ano passado, quando chegou à formulação do novo meio de cultura, o la­boratório de Jaboticabal faz testes para tor­nar a bactéria mais competente e possibili­tar as modificações genéticas.

Eliana Lemos e o novo meio de cultura (ao lado, à esq.): facilitando a manipulação genética e a pesquisa de mutantes da Xy/el/a

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Chips de DNA O primeiro laboratório de chips de DNA,

que começa a ser montado no Brasil, irá uti­lizar seqüências geradas pelo Projeto Geno­ma Humano do Câncer. Os chips vão organi­zar as informações geradas pelo projeto e possibilitar aos cientistas responder quando e em quais tecidos um determinado RNA está presente. A iniciativa é do Instituto Ludwig e está sob a responsabilidade do coordenador de RNA do Genoma Humano do Câncer, Luís Fernando Reis . "Eventualmente vamos en­contrar genes que estão sendo expressos só no tumor e não no tecido normal e assim des­cobrir novos alvos para o tratamento ou for­mas de diagnóstico", diz Reis.

O novo laboratório deve começar a fun­cionar em outubro, no prédio do Instituto, que investirá U$ 800 mil no primeiro ano eU$ 400 mil no segundo. A partir daí serão U$ 200 mil anuais para manutenção. Além do coordena­dor, Reis, outros quatro pesquisadores já estão envolvidos no projeto: Alex Carvalho, Sibele Meireles, Beatriz Stolf e Ludrnila Ferreira.

Os chips de DNA ou microarray permiti­rão a organização dos 500 mil plasmídeos ge­rados pela técnica Orestes. Plasrnideos são DNA circulares, que se multiplicam nas bactérias de forma autônoma e que carregam um pedaço do DNA de determinada célula. Dentro do Projeto Genoma, para chegar a esse pedaço, os pesqui­sadores extraem oRNA da célula, que contém os genes expressos. A partir do RNA, que é de dificil manipulação, gera-se o cDNA. Quando são seqüenciados os genes de uma célula de pulmão, por exemplo, está se trabalhando com um pedaço do DNA, ocDNA, introduzido num plasrnideo. Atualmente, chips de DNA são fei­tos pela comunidade científica com os genes de domínio público disponíveis nos bancos de da­dos internacionais. O novo laboratório, além de iniciar uma prática pioneira no Brasil, permiti­rá a descoberta de possíveis novas drogas ou no­vos marcadores tumorais.

O processo A base do chip é um suporte sólido, que

tanto pode ser uma membrana de náilon ou uma lâmina de vidro. Nela se fixam os plasmí­deos com as seqüências correspondentes aos genes expressos nos tecidos normais ou tumo­rais. Essas seqüências são depositadas no su­porte sólido por meio de um robô e, pela utili­zação de raios ultravioleta, uma reação quími­ca fixa as seqüências à membrana. Com os genes assim dispostos e organizados, e com­parando-se duas ou mais fases sólidas idênti­cas, pode-se saberem quais tecidos um deter­minado gene é expresso. O microarray tam­bém pode indicar quando um gene é expresso: se no tecido normal, na alteração pré-maligna ou na fase maligna. Um robô leva aproxima­damente duas horas para produzir cerca de 50 réplicas de uma fase sólida com 1 O mil seqüên­cias distribuídas em cerca de 2 centímetros quadrados, no caso de lâminas de vidro, ou cerca de 13 mil seqüências em 70 centímetros quadrados, no caso de suporte de náilon.

MEDICINA

Regeneração acelerada Laser e medicamentos aceleram recuperação do fígado

Um dos órgãos mais complexos do cor­po humano é o fi gado. São conhecidas pelo menos cinco mil funções para esse órgão, que compreendem a captação de substâncias, sín­tese, metabolismo e coagulação do sangue, consideradas indispensáveis à vida. Não é de se admirar, portanto, que pessoas enfrentem sérias dificuldades quando perdem parte do figado em intervenções cirúrgi­cas. Sua situação pode melhorar em futuro próximo. Uma equipe multidisciplinarda Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto está realizando pesquisas sobre maneiras de estimular a regeneração do fi gado a partir da parte restante do órgão. A primei­ra parte do estudo, envolvendo trabalhos de laboratório em ratos, terminou com muito sucesso. A partir do ano que vem, provavel­mente, começam os testes em seres humanos, no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.

"Os resultados são extrema­mente animadores", diz o profes­sor Orlando de Castro e Si 1 v a J ú­nior, do Departamento de Cirur­gia, Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicinada USPde Ribeirão Preto, coordenador da equipe, que envolve ainda os de­partamentos de Farmacologia e Patologia da própria faculdade e o Instituto de Física de USP de São Carlos. Os pesquisadores conse­guiram comprovar que é possível estimular a regeneração hepática em animais de laboratório, tanto com o uso de luz laser de baixa potência como com o uso de algumas substâncias químicas. As perspectivas são de que os métodos te­nham sucesso também em seres humanos, abreviando o período de tratamento e a volta às atividades normais depois da operação.

O início dos testes em seres humanos depende agora da aprovação dos métodos a serem aplicados, pela comissão de ética do Hospital das Clínicas. Essa é uma pra­xe em experiências como esta, que ainda não fazem parte da literatura médica inter­nacional. Os pacientes serão, principalmen­te, pessoas que têm parte do fi gado extraída devido a vários fatores, como tumores irre­versíveis. As experiências, iniciadas há três anos, contaram com um investimento de R$ 369,7 mil da FAPESP, dentro do projeto temático Transplante Experimental de Fíga-

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do e Regeneração Hepática, coordenado pelo professor Castro e Silva.

Quarta parte "Conseguir acelerar a regeneração do

figado é fundamental", diz o médico sobre os pacientes submetidos a esse tipo de cirur­gia. "Com isso, proporcionamos ao figado

remanescente melhores condições de adap­tação ao organismo e melhor recuperação do paciente", acrescenta. Há casos em que os médicos tiram até 75% do fi gado do pacien­te . O restante, a quarta parte do órgão, é ca­paz de regenerar-se, se estiver em boas con­dições. Gradualmente, o fi gado volta a exer­cer todas as suas funções.

A fase crítica ocorre nos primeiros dias depois da operação. Mesmo com um acom­panhamento médico intensivo, o paciente sofre bastante. A mudança que ocorre no metabolismo de captação e excreção gera um desconforto muito forte. Se for possível acelerar essa regeneração, o paciente vai passar mais depressa por essa fase . Além de ter o desconforto ai iviado, ficará menos tem­po internado e terá a recuperação abreviada.

Page 14: A arquitetura dos sem-teto

Problema social O problema não é raro . As doenças do

fi gado estão entre as mais graves e as de tra­tamento mais difici l. Dos casos de hepatite B, entre 5 e I 0% evoluem para uma hepatite crô­nica ou uma cirrose hepática, doença que pode levar à morte. Entre os casos de hepatite C, a maioria apresenta uma infecção persistente e evolui para se transformar numa doença crô­nica do fi gado. Uma boa parte das cirroses tem origem no consumo exagerado de bebidas alcoólicas. "A cirrose por álcool tem elevada prevalência em nosso meio", diz o professor Castro e Silva. "Isso mostra como o alcoolis­mo é um grave problema social."

Entre os tumores que atacam o fi gado, o de maior incidência parece ser o carcinoma hepatocelular. Nos países ocidentais, ela é de uma em cada I 00 mil pessoas. Entre 80 e 90% dos casos de tumores hepáticos primários, ele se instala quando o fi gado já está comprome­tido por outros problemas, especialmente as cirroses provocadas pelos vírus dos tipos B e C (o tipo A é considerado benigno). Se não for tratado convenientemente, a mortalidade é muito alta, chegando a 35% em um ano, 80% em dois anos e 95% em três anos.

Atualmente, as ressecções parciais do fi gado cirrótico para tratamento desses tumo­res primários não podem ser maiores de 15%. O remanescente cirrótico não tem o mesmo poder de regeneração que o normal. "Com o laser, estamos tentando verificar a possibili­dade de ressecções maiores em figados cir­róticos, com tumor, visando melhores índices de ressecabilidade de tumores", afirma o ci­rurgião.

Capacidade natural No trabalho de recuperação do figado

depois que parte dele é extraído numa cirur­gia, os médicos contam com um ponto valio­so. O órgão tem, naturalmente, a capacidade de regenerar-se, apesar da sua complexa es­trutura, que ostenta sete diferentes tipos de cé­lulas e uma dupla irrigação sanguínea. O ob­jetivo da equipe de Ribeirão Preto é acelerar essa regeneração. Para isso, partiu de muito pouco. "Não havia na I iteratura nenhuma des­crição de como regenerar o figado", diz o pro­fessor Castro e Silva. "Foi um verdadeiro achado verificar que o raio laser pode cola­borar para essa regeneração", acrescenta. Em circunstâncias comuns, o fi gado leva cerca de seis meses para voltar ao peso normal depois que parte dele é extraída numa cirurgia, de acor­do com avaliações fei­tas por exames de to­mografia computa­dorizada e resso­nância magnética.

Também fo­ram testadas com sucesso substâncias farmacológicas. Nos testes com ratos, a equipe da USP

Regeneração Hepática Quantas vezes mais a bradicinina, o lisinopril e o laser recuperam o fígado em relação aos animais/controle

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de Ribeirão Preto conseguiu multiplicar por dez a regeneração do fi gado 24 horas depois da operação, em 70% dos casos, com o uso da droga bradicinina. Os pesquisadores ain­da não têm resposta sobre o porquê desses re­sultados. Outra droga, a substância P, usada em várias aplicações pelo Departamento de Farmacologia da USP de Ribeirão Preto, ob­teve amplitudes menores de regeneração. Mas os resultados de sua aplicação foram considerados animadores, especialmente porque antecipou o pico de regeneração de 24 para 17 horas.

A aplicação do laser mostrou-se menos eficiente - apenas duplicou a capacidade de regeneração. Mesmo assim, o resultado foi considerado positivo e merecedor de ser in­cluído no prosseguimento dos estudos. Os pesquisadores descobriram que o compri­mento de onda correspondente à cor azul foi o que melhor estimulou a regeneração hepá­tica. Houve um cuidado especial com relação à intensidade da luz, uma vezqueexisteoris­co de uma aplicação muito forte causar danos celulares. A conclusão é a de que uma aplica­ção de até I 000 mw por centímetro quadrado de tecido não causa danos às células.

Pontos específicos Um aspecto muito importante, mas que

ainda intriga os pesquisadores, é o de que o fi gado remanescente responde positivamen­te ao estímulo dos raios laser seja qual for a área bombardeada. Trata-se de uma enorme vantagem, pois há pontos do fígado nos quais, pela sua localização, o bombardeio es-

pecífico seria extremamente difícil. De qualquer maneira, os médicos

vão tentar descobrir agora se existem pontos no fígado onde a ação

do laser pode mos­trar-se mais efi­caz do que em outros.

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·. Outro as­pecto do projeto que vai começar

brevemente é verificar se o fí gado consegue rege­nerar-se, se for submeti-

do ao tratamento com raios laser, mesmo se sofrer uma ressecção de até 90%. Trata-se de uma experiência muito importante para os casos de insuficiência hepática aguda. Há casos em que o paciente entra no hospital com uma hepatite aguda fulminante. Sua única es­perança é um transplante, o mais rapidamen­te possível.

"A hipótese é que poderíamos irradiar o fi gado nessas condições ou para revertera si­tuação ou melhorar as condições do doente, dando-lhe a chance de esperar, em melhores condições clínicas, a chegada de um órgão para transplante", diz Castro e Silva.

Há mais. Durante as pesquisas, a equi­pe de Ribeirão Preto descobriu que o lisino­pril, nome genérico de um hipertensivo, tam­bém acelera a regeneração hepática. Isso abre importantes perspectivas. É comum que os pacientes de operações no fígado desenvol­vam, no pós-operatório, níveis variáveis de hipertensão arterial. Só isso já justificaria o uso do lisinopril. Se a droga também acele­rar a regeneração do fígado , o tratamento mataria dois coelhos com uma só cajadada.

Funcionou nos animais de laboratório, mas a equipe quer fazer ainda mais experiên­cias, antes do início dos testes em seres hu­manos, no ano que vem. "Temos que ser cau­telosos antes do uso clínico", diz o professor Castro e Silva. "Precisamos ter a comprova­ção definitiva dos graus de eficiência dos di­versos métodos", acrescenta. De qualquer maneira, os testes iniciais apontam para um progresso muito grande, em futuro não mui­to distante, para um problema muito sério da medicina a tua!.

Periil: Orlando de Castro e Silva Jr., 46 anos, é cirurgião responsável pelo Setor de Cinurgia Hepática da Disciplina de Gastroenterologia do Departamen­to de Cirurgia da Faculdade de Medicina de Ri­beirão Preto, coordenador do Núcleo de Pesqui­sas em Hepatologia Cirúrgica e do curso de Pós­Graduação da área de Cirurgia. Fez o pós-dou­torado em cinurgia hepática na Universidade de Barcelona, na Espanha. Projeto: Transplante Experimental de Fíga­do e Regeneração Hepática Investimento: R$ 369,7 mil

Page 15: A arquitetura dos sem-teto

CIÊNCIA

FÍSICA

A nova força dos neutrinos Físicos brasileiros mostram que essas partículas poderiam interagir com a Terra mais do que se pensava

Os experimentos às vezes são cruéis com os cientistas. Principalmente quando os resul­tados colhidos não conferem com os previs­tos e não há teorias prontas que os expliquem. É o que está ocorrendo no estudo dos neutri­nos, partículas elementares da matéria que viajam quase à velocidade da luz e se formam em abundância no Sol, nas usinas nu-cleares ou pela fragmentação dos raios cósmicos na alta atmosfera ter­restre. Em junho do ano passado, os pesquisadores que trabalham no Su­perKamiokande, o maior detector de neutrinos do mundo, em operação há três anos no Japão, verificaram que um dos tipos de neutrinos chegava em quantidade inferior à esperada, sobretudo depois de atravessar o in­terior da Terra. O fato de desapare­cerem foi visto como uma evidência de que essas partículas efetivamen­te têm massa, como há décadas os fí­sicos procuram demonstrar.

setembro - não se limitam a explicar os resul­tados verificados no Japão.

A hipótese do Gefan implica uma reava­liação de um dos tipos de forças fundamen­tais da matéria, também chamadas interações. Pode ganhar novas dimensões, especifica­mente, a interação fraca, que atua de modo

Mas pode não ser assim. Há ou­tra fonna de explicar o desapareci­mento dessas partículas que não pre­cisam necessariamente ter massa, de acordo com a interpretação dos físi­cos do Grupo de Estudos de Física e Astrofísica de Neutrinos (Gefan), formado há dois anos por pesqui­sadores das três universidades esta­duais paulistas (USP, Unicamp e Unesp ). Para eles, os neutrinos de um tipo, os muônicos, que chegam em quantidade inferior à prevista, esta­riam interagindo com a matéria das camadas internas da Terra e se trans­formando em neutrinos de outro tipo, os tauônicos, que não podem ser percebidos pelos equipamentos

SuperKamiokande: tanque de 40 metros de altura à espera de neutrinos

atuais.

Repensando o Universo Em colaboração com pesquisadores das

universidades de Wisconsin, nos Estados Unidos, e de Valencia, na Espanha, os físicos brasileiros trabalham desde julho do ano pas­sado nessa proposta, que muda o foco do pro­blema. Em vez de proporem mudanças no neutrino, aceitando que podem ter massa, repensam a forma como essas partículas sere­lacionam com a matéria que atravessam. As conclusões a que chegaram - publicadas em abril na Physical Review Letters e debatidas em uma das apresentações do To pies in As­troparticle and Underground Physics, uma conferência realizada em Paris no início de

discreto no entrosamento entre as mais mi­núsculas das partículas atômicas e na frag­mentação de elementos químicos radioativos. Sem carga elétrica e infinitamente pequenos, os neutrinos estão sujeitos apenas a essa for­ça. Vivem indiferentes à força nuclear de in­teração forte, que a tua entre partículas maio­res, à força eletromagnética, decisiva entre partículas eletricamente carregadas, e à gra­vidade, praticamente inexpressiva no univer­so das partículas, de massa extremamente pe­quena.

Até agora se pensava que os neutrinos atravessavam a matéria sem qualquer dificul­dade, como resultado do modelo a tua! da in­teração fraca. O grupo de físicos está demons­trando que eles podem, sim, modificar-sele-

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vemente ao longo dessas travessias, ao con­trário do que supõe a Física atual.

O estudo dos neutrinos integra um pro­jeto temáti co financiado pela FAPESP,Feno­menologia das Partículas Elementares, que começou no ano passado e segue até 2002. Com um orçamento de R$ 224 mil, mobiliza

dez fís icos que, em cinco projetos, es­tudam o comportamento das partícu­las elementares. "Procuramos anteci­par e reinterpretar os resultados dos trabalhos práticos", diz o físico Gil da Costa Marques, coordenador do pro­jeto. Trata-se de uma área bastante di­nâmica, marcada pela descoberta de cerca de 60 partículas em menos de um século e por constantes revisões teóricas. A Física de Partículas está também associada à história do Prê­mio Nobel (ver quadro) .

O interesse pelos neutrinos se ex­plica também porque se trata de uma das mais fascinantes e desconhecidas par­tículasatômicas. Chegam detodasasdi­reções a todo momento e atravessam o Sol ou a Terra. "A matéria usual é trans­parente aos neutrinos", comenta o físi­co Marcelo MoraesGuzzo,professorda Unicamp que divide a coordenação do Gefan com Renata Zukanovich Fun­chal, da USP, e Vicente Pleitez, da Unesp. As experiências indicam que os neutrinos, vistos por outras partículas, ocupam uma área cerca de I 00 milhões de vezes menor que a do elétron.

O problema é saber se são apenas energia ou têm massa. Trata-se de uma questão fundamental da astrofísica e da cosmologia, que poderia determi-nar se o Universo continuaria em ex­pansão indefinida, como hoje se acre­

dita, ouse a partir de um momento poderia co­meçar a se encolher. "Se os neutrinos tiverem mesmo massa, ainda que muito pequena, mu­daria a massa total e a compreensão do Uni­verso, porque são abundantes", diz o profes­sor Piei tez, da Unesp. Os neutrinos são qua­se tão abundantes quanto os fótons, as partí­culas de luz, que conduzem a força eletromag­nética - e, estas sim, destituídas de massa.

Calcula-se que há I O bilhões de neutri­nos para cada próton, um dos elementos do núcleo atômico. Espalham-se dos confins do Universo ao interior do corpo humano, que produz 20 milhões de neutrinos por hora, como resultado das reações com um dos ti­pos de potássio que compõem o organismo. A cada segundo, o corpo humano é a traves-

Page 16: A arquitetura dos sem-teto

sado por I 00 bilhões de neutrinos originados nas usinas nucleares e mais 50 trilhões vin­dos do Sol e da fragmentação dos raios cós­micos, inclusive à noite, já que eles atraves­sam a Terra e chegam de todo lado, a todo mo­mento. "Se enxergássemos os neutrinos, es­taríamos radiantes", diz Renata Funchal.

Mesmo assim, é dificílimo caçar neutri­nos. São quase indetectáveis porque não têm carga elétrica e reagem tão raramente com outras partículas que escapam até mesmo ao gigantesco detector de neutrinos construído em Kamioka, a 250 quilômetros de Tóquio, a um custo aproximado deUS$ I 00 milhões. O SuperKamiokande consiste de um tanque cilíndrico de cerca de 40 metros de lado por 40 de altura com água ultrapura, a um quilô­metro abaixo da superfície, que filtra partícu­las indesejadas. É tão grande porque apenas um em cada um bilhão de trilhões (o número um seguido de 21 zeros) de neutrinos que por ali passam reage com a água. Quando isso acontece, emitem um tipo de luz especial, que é registrada por cerca de 12 mil fotocélulas instaladas nas paredes laterais do tanque.

No SuperKamiokande, comportaram-

se conforme o pre­visto apenas um dos três tipos de neutri­nos, os eletrônicos, os mais comuns, que surgem quando os raios cósmicos coli­dem com os prótons e nêutrons dos gases da alta atmosfera. Chegaram todos. Os que costumam desa­parecer - ou oscilar, na linguagem dos fí­sicos - são os neutri­nos muônicos, pro­

duzidos também quando os raios cósmicos se desfazem. O terceiro tipo de neutrinos, os tauônicos, resultantes do decaimento ( desin­tegração) de partículas atômicas, é bastante raro e ainda não pode ser detectado por ne­nhum equipamento.

Para explicar os resultados dos experi­mentos, os físicos do SuperKamiokande cogi­taram que os neutrinos de um tipo poderiam se transformar em outro. Mesmo assim, essa hipótese mostrou-se incompleta para os inte­grantes do Gefan. Porque as partículas desa­parecem ao passar pelas camadas mais den­sas da Terra e nada acontece quando atraves­sam apenas a atmosfera? Dos neutrinos que passam pelo núcleo terrestre, chega só a me­tade, enquanto dos que percorrem apenas a atmosfera não se perde nenhum (ver ilustra­ção). Tais constatações levaram a pensar que esse comportamento estaria associado ao ângulo (ou direção) do neutrino em relação ao detector, à distância e à densidade do ma­terial que atravessam.

Os físicos do Gefan estão supondo que os neutrinos podem interagir com a matéria de modo mais intenso do que se imaginava até

As partículas e os Nobel A todo momento, quando os raios cós­

micos se desfazem ao se chocarem com as partículas da alta atmosfera, a 20 km da su­perfície, forma-se o chamado chuveiro de partículas, com variados tipos de fragmen­tos do átomo. Além dos neutrinos, surgem outras partículas, que também podem se desfazer em neutrinos, os píons, desco­bertos em 1947 pelo físico curitibano César Lattes ( 1924-), em colaboração com Giuse­ppe Occhialini (1907-1993) e o inglês Ce­ci/ Powe/1 (1903- 1969).

O píon- visto como uma das partículas responsáveis pelo comportamento das forças fundamentais da matéria, cuja exis­tência Lattes comprovou em experiências realizadas a 2.800 metros de altitude, na Bolívia - havia sido proposto teoricamente em 1935 pelo japonês Hideki Yukawa (1907-1981), que ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1949 por esse trabalho.

Os brasileiros, os neutrinos e os Nobel vão se entrelaçar novamente nos anos 70, com outro pioneiro da física teórica e da as­trofísica moderna no Brasil, o recifense Mário Schenberg ( 1916- 1990 ), professor da Universidade de São Paulo que também estudou essas partículas. Schenberg traba­lhou com o primeiro cientista que concebeu a existência dos neutrinos, o físico suíço nascido na Áustria Wolfgang Pauli (1900-1958), em Zurique, na Suíça, eemPrin-ce­ton, nos Estados Unidos.

Foi Pauli quem propôs, em 1931, numa carta endereçada aos físicos em um congresso na Europa, ao qual não pôde comparecer, a existência de uma partícu­la sem carga elétrica e sem massa, quere­solveria uma aparente sobra de energia em reações com elementos radioativos. Por esse feito, Pauli ganhou o prêmio Nobel de Física de 1945.

16 'ESP

agora. Ao encontrarem os nêutrons e prótons que formam quase a total idade da matéria co­mum, os neutrinos reagiriam e sofreriam pe­queníssimas modificações. Mudariam ape­nas o chamado sabor, uma das características das partículas atômicas, tal qual a carga elé­trica. "Quanto maior a densidade da matéria que atravessa, há mais nêutrons e prótons por volume, e será maior a chance de interação com os neutrinos", diz Guzzo.

Essa força, chamada Flava r Changing (troca de sabor) ou interações exóticas que trocam sabor, não afetaria em nada a matéria atravessada pelos neutrinos, porque a diferen­ça entre massas é imensa: um próton já é I 00 milhões de vezes maior do que um neutrino. Caso encontrasse um núcleo, formado por dezenas ou às vezes centenas de prótons com­binados com nêutrons, a proporção seria ain­da mais astronômica. "Seria como um minús­cula bola de borracha, menor do que a unha de um polegar, batendo em um trem com cen­tenas de vagões", compara o professor.

Analogia com o Sol Na reunião de julho do ano passado, foi

Guzzo quem lançou a idéia de que os neutri­nos poderiam se comportar na Terra como no Sol. Conforme ele estudou no doutoramento, parte dos neutrinos eletrônicos que se formam no núcleo desaparecem ao reagir com os pró­tons e os nêutrons da coroa solar. Outro sumi­ço ocorre a caminho da Terra, onde chegam apenas cerca de 35% dos neutrinos eletrôni­cos produzidos no Sol que deveriam chegar.

A tese do Gefan, associando o desapare­cimento dos neutrinos também à distância per­corrida, ajuda a entender esse outro fenôme­no mal compreendido pelos físicos. Só apre­senta um inconveniente: não está prevista no chamado Modelo Padrão, o modelo teórico que descreve as partículas elementares e as for-

Um ano depois, o físico italiano Enrico Fermi (190 1-1954 ), com quem Schenberg também trabalhou, em Roma, incorporou essa partícula, que ele chamou de neutrino (em italiano, minúsculo neutro), na teoria de partículas que ele desenvolvia. Fermi, que ganhou o Nobel em 1938 por suas pesqui­sas em energia nuclear, participou nos Estados Unidos da construção da primeira bomba atômica, em 1945. A primeira obser­vação dos neutrinos coube ao norte­americano Frederic Reines (1918-1998), Prêmio Nobel de 1995.

O estudo das forças fundamentais tam­bém tem sido reconhecido com o prêmio Nobel. O físico norte-americano Steven Weinberg(1933- ), que em 1967desenvol­veu a teoria da força nuclear fraca, dividiu em 1979 o prêmio Nobel de Física com o norte-americano She/don Glashow ( 1932-) e o paquistanês Abdus Saiam ( 1926- 1996 ), que chegaram ao mesmo resultado de forma independente.

Page 17: A arquitetura dos sem-teto

mas como elas interagem. Foi prevista apenas teoricamente, em 1978, pelo tisico norte-ame­ricano Lincoln Wolfenstein."Se a força exó­tica for comprovada, teremos de repensar o Modelo Padrão, que não explica os resultados verificados no SuperKamiokande", diz ele.

O que se sabe até o momento, de acordo com o Modelo Padrão, é que a força de intera­ção nuclear fraca, a única à qual os neutrinos estão sujeitos, pode atrasar a propagação ou mudara direção dessas partículas. Só é relevan­te quando não está presente a interação forte, que aproxima prótons e nêutrons e as partícu­las que os constituem, no núcleo do átomo. Seu efeito toma-se irrelevante diante da eletromag­nética, de alcance infinito, que junta os átomos emmoléculaseco/aamatériaqueconhecemos.

A força que permitiria aos neutrinos en­trosar-se mais intensamente com a matéria, como está sendo proposto pelo Gefan, seria um tipo de interação fraca, embora capaz de

Núcleo Diâmetro: 3.000km Densidade: 11,5 g/cm3

Metade dos neutrinos muônicos que

percorreram diagonalmente o núcleo, a camada

mais densa da Terra, transforma· se em tauônicos.

mudar a identidade dos neutrinos. "Trata-se de uma mudança na essência, não no nome, porque continua fraca", explica Guzzo.

Os fisicos imaginam que a habilidade de atravessar a matéria sem limitações de distân­cia pode ter aplicações práticas. Seria possí­vel, por exemplo, simplificar a busca de re­servas de petróleo. Os neutrinos poderiam tra­zer informações sobre os .materiais de modo mais preciso e profundo do que os raios-X, seus similares mais próximos, de alcance res­trito a poucos metros.

Nos próximos meses, os fisicos preten­dem aproveitar os resultados de outras expe­riências, realizadas nos detectores dos Esta­dos Unidos, França, Itália e Suíça, onde tam­bém se observou o desaparecimento de neu­trinos, para verificar até que ponto resiste a hipótese que criaram, tratada agora como um carro aprovado na prancheta e em trajetos curtos que merecesse testes mais amplos.

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muônicos que atravessam apenas a

atmosfera chegam ao detector sem se transformarem em tauônicos.

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§

Perfi s : Gil da Costa Marques, 53 anos, graduou­se em Física na Faculdade de Filosofia, Ciên­cias e Letras da Universidade de São Paulo (USP). Fez o mestrado e o doutorado no Ins­tituto de Fís ica da USP, do qual foi diretor entre 1994 e 1998. Marcelo Moraes Guzzo, 35 anos, graduou-se no Instituto de Física da USP, fez o mestrado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o doutorado na lnternational School for Ad­vanced Studies, na Itália. Renata Zukanovich Funchal, 35 anos, cursou Física na USP, fez o mestrado na Universida­de de Cambridge, na Inglaterra, e o doutora­do na Universidade de Orsay, na França. Vicente Pleitez, 49 anos, graduado em Quí­mica na Universidade de El Salvador, fez o mestrado e o doutorado em Física na Unesp. Projeto: um dos cinco estudos do temático Fenomenologia das Partículas Elementares. Investimento total: R$ 224 mil no temático.

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CIÊNCIA

BOTÂNICA

Ambiente único Pesquisa leva a importantes descobertas sobre a adaptação de plantas da Serra do Cipó, em Minas Gerais

Quando conheceu os campos rupestres da Serra do Cipó, em Minas Gerais, na déca­da de 1960, a bióloga com especialização em botânica Nanuza Luiza de Menezes estranhou a paisagem. "Parecia um vale de dinossau­ros", conta. Suas primeiras viagens foram re­compensadas com a descoberta de muitas espécies novas, como uma da canela-de-ema, a Vellozia gigantea, que chega a seis metros de altura. Foi o início de um longo trabalho. Em 30 anos de estudos, o grupo do qual faz parte Nanuza identificou cerca de 1.550 espécies de plantas crescendo numa área de 150 quilô­metros quadrados de solo pedrego­so da Serra do Cipó, escolhida para o levantamento florístico. É uma enorme riqueza. Em toda a Inglater­ra, com todos os seus tipos de terre­no, há apenas 1.600 espécies de plan­tas nativas.

alunos de iniciação científica. lniciadoem I o

de dezembro de 1997, com um financiamen­to de R$ 165 mil da FAPESP, o projeto tem término previsto para novembro.

Soluções diferenciadas A imensa diversidade biológica signifi­

ca também uma enorme variedade de solu­ções para o problema da escassez de água. Cada família tem características próprias que

ce a canela-de-ema, é um exemplo de adap­tação. As plantas desse grupo se conservam sempre verdes porque aproveitam a umida­de da neblina que cobre trechos da Serra à noite. Essa umidade é absorvida por raízes que correm ao longo do caule, por baixo das bainhas de folhas velhas. Quando as folhas murcham e caem, as bainhas ficam em torno do caule, protegendo as raízes adventícias. Essas raízes estão cobertas por um tecido de

revestimento, composto de diver­sas camadas, chamado velame, en­contrado também em orquídeas. O velame acumula a água da neblina e essa umidade é transportada para o interior da planta.

Não é só. As plantas da famí­lia das veloziáceas têm um sistema

"É uma vegetação muito espe­cial", conta a professora Nanuza. "As plantas crescem diretamente em solos pedregosos ou arenosos, nos quais a água escoa rapidamen­te e não há lençol freático" , prosse­gue. "As plantas estão adaptadas para conservar a quantidade míni­ma de água disponível , pois ocor­rem períodos de até quatro meses sem que caia uma gota de chuva", diz. Nesses períodos, em geral, só a neblina noturna traz umidade. A Serra do Cipó é parte da cadeia do Espinhaço e fica a cerca de II O qui­lômetros a noroeste de Belo Hori­zonte. A altitude quase sempre va­ria entre 1.000 e 1.400 metros, mas há pontos em que chega a 1.800 me­tros. A Serra tem vários tipos de ecossistemas, mas a vegetação típi­ca, predominante, é o campo rupes­tre com suas plantas adaptadas a vi­ver em solo pedregoso ou arenoso.

Espécies adaptadas à escassez de água: a canela-de-ema gigante, a Lavoisiera glandulifera, que absorve água através dos pêlos das folhas,

São essas plantas o centro do projeto te­mático Estudo das Adaptações dos Orgãos Vegetativos e Reprodutivos ao Ambiente Ru­pesfl-e, que Nanuza, professora do Departa­mento de Botânica do Instituto de Biociên­ciasda Universidade de São Paulo (USP), está coordenando. Ela também é responsável por oito dos subprojetos do trabalho. Outras duas professoras do Departamento de Botânica di­videm mais seis subprojetos, Verônica An­gyalossy Alfonso, com quatro, e Jane Eliza­beth Kraus, com dois. As pesquisas envolvem ainda II estudantes de pós-graduação e seis

lhes permite sobreviverem condições adver­sas. Basicamente, há as que escapam da seca e as que toleram a seca. As que escapam da seca têm ciclo de vida extremamente rápido. Brotam na época das chuvas, crescem, sere­produzem, deixando as sementes no solo para a próxima estação e morrendo antes que a seca chegue outra vez. As que toleram a seca tam­bém podem ser divididas em dois grupos: as que se mantêm sempre verdes, conseguindo umidade de diversas maneiras, e as que mur­cham e se ressecam, mas revivem e se desen­volvem quando volta a chover.

A família das veloziáceas, à qual perten-

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muito eficiente para perder o mínimo de umi­dade. Seus estômatos, as estruturas presentes nas folhas por onde se processa a entrada e a saída de água da planta, ficam em fendas exis­tentes nas folhas. Quando o tempo está exces­sivamente seco, essas fendas se fecham e a umidade liberada pelos estômatos não chega a sair da planta. Forn1a-se um sistema fecha­do, conservando a água que já está na planta.

Há outros exemplos. As plantas da famí­lia das melastomatáceas, na qual se incluem as quaresmeiras, se caracterizam pela presen­ça de muitos pêlos, chamados tricomas, na sua superficie. Um aluno da professora Nanuza,

Page 19: A arquitetura dos sem-teto

em sua tese de doutorado, descobriu evidên­cias de que a água penetra no interior da planta através dos tricomas. Esses pêlos aparecem também nas folhas e caules de plantas de ou­tras famílias , especialmente nas folhas jo­vens. Em alguns casos, os pêlos também pro­tegem a planta do inverno rigoroso da Serra. No período frio, a planta se mostra como um chumaço de algodão. Conforme a primavera

e, no alto, o Paepalanthus hirlairei

se aproxima, os pêlos brancos vão secando e surge o verde das folhas.

Campos de flores Como a paisagem da região da Serra se

altera constantemente, as plantas passam por di versas mudanças, internas e externas, acompanhando a estação do ano. "A região é linda", afirma a professora Nanuza. As espé­cies do gênero Paepalanthus têm inflorescên­cias em forma de bolas de extraordinária be­leza. "Às vezes, o campo fica completamen­te coberto de flores", diz ela. Mas numa das suas primeiras viagens à região, em 1968,

com o professor Ayl­thon Brandão Joly, já falecido, ficou impres­sionada com uma área que lhe deu a impres­são de "um cenário pré-histórico".

Foi nessa área que o grupo da USP descobriu a canela-de­ema de seis metros de altura, a Vellozia gi­gantea. Essa planta, que apesar de atingir essa altura conserva o caule com apenas I centímetro de diâme-tro, é endémica da Ser­

As pesquisadoras Nanuza (à frente), Verônica (esq.) e Jane: descobertas importantes

ra, isto é, só existe naquela região da Serra do Cipó. "O professor Joly acreditava que, para atingir esse porte, as plantas deveriam ter cer­ca de 500 anos de idade", lembra Nanuza. A árvore tem outra característica. Nos seus ga­lhos mais altos, vive uma microorquídea, a Constantiacipoensis. Essa orquídea também só existe na Serra do Cipó e só vive sobre a canela-de-ema gigante.

A descoberta dessa espécia de Vellozia foi considerada tão importante que levou a uma campanha, feita por pesquisadores paulistas e mineiros, para a criação de um parque nacio­nal na área. Deu certo. O Parque Nacional da Serra do Cipó foi criado por um decreto de 1975 e começou a funcionar no dia 27 de se­tembro de 1984. Era mais que necessário. A região estava sendo invadida por pessoas que, para coletar as orquídeas, não hesitavam em dem1bar as canelas-de-ema gigantes.

Um dos resultados do projeto temático é a descrição da Vellozia gigantea como es­pécie nova, o que ainda não tinha sido reali­zado, apesar de a planta ter sido observada pela primeira vez em 1968. A descrição, feira pela professora Nanuza e pelo professor Re­nato de Mello-Silva, do Departamento de Botânica da USP, deve ser publicada antes do fim de setembro. "Foi muito importante dar uma contribuição, anatômica e taxonômica, para o conhecimento dessa planta", diz a pro­fessora . Ainda como parte do trabalho, Na­nuza e Mello-Silva descreveram outra espé­cie da mesma família, a Vello:ia auriculata, que parece ser muito importante para o enten­dimento da evolução do gênero.

Órgão especial O projeto levou a outras descobertas.

Plantas da família das dioscoreáceas, a mes­ma do inhame e do cará, mostraram um ór­gão subterrâneo especial, ao qual a professo­ra Nanuza deu o nome de rizóforo. Quando descreveu pela primeira vez o órgão, em 1979, em espécies do gênero Vemonia (famí­lia das compostos), a professora achava que poderia ter ocorrido uma mutação, por se tra­tar de algo inusitado. Agora, já sabe que ela é característica em algumas espécies de famí ­lias diferentes. Trata-sedeumórgão, mais se-

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melhante a um caule do que a uma raiz, que corre debaixo da superficie. Dentro da terra, o rizóforo lança apenas raízes e outros rizó­foros. Mas, se por acaso for descoberto e re­ceber a luz do sol, ele emite uma planta com­pleta, com caule, folhas e flores. O nome ri­zóforo é dado normalmente a estruturas en­contradas em samambaias e significa pot1a­dor de raízes.

Outros resultados importantes vêm do estudo de cerca de dez famílias de trepadei­ras, encontradas nas matas ripá rias ou de ga­lerias. Essas matas acompanham o curso dos rios e riachos que co11am o campo rupestre. Como a umidade do solo é maior, elas têm ve­getação mais alta que a dos campos vizinhos, com árvores e arbustos nos quais as trepadei­ras se enrolam, usando-os como suporte, em busca da luz solar.

Verônica explica que esse processo de crescimento promove uma modificação na morfologia externa e interna do caule, facili­tando sua subida para o dossel. Assim, uma das características interessantes é a associa­ção de vasos de grande calibre, garantindo uma condução de água e nutrientes de manei­ra rápida e eficiente, com vasos de pequeno calibre, permitindo uma condução segura. Isso ocorre tanto nas trepadeiras com caules mais espessos, denominadas lia nas, como nas com caules mais finos, denominadas de tre­padeiras herbáceas. "Cada espécie apresenta uma característi ca nova, ainda não mencio­nada na literatura para a espécie ou o gêne­ro", di z a professora.

Adaptação local Há mais. Outros resultados interessan­

tes, dentro do projeto temático, estão sendo obtidos pelos estudos sobre a plasticidade fe­notípica - casos em que plantas da mesma es­pécie, com ampla dispersão, apresentam fonnas completamente diferentes conforme o I ugarnos quais vivem.

Há vários casos em que a mesma planta tem características diferentes das encontradas em outras regiões do País quando observada na Serra do Cipó. "As plantas que apresentam plasticidade fenotípica seadaptamàsdiferen­çasdeambiente",diz Verônica. "As folhas,prin-

Page 20: A arquitetura dos sem-teto

cipalmente, reagem bastante a essas mudanças", comenta a pesquisadora.

Mas não são só fatores climáticos como regime de chuvas, temperatura e ventos que causam adaptações das plantas ao ambiente. "Existem intricadas interações e interdepen­dências entre as plantas e outros organismos", afirma a pesquisadora Jane. Uma dessas in­terações, resultante do parasitismo da planta por outras formas de vida, como bactérias, fungos, ácaros e insetos, leva à formação de galhas, também conhecidas como cecídios ou tumores vegetais.

Riqueza em galhas As galhas representam modificações

em células, tecidos e mesmo órgãos da plan­ta. Uma das atividades de Jane no projeto é pesquisar as alterações provocadas pela ação de insetos galhadores sobre as plantas da Serra. "Dados de literatura produzidos por pesquisadores brasileiros e americanos já tinham mostrado que o número de galhas na Serra do Cipó é muito elevado", comen­ta ela. "A Serra é uma das regiões do mun­do mais ricas em galhas, mas há pouquíssi­mos trabalhos sobre as alterações morfoa­natômicas que elas envolvem", acrescenta. Já foram observados mais de 30 tipos de ga­lhas numa só espécie do gênero Baccharis. Num ambiente equilibrado, as plantas po­dem sobreviver ao parasitismo representa­do pelas galhas. Mas, em condições ambien­tais adversas, as plantas atacadas podem de­saparecer de uma área.

Num projeto tão amplo, é natural que sur­jam intercâmbios intensos entre os pes­quisadores. Por exemplo, no estudo da Marce­tia taxifolia, planta da família das melastoma­táceas que apresenta grande plasticidade feno­típica, área de Nanuza e Verônica, foram en­contradas várias galhas, área da professora Jane. "Outro aspecto importante desse traba­lho é a formação de recursos humanos", diz Nanuza. Mesmo depois de terminado o proje­to, ela pretende continuar a estudar a vegeta­ção da Serra.

Perfis: Nanuza Luiza de Menezes, professora do Insti­tuto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), formou-se em 1950 em História Natural, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USR onde fez mestrado e doutorado. Seu pós-doutorado foi no Jockell Laboratory, no Royal Botanic Garden, na Inglaterra. Verônica Angyalossy Alfonso formou-se em 1978 em Ciências Biológicas na USR onde se douto­rou. Fez pós-doutorado no Forest Products La­boratory, em Wisconsin, Estados Unidos. Jane Elizabeth Kraus graduou-se em Ciên­cias Biológicas na USP em 1970, onde fez mestrado e doutorado. Seu pós-doutorado foi na Universidade Católica do Chile, em San ­tiago , Chile. Projeto: Estudo das Adaptações dos Ór­gãos Vegetativos e Reprodutivos ao Ambien­te Rupestre. Investimento: R$ 165 mil.

CIÊNCIA

PALEONTOLOGIA

Mergulho no Permiano Fósseis mostram como era o mar que cobria o

Sudeste brasileiro muito antes do tempo dos dinossauros

Não se impressione com as miniaturas de plástico e balões com imagens de dinossau­ros que enchem os laboratórios ocupados pela equipe de Paleontologia do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Uni­versidade Estadual Paulista (Unesp ), emBo­tucatu. Eles têm efeito puramente decorativo. Na verdade, o principal interesse da equipe coordenada pelo professor Marcel! o Guima­rães Simões está nos restos de animais bem mais modestos, conchas com entre 5 e I O cen­tímetros de comprimento máximo, que vive­ram num período anterior ao dos dinossauros, o Permiano, 250 milhões de anos atrás (os dinossauros desapareceram cerca de 60 mi­lhões de anos atrás).

Essas conchas, restos principalmente de moluscos bivalves - o grupo de animais de duas valvas, ou conchas, que inclui os maris­cos e as ostras - , podem ser mais importan­tes do que indica seu tamanho. Elas estão dan­do valiosas indicações sobre o passado do Su­deste brasileiro, inclusive sobre um mar inte­rior ou mar epicontinental , como é conheci­do do ponto de vista geológico, com salini­dade variável, que cobria partes de São Pau­lo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. E prometem dar ainda mais. A valiosa co­leção reunida em Botucatu, com 5 mil exem­plares cuidadosamente conservados e classi­ficados, pode ser o ponto de partida para no­vos e importantes estudos.

"Só é possível encontrar material com idade semelhante, tão bem preservado, em áreas do Permiano do Texas, nos Estados Unidos", diz o professor Simões, sobre os exemplares coletados em São Paulo. Estudan­do esses moluscos, a equipe da Unesp preten­de determinar como evoluíram, em que con­dições ambientais viveram e como se forma-

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ramos depósitos fossilíferos nos quais fo­ram encontrados. A FAPESP colabora com o grupo de Botucatu desde 1993. Na pesqui­sa a tua!, o projeto Estudo Paleoecológico dos Pelecípodes do Grupo Passa Dois (Assem­bléias de Leinziafroesi, Pinzonella i/lusa e Pinzonella neotropica, Permiano Superior, no EstadodeSãoPaulo), fez um investimen­to de R$ 36,6 mil. O projeto, iniciado em 1997, deve ficar pronto este ano.

Passa Dois As conchas reunidas em Botucatu pas­

saram 250 milhões de anos nas rochas conhe­cidas pelos geólogos como Grupo Passa Dois, que incluem, em São Paulo, as forma­ções Serra Alta, Terezina e Corumbataí. Elas são encontradas principalmente nas regiões de Tambaú-Leme, Rio Claro-Pi racicaba e Porangaba-Bofete. Tais rochas sedimenta­res contêm moluscos fósseis que viveram num mar epicontinental, ou seja, fechado , como um grande lago, ou apenas com uma pequena saída para o exterior, e águas rela­tivamente rasas.

São exemplos modernos de mares des­se tipo o mar Cáspio, entre a Rússia e o Irã, e o mar Negro, que banha Ucrânia, Turquia, Romênia e Bulgária. Mares desse tipo são formados com o levantamento de cadeias de monta­nhas ou quan-do há um re­baixamen­to no ní­vel dos

Exemplar de Tambaquyra camargoi, o maior bivalve

da malacofauna permiana do Estado de São Paulo, coletado às margens da

rodovia Castello Branco

Page 21: A arquitetura dos sem-teto

oceanos. Surgem, então, barreiras que fecham as comunicações com o oceano, deixando isolado um grande lago de água salgada.

A descoberta dos moluscos, em si, não é novidade. Já em 1918, o cientista austríaco Karl Holdhaus recebeu para estudos vários exemplares coletados em São Paulo e no Pa­raná. Nas décadas de 1950 e 1960, o profes­sor Josué Camargo Mendes, da Universida­de de São Paulo (USP), coordenou pesquisas mais amplas sobre esses fósseis. Paleontólo­gos do Instituto Geológico da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e da Unesp de Rio Claro também fizeram estudos sobre o assunto. "Os animais foram classifi­cados, mas nunca houve a preocupação de conhecer sua origem, em termos evolutivos", diz o professor Simões.

Tafonomia modema Simões acrescenta que desde o início da

década de 1970, quando dois cientistas estran­geiros, o australiano Bruce Runnegar e o americano Norman Newell, apresenta-ram algumas hipóteses com base nas descobertas do professor Mendes, os estudos sobre esses fósseis permianos estavam praticamente negligenciados. A equipe de Botucatu passou, então, a apli­car conceitos e méto­dos tafonômicos mo­demos para o estudo da gênese das concentrações fos­silíferas. A tafonomia estuda a origem dos depósitos fossilíferos, compreendendo o ramo da paleontologia que mais se desen­volveu nas duas últimas décadas."A chama­da tafonomia de invertebrados foi iniciada de maneira inédita no Brasil, no âmbito desse projeto", informa Simões.

Além disso, com a finalidade de inves-tigar as relações de parentesco dos mo­luscos fósseis e sua autoecologia, o es­tudo envolveu a a análise cladística e a anatomia funcional.

Os resultados desses trabalhos le­varam o professor Simões, inclusive, a contradizer o pioneiro Mendes. O pro­fessor da USP acreditava que as con­chas eram de moluscos de água doce. Simões acha, "com boas possibilida­des de acerto", segundo afirma, que

elas não são de animais dulcícolas. "Creio que a hipótese anterior pode ser agora total­mente descartada", declara. Essa conclusão

foi confirmada por vários estudos, alguns dos quais feitos por equipes multidisciplinares.

As pesquisas mostraram que muitos moluscos encontrados nos depósitos do Per­miano viviam em condições de alto estresse ambiental, causadas por variações sazonais no índice de salinidade da água, como acon­tece, hoje, no mar Cáspio. Por ser uma bacia marinha fechada, esse índice variava bastan­te no lago-mar que cobria o Sudeste. Nos pro-

longados períodos de chuva, havena mmor aparte de água doce, com subida do nível d'água e diminuição do teor de sal. Nas épo­cas de seca, as águas baixavam e a quantidâ­de relativa de sal aumentava.

Doce e salgado Simões acha que descobertas recentes

de outros pesquisadores, que encontraram fósseis típicos de água doce (como ostráco­des), ao lado de outras estruturas biossedi­mentares, tais como os estromatólitos e mi­crobialitos, que são caracteristicamente forma­das em ambientes altamente salinos, confrr­mam essa teoria. "Numa época determinada, pode ter havido uma influência maior da água doce ou o contrário, pois o ambiente variava muito", afirma. "Outros estudos paralelos, ali­ás, provam que isso realmente ocorreu."

Outro aspecto importante é a constata­ção de que uma alta proporção dos animais cujos restos fósseis foram encontrados em São Paulo era de escavadores da areia. Isso mostra que o mar interno, como o Cáspio de hoje, era relativamente raso, com entre 50 e 70 metros de profundidade. "As feições ta­fonômicas das concentrações fossilíferas também são evidências de águas rasas", acrescenta.

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do Brasil, incluindo conchas silicificadas e moldes; ao lado, bloco de arenito bioclástico

da Formação Corumbatai, em cuja superfície podem ser observadas conchas de bivalves da tssembléía de Pínzonella íllusa

União com a África Fósseis semelhantes aos colhi­

dos em São Paulo foram encontra­dos na Namíbia e na bacia do Karoo,

na África do Sul. Isso reforça a teoria de que América do Sul e África já estiveram unidas, como parte do supercontinente de Gondwana. A área da união teria sido cober­ta pelo oceano. A separação ocorreu há cerca de 65 milhões de anos e os dois continentes continuam a afastar-se, à razão de entre 2 e 6 centirnetros por ano. Antes disso, porém, o mar teria secado e seu leito substituído por uma área desértica, coberta de rochas.

Simões acha que o estudo dos fósseis de conchas marinhas encontrados em São Pau­lo e no sudoeste da África podem levar a in­formações interessantes sobre quanto tempo as duas áreas ficaram unidas e quando se deu a separação, mas destaca que esse não é um aspecto primordial do trabalho do grupo de Botucatu.

"O mais importante", diz, "é a reconsti­tuição do ecossistema da época, com a obten­ção de informações como a profundidade do mar, a cadeia alimentar, o índice de salinida­de, as relações entre as espécies e o processo evolutivo e a extinção dos animais." Ele não é modesto quanto aos resultados da pesquisa. "Graças ao emprego de conceitos avançados no estudo dos fósseis de invertebrados mari­nhos, o projeto ajudou a escrever um novo ca­pítulo na paleontologia brasileira", afirma.

Para isso, os pesquisadores partiram de

Page 22: A arquitetura dos sem-teto

Simões: avanços na paleontologia brasileira

algumas questões básicas, como a determi­nação de se os fósseis eram de animais des­cendentes de antepassados marinhos, de onde vieram, como viviam, do que se alimentavam e como eram sua fisiologia e seu metabolis­mo. "Queríamos entender os processos en­volvidos nas origens das concentrações des­ses fósseis", lembra Simões.

Três áreas de estudo foram acionadas simultaneamente, para permitir um estudo mais abrangente do material coletado: a sis­temática e a evolução dos animais; a paleoe­cologia dos animais; e a tafonomia. O estudo da sistemática foi feito com uma abordagem cladística, método de reconstrução das rela­ções de parentesco. Foi a primeira vez que se fez isso com fósseis de moluscos bivalves tão antigos e, nesse setor, o grupo contou com a ajuda de biólogos da USP de Ribeirão Preto. "Isso permitiu eliminar o caráter puramente intuitivo das classificações", diz Simões.

Quanto à paleoecologia, Simões acredita que foi possível "reconstituir, na medida do possível, como esses animais viviam e sob quais condições". Para isso, afirma o profes­sor, foram usados "conceitos de morfologia funcional que não haviam sido largamente explorados na paleontologia brasileira". Ele também garante a adoção de conceitos pio­neiros na tafonomia, o estudo da origem das concentrações de fósseis.

Apoio externo Um dos aspectos mais importantes da

pesquisa foi a integração entre paleontólo­gos, biólogos e tafônomos, algo que, segun­do afirma, não é comum em trabalhos desse tipo no Brasil. Dentre os biólogos, o grupo teve o apoio do Departamento de Biologia do campus de Ribeirão Preto da USP, com a

coordenação do pesquisador Antônio Carlos Marques. No da tafonomia, do professor Michael Kowalewski, do Departamento de Geologia da Universidade Estadual e Poli­técnica da Virgínia, dos Estados Unidos.

Simões afirma que com apenas dois anos de estudos os resultados foram tão bons que trabalhos sobre o assunto já estão sendo apre­sentados em periódicos de circulação inter­nacional, como a revista alemã Facies e o Journal of Paleontology. Também foram apresentados em congressos como a reunião anual da Sociedade Americana de Geologia, realizada em outubro do ano passado em To­ronto, no Canadá.

No Brasil, já valeu pelo menos uma dis­tinção: o prêmio professor Josué Carvalho Mendes, outorgado pela Sociedade Brasilei­ra de Paleontologia para a melhor dissertação sobre paleontologia do ano, ganho em agos­to pelo trabalho de mestrado Análise cladís­tica dos bivalves do Grupo Passa Dois (Neo­permiano), Bacia do Paraná: implicações evolutivas e paleontológicas, de Luiz Henri­que Cruz de Mello, da USP e da Unesp. Ou­tras duas dissertações resultantes do projeto, as dos alunos Fernanda de Freitas Torello e Renato Pirani Ghilardi, estavam entre os ou­tros concorrentes ao prêmio.

Na beira da estrada Os pesquisadores passaram várias sema­

nas no campo, em 1996 e 1997, em busca de material. Isso levou à descoberta de fósseis em novos pontos, como Santa Rita do Passa Quatro, Leme e Tambaú. Uma ocorrência chegou a ser descoberta ao lado da rodovia Castello Branco, entre os quilômetros 160 e 165, no sentido Capital-Interior. Os registras anteriores indicavam a presença de fósseis do período estudado apenas em Piracicaba, Rio Claro e Angatuba.

"O projeto ampliou muito as áreas se distribuição dos organismos", afirma Simões. Os cientistas já tinham registrado a ocorrên­ciade rochas indicativas da presença dos ani­mais, mas não os fósseis em si. Outra novi-

dade é a descoberta de espécies de moluscos que nunca tinham sido descritas, como Tam­baquyra camargoi. "Isso mostra que a fauna era mais diversificada do que supúnhamos", acrescenta o professor.

Os resultados foram obtidos em condi­ções técnicas muitas vezes adversas, diz Si­mões. Além das dificuldades apresentadas, muitas vezes, pelos proprietários das áreas, os pesquisadores tiveram que enfrentar os problemas característicos das rochas nas quais os fósseis estão preservados, muito si­lificadas e extremamente duras. Os blocos, que podem pesar mais de 70 quilos, são leva­dos para os laboratórios, onde começa um paciente trabalho de preparação.

Em cada viagem, os pesquisadores reco­lhem entre 300 e 500 quilos de material. "Isso demanda longos períodos no campo, em con­dições nem sempre confortáveis", diz o pro­fessor. Mesmo assim, o grupo de Botucatu se prepara para um novo e ambicioso projeto. Quer estudar rochas do período Devoniano, encontradas em Goiás, Mato Grosso e nordes­te do Paraná. Elas são ainda mais antigas que as de São Paulo. Têm cerca de 320 milhões de anos, muito, muito mais antigas que as do período dos dinossauros.

Perfil: O paleontólogo Marcello Guimarães Simões, 35 anos, é graduado em geografia na USP, onde fez o doutorado no Instituto de Geociências. É professor de Geologia e Paleontologia do De­partamento de Zoologia do Instituto de Biociên­cias da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu desde 1990. Também é professor do Programa de Pós-Graduação em Geologia Sedimentar do Instituto de Geociências da Uni­versidade de São Paulo (USP) e professor visi ­tante do Departamento de Geociências da Uni­versidade do Arizona, nos Estados Unidos. Ob­teve a livre-docência pela Unesp em 1998. Projeto: Estudo Paleoecológico dos Pelecípodes do Grupo Passa Dois (Assembléias de Leinzia froesi, Pinzonella i/lusa e Pinzonella neotropica, Permiano Superior, no Estado de São Paulo}. Investimento: R$ 36,6 mil.

...

tumidum Cape, pequeno réptil que habitava o lago-mar da Bacia do Paraná, durante o Permiano

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Page 23: A arquitetura dos sem-teto

TECNOLOGIA

CONSTRUÇÃO CIVIL

Eliminando os vazamentos Engenheiros desenvolvem métodos que reduzem a zero a perda de água em edifícios

O Hospital das Clínicas, o maior centro público de atendimento à saúde em São Pau­lo, não perde mais água. Há um ano, passou por ali a equipe do professor Orestes Marra­ccini Gonçalves, do Departamento de Enge­nharia e Construção Civil da Escola Politéc­nica da Universidade de São Paulo (USP). Usando o geofone, um aparelho semelhante a um estetoscópio, com o qual os médicos acompanham os batimentos cardíacos, os pesquisadores examinaram os 8 mil pontos de saída de água do hospital e encontraram 1.600 com vazamento. Apenas uma cozinha perdia S.SOO litros de água por hora. Resolvidos os vazamentos, o hospital economizou IS% no consumo de água, o equivalente a R$ ISO mil reais por mês.

Orestes Gonçalves preparou-se antes de enfrentar esse desafio. No Laboratório de Sis­temas Prediais da Escola Politécnica, simu­lou situações de vazamentos invisíveis. Cons­truiu paredes com diferentes tipos de reves­timentos e provocou vazamentos de tubula­ções embutidas, para verificar a sensibilida­de e a precisão do geofone, concebido origi­nalmente para as redes públicas. O aparelho funcionou perfeitamente ao determinar o lo­cal do vazamento, quebrando a parede ape­nas naquele ponto.

Enfoque ambiental Em sua pesquisa, Metodologia para

Detecção e Correção de Perdas de Água por .~ Vázame$nt4o0em Slisf~emas !'rdediaisl, que contou ~w com R m1 manc1a os pe a FAPESP, ~

Gonçalves propõe e aplica técnicas para de- ~ tectar e corrigir vazamentos de água em sis­temas hidráulicos. Essa metodologia é bem desenvolvida nos sistemas públicos, mas ain­da incipiente nos sistemas hidráulicos dos edificios residenciais, comerciais, industriais e institucionais.

Como pode ser caro e demorado que­brar as paredes até encontrar a origem do vazamento, o projeto aprimora técnicas para descobrir e eliminar - em poucas ho­ras - os focos de perda de água, adaptan­do metodologias empregadas habitual­mente nas redes hidráulicas subterrâneas. Além do geofone, os pesquisadores utili­zam o correlacionador de ruídos, que pre­mi te descobrir o ponto de vazamento por ondas sonoras. Normalmente, conta Gon­çalves, o maior problema não é detectar e corrigir os vazamentos, mas encontrar as tubulações , que nem sempre se mantêm conforme o projeto à medida que se suce-

A busca por alternativas para corrigir os vazamentos invisíveis contitui a tese de dou­torado da professora Lúcia Helena de Oli­veira, que integra o grupo de pesquisa e de­senvolve um método mais abrangente de de­tecção desses problemas. Faz parte também do Programa de Uso Racional da Água (Pura), desenvolvido pela Escola Politécni­ca em parceria com a Companhia de Abas­tecimento e Saneamento do Estado de São Paulo (Sabesp).

O Pura sugere mecanismos que reduzam as perdas de água, provocadas por vazamen­tos visíveis ou invisíveis e por uso inadequa­do e desperdício. É dividido em duas verten­tes. Uma trata do desenvolvimento de equi­pamentos que permitam economizar água e a outra enfatiza a conscientização e educação dos consumidores. "A escassez de água é uma realidade", diz Orestes Gonçalves. Trata-se de um recurso que, lembra ele, não se renova com a mesma intensidade com que é consu­mido. "A preocupação com o ambiente é o objetivo maior desse trabalho."

O crescimento populacional afeta dire­tamente tanto o consumo quanto o custo da água potável, porque os mananciais encon­tram-se cada vez mais distantes dos centros consumidores. Segundo ele, a dessalinização da água dos oceanos poderia ser uma alterna­tiva, mas os custos a tua is inviabilizam seu uso

mais intensivo. Em alguns países, como Es­tados Unidos, México, Japão e Suécia, há políticas públicas que motivam pesquisado­res, técnicos e fabricantes de equipamentos a proporem alternativas que possam reduzir o consumo de água.

Controlando o consumo, toma-se pos­sível reduzir ou adiar investimentos na ex­pansão dos sistemas de abastecimento. Foi o que ocorreu na escola estadual de primei­ro e segundo graus F e mão Dias Paes, em Pi­nheiros, um bairro próximo à Universidade de São Paulo, com cerca de 2.500 alunos. Ali, a metodologia aprimorada ao longo de dois anos permitiu uma redução de aproximada­mente 90% do consumo médio anual de água, após estancar uma série de vazamen­tos enormes, ainda que imperceptíveis. Se­gundo o pesquisador, o retomo do investi­mento no conserto, o chamado pay-back, varia de seis meses a um ano.

Perfil: O engenheiro civil Orestes Marraccini Gonçal­ves, 47 anos, graduou-se na Escola Politéc­nica da Universidade de São Paulo (USP), onde fez o mestrado e o doutorado e da qual é professor desde 1975. Projeto: Metodologia para Detecção e Corre­ção de Perdas de Agua por Vazamento em Sistemas Prediais. Investimento: R$ 40 mil.

dem as reformas das construções. Maria Lúcia e Orestes Gonçalves: domínio das técnicas de detecção de vazamentos invisíveis em edifícios

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Page 24: A arquitetura dos sem-teto

TECNOLOGIA

LARANJA

Doce e amargo Pesquisa define características de dezenas de variedades de laranja e amplia leque de escolha dos citricultores

Stuchi, pesquisador da Estação de Bebedouro; Otávio Sempionato, da Coopercitrus, que presta servi­ços na Estação de Bebedouro; e Marcos Pozzan, técnico da Mon­tecitrus. As variedades testadas fo­ram escolhidas de acordo com sua disponibilidade no Centro de Ci­tricultura Sylvio Moreira e por in­formações já existentes sobre seu comportamento. A ausência deva­riedades conhecidas por sua dispo­nibilidade nas feiras e supermerca­dos para consumo in natura se ex­plica. As laranjas de umbigo, como a Baía e a Baianinha, não servem para a produção de suco, pois con­ferem um teor muito amargo ao produto; e a Seleta tinha sido tes­tada anteriormente, confirmando­se que também tem uso industrial potencial.

Imagine uma laranja. Viu a cor, sentiu o sabor? Faça a mesma sugestão a outra pessoa. Pode ser que ela imagine uma fruta comple­tamente diferente. Laranjas não são iguais. Existem mais de 1.000 va­riedades espalhadas pelo mundo. Quando se trata de uma poderosa atividade econômica, como a pro­dução de suco de laranja no Estado de São Paulo, isso é mais que uma simples curiosidade. Milhares de empregos, preciosos dólares obti­dos pela exportação dependem da quantidade e da qualidade das fru­tas que chegam às indústrias pro­cessadoras. E a variedade, com suas características, tem papel cru­cial nesse processo. Uma boa laran­ja para a produção de suco indus­trial precisa ter qualidades bem de­finidas, como cor, equilíbrio entre açúcares e ácidos, rentabilidade, produtividade. Os fabricantes fa­zem "blends", como se estivessem fabricando uísques, para tentar ob­ter o máximo de uniformidade no produto. Tudo, porém, depende da qualidade da fruta e das caracterís­ticas das variedades.

Donad1o: comparaçoes podem elevar a produtividade e reduzir o risco de interrupções da pr uçao

O trabalho comparou diversas variedades com as quatro mais plantadas atualmente. Diversos fa­tores fazem com que uma varieda­de se mostre adequada para a indús­tria. De acordo com o professor Do­nadio, estão entre os mais impor­tantes o rendimento de suco, ora­

A imensa maioria da produção de suco de laranja de São Paulo depende de apenas qua­tro variedades: a Hamlin, precoce; a Pêra, de meia-estação; e a Valência e a Natal, tardias. Para as condições do norte do Estado de São Paulo, para processamento precoces são as laranjas que produzem em julho e agosto, de meia-estação as que dão frutos de julho a ou­tubro e tardias as que podem ser colhidas de setembro a janeiro. Em 1998, os dados da pro­dução de São Paulo e de parte do Triângulo Mineiro indicavam que 38,02% do suco vinha de laranjas Pêra, 25,58% de Natal, 17,32%de Valência e 6,79% de Hamlin. Isso representa um risco. Uma doença típica de uma varieda­de pode arrasar os pomares e deixar a produ­ção a descoberto até que novas árvores che­guem à fase adulta. Além disso, na disputa acirrada pelo mercado mundial, é preciso ob­ter ganhos em produtividade e em resistência aos problemas que afetam a produção. Uma das maneiras mais eficientes de chegar a esses objetivos é por meio de novas variedades.

Um passo bem largo nesse sentido foi dado pela pesquisa, desenvolvida no âmbito do Programa de Inovação Tecnológica em Parce­ria,AvaliaçãoAgronômica e Industrial deva­riedades Cítricas, que acaba de ser completa-

da na Estação Experimental de Citricultura de Bebedouro. Dezenas de variedades foram ava­liadas, nas safras de 1996, 1997 e 1998,deacor­do com sua qualidade de processamento para a indústria. Ela chegou a resultados interessan­tes. "Entre as variedades precoces, algumas se mostraram melhores que a Hamlin com rela­ção à cor do suco, o principal defeito dessa variedade comercial", informa Luiz Carlos Donadio, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Pau­lista (UNESP) em Jaboticabal, coordenador do trabalho. "Entre as variedades de meia-esta­ção, algumas apresentaram a mesma qualida­de da Pêra, com a vantagem de produzirem numa só vez, enquanto essa variedade apresen­ta diversas floradas", prosseguiu. "Foram os casos da Berna, lndian River, Pineapple, Ta­rocco A e Valência 2."

Disponibilidade O projeto contou com recursos de R$

59.500, dos quais R$ 41.800 saíram da FA­PESP e o restante da empresa Montecitrus Trading, que contribuiu também com apoio técnico para as análises industriais. O pro­fessor Donadio teve como colaboradores os engenheiros-agrônomos Eduardo Sanches

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tio, o rendimento industrial ou índice tecno­lógico (IT), a cor, o sabor e a produção. Ora­tio é a relação entre os açúcares e os ácidos inorgânicos da fruta. Normalmente, os açú­cares, ou carboidratos, constituem mais de 70% dos sólidos solúveis da fruta; os ácidos orgânicos, especialmente o cítrico e o máli­co, menos de I 0%. Os produtores acompa­nham constantemente o índice de maturação do fruto, até que ele atinja o ralio desejado. O processamento pode começar com uma fai­xa de entre 12 e I 3. Mas a preferida pelas in­dústrias é a que fica entre 15 e I 8.

Este valor varia imensamente. Depende de fatores que incluem a idade da planta, o porta-enxerto (as laranjeiras usadas comer­cialmente são sempre enxertadas), as condi­ções do solo, o clima e até mesmo a posição do fruto na árvore, conforme ele recebe mais ou menos luz solare a irradiação do calor que sobe do solo. Como a indústria não pode le­varem conta variedades individuais, é neces­sário considerar os padrões para cada varie­dade. Para as condições do norte do Estado de São Paulo, por exemplo, o ratio da laranja Pêra, a mais plantada, varia de 12,94 a 20,75. Nas laranjas Valência e Natal, a variação é de 9,90 a 19,20. A Hamlin, a precoce mais usa-

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da, apresenta uma variação menor, de 14,22 a 16,22. Em compensação, mostra como pon­to fraco a cor do seu suco, que tem um score de entre 34,8 e 32,8, quando o desejável é de 36 a 40 (o score da Pêra é de 37,3 a 36,94).

Precoces Entre as laranjas precoces, o projeto es­

tudou nove variedades, sendo cinco mais pre­coces (Olivelands, Mayorca, João Nunes e Westin, mais a Hamlin, como padrão) e qua­tro de maturação posterior(Torre-grosso, Finike, Kawatta e Cadene­ra). De todas estas, só a João Nu­nes não foi considerada adequada para a industrialização, por ter um teor de acidez muito baixo. Ela é um tipo intermediário entre as la­ranjas comuns e as de baixa aci­dez, como a Lima. Todas as outras do grupo mais precoce mostra­ram-se adequadas para a produção de suco. "Em pomares comerciais, a Westin tem-se apresentado como boa opção", diz o relatório. Entre as variedades precoces de matura­ção mais tardia, Torregrosso, Fini­ke e Kawatta mostraram-se supe-

lhos de laranja Pêra, recolhidos em fazendas da região de Bebedouro, e enxertados sobre limoeiro Cravo. Eles foram avaliados apenas em 1997 e 1998 e mostraram características não muito diferentes da Pêra normal. Outra fase da pesquisa sobre laranjas de meia-es­tação incluiu dez variedades (Jaffa, Moro, Sangüínea, Biondo, Pineapple, Homosassa, Early Oblong, Tarocco A e Rubi) enxertadas em citrumelo Swingle. Elas foram compara­das apenas entre si, não com a Pêra. A Taroc-

bedouro, enxertados em Swingle. No geral, todas tiveram características satisfatórias para a industrialização, mas não a ponto de suplantar as dominantes. "Não houve van­tagem de outras variedades com relação à Valência e à Natal, as atuais variedades co­merciais", informa Donadio.

A pesquisa contribuiu decisivamente para o conhecimento do comportamento de diver­sas variedades de laranja no norte do Estado de São Paulo, a principal região produtora do

Brasil. Estabeleceu dados que ser­virão de base para futuros plantios e para a renovação de antigos poma­res. De qualquer maneira, de acor­do com Donadio, a Pêra, a Natal e a Valência continuarão a ser as va­riedades dominantes para proces­samento na citricultura brasileira no futuro próximo. Esperam-se, porém, substituições mais amplas com relação à Pêra, devido ao pro­blema das flora das múltiplas, e da Hamlin, por sua deficiência quan­to à cor do suco. Donadio já detec­tou aumentos nos plantios da Wes­tin, precoce; Rubi , de meia-esta­ção, mas cujo período de colheita pode concorrer com a Hamlin; e Folha Murcha, tardia.

A pesquisa, realizada com variedades precoces com a Oliverlands, ganha desdobramentos: 250 variedades e híbridos estão em testes no campo

De qualquer maneira, a ten­dênciaédequeaescolhaseamplie. Nada menos do que 150 novas va­riedades de laranja foram introdu­zidas na Estação Experimental de Bebedouro, apenas no período de 1997 I 1998. Pesquisadores da Esco­la Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) da USP, em Pi­racicaba, e da Universidade da Fló­rida, nos Estados Unidos, estão re­alizando trabalhos de melhoramen­to, usando a fusão de protoplastos. É possível que em novas variedades esteja a resposta a alguns dos pro-

blemas que afetam a citricultura. Na

ri ores à Cadenera. Mas, de maneira geral, to­das demonstraram características próximas ou superiores às da Hamlin, atualmente apre­coce mais plantada.

O estudo das laranjas de meia-estação envolveu um número maior de variedades. Foram estudadas doze variedades (Homosas­sa, Tobias, Jaffa, Cadenera, Tarocco A, Har­vard Blood, Pineapple, Stone, Berna, Havana, lndian Ri vere Strand) e oito clones de laranja Pêra (G.S. 2000, Ipiguá 2, Vimusa, Premuni­zada, Bianchi, EEL, Santa !rene e Olímpia) en­xertados sobre tangerineira Sunki. A conclu­são foi a de que quase todas têm uma ou outra vantagem com relação à Pêra, especialmente o fato de darem uma só fi orada, o que facilita a colheita, mas também desvantagens com re­lação à variedade mais plantada. "Nenhuma delas atende a todos os itens avaliados", afir­ma o relatório.

A pesquisa incluiu ainda dez clones ve-

coA mostrou características superiores às de­mais para a industrialização. A EarlyOblong, porém, se destacou por ter período de colheita posterior ao das outras, perdendo apenas com relação ao tamanho médio do fruto.

Três etapas O estudo sobre variedades tardias se

processou em três etapas. Na primeira, fo­ram comparados clones premunizados das variedades Valência e Natal , as mais usadas atualmente, enxertadas sobre tangerineira Cleópatra. Na segunda, houve uma compa­ração entre 14 variedades (São Miguel , Na­tal Murcha, Berry Valência, Valência Late, Vaccaro Blood, Folha Murcha, Valência I, L.G. Gong, Werly Valência, Te Ide, Bidwells Bar, Valência 2 e Natal PI) enxertadas so­bre citrumelo Swingle. E na terceira, foram estudados onze clones velhos de Natal e cin­co de Valência, recolhidos na região de Be-

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sua nova pesquisa, Donadio está tes­tando cerca de 250 variedades e híbridos com relação ao seu comportamento diante da Cio­rose Variegada dos Citros (CVC), uma das mais graves doenças dos laranjais paulistas. Os resultados, mais uma vez, podem levar a au­mentos de produtividade e a um risco menor de interrupções na produção.

Perfil: Luiz Carlos Donadio, 55 anos, graduou-se em Engenharia Agronômica na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, onde tam­bém fez o doutorado, na área de Fitotecnia, fez pós-doutorado em Portugal. É professor da Fa­culdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp de Jaboticabal desde 1973. É presiden­te da Sociedade Brasileira de Fruticultura. Projeto: Avaliação Agronômica e Industrial de Variedades Cítricas - Programa de Ino­vação Tecnológica em Parceria. Investimentos: R$ 41 .800 da FAPESP e R$ 17.700 da Montecitrus Trading.

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O diálogo entre a l Rpr; eria entre empresa e universidade formata negócios de milhões de dólares

Para quem trabalha em computador, é um drama quando um arquivo dos computa­dores mais comuns, os PCs, não abre nos equi­pamentos de outros tipos, como os Macintosh ou Unix- pode ocorrer também de aparece­rem quadrados e símbolos ilegíveis no lugar do texto antes ocupado pelas letras. Mas o que é um problema para os usuários é uma opor­tunidade de negócios para as empresas. A par dessa situação, a empresa paulistana Perrotti Informática tratou de agir e, vendo-se inca­paz de chegar sozinha onde pretendia, buscou amparo técnico na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Do con­tato nasceu uma pesquisa conjunta, realiza­da no âmbito do Programa Inovação Tecno­lógica em Parceria (PITE) da FAPESP, que resultou no desenvolvimento do EBS- En­terprise Backup System, um software de se­gurança dedicado a redes de computadores de grandes empresas corporativas que permite a troca de informações entre computadores de qualquer tipo.

Houve outros ganhos, além do próprio produto. Ganharam um ritmo mais intenso as atividades da empresa e a produtividade de seus profissionais, que atuam em um se to r ca­racterizado pela alta especialização e pela gran­de concorrência internacional. Os beneficias podem ser avaliados também economicamen­te. Estima-se que, este ano, os negócios gera­dos a partir do desenvolvimento do EBS de­vem movimentar cerca de US$ 4 milhões, o equivalente a cerca de 30% do faturamento projetado pela Perrotti. No mercado externo, o produto movimentou US$ 300 mil no Mer­cosul e US$ 350 mil nos Estados Unidos.

A pesquisa mudou o perfil da própria empresa: à medida que avançava o trabalho em parceria com a USP, a Perrotti, cuja prin­cipal atividade até então era a representação no Brasil de programas estrangeiros de com­putador, criou e consolidou um departamen­to de desenvolvimento de novos produtos, que cresceu rapidamente. Tornou-se uma nova divisão, a Perconsult, que presta servi­ços de consultaria no mesmo estilo de traba­lho que a originou, desenvolvendo soluções por meio de parcerias com a universidade.

O começo da pesquisa O projeto que levou a esses resultados,

intitulado Sistema Automatizado de Cópias de Segurança e Recuperação de Arquivos Backup/Restare em Plataformas Heterogé­neas, propõe o desenvolvimento de um pro­grama de computador capaz de fazer cópias de arquivos em diferentes tipos de compu­tador. O desenvolvimento dessa proposta inicial coube aos pesquisadores do Depar­tamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da USP, acompanhados por programadores da Perrotti. Juntos, formaram uma equipe de 30 pessoas, incluindo parceiros internacionais da Perrotti no País, também interessados nos resultados do trabalho.

"Desenvolvemos um núcleo para siste­ma de controle de informação tendo por base um sistema canadense já disponível", expli­ca o professor Antonio Marcos de Aguirra Massola, coordenador da pesquisa e diretor da Escola Politécnica. O software EBS foi desenvolvido para atuar sobre a plataforma

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TCS (Tempus ConectivitySolution), fer-ra­menta da empresa canadense Microtem-pus, representada no Brasil há dez anos pela Perrotti. A Microtempus desenvolve produ­tos de conectividade micro-mainframe, que promovem a comunicação de dados entre PCs e os grandes computadores do tipo IBM, os mainframes, necessários para o proces­samento de volumes elevados de informa­ções. Seu principal produto é essa platafor­ma TCS, capaz de atuar sobre diferentes sis­temas operacionais.

Para entender melhor essa capacidade de comunicação entre máquinas diferentes, vale uma explicação: é como se o TCS con­seguisse reunir uma área em comum para congregar os diversos tipos de computado­res que podem coexistir numa grande em­presa. Esse era o desafio: criar um software que, a partir desse modelo, estabelecesse uma comunicação tranqüila com qualquer máquina, do simples e comum computador PC da secretária ao enorme mainframe IBM do departamento financeiro, passando pelos ágeis Unix dos proj etistas e os Macintosh da equipe de marketing.

Em geral, as máquinas diferentes entre si apresentam uma pequena compatibilida­de de dados, quando muito permitindo uma simples troca de mensagem do correio eletrô­nico, de forma que o trabalho feito no Win­dows do PC não pode ser visto ou organiza­do pelo mainframe. OTCS permitiu aos pes­quisadores do projeto abrir uma trilha nessa troca de dados ou intercambialidade, forne­cendo o que se costuma chamar de uma fer­ramenta de desenvolvimento, composta por

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um conjunto de funções que estabelecem conexões entre programas e regulam tanto o envio quanto o recebimento de dados e o aces­so remoto a arquivos.

Sem risco de perdas Com esse enfoque, foi desenvolvido o

EBS, que é, em síntese, um sistema de backup de arquivos para ambientes corporativos. Tem a função de gerar cópias e recuperar ar­quivos operando com fluidez dentro das in­tranets, as redes internas de computadores das empresas de porte.

Como o TCS é um produto com distri­buição mundial, o EBS tem conseguido su­prir o mercado nacional e também o interna­cional. No Brasil e Mercosul, é distribuído pela Perrotti, enquanto nos Estados Unidos o EBS é agora representado pela própria Mi­crotempus, que cuida desse fi lho te brasileiro do TCS nesse país.

Desde o planejamento, o projeto levou cerca de um ano e meio. Nos oito últimos meses é que a equipe se dedicou propriamente às etapas de programação, testes e formata­ção do produto, realizadas ini­cialmente em microcomputa­dores do tipo PC. Compradas ou alugadas com o financia­mento de R$ 55 mil concedido pela FAPESP, as máquinas fo­ram cedidas em regime de do­ação para a Poli técnica, depois de encerrado o trabalho, como previsto nos projetas de parce­rias desse tipo. Houve também locação de uso dos equipamen­tos maiores, os mainframes, nos quais em seguida o progra­ma foi testado para simular as condições reais de uso. Os cus­tos com pessoal ficaram a car­go da Perrotti, a quem coube in­vestimentos da ordem de R$ 275 mil durante o período de desenvolvimento.

Na Escola Politécnica, o retorno pode ser mensurado, segundo Massola, pelo fato de a instituição ter trabalhado com a cooperação de empresas com ampla atuação internacional no setor de informática. "Co­nhecemos diversos mecanis­mos para desenvolver um pro­jeto dessa natureza, oferecen­do um suporte acadêmico para esse tipo de trabalho", diz ele.

"A importância desse trabalho não se resume ao produto em si", diz a engenheira Suely Novato, designada pela Perrotti para participar desse projeto. Com base no traba­lho realizado com a USP, ela desenvolveu sua tese de doutorado, Uma Proposta de Método para o Desenvolvimento de Projetas em Par­ceria de Sistemas de Informação. Não parou após terminar sua própria pesquisa, em se­tembro. No dia-a-dia, como diretora de de­senvolvimento daPerrotti, utiliza a experiên­cia adquirida para gerar novos negócios para a empresa.

Novas atividades Graduada em Física, mestra em siste­

mas de rede e agora doutoranda, Suely conta que parte da equipe de trabalho que gerou o EBS foi convidada pela Perrotti Informática para a condução de novas atividades na em­presa. Aproveitando a formação desses pro­fissionais e a metodologia implantada, a em­presa iniciou uma série de atividades, di reta­mente relacionadas ao chamado bug do mi­lênio, um problema de software que pode

Com empresas, porém, não foi a primeira experiência. Com mais intensidade a partir

Massola: agora, a possibilidade de recuperar arquivos e criar cópias de segurança

do início dos anos 70, a Escola Politécnica mantém uma série de parcerias de desenvol­vimento no setorde informática e tecnologia, exemplificadas por trabalhos em conjunto com a Scopus, a NEC e a Siemens. Uma his­tória respeitável. Segundo Massola, a Politéc­nica realizou mais de 450 convênios.

ocorrer em alguns computadores na virada deste final do ano. "A Perrotti acredita numa prestação de serviços com diferencial acadê­mico", comenta. A empresa tanto acreditou na nova equipe que, na mais recente Comdex, uma feira de informática dedicada a redes de computadores realizada em agosto em São

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Paulo, anunciou a criação da Perconsult, uma divisão de serviços e soluções que rapidamen­te pôs na lista de clientes nomes como a Pe­trobras, Siemens, Coca-Cola e Vasp.

O plano da Perconsult é atuar no desen­volvimento de soluções e de produtos na área de informática, uma atividade com bastante espaço no Brasil. Ainda é comum as empre­sas trazerem programas de outros países. Acontece que, conta Suely, cada vez mais es­ses produtos precisam ser customizados ou redimensionados para atender às necessida­des específicas do usuário. Desse modo, aca­bam passando por um desenvolvimento adi­cional, que muitas vezes origina produtos novos, como aconteceu com o projeto com a Escola Politécnica.

A Perconsult, mesmo tendo a consulto­ria como atividade principal, deve gerar sof­twares como o EBS. "Pretendemos investir no desenvolvimento de novos produtos, prin­cipalmente para o Mercosul", afirma Suely.

Atualmente, os trabalhos se concentram no corpo de especialistas da USP, mas, segun­do Suely, a Perrotti deverá concluir ainda

este ano mais dois convênios, com outras universidades, desta vez incluindo as particulares. O que se busca é a autonomia relativa, dese­jada, de resto, por todas as partes desses acordos. Não parece que será difícil chegar a essa meta. Os profissionais que atuam na Percon­sult mantêm atividades também na área acadêmica, caso típico de Suely, que aproveitou a oportuni­dade para fazer o doutorado.

Não é a única. Estão surgindo outros trabalhos acadêmicos ali­mentados pelos trabalhos conjun­tos entre a empresa e a universida­de. "Ainda há controvérsias sobre essa mistura, mas eu tenho conse­guido bons resultados", conta a recém-doutora. Terminada a tese, volta a dedicar-se intensamente à vida na empresa, mas não perde o reconhe-cimento pelos professo­res da Es-cola Politécnica. "É dí­ficil encontrar no mercado pesso­as com alta capacidade de desen­volvimento", diz ela. "Esses pro­fissionais po-dem ser encontrados nas universidades."

Pe rf i l : Antonio Marcos de Aguirra Mas­sola, 55 anos , graduou-se em En­genharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), onde fez o doutorado e da qual atualmente é diretor.

Projeto: Sistema Automatizado de Cópias de Segurança e Recuperação de Arquivos Ba­ckup/Restare em Plataformas Heterogêneas - Programa de Inovação Tecnológica em Parceria. Investimentos: R$ 55 mil da FAPESP e R$ 275 mil da Perrotti Informática.

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MORADORES DE RUA

Vidas embrulhadas Sem-teta de Los Angeles, São Paulo e Tóquio dão novas funções

aos materiais descartados pela sociedade de consumo

zs 'SP

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I Pesquisadores costumam ser encontrados em laboratórios, biblio­·~ tecas ou salas de aula. Em trabalho de campo, vão a matas, cavernas ~ ou aldeias ind ígenas. Raramente se aproximam de moradores de ª rua. Mas foi exatamente isso que fez a filósofa paulistana Maria C e­i cília Loschiavo dos Santos, que passou boa parte de seu pós-dou-

toramento em estética e planejamento urbano percorrendo o cen­tro de Los Angeles, nos Estados Unidos, ao lado dos sem-teta.

Sob o sol intenso do verão de 1995, Ce­cília os acompanhava das nove da manhã até o final da tarde, para entender as estratégias de construção de suas casas, barracas ou ten­das, com materiais descartados, sobretudo o papelão das embalagens. Conciliava as cami­nhadas com os cursos na Universidade da Ca­lifórnia (Ucla), para onde tinha ido com a in­tenção de realizar apenas levantamentos bi­bliográficos. Mas, convidada por instituições assistenciais, não deixou escapar a oportuni­dade de trabalhare aprender com os habitan­tes das grandes cidades que até então lhe eram absolutamente desconhecidos.

As descobertas e as emoções que resul­taram dessas investigações estão sintetizadas em 32 fotografias que a pesquisadora produ­ziu e agora vai expor no Museu de História Cultural da própria Universidade da Califór­nia, entre os dias 4 de setembro e 2 de janeiro do ano 2.000. A exposição Castoff!Outcast­Living on the Street (Restos e Marginais -Vivendo na Rua) retrata as formas de cons­trução e de sobrevivência não apenas dos moradores de rua de Los Angeles, os home-

less, mas também de São Paulo, onde ela pes­quisou em seguida, e de Tóquio, cujo inver­no conheceu de forma inusitada, no início deste ano, entrevistando os homeressu, como são conhecidos por lá.

Maria Cecília faz questão de frisar: não está interessada no voyerismo ou na estética da miséria, mesmo que tenha formado um acervo com cerca de 5.000 fotos ao longo des­ses anos de trabalho, com a finalidade de do­cumentar construções extremamente efême­ras. Tampouco lhe atrai o estudo dos perfis psicológicos ou sociológicos dos moradores de rua, embora tenha ouvido numerosas his­tórias pessoais. Quer, sim, mostrar uma cul­tura material já integrada à arquitetura urba­na e repensar o uso do espaço público, o sig­nificado dos materiais, a obsolescência dos produtos e o design.

Com sua pesquisa, intitulada Vidas Em­brulhadas ou Aspectos do Design no Hábi­tat Informal das Grandes Cidades - São Paulo, Los Angeles e Tóquio , imagina que po­derá atrair especialistas de outras áreas e des­pertar consciências que levem ao reconheci-

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mento e à reintegração dos moradores de rua, negligenciados a ponto de não constarem se­quer das estatísticas oficiais. Em Los Ange­les, formam um grupo estimado em cerca de 30.000 indivíduos, em São Paulo, talvez che­guem a 6.000 e, em Tóquio, aproximam-se dos 8.000. Constituem, porém, grupos com hábitos e interesses próprios, além de uma en­genhos idade ilimitada, como atestou este tra­balho.

Criatividade Nas três cidades que estudou, com finan­

ciamento da FAPESP, da Nihon University, da Japan Foundation e do Swedish Institute, Maria Cecília testemunhou "a transformação do nada na eterna sobrevivência". Os mora­dores de rua não apenas reciclam ou reutili­zam os materiais descartados pelos cidadãos comuns, mas dão a eles, principalmente às embalagens, novas funções. Placas de pape­lão tomam-se paredes, camas, mesas, salas de estar ou cobertores. Garrafas de refrigerante são transformadas em vasilhames de água ou utensílios de cozinha. Latas viram panelas, pratos ou funis . Móveis e os restos dos pro­dutos industriais também ganham novas fun­ções, e os gabinetes de geladeiras podem, por exemplo, transformar-se em carroças.

"O objeto que morreu para a sociedade de consumo é exumado, por uma necessidade de sobrevivência, e transfom1ado em matéria-pri­ma, com finalidades diferentes das originais", diz a pesquisadora. "Não se trata mais de um design para proteger produtos, mas de uma es-

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pécie de antidesign, cuja principal função é servir de abrigo para frágeis vidas humanas." Em Los Angeles, São Paulo e Tóquio, os com­ponentes estruturais das casas que às vezes duram apenas um dia são os mesmos: papelão, plástico e latas de alumínio. São as composi­ções que variam bastante, de acordo com as matérias-primas encontradas e a necessidade de conforto térmico e de proteção contra o ven­to, a chuva ou a neve. Pode ocorrer, como num acampamento no centro de Tóquio, que os sem-teto ergam suas tendas com galhos de ár­vore e pedaços de plástico azul, um ma­terial bastante valorizado na arquitetu­ra das ruas por ser flexível , resistente e isolante térmico.

"Os detalhes da construção e as junções de materiais revelam técnicas de projeto e de construção absoluta­mente únicas", diz ela. Há casas móveis e outras construídas dentro de carros ve­lhos ou até de trailers. Além de consti­tuir a estrutura das habitações, os ma­teriais cumprem também uma função artística, como ela verificou no Japão, onde os homeressu desenham ou pin­tam no papelão que reveste suas mora­dias, erguidas num canto da estação do metrô no centro de Tóquio, de onde foram defmitivamente expulsos em fe­vereiro do ano passado, após um con­flito que ocasionou três mortes.

Orgulho e espanto MaisdeumavezMariaCecíliave­

rificou que, para o morador de rua, a casa é um espaço sagrado, do qual nor­malmente se orgulham. "Com papelão, plásticos, panos e cobertores velhos e tudo o que encontramos no lixo, cria­mos um espaço aconchegante", contou certa vez à pesquisadora uma morado­

nômicas deste final de século. Em Tóquio, a seu ver, associa-se com clareza à crise eco­nômica desta década, porque era raro encon­trar homeressu antes de 1994, quando a situ­ação do país complicou. "Os moradores de rua representam as contradições e os confli­tos da nossa sociedade", diz. Eles transfor­mam o espaço urbano: os catadores de pape­lão não passam mais despercebidos na paisa­gem urbana, empurrando carroças em São Paulo ou carrinhos de supermercado em Los Angeles ou Tóquio. Para a pesquisadora, a

ra de rua em São Paulo, enquanto a con­vidava para conhecer a pequena cozi­ Maria Cecília: descobrindo a cidade feita de embalagens de papelão

nha montada embaixo de um viaduto. "Minha casa é meu castelo", confessou-lhe um sem-teto no Japão. "Tenho gerador de eletri­cidade e televisão, e minha casa é muito bem organizada", acrescentou. Na mesma comuni­dade, outro homeressu lhe dizia que preferia os plásticos brancos aos azuis, porque gosta­vadedeixarsuacasamaisiluminada-eacon­siderava mais confortável do que os hotéis baratos da cidade.

Maria Cecília espantou-se também com o ritmo intenso de trabalho dos sem-teto para conseguir água, alimento ou combustível, nos países de inverno rigoroso. Foi no Japão que ouviu este comentário: "Não pensem que somos preguiçosos e vivemos sempre dor­mindo. Se fosse assim, não nos manteríamos vivos. Sempre andamos para procurar coisas úteis. Quando não pudermos mais caminhar, morreremos."

Em cada país, ela acredita, o crescimen­to da população que vive nas ruas pode ter origens específicas diferentes, mas invaria­velmente se deve às mudanças políticas e eco-

cultura que criaram não pode mais ser nega­da. "A miséria hoje está publicamente expos­ta nas principais cidades do mundo."

Dúvidas e surpresas Ir às ruas, com a roupa mais simples pos­

sível e a disposição de passar horas ouvindo os habitantes a quem normalmente se dá pouca atenção, é uma decorrência dos trabalhos an­teriores de Maria Cecília, que acompanhou de perto a história da tecnologia e da habitação do Brasil neste século. Ela escreveu um livro so­bre os 90 anos da Escola Politécnica da Uni­versidade de São Paulo (USP) e em seguida o Móvel Moderno no Brasil, a partir de sua pes­quisa de mestrado. No doutorado, analisou a obra de designers de móveis pioneiros no Bra­sil, entre eles Joaquim Albuquerque Tenreiro (1906-1922), português radicado no Rio de Janeiro. Desde que entrou nessa área, há 21 anos, porém, ela sabia: estava estudando o mo­biliário da casa de classe média.

Após terminara tese de doutoramento, em

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1993, ocorreram-lhe dúvidas e descobertas inesquecíveis. Em meio aos afazeres familia­res, passava de carro pelos bairros da zona Oeste de São Paulo, quando notou,jogadas pe­las ruas, as peças clássicas do design brasileiro, cuja história conhecia tão bem.A princípio, não entendeu por que era descartada a tecnologia que havia custado tanto ao país. Com o tempo, a pesquisadora verificou o que acontecia: uma vez descartados, cadeiras, poltronas e bancos de designers famosos são dessacralizados, perdem o channe e o misticismo de objetos caracterís­

ticos de uma classe social. Vieram mais surpresas. "Além do

mobi 1 iário, encontrei lares e seres hu­manos", conta Maria Cecília. "Desco­bri uma outra cidade, feita de restos da sociedade de consumo." Ela conta que visitou de 40 a 50 comunidades de rua em cada uma das três cidades, em áre­as evitadas pela maioria da população. Em São Paulo, conheceu as habitações ou mocós, por exemplo, das áreas pró­ximas ao Elevado Costa e Silva, na Praça da Sé, na região da antiga Rodo­viária, e na baixada do Glicério. An­tes, buscava o apoio de instituições li­gadas diretamente aos moradores de rua, que lhe indicavam os elementos­chave das comunidades. "Sempre fui recebida com uma hospitalidade ina­creditável", diz. Tomava também certa precaução. Em Los Angeles, por exemplo, como o uso de drogas à noi­te é mais intenso, acompanhava os ho­meless somente durante o dia, com uma colega holandesa e duas norte­americanas.

Professora da USP desde 1998, Maria Cecília iniciou este ano uma co­laboração mais intensa com pesquisa­dores franceses . E já faz tempo que par­ticipa de uma rede internacional de es­pecialistas de diversas áreas que, a seu ver, consolidam uma nova área de pes­

quisa, que trata do morador de rua das grandes cidades. Para ela, o século XX não pode entrar na história apenas como a civilização do con­creto e do vidro, mas também a do plástico e do papelão que ganham vida nova nas ruas.

Perfi I: Maria Cecília Loschiavo dos Santos, 45 anos, graduou-se em 1975 em Filosofia na Univer­sidade de São Paulo (USP), onde fez o mes­trado e o doutorado na área de estética. Pes­quisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp) entre 1 996 e 1 997, realizou o pós­doutoramento em estética e planejamento urbano na Universidade de Califórnia (Ucla), em Los Angeles , e em estética e design na Nihon University, em Tóquio, e é autora de di­versos livros. É professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Projeto: Aspectos do Design no Hábitat ln ­formal das Grandes Cidades - São Paulo, Los Angeles e Tóquio. Investimento: R$ 13.91 O.

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CINEMA

A história em detalhes Historiador faz o Dicionário Enciclopédico do Cinema Brasileiro

O cinema, como outras novidades im­portadas, chegou cedo ao Brasil. Sete me­ses depois da demonstração pública do in­vento dos franceses Auguste e L ou is Lumie­re, em dezembro de 1895, os moradores do Rio de Janeiro assistiam à primeira exibição do cinema. A produção e a divulgação de pesquisas nesta área é que não tem sido tão veloz. Mais de cem anos depois, as informa­ções sobre a história do cinema brasileiro ainda se diluem na Internet em meio a um mundo de atualidades. Há poucos dicioná­rios específicos e nas enciclopédias os ci­neastas e filmes brasileiros também apare­cem com discrição. O historiador José Iná­cio de Melo Souza resolveu pôr fim a essa escassez e trabalhou durante dois anos no Dicionário Enciclopédico do Cinema Bra­sileiro , reunindo infomações de cerca de I 00 títulos e SOO números de revistas e jornais em arquivos públicos de São Paulo e do Rio de Janeiro.

A versão preliminar de sua pesquisa tem agora a forma de um CD-Rom com 6.500 registras com informações sobre sa­las de cinema, di retores, exibidores, distri­buidores, a tores, a trizes, festivais e filmes de longa-metragem, que marca o encerra­mento desta etapa da pesquisa, financiada pela FAPESP com R$ 5 mil. Souza não se contenta com a descrição das 3 mil salas de cinema que constam de seu trabalho ou com os cerca de 50 longas-metragens brasileiros produzidos nos primeiros 40 anos do cine­ma brasileiro, antes dos filmes falados. Con­tinua pesquisando e pretende colocara base de dados à disposição na Internet o mais breve possível.

Pesquisador da Cinemateca Brasileira, Souza colocou no CD o acervo da própria Cinemateca, uma das maiores instituições do gênero no País, com cerca de 30 mil títu­los de longa e curta-metragens brasileiros e I O mil fotografias de cenas de filmes , di re­tores e atares nacionais e estrangeiros e 4.500 cartazes de filmes. Como desde o iní­cio pensava em se valer das vantagens da Internet, que permite atualizações constan­tes, sem limitação de espaço ou de assunto, como ocorre nas publicações em papel ou mesmo dos CD-Roms, logo buscou refor­ço em outras instituições.

O crime da mala Sousa vasculhou também os arquivos

do Museu LasarSegall, Museu Paulista, Bi­blioteca Municipal, Instituto Histórico e Geográfico e Arquivo do Estado, em São Paulo, e Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Não se limitou

às coleções de revistas e jornais, como as do Diário Oficial e do Estado de São Paulo, que folheou desde 1907, quando começa a fun­cionar a primeira sala fixa de cinema em São Paulo. Atento a outras fontes de informa­ções, localizou na coleção de cartões-postais do Museu Paulista uma fotografia de uma sala de cinema em Tatuí, no in­terior paul is ta , que funcionou até os anos 50. Nas publica­ções do Institu­to Brasileiro de Geografia e Es­tatístia (IBGE) encontrou fotos de salas do Acre e de Roraima.

As desco­bertas que re­sultaram dessa peregrinação po­dem surpreen­der até mesmo os cinéfilos. Souza descobriu, por exemplo, o atar principal de um dos primeiros filmes censura­dos do Brasil , O Crime da Mala, produzido em 1908 por Francisco Serrador: foi Alber­to Jorge, ato r de teatro normalmente esqué­cido nas filmografias, embora atuasse no filme como o assassino Michel Traad. Além dos esclarecimentos pontuais, o historiador sente-se agora à vontade para argumentar que não foi o italiano Afonso Segreto ( 1875-1920) que fez o primeiro filme brasileiro, em 1898, mas o carioca José Roberto da Cunha Sales ( 1840-1903), um ano antes. Médico e advogado que se envolvia com o jogo do bicho e com a exibição de cinema, Sales filmou a Baía da Guanabara em no­vembro de 1897. O resultado, de apenas um segundo, Cenas de um Embarcadouro, en­contra-se guardado no Arquivo Nacional do Rio, ao passo que não há qualquer registro da trabalho do cineasta italiano, segundo o pesquisador. Outra prova do pioneirismo brasileiro, diz ele, é que Sales patenteou sua obra e solicitou os direitos de exclusivida­de para filmar no Brasil.

No CD-Rom, editado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)e pela Cinemateca Brasileira, com apoio da FAPESP, Souza dedica uma aten­ção especial a esse primeiro momento do

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cinema brasileiro, o chamado período mudo, quando as sessões exibiam em média 12 fil­mes de no máximo um minuto e meio de duração. Depois de anos de exibições am­bulantes, surgiriam as salas fixas, em 1907 no Rio e 1908 em São Paulo, com orques­tras ou pianistas que acompanhavam os fil­mes. "Já era dificil concorrer com a produ­ção francesa e italiana, que predominava nessa época", conta o pesquisador. Até os anos 60, lembra ele, os homens iam ao cine­ma somente de terno e as mulheres, deves­tidos. "Era um ritual", diz. Até o final de sua pesquisa, ele espera ter contado a história de cerca de 6 mil salas de exibição, incluindo as recentes multiplex dosshoppingcenters, e de 2 mil longas-metragens produzidos até agora no Brasil.

Perfil: José Inácio de Melo Souza, 50 anos, forma­do em História, com mestrado e doutorado em cinema na Universidade de São Paulo (USP), é pesquisador da Cinemateca Brasi leira des­de 1987. Projeto: Dicionário Enciclopédico do Cine­ma Brasileiro. Investimento: R$ 5 mil.

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LIVRO

A política romana vista por César Certos personagens históricos, pelo trá­

gico, sublime ou, simplesmente, patético de suas vidas, tomam-se símbolos que ultrapas­sam seu próprio significado enquanto indiví­duos, povoando o imaginário coletivo de sucessivas gerações. Júlio Cé-sar é, sem dúvida, um dos que dispensam apresentações. Quem, com efeito, nunca ouviu falar do brilhante político e general romano, invencí­vel no campo de batalha, que sepultou a República, pagando com a vida o preço de sua ambição; de seus amo­res por Cleópatra, de suas fra-ses de efeito, que se incorpora­ram ao nosso linguajar, como a famosa a sorte está lançada ou o soberbo vim, vi, venci?

César foi, igualmente, um ora­dor de grandes recursos e um escri-tor talentoso e refinado, coisa mais comum entre os políticos de sua época do que da nos­sa. De seus dois livros que sobreviveram, um narra suas vitoriosas campanhas na Gália; o outro, a Guerra Civil, é um relato de sua luta pelo poder em Roma, no qual descreve os motivos que o levaram a invadir a Itália, em 49 a.C. e a seqüência de batalhas magistrais, pelas quais derrotou Pompeu e assumiu o con­trole de Roma e de seu Império. Bellum Civi­le- a Guerra Civil acaba de ser publicado pela Estação Liberdade/FAPESP, em texto bilíngüe e com tradução de Antonio da Silveira Men­donça, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas daFFLCH da USP Há vários mé­ritos na publicação, a começar pelo texto bi­língüe, que vem se instituindo como prática sa­lutar, embora tardia, em nosso país. Ressalte­se a excelência da tradução do professor Men­donça e da introdução e notas elucidativas, permitindo ao leitor compreender o contexto de uma obra escrita há mais de dois mil anos.

A Guerra Civil possui um valor histórico apreciável: narra, em primeira mão, e através da observação de um participante privilegia­do, as ações e os eventos que conduziram ao fim da República romana, que não caiu ape­nas pela contradição entre o tamanho do im­pério e o acanhamento das estruturas políticas da cidade-estado, mas sobretudo pelas cesu­ras internas que as riquezas desse império pro­vocaram no tecido social romano, cujos con­flitos entre ricos e pobres tomaram-se, ao lon­go do primeiro século antes de nossa era, cada vez mais agudos e irreconciliáveis. Mas o in­teresse do texto não se resume às informações históricas que fornece sobre os acontecimen­tos desse período crucial. Propicia uma verda­deira imersão num universo cultural, radical­mente diferente do nosso, com o qual temos

relações curiosas. Um mundo que nos antece­de e que é nosso pressuposto enquanto cultu­ra escrita e erudita. Um mundo distinto, cujas

regras, motivações e sentimentos compreendemos mal, mas com o qual ainda podemos dialogar com proveito. Quais são, no entanto, as condições desse diálogo?

Quem procurarna Guerra Civil uma História, no sentido moderno do termo, não a en­contrará. Trata -se de um tex­to político, embora escrito na forma de uma narrativa factual, aparentemente impessoal e precisa. Como peça propagan­dística, é uma obra ma­gistral, que esconde seu objetivo através de recursos estilísti­

cos habilmente manipulados. Os eventos parecem narrados com distan­

ciamento quase absoluto. César fala de si na terceira pessoa, como se falasse de outrem, disfarçando seus juízos de valor em afirma­ções rápidas e casuais, mas que caracterizam com grande força os personagens do drama que narra: Pompeu é um covarde e pusilâni­me general; seus seguidores, um bando de corruptos, inconseqüentes, traiçoeiros. César, por outro lado, aparece como gênio militar imbatível, capaz dos mais ardilosos estratage­mas militares, todos detalhadamente descri­tos. Um político clemente, respeitoso das leis, propugnador da concórdia entre as facções que se di gladiavam no interior da República. São mensagens fortes, politicamente orientadas e que, no entanto, aparecem sublimadas. Um curioso exemplo de utilização da forma da narrativa histórica, com sua pretensa obje­tividade, para fins claramente pessoais e subjetivos.

O texto de César coloca-nos interessan­tes questões sobre sua relação com a verdade. Trata-se, sabemos, de uma narrativa interes­sada, partidária. Em que medida podemos considerá-la uma narrativa verdadeira? Há diferentes respostas possíveis. Os historiado­res contemporâneos identificaram duas ou três imprecisões factuais no relato, através da com­paração com outras fontes, mas os eventos

SECRETARIA DA CIÊNCIA TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

narrados parecem substancialmente exatos e verdadeiros. O parti pris de César manifesta­se porsutis apreciações sobre os a tores do dra­ma, não sobre os acontecimentos que o ani­mam. Podemos afirmar, no entanto, que Cé­sar mente em seu julgamento de personagens como Pompeu e Catão ou ainda sobre si mes­mo? Sua clemência seria mera estratégia de propaganda, ou traço real de sua personalida­de? Cícero, ao menos, que foi seu adversário, via em César uma natureza clemente e gentil. E não haveria, efetivamente, pusilanimidade entre os pompeianos? Nenhum historiador contemporâneo afirmaria o contrário. As reais intenções de César animaram um intenso de­bate que me parece, na essência, inútil. É evi­dente que o texto da Guerra Civil nos mostra a imagem de si e de seus oponentes que César queria transmitir à opinião pública de Roma, mas não temos, hoje, instrumentos para de­monstrar que fosse , necessariamente, falsa. Mais interessante é observarmos não a própria maneira como encara seu mundo, mas as con­dições de verdade de sua visão. E aí, quantas surpresas!

A historiografia contemporânea tende a rejeitar o papel dos chamados grandes homens e a vê-los como produto e parte de circunstân­cias que são mais gerais e que escapam a seu controle. César foi parte de um movimento his­tórico mais amplo, que não podia compreen­der plenamente ou de cuja compreensão não nos deixou testemunho escrito.

Permanece o fato de que César foi uma personalidade poderosa, cuja ação foi eficaz nesse mundo que não criou, mas no qual se colocou numa posição privilegiada para sin­tetizar os conflitos que o agitavam. Personali­dade não apenas trágica, mas dotada de uma fina inteligência, que transparece a cada pági­na do texto. A Guerra Civil é capaz de nos fa­zerpenetrarnummundodistintodonosso,mas com o qual ainda podemos dialogar, que ain­da é capaz de comunicar. Não é um mero obje­to de estudo, passível de dissecação, mas algo vivo, atualizável, nem que seja como um diá­logo entre duas inteligências, a do autor e a de seu leitor, a despeito dos dois milênios trans­corridos.

Norberto Luiz Guarinello Professor do departamento de História da

FFLCHdaUSP

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO