A Alquimia e a Psicologia Analítica

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"A psiconeurose, em última instância, é o sofrimento de uma alma que não encontrou seu sentido" (Jung). A Alquimia e a Psicologia Analítica Autor: Frederico Eckschmidt (1) Geralmente, ao ler uma obra de Jung, permanece uma pergunta sobre qual a relação entre a Alquimia e a nossa psicologia cotidiana? A resposta está nos símbolos que se manifestam de forma instintiva e espontânea durante as meditações e sonhos que levaram os alquimistas ao chamar seu processo de opus philosophorum (trabalho flilosófico) , como será visto adiante. Esses símbolos demonstram, empiricamente, como a psique se transforma obedecendo a um determinado padrão, geralmente representado por uma espiral ou uma mandala. Ao analisar milhares de sonhos (cerca de 80 mil) Jung verificou que alguns deles se repetiam de tempos em tempos revestidos de um outro aspecto mais amplo, demonstrando assim, um processo evolutivo na psique humana. A este desenvolvimento psíquico, Jung deu o nome de Individuação e ele é muitas vezes representado na repetição de um mito encarnado num drama cósmico-metafísico, em uma tentativa de unir na consciência os opostos eternos e irreconciliáveis, ou seja, o espírito e a matéria no chamado hierosgamos, ou núpcias químicas da Alquimia. Biologicamente isso nos parece inscrito instintivamente como uma preparação para a morte do corpo físico e dissolução na matéria, e isso, psicologicamente, é vivenciada como um mito cosmogônico de redenção e integração do indivíduo com a totalidade _como atestam os sonhos e os mitos de todas as culturas. Jung verificou que estes símbolos representam o 'centro' de nossa psique, um arquétipo que ele designou como Si-mesmo (Self ) e o ponto culminante do processo é atingido na integração deste Si- mesmo pela consciência, pois, como ele está originalmente inconsciente, à medida que seus conteúdos penetram na consciência ou no Eu (Ego), eles se repelem ou se destroem. Por isso, todo o processo terapêutico visa conscientizar o paciente de seu Si-mesmo e deste processo. Entenda-se que o processo é seu próprio condutor natural e instintivo. Como explica Jung: "Só descobrindo a alquimia compreendi claramente que o inconsciente é um processo e que as relações do ego com os conteúdos inconscientes desencadeiam um desenvolvimento ou uma verdadeira metamorfose na psique. Nos casos individuais é possível seguir este processo através dos sonhos e fantasias. No mundo coletivo, tal processo se encontra inscrito nos diferentes sistemas religiosos e na transformação de seus símbolos. Mediante o estudo das evoluções individuais e coletivas, e mediante a compreensão da simbologia alquimista cheguei

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"A psiconeurose, em última instância, é o

sofrimento de uma alma que não encontrou seu

sentido" (Jung).

A Alquimia e a Psicologia Analítica

Autor: Frederico Eckschmidt (1)

Geralmente, ao ler uma obra de Jung, permanece uma pergunta sobre qual a relação entre a Alquimia e anossa psicologia cotidiana?

A resposta está nos símbolos que se manifestam de forma instintiva e espontânea durante as meditações e

sonhos que levaram os alquimistas ao chamar seu processo de opus philosophorum (trabalho flilosófico) ,como será visto adiante.

Esses símbolos demonstram, empiricamente, como a psique setransforma obedecendo a um determinado padrão, geralmenterepresentado por uma espiral ou uma mandala. Ao analisarmilhares de sonhos (cerca de 80 mil) Jung verificou que algunsdeles se repetiam de tempos em tempos revestidos de um outroaspecto mais amplo, demonstrando assim, um processo evolutivona psique humana.

A este desenvolvimento psíquico, Jung deu o nome deIndividuação e ele é muitas vezes representado na repetição deum mito encarnado num drama cósmico-metafísico, em umatentativa de unir na consciência os opostos eternos eirreconciliáveis, ou seja, o espírito e a matéria no chamado

hierosgamos, ou núpcias químicas da Alquimia.

Biologicamente isso nos parece inscrito instintivamente comouma preparação para a morte do corpo físico e dissolução namatéria, e isso, psicologicamente, é vivenciada como um mitocosmogônico de redenção e integração do indivíduo com atotalidade _como atestam os sonhos e os mitos de todas asculturas.

Jung verificou que estes símbolos representam o 'centro' de nossa

psique, um arquétipo que ele designou como Si-mesmo (Self) e oponto culminante do processo é atingido na integração deste Si-mesmo pela consciência, pois, como ele está originalmente

inconsciente, à medida que seus conteúdos penetram na consciência ou no Eu (Ego), eles se repelem ouse destroem.

Por isso, todo o processo terapêutico visa conscientizar o paciente de seu Si-mesmo e deste processo.Entenda-se que o processo é seu próprio condutor natural e instintivo. Como explica Jung:

"Só descobrindo a alquimia compreendi claramente que o inconsciente é um processo e que as

relações do ego com os conteúdos inconscientes desencadeiam um desenvolvimento ou uma

verdadeira metamorfose na psique. Nos casos individuais é possível seguir este processo

através dos sonhos e fantasias. No mundo coletivo, tal processo se encontra inscrito nos

diferentes sistemas religiosos e na transformação de seus símbolos. Mediante o estudo das

evoluções individuais e coletivas, e mediante a compreensão da simbologia alquimista cheguei

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ao conhecimento básico de toda minha psicologia, o "processo de individuação".

Realizar a síntese destes opostos no Si-mesmo é a meta do processo de individuação. Isso ocorre com adiscriminação e a conseqüente integração de conteúdos inicialmente inconscientes e que fazem parte deum processo de transição da consciência comum (vigília) para um estado psíquico mais amplo, na busca do"homem consciente", o homem total.

Durante este processo, a integração da sombra (ligada com o inconsciente) é uma questão moralfundamental para o desenvolvimento da personalidade e este processo é conduzido inconscientemente

pelo centro da vida e a fonte da libido (energia vital), que é o Si-mesmo. Para Jung:

"A atitude moral é um fator real com o qual o psicólogo deve contar, se não quer incorrer nos

mais tremendos erros. [...] Temos aqui, de novo, realidades psíquicas, capazes tanto de causar

como de curar doenças".

Uma vez que ele não pode ser determinado, o inconsciente pode abranger a totalidade. E a única forma deconhecer estes símbolos totalitários é através de uma vivência pessoal ou através da imitação ou

encarnação do mito de seres divinos ou semi-divinos, como por exemplo a imitatio Christi, que leva asolução do conflito para um nível sobre-humano.

O início do processo de desenvolvimento da personalidade é representado na Alquimia pela nigredo, ondeo indivíduo pode sofrer uma grande depressão ou desenvolver um estado onde temas ligados à morte, àputrefação e estados desagregativos influenciem as imagens captadas pela consciência.

Deste estado (nigredo), depois de um processo de purificação (albedo, onde se percebe que tudo advémda luz e do amor universal), surge uma forma pré-consciente de intuição e pré-concepção, num processo de

humanização (citrinitas) para uma busca da representação ou imagem do dogma ou imago Dei.

O estado final da obra é representada pela cor vermelha (rubedo) onde o conhecimento adquirido sofre aencarnação; quando o pensamento passa para as ações diárias, em nosso cotidiano. Como comenta VonFranz:

"O alquimista é um homem que busca um 'mistério divino', o mistério do inconsciente projetado

por ele na matéria e, nesse sentido, é alquimista todo aquele que se esforça no sentido de uma

realização individual e direta de uma vivência do inconsciente".

O conhecimento desse processo é de vital importância para uma sociedade cada vez mais esvaziada devida interior. O erro cometido pela interpretação cristã de localizar o Reino de Deus 'entre vós' (como sefosse no ambiente) e não 'dentro de vós', como seria correto, transformou a vivência do processo deencarnação do Si-mesmo em alguma ação exterior. Por isso o homem moderno perdeu o contato com o Si-mesmo, vivenciando os conteúdos do inconsciente apenas como 'ocultismo' ou 'bruxaria'.

Esse 'homem moderno' se entregou ao materialismo, repetindo o mito gnóstico do abraço do Adãoprimordial pelos quatro elementos (a matéria), descendo ao mundo atômico e aos modos instintivos de vida

_como indicado na fórmula enantiodrômica que Jung propôs em "Aion".

Segundo ele, os alquimistas buscavam resgatar a substância arcana do mundo representado pelo

Anthropos-Rotundum perdido na matéria. Em Platão, este Anthropos (o 'Filho do homem' e símbolo do Si-

mesmo), possui uma forma esférica: "o redondo é a alma do mundo e um deus bem-aventurado" (Timeu).

Ele desceu à physis (Natureza), ou seja, foi materializado (solidificatio) pelo abraço de sua sombra (Homo)com os quatro elementos (matéria), dando origem à serpente, que representa a natureza vegetativa dosinstintos e dos movimentos inconscientes. A redenção do Anthropos, para que ele entre no mundo espiritual,

se dá através do Lapis (a Pedra Filosofal), como expresso na fórmula abaixo:

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se dá através do Lapis (a Pedra Filosofal), como expresso na fórmula abaixo:

Como já vimos na fórmula enantiodrômica, quando o processo se completa, o Anthropos, que desceu

através de sua sombra ao interior da Physis (serpente), se eleva de novo por uma espécie de processo de

cristalização (Lapis).

Devido à falta de vazão ao símbolo de transmutação (Deus está morto!, apregoava Nietzsche), várioscomplexos cindem a vida do indivíduo, fazendo-o gastar sua energia vital em neuroses e padrões decomportamentos inautênticos.

Segundo Jung, a tarefa da Psicologia neste caso é erguer pouco a pouco a mente não desenvolvida dopaciente a um nível mais alto e multiplicar o número dos que pelo menos conseguem vislumbrar a amplidãode uma verdade paradoxal.

"Não se compreende mais o que os paradoxos do dogma pretendiam dizer; quanto mais

exteriormente forem concebidos, mais nos escandalizaremos com sua forma irracional até se

tornarem relíquias bizarras do passado, totalmente obsoletas. Quem passar por este processo

não pode imaginar a extensão de sua perda espiritual, pois jamais experimentou as imagens

sagradas como interiormente suas, isto é, nunca soube do parentesco de tais imagens com sua

própria estrutura anímica" (Jung).

A Psicologia Analítica desta maneira pode prestar esclarecimentos valiosos e um conhecimentoindispensável deste processo, já que ele pode ser vivenciado por todos que estejam dispostos a realizar oopus. Por isso sua relevância. Segundo Jung:

"Não me dirijo também aos beati possidentes (felizes donos) da fé, mas às numerosas pessoas

para as quais a luz se apagou, o mistério submergiu e Deus morreu. Para a maioria não há

retorno possível e nem se sabe se o retorno seria o melhor. Para compreender as coisas

religiosas acho que não há, no presente, outro caminho a não ser o da psicologia; daí meu

empenho de dissolver as formas de pensar historicamente petrificadas e transformá-las em

concepções da experiência imediata".

Quando a personalidade se desloca em direção ao centro de seu ser, ao seu Si-mesmo, o indivíduo podeexpandir-se numa personalidade mais vasta e a neurose, geralmente, se ameniza. Por este motivo, a idéiade um desenvolvimento e evolução da personalidade tem desde o início, segundo me parece, a maiorimportância.

Portanto, é necessário que a 'sociedade moderna' tenha os símbolos certos para compreender o

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Portanto, é necessário que a 'sociedade moderna' tenha os símbolos certos para compreender oincognoscível. Os hindus atingem essa compreensão através de sua vasta literatura e da yoga, os semitas

através da Cabalah; os alquimistas na realização do opus; os povos primitivos com as técnicas xamânicasde êxtase e uso de substâncias psicoativas. Este é o principium individuationis shopenhaueriano.

Portanto, a grande complexidade de determinar o agente das ações impõe um grande dilema moral ao serhumano e a confrontação do bem e do mal. A tomada de consciência do arquétipo impõe à ação humanaum novo significado: a consciência sobre seus atos.

Os arquétipos funcionam como formas de apreensão (idéias) do homo sapiens e também correspondem àforma de seu instinto. No 'mundo das idéias' está o 'espírito e a alma', que, traduzindo para conceitospsicológicos, tornam-se juízos morais, sentimentos, afetos, etc. Eles são diretamente contrários às forçasinstintivas que, quando desenfreadas, geram distúrbios sexuais, alimentares, sociais, econômicos, entreoutros. Mas, segundo Jung:

"O conflito entre a natureza e o espírito não é senão o reflexo da natureza paradoxal da alma: ela

possui um aspecto físico e um aspecto espiritual que parecem se contradizer mutuamente,

porque, em última análise, não compreendemos a natureza da vida psíquica como tal".

Por outro lado, a tentativa da Psicologia Analítica em conhecer esta 'alma da matéria' visa expandir oconhecimento sobre nossa percepção da realidade e de como a consciência se estrutura a partir do eixoEspaço-Tempo.

Na Alquimia uma antiga visão mostra o "nous" (espírito) sendo devorado pelas trevas no momento em queé abraçado pela "physis" (matéria). Essa imagem surge do 'Amor cósmico' do Rex e da Regina e coincidecom a representação de um espírito ctônico de aspecto masculino-espiritual e feminino corporal.

Neste sentido, a diferença é que o "devorado" já não é mais masculino e nem feminino, mas uma unidadeindistinta, um hermafrodita representado pelo Mercurius ou pelo Uróboro. Essa é a substância arcana é

conhecida como a "prima materia" e ela coincide tanto com as substâncias químicas, quanto com a psiquedo alquimista.

Por isso, seus sonhos e visões místicas que ocorriam durante o processo eram entendidas comomensagens enviadas pela alma, a fonte de todo seu conhecimento e o fator de orientação para sua vida.Como comenta Jung:

"Os sonhos e as visões [eram] como importantes fontes de informações, e sobre esta base

psicológica elevaram-se antiqüíssimas e poderosas culturas, como a hindu e a chinesa, que

desenvolveram, filosófica e praticamente até os mínimos detalhes, a via do conhecimento

interior".

Portanto, dada a importância destes sistemas simbólicos arquetípicos e sua relação principalmente com ossonhos e os mitos, ele estudou profundamente a Alquimia e dedicou muitos livros e artigos a este tema,

geralmente fazendo analogias com o gnosticismo, o hinduísmo, o taoísmo e as religiões primitivas. Sobre a

Alquimia, seus livros mais conhecidos são "Psicologia e Alquimia", de 1944; os três volumes do"Mysterium Coniunctionis", sua obra prima, segundo Nise da Silveira; e "Estudos Alquímicos", reunião devários textos, entre outros escritos que aparecem em suas obras.

A relação desta "união de opostos" com nossa vida atual é verificada na conscientização do Si-mesmo, jáque este arquétipo reúne em si, ao mesmo tempo, as grandes oposições filosóficas que podemosconceber:

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Claro que aqui pode ser colocado outros opostos, como a vida e a morte, o masculino e o feminino, o Yin eo Yang, etc, mas a tomada de consciência dos assuntos tratados nesta equação é chamada na Alquimia deOpus Philosophorum (a obra dos filósofos) e isso significa, psicologicamente, uma tentativa de integraçãoda parte inconsciente da psique.

A constatação que estes conceitos estão ligados às nossas escolhas e ações _conseqüentemente aonosso destino_ são sentidos como uma experiência viva e real. Os símbolos que fazem a ponte entre onosso eu finito e nosso eu 'infinito', entre nosso corpo e o Universo, nossa mente singular com oinconsciente coletivo, fazem parte da "filosofia de vida" da pessoa.

Acontece que a consciência (ou a inconsciência) destes conceitos também nos coloca diante de um conflitomoral e "religioso" onde tentamos adequar nossas ações às determinações da fonte de nossa vida e denossos instintos, que é inconsciente.

Tomar consciência de nossa sombra implica em saber a responsabilidade de cada ato que realizamos,tentando integrar essa força instintiva e dialeticamente antagônica à consciência. É um embate psíquicoentre autonomia da consciência em oposição às forças vegetativas e automáticas do inconsciente _mundoeste cercado de movimentos involuntários e complexos.

Estas forças eram antigamente explicadas como os poderes "sobrenaturais" dos deuses e espíritos, hojeainda continuam presentes em nossa realidade e se relacionam diretamente com nossa hybris (soberba).

Nas tragédias gregas a hybris representa o orgulho e a arrogância do herói, sendo que esta atitude éresponsável por sua queda. Edinger comenta que "a hybris representa a arrogância humana que seapropria daquilo que pertence aos deuses".

Portanto, a importância da conscientização destes conteúdos se torna mais clara quando se compreende oque diz Von Franz:

"Sabemos que, em última análise, todos os conflitos do homem não são criados pela sua

'atitude consciente errônea', mas sim pelo seu próprio inconsciente, que almeja com isso, reunir

os opostos num nível mais elevado".

O ego, neste dilema, sente-se sobrepujado, quase pulverizado, sentindo que aos poucos as forças doinconsciente vão minando sua autonomia e tentativa de ordem conquistada em milhões de anos deevolução. E isso causa um sofrimento psíquico muito grande, pois a pessoa pode ter a sensação de 'estar

ficando louca'.

Diante disso, o indivíduo sente o dever moral (quase como uma obrigação!) de resolver filosoficamente um

problema insolúvel, cuja resposta vem sendo conduzida pelo Si-mesmo ou Mista'peo, o companheirointerior representado pelo Grande Homem dos índios Naskapi, ou o Primus Anthropos, o Homem Original,dos gnósticos e Vishnu, na mitologia hindu, como a Superalma ou o Vidente.

Quando isto acontece, surgem de maneira compensatória nos sonhos e em fantasias diurnas algunssímbolos totalitários, sinal de que o Si-mesmo foi ativado. O quadrado, a cruz, o círculo, a espiral, o Sol e oouro, entre outros, aparecem espontaneamente em todas as épocas e culturas na forma de configuraçõesmandálicas, pois possuem uma função estruturadora do ego e, portanto, terapêutica.

A relação destes símbolos com a Alquimia é evidente. Von Franz comenta que o ouro filosófico seria:

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"a emanação ativa, o dinamismo psicológico ativo do Self. Inserir isso no corpo da realidade

equivaleria, em nossa linguagem, a dizer que deveríamos observar a atividade do Self dentro de

nós mesmos e tentar torná-lo uma influência sobre nossa vida real".

O fato é que quando estes símbolos aparecem, também é possível que venham acompanhados de umsentimento de sincronia com a vida e o Universo _indicando a natureza do arquétipo. Esta harmonia, emtermos psicológicos, demonstra que houve uma projeção e uma equivalência do Si-mesmo com o Universoe esta é uma experiência amplamente divulgada desde épocas muito remotas, como a dos xamãs e suastécnicas primitivas de êxtase. Ocorre, portanto, uma experiência cognitiva, semelhante à física, mas denatureza psíquica.Segundo Jung:

"Os símbolos oníricos do processo de individuação são imagens de natureza arquetípica que

aparecem no sonho; elas descrevem o processo de busca do centro, isto é, o estabelecimento

de um novo centro da personalidade. [...] O Si-mesmo não é apenas o ponto central, mas

também a circunferência que engloba tanto a consciência como o inconsciente. Ele é o centro

dessa totalidade, do mesmo modo que o eu é o centro da consciência".

Eles aparecem desta maneira porque repetem justamente um padrão da própria diferenciação do ego (2) e

da consciência filogenética (do homo sapiens) em relação à obscuridade da inconsciência dos instintos.

Desta forma, a terapia visa ajudar o paciente a descobrir sua personalidade mais abrangente e que leve emconta estes fatores simbólicos inconscientes. Isso para que ele acabe aceitando a profunda dialéticaenvolvida nas questões sobre a origem de sua vida, da psique e do Universo _problemática psique-matériaou alma-corpo_ e encontre, ele próprio, sua resposta a elas.

Este processo é corroborado, às vezes, pelo aparecimento destes símbolos mandálicos estruturadores,indicando que o Si-mesmo está trabalhando pela integração e unificação da personalidade. Quando issoacontece, o indivíduo pode resolver seus conflitos morais causados pela falta de maleabilidade suficientede sua personalidade _que permanece com suas crenças rígidas e irracionais (neuroses)_, ajudando-o naintegração dos conteúdos inconscientes.

Esta experiência causa o fortalecimento da individualidade e da personalidade pela discriminação e

conscientização dos conteúdos arquetípicos do Si-mesmo e do inconsciente coletivo. Isto corresponde aoprocesso de Individuação, que trabalha para integrar os conteúdos inconscientes, como a sombra, as sígiasanimus e anima e a totalidade psíquica (Si-mesmo).

Também é possível entender este processo como uma tentativa de integração do ego com o não-ego; doconsciente com o inconsciente; do ser individual com o Universo e a totalidade.

Este encontro com o Si-mesmo coincide com um esforço pessoal e coletivo de auto-realização pelo auto-conhecimento, buscando atingir, da melhor maneira possível, a bem-aventurança.

No Oriente temos o dharma (dever ocupacional), que exige uma retidão e um esforço nas realizaçõeshumanas. Isso confere às ações individuais um sentido mais amplo, pois este esforço culmina num trabalhoindividual para a evolução individual e coletiva.

Jesus, Sidharta Gautama Buddha, Muhammad (Maomé), Lao Tsé e Caitanya Mahâprabhu, representam oarquétipo manifesto e, portanto, a 'encarnação do Verbo', o Deus feito homem para se realizar plenamenteo caminho (Tao) dos seres viventes.

Todos eles viveram seu próprio mito e ensinam que a vida é um trabalho espiritual de auto-conhecimento.Este processo leva à consciência ou conhecimento de Deus (a ordem suprema, o vazio ou a totalidade

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Este processo leva à consciência ou conhecimento de Deus (a ordem suprema, o vazio ou a totalidadecontida na imago Dei) e isto só é possível com uma integração do inconsciente pelo fator simbólicotranscendente.

Assim o indivíduo unifica e harmoniza o embate do "bem contra o mau" da "luz contra as trevas" contidos napersonalidade e nas antinomínias da vida, como visto na Fig. 2. A conseqüente integração dos complexosleva o indivíduo a compreender essa "ordem maior" e ele adquire o conhecimento de Deus (do arquétipo doSi-mesmo, na Psicologia Analítica) em sua totalidade, como aconteceu com Jó. Psicologicamente, estedrama surge devido à natureza luminosa da consciência contra a obscuridade das ações inconscientes.Segundo relata Jung:

"A resistência do consciente contra o inconsciente, bem como a depreciação deste último, é

uma necessidade histórica do desenvolvimento da consciência, pois de outro modo ela nunca

se teria diferenciado do inconsciente. A consciência do homem moderno porém distanciou-se

demasiadamente da realidade do inconsciente.

Ele acabou por esquecer-se que a psique não depende da nossa intenção, mas é em sua maior

parte autônoma e inconsciente. Por isso o contato com o inconsciente provoca um terror pânico

no homem civilizado, em boa parte devido à analogia ameaçadora que ele apresenta com a

doença mental. [...] dar livre curso ao inconsciente e vivenciá-lo como uma realidade ultrapassa a

coragem e o saber da maioria das pessoas. Estes preferem não compreender este problema e

para os espíritos fracos assim deve ser, pois a coisa não é isenta de perigo".

Portanto, a tentativa de resolução desta batalha é um verdadeiro mysterium coniunctionis e diz respeito àintegração de nossa sombra, a outra metade da totalidade psíquica da individualidade (representado noscírculos gnósticos pelo filius macrocosmi e o filius microcosmi); o duplo aspecto de Cristo e seu irmãomais velho Satanael; o bem absoluto em oposição à ausência de luz, a sombra e o anticristo. Os gnósticosacreditavam que é pelo conhecimento advindo da serpente no Paraíso que levou Adão à descoberta do

homo totus (o homem total).

Por isso temos que entrar em contato com nossa sombra, nosso lado escuro, inconsciente, que sabotanossas ações e as dos outros _nosso daimon.

Diante deste desafio, onde a consciência se depara com o inconsciente, há a uma suspensão daresolução do conflito para um plano arquetípico e simbólico. De forma compensatória ocorre uma tentativa

de harmonização destes conteúdos, que se anulam ou se destroem, surgindo na consciência os símbolosem formas mandálicas ou na forma de uma quadratura circuli (quadratura do círculo), onde um conteúdoirrepresentável ganha uma discriminação quatripartida e, ao mesmo tempo, circular _forma estairrepresentável na consciência, mas que anuncia uma união dos opostos ou hierosgamos (núpciassagradas).

Neste momento, as quatro funções de orientação se ativam e, conseqüentemente, surge uma sensação deque somos formados por quatro elementos (físico [sensação], psicológico ou mental [sentimento], espiritualou razão [pensamento] e alma [intuição]).

A parte física inanimada do nosso corpo (formada por átomos de carbono e gerada conjuntamente com osoutros elementos nas fornalhas estrelares) se depara com uma substância que anima o corpo, a almaimortal, proveniente de Deus, a substância arcana (Éros), que se apresenta como o amor e a bondade

absoluta, o summum bonum.

"As camadas mais profundas da psique vão perdendo com a escuridão e fendura crescentes a

singularidade individual. Quanto mais 'baixas', isto é, com a aproximação dos sistemas

funcionais autônomos, tornam-se gradativamente mais coletivas, a fim de se universalizarem e

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funcionais autônomos, tornam-se gradativamente mais coletivas, a fim de se universalizarem e

ao mesmo tempo se extinguirem na materialidade do corpo, isto é, nas substâncias químicas. O

carbono do corpo é simplesmente carbono. Em seu nível 'mais baixo' a psique é simplesmente o

'mundo'".

A vivência disso resulta numa constatação complicada da dualidade humana: o indivíduo percebe que, se aalma é o bem absoluto, a matéria do corpo é o mal absoluto. Realizar a síntese destes opostos no Si-mesmo é a meta do processo de Individuação.

Dessa forma, é só com a projeção do Si-mesmo, como símbolo do Homem-Deus ou Deus feito homem,

que encarnou para redimir a todos, que este conflito é solucionado.

Como já é conhecido, esta vivência é uma constatação empírica fartamente documentada do primeiroséculo de nossa era até o séc. XVIII no trabalho alquímico/cristão, onde o Cristo aparece como o símbolo doopus.

Em poucas palavras, este foi o drama vivenciado por alguns alquimistas no interior de seus laboratórios. Nodecorrer do processo, exausto, depois de várias noites sem dormir, diante da química do mercúrio, doenxofre e do chumbo, eles vivenciavam esta experiência cósmico-cristã.

Ele sentia que era um dever com a humanidade sua busca pela pedra da união, chamada também de lapisphilosophorum, ouro verde ou elixir vitae (elixir da longa vida) _a cura para todas as doenças. Dessamaneira, ele realizava, com a ajuda do intelecto e da razão, seu trabalho de redenção, as núpcias químicasonde os elementos antes separados, agora se unem em amizade, ocorrendo a união das naturezasopostas. Segundo Jung,

"insiste-se na importância ou necessidade da razão (mens) e da inteligência, não só porque a

execução de uma obra tão difícil exige uma inteligência invulgar, mas porque segundo se

presume há uma espécie de poder mágico inerente à mente humana, capaz de transformar a

própria matéria".

Dorneus (3), quando escreve sobre a obra alquímica e a transformação moral e intelectual do homem diz:

"Na verdade, a forma que corresponde ao intelecto do homem é o começo, o meio e o fim do

processo; tal forma é revelada pela cor amarela [citrinitas], indício que o ser humano é a forma

principal e a maior no opus espagírico [grifo meu] (4)".

Como se trata de uma situação arquetípica, o caminho de seupensamento já havia sido indicado no texto harranita (5) do

Tratado das tetralogias platônicas, como será visto adiante(parte 2 deste artigo).

Segundo Jung, dentro do vas (o vaso filosófico que correspondeà consciência do homem e à Pedra Filosofal) devem estarcontidos os quatro elementos e, através da quadratura docírculo, surge o mediador (Hermes-Thoth, o nomeador doselementos _o Si-mesmo) que promove a paz entre oselementos. Ainda citando o alquimista Dorneus ele comenta:

"A forma do homem primordial é redonda. Dorn diz,

conseqüentemente, que o recipiente deve ser fabricado

de acordo com uma "espécie de quadratura do círculo [grifo meu], graças ao que, o espírito e a

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alma de nossa matéria, quando separados de seu corpo, poderão elevá-lo consigo até às

alturas de seu céu". O autor anônimo dos escólios no 'Tractatus aureus Hermetis' se refere

também a esta quadratura e propõe a representação de um quadrado cujos ângulos são

descritos mediante os quatro elementos. No centro deste quadrado se acha um pequeno círculo.

O autor diz, a respeito do conjunto: "Divide esta pedra nos quatro elementos, retifica-os e reúne-

os em um só, e com isto terás toda a obra dos mestres. O uno ao qual devem ser reconduzidos

os elementos é aquele minúsculo círculo situado no centro da figura quadrada. De fato, este

círculo é o mediator [mediador] que promove a paz entre os inimigos, ou seja, entre os

elementos", etc. Em um capítulo posterior, o autor reproduz a figura do recipiente, o 'verdadeiro

pelicano filosófico', da seguinte maneira:

A este respeito, ele comenta: 'A representa o interior; em certo sentido é a origem e a fonte de

onde provém as demais letras, sendo, ao mesmo tempo, a meta final e definitiva à qual retornam

todas as outras coisas, tal como os rios que fluem de volta ao Oceano ou ao grande mar'. Basta

esta explicação para mostrar que o recipiente não é senão um mandala que simboliza o si-

mesmo ou o 'Adam anõ' [Adão superior], com as suas quatro emanações [à semelhança de

Osíris com seus quatro filhos].

[...] Desta imagem resulta um mandala constituído de quatro partes. Este mandala representa,

como indicamos acima, a quadratura do círculo com a qual se deve fabricar o recipiente,

segundo se lê numa instrução alquímica. O mandala designa o si-mesmo humano ou divino, ou

seja, a totalidade ou o conceito de Deus, como se percebe claramente no presente caso.

Evidentemente uma instrução desta natureza só pode ser entendida em sentido 'filosófico' isto é,

'psicológico'. O seu conteúdo é o seguinte: faz o recipiente hermético com a totalidade de tua

alma e despeja nele a 'aqua permanens, id est doctrinae' [a água permanente, isto é, da

doutrina], cujo sinônimo, como sabemos, é o 'vinum ardens' [vinho de fogo]. Há aqui,

certamente, uma indicação de que o adepto deve digerir e transformar-se a si próprio

mediante a doutrina da Alquimia [grifo meu].

O recipiente hermético redondo no qual se opera a misteriosa transformação significa a

divindade, a alma do mundo (de Platão) e a totalidade do homem. Eis outro correspondente do

Anthropos, e ao mesmo tempo o universo em sua forma menor e mais material (Jung).

Na Alquimia, portanto, a quaternidade do círculo representa e é, por natureza,

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Na Alquimia, portanto, a quaternidade do círculo representa e é, por natureza,o próprio Uróboro e a resolução do conflito dialético atingido na busca da

Individuação _a unidade da separação ou solve et coagula (dissolve esolidifica).

Evidentemente, esta é uma experiência incomum e vivida por poucas pessoas_geralmente não antes da segunda metade da vida. A Individuação é umprocesso que ocorre durante toda a vida, mas, às vezes, há uma intensificaçãoantes da maturidade da idade adulta e, quando isso acontece, há umamudança na forma da pessoa encarar sua vida, fazendo-a manifestar, àsvezes, alguns 'comportamentos místicos', num sentimento de comunhão eharmonia com a vida.

Esse era o alquimista e o místico que sabia que o Si-mesmo não estava naconsciência do eu, mas em algum lugar fora dela. Psicologicamente o Si-mesmo encontra-se em nós, mas naquilo que somos e ainda não conhecemos, ou seja no inconsciente. Porisso o alquimista precisava situar seu arquétipo exteriormente no espaço e, assim, o centro ficava,paradoxalmente, no homem e ao mesmo tempo fora dele, como indicado por Dorn.

Porém,

"a união dos contrários na pedra só será possível se o próprio adepto se tornar uno. A unicidade

da pedra corresponde à individuação, à unificação do homem. Diríamos que a pedra é uma

projeção do Si-mesmo unificado".

Segundo Jung:

"Dorn identifica o centro transcendente do homem com a imago Dei [imagem de Deus]. Esta

identificação permite-nos entender por que motivo os símbolos alquímicos da totalidade valem

tanto para o "arcanum" presente no homem como para a divindade, e porque, em suma,

substâncias como o "mercurius" [mercúrio] e o "sulfur" [enxofre] ou elementos como a água e o

fogo, são relacionados com Deus, com Cristo ou com o Espírito Santo. E Dorn vai mais longe

ainda, conferindo o predicado do ser única e exclusivamente a este [...] si-mesmo, que se

identifica com a divindade".

O risco que se corre neste processo é quando, psiquicamente, não se alcança uma racionalização para osímbolo, como por exemplo ocorreu com Nietzche. Como comenta Jung:

"Nietzsche não era ateu, mas o seu Deus havia morrido. O resultado desta morte foi sua cisão

interior que o compeliu a personificar seu outro "Si-mesmo" (Selbst) como "Zaratustra" ou, em

outra fase, como "Dionísio". Durante sua enfermidade fatal ele assinava suas cartas como

"Zagreus", o Dionísio despedaçado dos trácios. A tragédia de Assim Falava Zaratustra consiste

em que o próprio Nietzsche, não sendo ateu, se transformou em deus, porque seu Deus havia

morrido".

Neste caso, o resultado foi uma patologia que Jung chamou de inflação. É de extrema importância para aPsicologia um caso como este, pois cada vez mais os habitantes das grandes cidades tendem adesenvolver uma forma peculiar de neurose chamada ateísmo. Segundo Jung, "aquele para quem 'Deusmorre' se torna vítima da 'inflação'".

Dessa forma o ego se desintegra em alguns sintomas esquizofrênicos pela identificação do Eu com os

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Dessa forma o ego se desintegra em alguns sintomas esquizofrênicos pela identificação do Eu com osconteúdos do Si-mesmo. "Em conseqüência da inflação, a hybris humana escolhe o eu, em suamiserabilidade visível, para senhor do Universo. Tal é o caso de Nietzsche, prenúncio incompreendido deuma época".E é por isso que a Psicologia Analítica tem a obrigação de fornecer suporte para a conscientização destessímbolos psíquicos e ajudar a conhecê-los é o principal objetivo da Psicologia Analítica.

A prima materia

A prima materia é geralmente associada ao estado inicial da obra, um aspecto do homem na consciênciacomum, o chamado estado de vigília. Diferente da consciência. As diversas fases do processo tambémaparecem ligadas aos elementos e o desenvolvimento da consciência. Como exemplo desse processo,Jung faz o comentário psicológico de um tratado harranita antiqüíssimo _que em sua versão árabe não se

situa muito depois do séc. X, mas que contém inúmeras partes ainda mais antigas_ intitulado: Tratado dastetralogias platônicas, como se segue.

I II III IV

1. De opere naturalium(sobre a obra dascoisas naturais)

1. Elementum Aquae[água]

1. Nature compositae(Naturezas compostas)

1. Sensus (sentidos)

2. Exaltatio divisionis

naturae (Exaltação dadivisão da natureza)

2. Elementum terrae[terra]

2. Naturae discretiae(Naturezas distintas)

2. Discretio intellectualis(Discernimento intelectual)

3. Exaltatio Animae(Exaltação da alma)

3. Elementum aëris[ar]

3. Simplicia (Coisassimples)

3. Ratio (razão)

4. Exaltatio intellectus(Exaltação do intelecto)

4. Elementum ignis[fogo]

4. Aetheris simplicioris(Coisas etéreas ainda

mais simples)

4. Res quam concludunt

hi efefectus praecedentes (A coisa incluída

nas operaçõesprecedentes)

Tabela: Tratado das tetralogias platônicas

Essas tetrametrias representam os quatro aspectos do processo alquímico, chamado de opus

philosophorum. Devido à projeção inconsciente, é nítido que os processos químicos materiais encontravamparalelos com os processos filosóficos e psicológicos. Há, portanto no texto uma identificação entre a

psique do alquimista e a substância arcana ou substância de transformação: o Mercurius ou espírito cativodentro da matéria.

Pelo estudo dos filósofos o homem torna-se capaz de atingir a pedra filosofal (lapis philosophorum), e que,por sua vez, é o próprio homem. O alquimista Dorneus comenta que:

"Há uma certa verdade nas coisas naturais, impossível de ver-se com os olhos exteriores, mas

que só a mente percebe. Os filósofos a experimentaram e acharam que sua força é tão grande a

ponto de operar milagres. [...] Tal como a fé que opera milagres no ser humano, assim também

esta força, a 'veritas efficaciae' (verdade da eficácia), faz o mesmo na matéria. Esta verdade é a

força suprema, de uma fortaleza invencível e nela a pedra dos filósofos está em segurança".

Dessa forma, a divisão da natureza que aparece na segunda linha horizontal é a decomposição da matériaoriginária nos elementos. Abaixo dela está a exaltação da alma, que ocorre quando a "anima" é separada

de seu corpo (separatio), vencendo assim a 'animalidade' dos instintos "mais do que o faz a natureza, a fimde que, por esta preparação, se assemelhe às inteligências mais elevadas e verdadeiras". Sobre esteprocesso, Jung explica que:

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"O trabalho principal cabe ao intelecto: isto é, a sublimação até o estágio mais elevado, onde a

natureza é transformada no simples, o qual, segundo sua própria natureza, tem afinidade com os

espíritos, os anjos e as idéias eternas. Na segunda coluna, a este estágio mais elevado

corresponde ao fogo [...], na terceira coluna, a forma etérea (a mais elevada) da natureza

transformada, e na quarta, a meta de todo o processo".

Analisando mais detalhadamente a coluna horizontal, a primeira linha nos transmite a idéia que a obrainicia-se sobre os elementos naturais, que, psicologicamente, é representada pela consciência do homem

comum. Esta era a chamada "prima materia" que, ainda num estado indiferenciado, é indicado pela suanatureza composta, ou seja, onde as coisas encontram-se 'misturadas'. Um simbolismo muito usado para

definir a prima materia é o estado caótico, ou inconsciente, representado pela água, chamada na Alquimiatambém de "aqua permanens".

Jung comenta que este estado encontra sua correspondência na quarta coluna (vertical) como a percepçãodos sentidos. Já a segunda linha horizontal significa um grau mais elevado do processo.

"As naturezas misturadas são decompostas e transformadas de novo em seus elementos

originais; na segunda coluna, a terra é separada da água (primordial), segundo o tema do

Gênesis, tão apreciado na Alquimia; na terceira coluna, trata-se de uma separação conceitual e

na quarta, do ato psicológico do discernimento.

A terceira linha horizontal mostra ainda mais nitidamente a progressão ascendente: na primeira

coluna (vertical) a alma emerge da natureza; na segunda, ocorre uma elevação para o reino do

ar; na terceira, o progresso chega às coisas "simples", as quais, por não serem misturadas, são

incorruptíveis, eternas e se aproximam das idéias platônicas; na quarta, finalmente, ocorre uma

ascensão da "mens" (mente) à "ratio" (razão), à "anima rationalis" (alma racional), isto é, à

forma suprema da alma. A quarta linha horizontal mostra a plenitude de cada uma das quatro

colunas".

Visto verticalmente, a primeira coluna corresponde a um estágio de desenvolvimento da consciência de um

estado originalmente inconsciente até chegarmos ao elemento da quarta coluna (Exaltatio intellectus), quecorresponde à somatória dos fenômenos naturais e no qual emerge o elemento psíquico como umfenômeno nítido da percepção e do entendimento. Jung comenta: "sem dúvida, não estamos violentando otexto ao considerarmos esse 'intellectus' como a suprema lucidez da consciência".

Na segunda coluna vertical, além do elemento água que, como já visto corresponde ao inconsciente, ocorrea diferenciação do elemento terra. De acordo com uma antiga concepção alquímica:

"[A terra] surge das águas caóticas e originárias, da "massa confusa"; sobre ela o ar se

acumula como elemento volátil, desprendendo-se da terra. Acima de tudo o fogo, a substância

mais "fina", isto é, o pneuma ígneo, que já toca o trono dos deuses.

Terceira coluna: esta coluna é de natureza conceitual ou ideal, contendo portanto juízos

intelectuais. O que é misturado decompõe-se em diversos componentes que, por sua vez, são

reduzidos ao "simples"; deste, emergem finalmente as quintessências, ou seja, as idéias

simples e originais. O éter é a quintessência.

Quarta coluna: esta coluna é exclusivamente psicológica. Os sentidos transmitem a percepção.

A "discretio intellectualis" corresponde à apercepção, que está submetida à "ratio", ou à

"anima rationalis", supremo bem concedido por Deus ao homem. Acima da "anima rationalis"

só está a "coisa", resultado de todas as operações precedentes. O Liber quartorum interpreta

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só está a "coisa", resultado de todas as operações precedentes. O Liber quartorum interpreta

esta "coisa" como sendo "o Deus invisível e imóvel", cuja vontade criou a inteligência; a alma

simples originou-se da vontade, bem como da inteligência (compreendida aqui como

'intellectus').

Dessa forma percebemos uma evolução de elementos cujas naturezas são "distintas" e vão se tornandocada vez mais "compostas". O outro texto alquimista que retrata este mesmo processo é a série deAtanásio Kircher, que também desenvolveu um sistema de quaternidades:

I Unum = Monas monadikê = Deus = Radix omnium = Simplicissima mens = Divina essentia

= Exemplar divinum. (O Uno = Primeira mônada = Deus = Raiz de todas as coisas = Mente

simplicíssima = Essência divina = Modelo divino).

II 10 (1 + 2 + 3 + 4 = 10) Secunda Monas = dekadikê = Dyas = Mundus intellectualis =

Intelligentia angelica = compositio ab uno et altero i. e. ex oppositis. (Segunda mônada =

décima = díade = Mundo do intelecto = Inteligência dos anjos = Composição do um e do outro =

isto é, com os opostos).

III 10² = 100 = Tertia Monas = hekatontadikê = Anima = Intelligentia. (Terceira mônada =

centésima = Alma = "Inteligência").

IV 10³ = 1000 = Quarta Monas = chiliadikê = Omnia sensibilia = Corpus = ultima et sensibilis

unionum explicatio. (Quarta mônada = milésima = todas as coisas concretas = Corpo =

Desdobramento final e concreto das unidades).

Segundo Jung:

"Kircher observa, a respeito, que enquanto os sentidos entram em contato apenas

com o mundo corporal, as três primeiras unidades são objetos da inteligência. Quem

deseja compreender as coisas do mundo sensível (sensibilia) só poderá fazê-lo

mediante o mundo das coisas espirituais. "Por isso tudo o que é sensível deve ser

elevado ao plano da razão ou da 'inteligência' ou da unidade absoluta. Quando,

portanto, tivermos reconduzido deste modo à unidade absoluta, da multiplicidade

das coisas sensíveis, racionais ou intelectuais (imateriais), à infinita simplicidade,

nada mais se poderá dizer e a pedra também não será, ao mesmo tempo, pedra e

não-pedra, pois tudo será a simplicíssima unidade. E da mesma forma que Deus é,

como modelo, a unidade absoluta daquela pedra concreta e racional, assim também

a inteligência é sua unidade intelectual. Tu poderás ver também, por estas unidades,

como o sentido (sensus) remonta à razão, a razão à inteligência, a inteligência a

Deus, onde o inicio e a consumação se encontram, num perfeito curso circular".

Percebe-se até aqui, que essas representações reproduzem, com uma semelhança incrível, o processo da

Tetralogia, como visto acima. Na série de Kircher o Unum (Uno), ou Simplicissima mens (Mentesimplicíssima) se manifesta pelo processo quádruplo (1 + 2 + 3 + 4), seguido pelo Mundus intellectualis

(Mundo Intelectual) ou Intelligentia angelica (Inteligência dos anjos) e depois na terceira e na quartamônada, que corresponde à inteligência e o corpo _o desdobramento final e concreto das unidades.

Evidentemente, aqui existe novamente uma união dos opostos, a mais completa possível, buscando unir atrindade masculina com a quaternidade feminina e originando a percepção do espaço-tempo.

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A analogia que pode ser feita com esta manifestação tripla é a dos três "regimina" (processos) da alquimiacomentada por Jung, através dos quais os quatro elementos se transformam uns nos outros ou sãosintetizados na quintessência:

1º "regimen": da terra à água.

2º "regimen": da água ao ar.

3º "regimen": do ar ao fogo.

Aqui novamente entra a problemática dos opostos, onde surge uma hesitação ou incerteza entre o espirituale o físico, onde o quarto elemento sempre é encoberto e vago, como no axioma de Maria Prophetissa [o umque nasce com o quatro]. Edinger comenta a esse respeito que:

"A imagem da quaternidade exprime a totalidade da psique em seu sentido estrutural, estático

ou eterno, ao passo que a imagem da trindade exprime a totalidade da experiência psicológica

em seu aspecto de desenvolvimento, dinamismo e temporalidade.

Imagens quaternárias, de mandala, emergem em períodos de turbulência psíquica, e trazem

consigo um sentimento de estabilidade e de repouso. A imagem da natureza quaternária da

psique fornece uma orientação estabilizadora [...].

Os símbolos trinitários, por outro lado, implicam crescimento, desenvolvimento e movimento no

tempo. Eles cercam a si mesmos com associações dinâmicas e não estáticas" (Edinger).

Ele cita Baynes ao dizer que o arquétipo trino simboliza um aspecto dinâmico ou vital:

"O número três está associado especificamente ao processo criador... Toda função de energia

da natureza tem, na verdade, a forma de um par de contrários, unido por um terceiro fator, seu

produto. Assim, o triângulo é o símbolo de um par de contrários unidos em cima ou embaixo por

um terceiro fator".

Dessa forma é possível perceber que, em termos psicológicos, todos os eventos que se desenrolam notempo se enquadram neste padrão ternário. Exemplos dessa afirmação podem ser percebidos nosmovimentos que tem um início, mantendo-se por algum tempo (meio) e chegando a um fim; e também naestruturação da consciência que organiza o tempo em três categorias, passado, presente e futuro.

Portanto, é como se, depois da encarnação da divindade, o tempo pudesse se manifestar e, por isso, elaspresidem os doze meses do ano, as doze horas do dia e as doze da noite, etc.

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Notas

(1) Frederico Eckschmidt - Psicólogo clínico, formado pela Universidade Mackenzie.

(2) O ego biologicamente surge da diferenciação, entre outros fatores, dos estímulos internos e externos doorganismo vivo e psicologicamente ele se origina do inconsciente coletivo.

(3) Gerard Dorn, também conhecido como Gerardo Dorneus.

(4) "Verum forma quae hominis est intellectus, initium est, medium et finis praeparationibus: et ista

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(4) "Verum forma quae hominis est intellectus, initium est, medium et finis praeparationibus: et ista

denotatur a croceo cobre, quo quidem indicatur hominem esse maiorern formam et principalem in operespagirico."

(5) A escola harranita é uma das mais importantes da filosofia hermética árabe. A cidade de Harran estálocalizada na Turquia (fronteira com a Síria) e era considerado um grande centro de estudos filosóficos ealquímicos.

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