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IX Seminário Nacional do Centro de Memória- Unicamp- 2019 A análise de Inventários post mortem como recurso metodológico para a reconstituição do espaço da cidade de Campinas no século XIX. “[..] não o obscurecimento do documento, mas o reconhecimento do documento como vestígio humano e, assim, não limitado aos registros escritos. (Le Goff, 2005, p. 539-540). ANA BEATRIS FERNANDES MENEGALDO 1 * RENATA BAESSO PEREIRA 2 * RESUMO. O trabalho desenvolve uma metodologia de reconstrução do espaço da cidade de Campinas-SP, na segunda metade do século XIX, através da interpretação de documentos primários. A investigação crítica de Inventários, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, da Comarca de Campinas localizados no CMU, quando cruzados a outras fontes como: cartografias históricas, fotografias e levantamentos de campo, possibilitam a espacialização como ferramenta de análise fundiária de Campinas-SP em distintas escalas. Esse cruzamento enseja relações que ultrapassam a análise histórico-geográfica, construindo hipóteses para o processo de ocupação urbana, a partir da análise fundiária de Campinas, no século XIX. A metodologia é aplicada para propriedades do Barão de Itapura, um representante da elite local. Exploram-se, em distintas escalas, hipóteses de espacializações fundiárias: na territorial, para a fazenda Chapadão; na urbana, para Chácara Itapura, e na arquitetônica para o Palácio Itapura. Contribui- se, portanto, para a manipulação de fontes documentais como recurso metodológico do processo de ocupação e transformação do espaço urbano e na compreensão da cidade como espelho de relações sociais. PALAVRAS-CHAVE: Metodologia a partir de fontes primárias. Espacialização. Campinas-SP na segunda metade do século XIX. 1 PUC-Campinas, Mestre em Urbanismo pelo programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. 2 PUC- Campinas, Doutora e Docente do programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e da Faculdade de Arquitetura.

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IX Seminário Nacional do Centro de Memória- Unicamp- 2019

A análise de Inventários post mortem como recurso metodológico para a

reconstituição do espaço da cidade de Campinas no século XIX.

“[..] não o obscurecimento do documento, mas o

reconhecimento do documento como vestígio humano

e, assim, não limitado aos registros escritos. (Le Goff,

2005, p. 539-540).

ANA BEATRIS FERNANDES MENEGALDO1*

RENATA BAESSO PEREIRA2*

RESUMO.

O trabalho desenvolve uma metodologia de reconstrução do espaço da cidade de Campinas-SP,

na segunda metade do século XIX, através da interpretação de documentos primários. A

investigação crítica de Inventários, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, da Comarca de

Campinas localizados no CMU, quando cruzados a outras fontes como: cartografias históricas,

fotografias e levantamentos de campo, possibilitam a espacialização como ferramenta de

análise fundiária de Campinas-SP em distintas escalas. Esse cruzamento enseja relações que

ultrapassam a análise histórico-geográfica, construindo hipóteses para o processo de ocupação

urbana, a partir da análise fundiária de Campinas, no século XIX. A metodologia é aplicada

para propriedades do Barão de Itapura, um representante da elite local. Exploram-se, em

distintas escalas, hipóteses de espacializações fundiárias: na territorial, para a fazenda

Chapadão; na urbana, para Chácara Itapura, e na arquitetônica para o Palácio Itapura. Contribui-

se, portanto, para a manipulação de fontes documentais como recurso metodológico do processo

de ocupação e transformação do espaço urbano e na compreensão da cidade como espelho de

relações sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Metodologia a partir de fontes primárias. Espacialização. Campinas-SP na segunda

metade do século XIX.

1 PUC-Campinas, Mestre em Urbanismo pelo programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. 2 PUC- Campinas, Doutora e Docente do programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e da Faculdade

de Arquitetura.

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INTRODUÇÃO.

Este trabalho avança no estudo metodológico pautado em reconstruir parte do espaço da

cidade de Campinas-SP, a partir da segunda metade do século XIX. Para fundamentar a

metodologia proposta, buscou-se a interpretação de documentos primários através de uma

crítica análise investigativa de Inventários (em vida e post mortem). Tais documentos fazem

parte do fundo do Tribunal de Justiça de São Paulo, pertencente à Comarca de Campinas e estão

arquivados no Centro de Memória da Unicamp-CMU.

Cruzaram-se essas informações a outras fontes primárias, advindas de distintas matrizes,

como: cartografias históricas – destacando-se a folha da cidade de Campinas de 1900 elaborada

pela Comissão Geographica e Geológica do Estado de São Paulo3; a Planta da Cidade de

Campinas, elaborada no ano de 19004; fotografias históricas5; levantamento de campo6 e o

apoio de outras fontes documentais que reforçaram a prática metodológica7. O cruzamento

dessas fontes documentais avança na interpretação histórico-geográfica, construindo hipóteses

espaciais, utilizadas como ferramentas, que justificam o processo de ocupação urbana a partir

da perspectiva fundiária de Campinas.

Aplicamos a metodologia proposta às propriedades de Joaquim Policarpo Aranha, o

Barão de Itapura, um representante da elite local, consolidada ao longo do século XIX. Através

deste estudo de caso, exploram-se escalas diferenciadas, levantando hipóteses de

espacializações fundiárias, indo da macro à microescala. Apresentamos a análise macro-

3 Arquivada no setor cartográfico do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Folha na escala 1:

100.000. A escolha dessa base cartográfica deu-se devido ao nível de detalhamento que contém, trazendo a

topografia existente no território, as bacias hidrográficas, e a localização de sedes de propriedades rurais. 4 Arquivada junto a biblioteca do Centro de Memória da Unicamp (CMU). Planta elaborada na escala 1: 10.000. 5 O principal banco fotográfico que alimentou essa análise foi o acervo fotográfico localizado no Centro de

Memória da Unicamp (CMU). 6 Dentro da perspectiva de se ampliar as naturezas de fontes documentais estudadas, fundamentais no embasamento

metodológico, entendemos que o levantamento de campo de edifícios reminiscentes é um importante instrumento.

Nessa pesquisa, aplicou-se esse levantamento para o Palácio Itapura, edifício existente em Campinas. 7 Destaque para a análise dos Registros Paroquiais de Terra, de 1855, para Campinas – localizados no Arquivo

Público do Estado de São Paulo (APESP); Notícias extraídas de jornais locais (O Correio Paulistano; Gazeta de

Campinas).

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territorial de uma de suas principais propriedades rurais, a Fazenda Chapadão; na escala urbana,

a análise da Chácara Itapura, propriedade situada entre a delimitação urbana e a rural; e na

microescala, apresentamos a espacialização arquitetônica do Palácio Itapura, principal

residência do Barão de Itapura e sua família.

A PLURALIDADE DE FONTES HISTÓRICAS COMO METODOLOGIA.

Distintos processos de urbanização de cidades brasileiras, vêm sendo estudados,

expandindo e consolidando o campo disciplinar da história urbana do Brasil8. O

desenvolvimento desses estudos vai na vertente de não esgotar os temas analisados, mas sim de

possibilitar reflexões e inflexões, dilatando problemáticas sobre métodos de investigação de

fenômenos ligados à história da urbanização9.

Uma história da urbanização, construída a partir da metodologia do cruzamento de

fontes primárias, se estrutura no sentido de ampliar o campo de visão, não se ocupando apenas

do estudo da produção dos espaços projetados a partir, exclusivamente, de saberes eruditos,

mas sim de todos os espaços produzidos como cristalização de processos sociais10. Ao longo

da análise buscamos compreender como intervenções nem sempre óbvias aos “olhares

urbanísticos” incidem e se refletem territorialmente enquanto formas, delineando processos

urbanos11. Bueno traz que:

Ao analisar as diversas formas de configurações dos processos sociais, não se limita ao exame morfológico ou às ideias e ideologias que fomentaram planos, projetos e

intervenções. Embora também inclua a História das Cidades, não se limita a isolar

8 De acordo com Bueno (2012, p.11) o incremento das análises sobre a urbanização brasileira é observado, em

parte, pela adoção de uma “[...] política sistemática de organização e informatização de acervos, colocando, ao alcance de todos, farta documentação que, em outros tempos, estava encerrada em gavetas e cofres”. Nesse sentido

a autora a aponta para a importância do entendimento desse campo disciplinar como estratégico para percebemos

os percursos historiográficos, as conquistas alcançadas e os limites a serem superados. 9 A lista de investigadores que se debruçaram sobre o processo de urbanização brasileira é bastante vasta.

Destacamos autores que contribuíram diretamente à nossa pesquisa: Gilberto Freire (1980); Murillo Marx (1991);

Fania Fridman (1999); Nestor Goulart Reis Filho (1978) e Flavio Villaça (1998). 10 Estudar as experiências da urbanização nos permite, então, uma visão ampla, ainda que a partir dos fragmentos,

das contradições envolvidas nesse processo, apontando as fraturas do que se concretizou, indicando todos os outros

caminhos que estavam em aberto e não foram trilhados. Borin (2016, p.114) 11 Se por muito tempo as pesquisas se centraram em planos urbanos e legislações, marcas dos estudos tradicionais

e profissionais ligados ao campo, um dos principais desdobramentos dos questionamentos a essa produção foi um movimento de pluralização das fontes históricas utilizadas. (Borin, 2016, p.03). Buscando, portanto, ampliar novas

perspectivas, perscrutamos assim como outros investigadores, a diversificação das origens de fontes consultadas.

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casos, atentando sempre para lógicas e papeis dos núcleos no âmbito de um “sistema

urbano” mais alargado. (BUENO, 2012, p.19)

No entendimento da história da urbanização como processo social, a presença de agentes

é acompanhada de um caráter empírico que, para atingir sua clareza, necessita de um aporte

metodológico minucioso12. À compreensão da cidade e do território como artefato social, soma-

se a visão sistêmica que leva em conta agentes, processos, dinâmicas, fluxos, redes de relações

sociais e suas configurações no espaço em perspectiva histórica (Bueno, 2012, p.19).

O uso de documentos em pesquisa deve ser apreciado e valorizado. A riqueza de

informações que deles podemos extrair e resgatar justifica o seu uso em várias áreas das

Ciências Humanas e Sociais porque possibilita ampliar o entendimento de objetos cuja

compreensão necessita de contextualização histórica e sociocultural (Sá-Silva; Almeida;

Guindani, 2009, p.02).

Concebe-se essa diversificação no uso de novas séries documentais como um

alargamento das perspectivas analíticas até então enfrentadas. Gil (2002, p.45) alerta para a

importância da pesquisa documental valer-se de materiais que ainda não receberam nenhum

tipo de tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos de

pesquisas a serem investigados13.

O presente trabalho busca, portanto, consolidar um referencial teórico-metodológico

que se apoia em fontes primárias diversas, com o objetivo de construir uma perspectiva de

interpretação de parte da história da urbanização da cidade de Campinas14. Entendemos que a

pluralidade de matrizes documentais adiciona novas perspectivas analíticas, alargando os

questionamentos sobre o objeto em estudo15. Borin aponta que:

12 Utiliza-se do conceito de agente, compreendendo aquele que exerce uma função, direcionando suas ações de

forma a atuar diretamente no processo da construção urbana, tendo como consequência de suas condutas, a

produção de formas espaciais. 13 Carpintéro e Cerasoli (2009, p.65) esclarecem que não se trata de exigir dos arquitetos conceitos e procedimentos

específicos da formação do historiador, mas sim apreender em seus trabalhos a forma como se apoiam em

interpretações historiográficas, a fim de buscar nesse diálogo da arquitetura com a história caminhos que ampliem

nossos estudos sobre a cidade. 14 Nesse artigo aplicamos a mesma metodologia adotada na dissertação de mestrado: MENEGALDO, Ana Beatris

Fernandes. Entre o rural e o urbano: o Barão de Itapura como agente modelador da cidade de Campinas, SP (1869-

1902). 2019. 291f. Dissertação( Programa de Pós-Graduação em Urbanismo) - Pontifícia Universidade Católica

de Campinas, Campinas-SP. 15 Pareto (2011, p.38) disserta que todo documento é uma escolha do investigador. E este documento não pode ser

analisado como inócuo, mas sim como resultado de uma temporalidade e de uma sociedade que o realizou.

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A diversificação de fontes não constitui uma solução simples para a história urbana,

mas faz com que, a cada introdução de uma documentação diferente, as discussões

acerca da natureza do nosso objeto de estudo se tornem mais complexas. Nesse

sentido, introduzir uma nova fonte de estudo não é somente permitir uma visão por

outro ângulo, mas sim questionar sobre a natureza dele. (BORIN, 2016, p.03.)

Esse trabalho vem de encontro ao movimento de pluralização de fontes históricas16. De

acordo com Borin (2016, p.104) na busca da ampliação de novas perspectivas investigativas os

novos pesquisadores passaram a diversificar as fontes consultadas. Para o desenvolvimento

desse trabalho foi necessário esquadrinhar cada fonte estudada com um olhar bastante aguçado.

Analisar um corpo documental é, então, deparar-se a todo momento com impasses na sua

leitura, propiciados pelos descompassos que são característicos do trabalho historiográfico no

intuito de buscar uma leitura sobre as interações das diferentes camadas que compõem um

documento e suas reverberações, sejam elas internas ou externas (Borin, 2016, p.05).

A pluralização dessas fontes, traz para a discussão o uso de documentos não

necessariamente escritos. Compreende-se, portanto, como documentos históricos, fontes

visuais como fotografias, desenhos, cartografias, planos e outros. Essas “novas formas de

manipulação” devem ser utilizadas como possibilidades de reflexão sobre o território e não

apenas como formas gráficas de representação de informações históricas no espaço (Santos,

2016, p.75).

O contato com fontes primárias de naturezas diversas culmina em reflexões referentes

aos acervos, ao acesso à documentação e, à interpretação dessas. Esses dados quando

compilados e associados a um balanço historiográfico permitem elevar a discussão a uma

autonomia, construindo então a percepção histórica apreendida pelo viés das escalas urbana e

arquitetônica.

A discussão se pauta, em assimilar que formas e permanências existentes nas cidades

têm sentidos, significações, e são resultantes de ações que dão corpo à tessitura que compõe a

dimensão urbana. Assim a história, sobretudo a história da cidade, só se realiza a partir do

estabelecimento dos nexos racionais com as suas múltiplas dimensões, dos seus embates

Portanto, o documento não deve ser encarado de forma a complementar uma pesquisa, mas sim ser base

argumentativa. 16 As discussões que permeiam a ampliação de análises históricas sobre os processos urbanos são recentes no

Brasil. De acordo com Santos (2016, p.74) essas discussões, pensando na ampliação de fontes como documentos,

são questões articuladas no decorrer dos debates historiográficos recentes.

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políticos, que não se encaixam em modelos e formalismos, e que não seguem um modelo

evolutivo de linearidade (Bresciani, 2002, p.18-19).

A leitura de uma bibliografia que se debruçou sobre esse universo explicou como essas

permanências e mudanças interferem nos costumes da sociedade, na formação territorial e

urbana. Nessa linha de raciocínio, entendemos que a pesquisa sobre formação territorial,

englobando mudanças fundiárias, de ocupação e transformação de terras rurais em tecido

urbano, ampliam o campo do conhecimento a partir de referências urbanísticas e arquitetônicas.

A APLICAÇÃO DA METODOLOGIA: DA MACRO À MICRO ESCALA.

O presente artigo estrutura-se em três partes que objetivam aplicar a metodologia

proposta, pautada na intersecção de fontes primária diversas, a três estudos de caso. Esses

exemplos foram pensados de forma a justificar o uso da metodologia em escalas distintas de

aplicação. Nesse sentido, os fatores comuns aos três exemplos se limitam ao estudo de

propriedades rurais e urbanas do Barão de Itapura, um representante da elite local da cidade de

Campinas, ao longo do século XIX, e na leitura de seu Inventário amigável, realizado em vida

no ano de 1889 e de seu Inventário post mortem, aberto no ano de 1902.

A leitura dessa série documental foi fundamental para decidir quais demais fontes

seriam escolhidas e cruzadas às informações contidas nos autos de avaliação dos inventários17.

Trabalhamos assim, a partir de três escalas: a Macroescala: a partir de uma hipótese de

espacialização fundiária para uma propriedade rural- a Fazenda Chapadão; a Escala

Intermediária: investigação de uma propriedade localizada entre o âmbito rural e o urbano - a

Chácara Itapura; e a Micro escala: interpretando na escala da arquitetura, qual teria sido o

17 De modo geral, o inventário judicial é composto de um termo com data de autuação de uma petição inicial,

informando a morte do inventariado ou inventariada. Segue dessa abertura uma lista com a titulação dos herdeiros,

comumente cônjuges ou filhos naturais. Em certas ocasiões anexava-se o testamento com as últimas vontades do

falecido. Após a juntada de procurações e outras possíveis solicitações, nomeava-se o inventariante- a pessoa

incumbida de acompanhar o trâmite processual até seu final. Em seguida, nomeavam-se os peritos encarregados

de descrever e avaliar monetariamente cada propriedade, direito e obrigação do inventário. As propriedades ou

bens eram comumente apresentados em ordem de importância, sendo comum observar, em primeiro lugar, os de

raiz ou imóveis e suas benfeitorias. Depois seguiam ouro, prata, joias, mobiliário, utensílios domésticos e de

profissão e a avaliação individual dos escravos. A etapa seguinte consistia no orçamento e na definição do

montante bruto (monte mor) de passivos (incluindo dívidas, tributos e custos processuais), e do montante líquido (monte menor) a ser partilhado. Finalizava-se um inventário após a partilha das meações do cônjuge e dos

herdeiros. Fonte: Antônio Abrahão (2015, p.22.)

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programa de necessidades original da principal residência urbana do Barão de Itapura: o Palácio

Itapura.

A FAZENDA CHAPADÃO.

A propriedade tem seu primeiro registro datado de 1798, descrita como um engenho

situado na sesmaria do Capitão José Teixeira Nogueira. Em 1818, é recenseada com 750 braças

de testada, 1500 braças de sertão e 50 escravos18. Em 1830, a propriedade é herdada ao Major

Luciano Teixeira Nogueira, sendo vendida em 1850 à Thomaz Luiz Alves, diretor do Banco do

Brasil, descrita em 1855 como sua propriedade e de sua esposa Dona Maria Joaquina de Abreu

Cruz, localizada na freguesia de Campinas19.

Em 1869, a fazenda é comprada pelo Barão de Itapura que decide, em razão do declínio

dos preços do açúcar, iniciar a produção cafeeira20. De acordo com seu registro escriturário: “A

fazenda é de cultura de café e cana com casa de morada assoalhada, cafezaes, engenho de cana

e café, senzallas, e mais benfeitorias21 [...]”. Em 1889, o Barão de Itapura, partilha seus bens

através do inventário amigável conjunto à sua esposa, Libânia de Souza Aranha, arrolando no

auto de avaliação do mesmo, a fazenda Chapadão com todas suas benfeitorias.

A investigação se voltou, em buscar informações que traduzissem as dimensões dessa

propriedade. Para tanto, a série documental referente ao Cadastro de Terras, realizado para a

cidade de Campinas em 1855, foi fundamental22. Ainda que nesse período, a propriedade não

estivesse sob posse do Barão de Itapura, a descrição da Fazenda Chapadão nesse conjunto de

18 APESP, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Tombamento de Bens Rústicos de 1818 para Vila de São

Carlos p.03 v. 19 APESP, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Livros de Registros de Terras da Província de São Paulo,

Filme 3.006 nº73 p.35. 20 De acordo com seu registro escriturário em 1875: “A fazenda é de cultura de café e cana com casa de morada

assoalhada, cafezaes, engenho de cana e café, senzallas, e mais benfeitorias [...].” Fonte: CMU, Centro de Memória

da Unicamp. Sessão 1º Cartório de Registros e Títulos. Registros de Escripturas, Livro 1875-1882, L12 S3 p.72 v. 21 CMU, Centro de Memória da Unicamp. Sessão 1º Cartório de Registros e Títulos. 22 A historiografia trata essa série documental como Registro de Terras, Cadastro de Terras ou Registros Paroquiais

de Terras. Esses documentos foram geridos a partir da instituição da Lei de Terras em 1850 (Lei nº601 de 18 de

setembro de 1850), juntamente com sua regulamentação em 1854 (ocorrida em 30 de janeiro de 1854 a mando do decreto imperial nº1.318), ordenando a criação da Repartição Geral das Terras Públicas, ou seja, um órgão

responsável por teoricamente solucionar as diversas situações referentes a ocupação fundiária na instância rural.

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documentos foi bastante esclarecedora para nortear uma hipótese de espacialização dessa

propriedade no século XIX.

Cruzaram-se essas informações aos elementos representados na cartografia de 1900 para

cidade de Campinas, levantada pela Comissão Geographica e Geológica do Estado de São

Paulo23. Uniu-se, então, os atributos representados, na cartografia que trabalha na escala

territorial à descrição fundiária, possibilitando a identificação dos limites de conformação da

Fazenda Chapadão. A descrição contida no Registro de Terras é a seguinte:

Umas terras situadas na Freguesia de Campinas que por um lado seguem desde o

subúrbio da Cidade athe o Corrego denominado dos Cavalheiros, divizando pela

estrada que vai a Villa de Piracicaba subindo pelo dito Corrego athe uma ponte velha do caminho velho digo antigo do Sitio da Boa Vista athe um brejo onde them um

curral, ficando pertencendo o gramado a Boa Vista e o matto ao possuidor Thomaz

Luiz Alves: do curral sobe a linha recta a uma peroba verde que tem uma marca de

cruz feita na casca da mesma peroba. Nesta peroba faz ângulo por um rumo que vai

dar no canto do cafezal athe o canto do matto. Dahi segue em linha recta athe uma

figueira que esta na beirada da Estrada da Terra Preta. Vem por esta estrada athe a

chácara de Luiz Nogueira Ferraz, com a qual dividem os morões de porteira e segue

divisando se com o mesmo Ferraz athe a Porteira do Pasto denominado Chacara – e

dahi segue por vallos athe os subúrbios da Cidade, divizando com vários moradores

que tem prédios urbanos e feichão no Bairro de Santa Cruz, onde começarão24. (APESP, 1855, p.35.)

Com o auxílio da cartografia histórica, as referências espaciais elencadas no registro

de terras como estradas, caminhos, leitura topográfica territorial e identificação hidrográfica,

permitem constituir uma hipótese da extensão da fazenda Chapadão. Uniu-se, os atributos

descritos no recenseamento fundiário à análise baseada na cartografia histórica, resultando em

23 Importante base cartográfica na escala do território que, além de pontuar as sedes de fazendas no termo de

Campinas, traz informações topográficas, hidrográficas, caminhos, leitos ferroviários etc. 24 APESP, Arquivo Público do Estado de São Paulo, Livros de Registros de Terras da Província de São Paulo,

Filme 3.006 nº73 p.35.

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uma hipótese de espacialização para a propriedade rural (conforme se observa na figura 01).

Figura 01: Hipótese da espacialização da fazenda Chapadão construída a partir da base cartográfica em escala

territorial, levantada pela Comissão Geographica e Geológica do Estado de São Paulo,1900. Em cinza, destacamos

os limites da fazenda Chapadão e em alaranjado os limites da Chácara Itapura. Editado pelas autoras.

Em 1889, o Barão de Itapura, faz a partilha de seus bens em vida, com o consentimento

de sua esposa, Libânia de Souza Aranha. É arrolado ao auto de avaliação:

Uma Fazenda denominada Chapadão com cafezais e todas as suas benfeitorias,

utencilios de trabalho e os moveis existentes em a casa de vivenda compreendendo o

denominado Bom Retiro, até a terminar das mattas que bordejão o campo da

Chacara25[...]. (CMU,1889, p.04v.)

Para este estudo de caso, a leitura de documentos primários, associados a uma base

cartográfica histórica revelou que anexa à propriedade Chapadão se encontrava uma outra

propriedade fundiária, enquadrada nos moldes de chácara. Entendemos que a estrutura

fundiária está diretamente relacionada ao modo como os proprietários se distribuíam e se

organizavam territorialmente. Essa distribuição territorial considera aspectos quantitativos,

sociais e referentes à dimensão das porções agrárias.

25 CMU, Centro de Memória da Unicamp. Sessão Tribunal de Justiça de SP, Comarca de Campinas. Inventário

Amigável de 1889 Ofício 02, Caixa 236 Processo 5623 p.04v.Transcrito e grifado pela autora.

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Ribeiro (2016, p.178) aponta que, na análise de famílias e propriedades situadas em

Campinas, foram encontradas “propriedades fragmentadas em pequenas unidades territoriais”.

De acordo com a reflexão da autora, a conquista ao direito à propriedade da terra, associada a

regularização fundiária regulamentada a partir da Lei de Terras, se refletiu na organização

fundiária26. Assim, a estrutura agrária da região sofreu uma “metamorfose”, dissolvendo as

grandes propriedades em pequenos sítios ou chácaras.

Caio Prado Jr (1945, p.696) afirma que a pequena propriedade apresenta uma história

mais recente, se comparada às extensas. Segundo o autor, cronologicamente, primeiro vem a

grande propriedade; depois, como consequência de seus desmembramentos, conformam-se as

menores. A formação das posses de menor escala, estão condicionadas à necessidade de mão

de obra, à divisão familiar da propriedade, ao patamar social e econômico de seus proprietários

e à influência da industrialização dos centros urbanos. Esse discurso dialoga com a instalação

dessas famílias nas bordas do espaço urbanizado mantendo o controle da instância urbana na

proximidade e inserção dos costumes sociais, religiosos e civis, paralelamente ao universo rural,

onde a produção e acúmulo de capital acontece. Lapa (1995), traz a sua percepção das chácaras,

na cidade de Campinas, destacando:

A transição do campo para a cidade nem sempre se faz direta e, nesse sentido, as

chácaras que vão aos poucos acinturando o quadro urbano, constituem um momento

em que os seus moradores, beneficiados por uma acumulação que já datava de mais

de meio século, procuram afastar-se do isolamento rural, sem, contudo, assimilar os

inconvenientes urbanos, escolhendo para morada as chácaras. (LAPA, 1995 p.103)

Dessa forma, a investigação se voltou para compreender, em um segundo momento, a

conformação dessa propriedade: A Chácara Itapura27.

A CHÁCARA ITAPURA.

26 Fridman (1999, p.127) afirma que a promulgação da Lei de Terras, em 1850, foi um importante divisor de águas

e elemento fundamental para o entendimento da problemática fundiária. A Lei e seu regulamento, de 1854,

consolidaram legalmente a propriedade privada e formaram um mercado capitalista de terras. 27 De acordo com Reis Filho (1978, p.28) as chácaras definiam-se por um tipo característico de habitação, situado

nas periferias dos centros urbanos, reunindo a proximidade com as facilidades de abastecimento e dos serviços das

casas rurais e era a solução preferida de famílias abastadas no Império e na República.

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Entende-se, portanto, que a Chácara Itapura se conformava como uma continuidade de

terras da fazenda Chapadão, passando a ser propriedade do Barão de Itapura, a partir da compra,

através de letras hipotecárias em 1869. Em 1871, a escritura da propriedade da fazenda

Chapadão, na qual está incluída a Chácara Itapura, é dita como: “uma fazenda adquirida

denominada dois córregos - outra denominada chapadão comprehendendo como partes anexas

- bom retiro e chácara e as terras denominadas – estiva - que formarão um todo28 [...]”.

Em 1881, as propriedades são novamente registradas; dessa vez separadas em três distintos

registros: A primeira dita como “Huma fazenda denominada chapadão na freguezia de Santa

Cruz de Campinas”, a segunda como “Huma caza em construção na Rua do Imperador,

propriedade do comendador Joaquim Policarpo Aranha” e a terceira como “Huma caza e

respectivo quintal na Rua do Imperador29”. Trata-se das escrituras independentes da fazenda

Chapadão, da construção iniciada correspondente ao Palácio Itapura e de uma casa existente já

no terreno da chácara (denominada de quintal).

Essa propriedade, configurada nos moldes de chácara, tem um dos seus limites

confrontando o “perímetro urbano” da cidade de Campinas, e o outro se fundindo à propriedade

da fazenda Chapadão30. Nesse caso, trabalhamos com a espacialização dessa propriedade em

uma escala intermediária. A Chácara Itapura, possui dimensões menores se comparada às

propriedades rurais, porém dimensões bem maiores se comparadas aos lotes urbanos. À vista

disso, cruzamos as informações encontradas no inventário amigável, de 1889, ao inventário

post mortem do Barão de Itapura, de 1902. Em 1889 é descrito que:

Uma chácara que comprehende todo o campo competentemente valado, inclusive as

benfeitorias existentes em seu perímetro avaliada por cincoenta contos de reis [...]”.

Inclui-se na descrição o palacete “[...] com o respectivo terreno até o córrego,

compreendendo de todos os moveis e utencilios existentes dentro daquele31[...].

(CMU, 1889, p.04v)

28 CMU, Centro de Memória da Unicamp. 1º Cartório de Registros e Títulos. Série de Indicadores Reais 1868-

1975. Sub-Serie 02. Livro I, p.17-18. 29 CMU, Centro de Memória da Unicamp. 1º Cartório de Registros e Títulos. Série de Indicadores Reais 1868-

1975. Sub-Serie 02. Livro I, p.46,77 e 102. 30 Tratamos como perímetro urbano os limites estabelecidos através dos Códigos de Posturas. As medidas impostas

nas Posturas visavam disciplinar o espaço urbano. O limite no qual essas condutas eram aplicadas denominavam-

se como quadros. Esses quadros variavam conforme a questão em pauta. 31 CMU, Centro de Memória da Unicamp. Sessão Tribunal de Justiça de SP, Comarca de Campinas. Inventário

amigável do Barão e Baronesa de Itapura de 1889 Ofício 02, Caixa 236 Processo 5623 p.04v.

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Como a descrição de 1889 em nada informa sobre as dimensões da chácara, comparou-

se a mesma com a do inventário de 1902:

Da chácara verba abaixo da avenida Itapura com todas as benfeitorias existentes,

divizando com rua dona Libania, com a herança de Antonio de Almeida Valente,

Orosimbo Maia, Barão de Ibitinga, Francisco de Paula Camargo e a Companhia de

Gas, a quantia de sessenta contos de reis32(CMU, 1902, p.16v)

A partir dessas descrições, elucidam-se aspectos referentes à origem dessa propriedade,

sendo possível destacar referências contidas nas descrições que permitem aferir uma hipótese

de espacialização, trazendo seus limites fundiários em sua origem.

Utilizamos como base cartográfica para a espacializá-la a planta elaborada em 1900 para

compor o livro "Campinas em 1900", organizado pelo jornalista Leopoldo Amaral e editado

pela “Casa Azul” de Typographia (ver figura 02). Esclarece-se a implantação da chácara em

sua origem e, como um de seus limites se abre para a Rua do Imperador, (atual Rua Marechal

Deodoro), permitindo assim a relação direta da propriedade com a cidade de Campinas.

32 CMU, Centro de Memória da Unicamp. Sessão Tribunal de Justiça de SP, Comarca de Campinas. Inventário do

Barão de Itapura,1902 Ofício 04, Caixa 244 Processo 5899 p.16v-17.

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Figura 02: Espacialização da Chácara Itapura, sobre Planta de Campinas de 1900. Fonte: Arquivo CMU- Centro

de Memória da Unicamp. Em cinza escuro (esquerda superior) delimitou-se as terras da fazenda Chapadão; em

um tom de cinza mais claro, espacializou-se a Chácara Itapura; em laranja delimitou-se o perímetro urbano da

época. Editado pelas autoras.

Constatamos que junto ao limite frontal dessa propriedade é construído a partir do ano de 1880,

a principal residência do Barão de Itapura e sua família, o Palácio Itapura (ver Figura 03).

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Figura 03: Fotografia da fachada principal do Palácio Itapura. Disponível em:

http://www.formarte.com.br/projetos-atuais-puc-campinas.

PALÁCIO ITAPURA.

Para Campinas, compreende-se que, de fato, os capitais advindos da produção de café,

coexistente à produção de açúcar, serviram de base sólida para a modernização da cidade,

propiciando novas formas de morar, expressas no aparecimento de chácaras e de palacetes com

inovações referentes a soluções construtivas e ao programa de necessidades. Assim, o Barão de

Itapura constrói, a partir do ano de 1880, sua principal residência.

Através da leitura dos inventários (de 1889 e de 1902) e do levantamento in loco deste

edifício, ainda existente na cidade de Campinas,33foi possível construir uma hipótese para o

programa de distribuição original do Palácio Itapura. A produção deste material, através da

pesquisa de campo no edifício, foi uma fonte documental fundamental para a sua interpretação.

O auto de avaliação dos inventários revela que a contabilização de bens é feita por um

avaliador, descrevendo os objetos, como prataria e mobília. Na descrição desses conjuntos, é

dito em qual cômodo o avaliador se encontra. Na abertura do Auto de Avaliação do ano de 1902

é dito:

Anno de Nascimento de nosso senhor Jesus Christo de mil novecentos e dois, aos

vinte e nove de março, nesta cidade de Campinas, e na caza do Barão de Itapura, vinde

por meio o M. Juiz da primeira vara Doutor Soriano Filho, comigo Escrivão, de seo

cargo o solicitador Flavio de Moraes Sales e os avaliadores Antonio Francisco de

Andrade e Julio Frank de Arruda a eles o mesmo juiz determinou a procedência da

avaliação dos bens deixados pelo finado Barão de Itapura e que seja cumprido pelos

mesmos34 (CMU, 1902, p.09v.)

Na sequência, dá-se início à descrição dos bens:

Sala de Vizitas: quatro espelhos, mobília dupla com 31 peças, quatorze vazos e seis

grupos de biscuit; Primeira Alcova: huma cama um lavatorio e um criado mudo a quantia de oitocentos mil reis; Segunda Alcova: Huma cama, um lavatório e um criado

mudo a quantia de quinhentos mil reis; Primeira Sala de Jantar: uma mobília com

33 O edifício ao longo dos anos teve sua função enquanto residência alterada, sendo em 1937 alugado para a

Arquidiocese de Campinas, e habitado pelas Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado. A partir de 1941, o edifício

passa a sediar a Faculdade de Ciências, Filosofia e Letras das Faculdades Campineiras, originando a Pontifícia

Universidade Católica de Campinas. 34 CMU, Centro de Memória da Unicamp. Sessão Tribunal de Justiça de SP, Comarca de Campinas. Inventário

de 1902 Oficio 04, Caixa 244 Processo 5899 p.09v.

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quarenta peças a quantia de tres contos duzentos e dez mil reis; um relógio cincoenta

mil reis. Saguão: Um cabide para chapeis, quantia de mil reis, a margem sae. Dois

sofanetes sessenta mil reis. Segunda Sala de Vizitas: um espelho oval cento e vinte

mil reis. Uma mobília cem reis e duas peças quinhentos mil reis. Ante-Sala: Uma

comoda e um guarda-roupa de quantia de seis centos mil reis. Segunda Sala de Jantar:

trez aparadores cento e cincoenta mil reis. Um tagére, duzentos mil reis sae. Uma

mesa com suas cabeceiras trinta mil reis. Vinte cadeiras duzentos mil reis como se

sae. Um regulador cento e cincoenta mil reis. Varanda aberta: quatro viejas com pedra

mármore e quatro bancos de quantia de duzentos mil reis. (CMU, 1902- p.09v-10v.)

A fim de fundamentar a metodologia, foram consultadas as plantas levantadas por Pupo

(1983, p.43) e uma notícia publicada no jornal, o Correio Paulistano, veiculado na cidade de

São Paulo, em 30 de abril de 1921, escrita pelo jornalista Benedito Octavio35. Nessa matéria o

autor apresenta as plantas dos três pavimentos da edificação36. Associamos, portanto, as

informações levantadas e elaboramos uma hipótese para os três pavimentos dessa residência

em sua origem (ver Figura 04).

Figura 04: Plantas do Palácio Itapura: hipótese para o programa de necessidades original do edifício. Elaborado

pelas autoras.

Nesse sentido, a partir do cruzamento de fontes. foi possível elaborar uma hipótese a de

espacialização do programa dessa casa senhorial em sua origem, demonstrando a aplicação da

metodologia proposta na micro escala, a do edifício.

35 Foi um grande historiador e memorialista da cidade de Campinas na passagem de fins de 1800 e nas décadas

iniciais de 1900, sendo um dos responsáveis por grande parte da memória escrita desta época. Disponível em:

http://pro-memoria-de-campinas-sp.blogspot.com/2008/01/personagem-benedicto-octvio.html. Acesso em 12 de

dezembro de 2018. Tanto as plantas de Pupo (1983) quanto às de Benedito Octavio (1921) não possuem menções

ou referências de suas fontes, ou seja, dos profissionais que as desenharam, o que faz com que ambas sirvam de

apoio para a comparação e verificação de informações. Entretanto, a nível conclusivo, prevaleceram as

informações trazidas nos inventários. 36OCTAVIO, Benedito. 1921, conferir pág.05 em Correio Paulistano, Disponível em:

http://memoria.bn.br/pdf/090972/per090972_1921_20771.pdf. Acesso em 30 de outubro de 2017.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O trabalho demonstra que interpretação de fontes documentais diversas se apresenta

como recurso metodológico relevante na análise do processo de ocupação e transformação do

espaço urbano e na compreensão da cidade como espelho de relações sociais. Essa proposta

metodológica, tem como intuito servir como uma contribuição para alargar as abordagens

formais dos fenômenos urbanos. Buscamos a partir de estudos de caso, em três escalas distintas,

entender a pluralidade investigativa de fontes primárias como recursos eficientes na busca da

elucidação das formas e dos processos urbanos.

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