A agua no grande sertaõa veredas

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA João Batista Santiago Sobrinho Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG 2003

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCEGRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

João Batista Santiago Sobrinho

Belo HorizonteFaculdade de Letras da UFMG

2003

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João Batista Santiago Sobrinho

IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS,DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários daUniversidade Federal de Minas Gerais, comoparte dos requisitos para obtenção do título deMestre em Teoria da Literatura.

Área de Concentração: Teoria da Literatura

Orientadora: Profª. Dra. Marli de OliveiraFantini Scarpelli

Belo HorizonteFaculdade de Letras da UFMG

2003

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FICHA CATALOGRÁFICA

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras:Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, em 12 de maio de 2003, eaprovada pela banca examinadora composta pelos seguintes professores:

Profª Drª Marli de Oliveira Fantini ScarpelliFaculdade de Letras/UFMG Orientadora

Profº Drº Murilo Marcondes de MouraFaculdade de Letras/UFMG Titular

Prof. Dr. Benjamim Abdala Junior

USP Titular

Profª Drª Sônia QueirózFaculdade de Letras/ UFMG Suplente

Profª Drª Maria Zilda Ferreira CuryCoordenadora do Programa de Pós-Graduaçãoem Letras: Estudos Literários FALE/UFMG

Faculdade de LetrasUniversidade Federal de Minas Gerais

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Dentro da água eu sou feliz,dentro da água é o amor

(João Gabriel Alves de Macedo Batista Santiago)

O melhor de tudo é a água(João Guimarães Rosa)

Perto de muita água, tudo é feliz.(João Guimarães Rosa)

Tudo é água bebível.(João Guimarães Rosa)

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foto: António Nunes

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Para Adriana, minha companheira, e João Gabriel, meu filho.Para meus pais, Maria da Conceição Santiago, minha primeira Água,

e Alcebíades Batista Santiago, “Canoeiro-mestre” que me ensinou o caminho das águas.

Para meus irmãos, Januário, José Fernandes, Severina e Justina.

Para meus sobrinhos Bira e Maria.

Para meus amigos, Carlos Magno, Sildo, Cláudia Margarida,Franklin, Enaldo, Ane, Mauro Rosa.

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Agradecimentos

À professora Marli de Oliveira Fantini Scarpelli, a quem já disse textualmente que sempre teráo status mítico da primeira professora.

Ao professor Murilo Marcondes Moura, pela amizade, pelas indicações bibliográficas, livrosemprestados e conselhos oportunos.

Ao professor Luiz Cláudio Vieira de Oliveira cujo parecer sobre o projeto foi de grande valia.

À professora Nilcéa Moraleida Bernardes pelo incentivo, indicações bibliográficas, e o amorcompartilhado pelas águas.

À professora Sônia Queiroz pelo olhar poético e cumplicidade na leitura das imagens da água.

Ao professor Mauro Rosa, meu querido amigo, a quem uma vida inteira não seria suficientepara agradecer.

À instituição UFMG pelo privilégio de compartilhar o saber crítico e me fazer melhor cidadão.Sempre, em terras da UFMG, tenho a sensação do sagrado e me emociono.

Aos professores da Faculdade de Letras, meu profundo respeito e agradecimento.

À UNA, Faculdade de Ciências Gerenciais, onde dou aula atualmente.

Aos meus queridos alunos, pelo respeito e ensino compartilhados.

À Vivien Gonzaga, sempre por perto.

À Kênia e à Josiley Francisco, pela amizade, cumplicidade e incentivo.

À Jovelina, Jô, minha sogra, pela paciência e solidariedade nos bons e maus tempos.

Aos colegas de graduação, por compartilharem comigo seus preciosos saberes.

À água fonte e origem da vida.

Quando vim de Rio Pomba, estava morto por lá, a correnteza do rio me sussurrou vagamente,que eu havia de ir embora, encontrar outras águas, e muito me ajudaram e ensinaram ocaminho: Andréia, ex-companheira, e seu Abiron, meu compadre, meu “Quelemém”.

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Sumário

Resumo.............................................................................................................................9

Introdução..................................................................................................................... 11Capítulo 1 - A água como matéria poética do sertão............................................................. 19

1.1. A natureza e a literatura brasileira.............................................................................. 191.2. A presença da água na obra rosiana............................................................................ 241.3 A metafísica e as águas............................................................................................... 301.4. O veredeiro e o escritor............................................................................................... 331.5. Velho Chico................................................................................................................ 381.6. Todas as águas.............................................................................................................41

Capítulo 2 - Ressoadores líquidos............................................................................................ 44

2.1. Cavalos, touros, orvalhos, luas de água...................................................................... 442.2. O sapo e a rã................................................................................................................ 512.3. Morte sob as águas...................................................................................................... 532.4. Águas de Maria Mutema............................................................................................. 562.5. Águas (im)puras.......................................................................................................... 59

Capítulo 3 - Ramagens de água........................................................................................... 64

3.1. Rios às voltas com o mundo........................................................................................643.2. Água da memória........................................................................................................ 673.3. Águas primordiais, águas batismais............................................................................693.4. Águas do bem e do mal............................................................................................... 793.5. Águas melancólicas.....................................................................................................82

Capítulo 4 - Águas do nunca mais........................................................................................... 92

4.1. O nome líquido............................................................................................................924.2 Mel.............................................................................................................................. 944.3. Como quando a chuva entre-onde-os-campos.............................................................964.4. Águas inesperadas....................................................................................................... 994.5. Riachinho: águas fadadas..........................................................................................103

Capítulo 5 - O deserto antes e depois..................................................................................... 111

5.1. O deserto................................................................................................................... 1115.2. O gênio serpente e o retorno ao mar do Suçuarão.................................................... 1165.3. Lembrares e sustâncias..............................................................................................1255.4. O desencontro das águas........................................................................................... 129

Conclusão – Mentiras d’água................................................................................................. 138Abstract.................................................................................................................................... 144Referências bibliográficas.......................................................................................................146

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Resumo

Neste trabalho analisamos algumas imagens da água no romance Grande sertão:

veredas, de João Guimarães Rosa, sob duas perspectivas complementares, ou

seja, valer-nos-emos tanto de operadores teóricos buscados tanto ao universo do

"símbolo" quanto ao da "metafísica". Sem nos desviarmos do "local",

buscaremos descortinar, nas águas do sertão rosiano, uma consonância com as águas do

mundo.

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Introdução

Isso é do tempo que o rio faceava com as margens

Tião Carroceiro1

Do objeto

Pretendemos, neste trabalho, enfocar “imagens da água” presentes no

romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Tratando-se de um estudo

que deverá ser consolidado no espaço de uma dissertação, torna-se necessário fazer um

recorte quanto aos aspectos a serem contemplados na análise dessas imagens, bem como

estabelecer referenciais teóricos para a sua abordagem. Por outro lado, cumpre ressaltar

que as incursões feitas ao Grande sertão: veredas2 impuseram, desde o início, uma

leitura guiada pela força das próprias imagens literárias desse romance.3 Assim sendo,

pretendemos sujeitar essas imagens da água em GSV a um cerceamento mínimo, mas

suficiente para conciliar a ação interpretativa com os interesses de uma investigação

científica. Desse modo, este trabalho levará em conta formulações teóricas que possam

sustentar ou, preferencialmente, ampliar as interpretações que advêm do contato com as

imagens oferecidas pelo romance do escritor mineiro. Contudo, é preciso registrar que

há uma dificuldade inerente à abordagem aqui proposta, já que, como assinala Massaud

Moisés, o próprio termo "imagem" é um

vocábulo de ampla instabilidade semântica, não só porque empregado comfreqüência na linguagem cotidiana e na linguagem científica, filosófica,psicológica etc., como porque, no terreno propriamente literário, exibeconotações variáveis, discutíveis e infensas a todo esforço de precisão erigor.4

1 Tião Carroceiro é também pedreiro, eletricista, bombeiro, um tipo “faz-tudo”; foi quem medeu a mais bonita referência sobre a passagem do tempo, a qual escolho como epígrafe destadissertação. A frase foi colhida, no município de Rio Pomba, Minas Gerais, pelo memorialista SilvioCaiaffa Mendonça.

2 Doravante, este romance será citado sob a sigla GSV.3 “Uma imagem literária é um sentido em estado nascente; a palavra a velha palavra recebe

aqui um novo significado. Mas isso não basta: a imagem literária deve se enriquecer de um onirismonovo. Significar outra coisa e fazer sonhar diferentemente, tal é a dupla função da imagem literária.”(Bachelard, 2001, p. 257).

4 Moisés, 1999, p. 282-283.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Considerando essa instabilidade conceitual do termo e, mais

especificamente, das “imagens da água”, entendemos ser necessária uma combinação de

prudência, flexibilidade e rigor na composição de um corpus teórico capaz de abarcar

pelo menos algumas das múltiplas facetas que sempre concorrem para a constituição de

uma imagem saída da lavra rosiana.5 O importante, diante dessa dificuldade inicial, será

o levantamento minucioso de formulações teóricas que possam respaldar este estudo,

considerando, no entanto, que as imagens serão abordadas a partir do potencial de

produção de sentido que elas, ao mesmo tempo, resguardam e disponibilizam dentro da

rede textual de GSV, o que equivale a dizer que a abordagem comparatista deverá

constituir, aqui, o principal horizonte, mas não o único.

Esperamos com tal abordagem, contribuir para ampliar a compreensão do

romance em questão. Para tanto, valer-nos-emos de alguns recortes das situações

simbólicas, muitas vezes metafísicas,6 orquestradas pelas “imagens da água”,

identificadas no romance, tendo em vista nossa hipótese de que essas imagens

contribuem para dar consistência a momentos cruciais da narrativa poética de Riobaldo,

o narrador e protagonista do romance, em homologia com os conceitos de Gaston

Bachelard, desenvolvidos principalmente em seu livro A água e os sonhos,7 que estarão

nos apoiando no desenvolvimento desta dissertação.

Principais referenciais teóricos

Não por acaso, estão na base deste estudo alguns dos referenciais teóricos do

filósofo Gaston Bachelard, cuja produção transita entre a fenomenologia, a psicanálise,

a “epistemologia e a poética através da Imaginação Simbólica”.8 A teoria bachelardiana

sobre a força imaginante dos quatro elementos água, terra, fogo e ar , advém dos

filósofos pré-socráticos, para os quais “os princípios, sob a forma de matéria, foram os

5 O adjetivo rosiano/a estará empregado, neste estudo, como referência ao escritor JoãoGuimarães Rosa ou à sua obra.

6 A noção de metafísica, aqui utilizada, será explicitada mais adiante, no tópico “A metafísica eas águas”, quando retomo o conceito de São Tomás de Aquino, amparado, por sua vez, no 4º conceitode Aristóteles: a metafísica como ciência teológica.

7 Bachelard, 1998.8 Felício, 1994, p. 01.

Introdução

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

únicos princípios de todas das coisas”.9 Para Bachelard, que classifica os quatro

elementos como “hormônios da imaginação”,10 as imagens poéticas e a imaginação

literária têm uma matéria11 consubstanciada num desses elementos, podendo ocorrer até

mesmo uma complementaridade entre elementos antitéticos, como fogo e água, na

formação da matéria de um dado imaginário poético. Os quatro elementos funcionam,

assim, “como ‘pré-elementos’ ou ‘pré-coisas’, na medida em que não possuem a

objetividade e a disponibilidade da imagem que o homem inventa, mas formam a

primeira repercussão do mundo no homem”.12 Sem a consubstanciação dos elementos

no imaginário poético, este estaria condenado a desmantelar-se, acredita Bachelard. Para

que uma obra seja consubstanciada em um dos elementos, não é suficiente a sua simples

citação, a sua simples aparição. Por exemplo, o aparecimento do rio em uma obra não é

suficiente para que sua “matéria poética” seja a água. A garantia só poderá ocorrer com

a manifestação do elemento água sob diferentes formas, o que poderá desencadear sua

manifestação cosmogônica. Isso que poderíamos identificar como fatores “ecoantes”,

Bachelard irá chamar de “ressoadores”,13 os quais dão densidade à “matéria poética” de

uma obra, funcionando como dinamizadores dessa matéria.

Como se verá, neste estudo, muitos desses elementos ecoantes estão

presentes em GSV e ainda que não se revelam, em primeira instância, como portadores

de uma condição hídrica; eles guardam, no entanto, em sua simbologia — enquanto

disseminadores da matéria — um desdobramento hídrico consistente, e mesmo

imprescindível para análise nos moldes que aqui intentamos. No romance de Guimarães

Rosa, tomamos como exemplos de ressoadores líquidos o cavalo, a vaca, a areia, a lua, a

serpente etc., cujos desdobramentos simbólicos misturam-se facilmente, como veremos,

ao elemento água. Na confluência dos múltiplos elementos hídricos que,

simbolicamente, dão sustentação às “imagens da água” em GSV é que estamos

identificando como uma das “matérias poéticas” deste romance, em correspondência

com a concepção de Bachelard.

9 Kirk; Raven & Schofield, 1994, p. 86.10 Bachelard, 2001, p. 12.11 Sempre que utilizarmos a expressão matéria neste trabalho o faremos em itálico e segundo conceito

de Bachelard, para o qual “a imagem poética têm, também, elas uma matéria” (Bachelard, 1998, p. 03)12 Felício, 1994, p. 114.13 Bachelard, 1998, p. 05.

Introdução

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Os desdobramentos das imagens de água em GSV revelam-nos os apelos do

homem do sertão, mesclam-se ao rastro simbólico a várias culturas. Para corroborar as

investigações das imagens de água no campo do simbólico, as presenças de Mircea

Eliade, Heráclito e Gilbert Durand serão de grande valia para este trabalho. No livro

Tratado das histórias das religiões, Mircea Eliade apresenta-nos as “hierofanias”, ou

seja, “qualquer coisa que torna manifesto tudo quanto é sagrado”.14 Estas se revelam

basilares no processo de compreensão dos desdobramentos metafóricos das “imagens da

água” no GSV, no qual não se encontra propriamente uma predileção por uma

manifestação específica do fenômeno religioso; encontra-se, antes sim, uma realidade de

forças espirituais entrecruzando-se com a travessia de Riobaldo. É prudente observar

que o próprio Mircea Eliade tenha-se eximido de delimitar15 o que vem a ser um

“fenômeno religioso”; ele fala, contudo, de estruturas autônomas com relação às

hierofanias aquáticas ou celestes e, nesse sentido, responde a nosso esforço

investigativo, uma vez que esta dissertação propõe revelar um procedimento estrutural

da água16. Na cosmogonia do sertão rosiano, há “sob a imaginação das formas, a

imaginação das substâncias”.17 Acreditamos que a água, em correspondência com o

conceito de Bachelard, participa como “substância” das imagens que analisaremos no

romance GSV.

O filósofo pré-socrático Heráclito, por intermédio de seu aforismo — “Para

os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles correm...

Dispersam-se e... reúnem-se... juntas vêm e para longe fluem... aproximam-se e afastam-

se18 — estará presente em vários momentos deste trabalho. Também o estudo As

estruturas antropológicas do imaginário, de Gilbert Durand,19 discípulo de Bachelard,

irá contribuir para a análise das imagens nas quais a água se manifesta de maneira

recôndita, como, por exemplo, aquelas imagens a que estamos chamando, a propósito de

Bachelard, de “ressoadores”. Desse modo, a partir da leitura de GSV, de sua fortuna14 Eliade, 1998, p. 02.15 Eliade, 1998, p. 01.16 Bachelard explica que “os poetas sonhadores são por vezes mais divertidos que seduzidos pelos

jogos superficiais da água. A água é então um ornamento de suas paisagens; não é verdadeiramente a‘substância’ de seus devaneios” (Bachelard, 1998, p. 06).

17 Bachelard, 1998, p. 06.18 Kirk; Raven & Schofield, 1994, p. 202.19 Durand, 2001.

Introdução

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

crítica e dos autores aqui citados, com destaque para Bachelard, pretendemos investigar

a presença marcante das “imagens da água” nesse romance de Guimarães Rosa.

Dos capítulos

O primeiro capítulo deste trabalho, intitulado A água como matéria poética

do sertão, estará centrado no motivo da natureza, elemento primordial na formação do

imaginário literário brasileiro; aos poucos, distinguir-se-á o tema da água como “eixo

líquido”20 influente na construção desse imaginário e, principalmente, do imaginário

rosiano. Utilizaremos os estudos de Antonio Candido, especialmente de seu livro A

formação da literatura brasileira, no qual ele cunha o termo “vocação ecológica” ao

referir-se à formação de nossa literatura. Ressalte-se que, nesse capítulo, não desejamos

aprofundar a abordagem tão bem alinhavada por Antonio Candido; nossa intenção é

muito mais ratificar um traço importante da literatura brasileira, a qual ganha contornos

especiais na obra rosiana. Uma vez assinalada a presença da natureza na literatura

brasileira, damos entrada ao tema desta dissertação, demonstrando que a presença da

água na obra rosiana constitui força marcante desde as primeiras publicações do escritor.

Num outro momento desse mesmo capítulo, veremos, de acordo com as concepções de

Bachelard, como a água apresenta-se como uma das “matérias poéticas” que compõem o

sertão. O percurso colhe momentos pontuais, desde Sagarana, primeira obra publicada

de Guimarães Rosa, até Ave palavra, obra póstuma desse autor, demonstrando que as

“imagens da água” sempre apareceram em sua escrita, não apenas como referência

espacial, mas, também, metafísica. Em seguida, estabelecemos relações hídricas entre o

veredeiro/barranqueiro Riobaldo e Guimarães Rosa. Devido à presença emblemática do

Rio São Francisco no romance, dedicamos a ele uma parte do capítulo. Encerramos

ressaltando a concepção eclética do misticismo de Riobaldo, que se utiliza de uma

imagem de água, em intertexto com a Bíblia, ao dizer “bebo água de todo rio”.21

No segundo capítulo, Ressoadores de água, estudamos as “imagens da

água” cujos desdobramentos hídricos são, a princípio, menos evidentes, mas que, no

entanto, são imprescindíveis para a proposta deste trabalho, no sentido de comprovar a

20 Candido, 1957, p. 08. 21 Rosa, 1985a, p. 15.

Introdução

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

hipótese de que a água constitui uma das matérias que compõem o sertão rosiano.

Analisamos, dentre outras, as imagens do cavalo, do touro, da lua, da rã e do chumbo.

No terceiro capítulo, nomeado Ramagens de água, tentamos mostrar, nas

águas riobaldianas aspectos metafóricos que as ligam, em certa medida, ao pensamento

dos primeiros filósofos gregos, que viam na água o elemento primordial da vida. Esse

trajeto nos leva a uma concepção defendida por vários poetas e filósofos da antigüidade,

que acreditavam na existência de um rio que circundava o mundo, concepção que vimos

ser comungada em GSV, pelo volume de água de que dispõe, e que abordamos pelo viés

metonímico, tomando as águas do rio Urucuia como referência. Em seguida analisamos

o primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim no porto rio de-Janeiro, afluente do rio São

Francisco. Notamos ainda que o romance também nasce sob a presença emblemática

das águas, as quais são, desde início, empregadas simbolicamente para ilustrar a

elucubrações riobaldianas em torno do bem e do mal. E fechamos o capítulo de volta ao

rio Urucuia onde estabelecemos relações entre ele e o protagonista do romance em

questão.

No quarto capítulo, Águas do nunca mais, analisamos episódios relativos

ao momento considerado pela crítica rosiana como sendo o meio do romance GSV: “A

Guararavacã do Guaicuí”. Várias imagens de água serão aí investigadas, desde o nome

do episódio — que veremos ser constituído, do ponto de vista formal, também de

elementos líquidos — a presença do riachinho, o mel, a chuva como elementos de

interdição e, finalmente, o desfecho trágico da paradisíaca Guararavacã do Guaicuí,

culminando na morte de Joca Ramiro.

No quinto e último capítulo, O deserto antes e depois, comparamos as

travessias do deserto do Suçuarão, nas quais buscamos evidenciar os aspectos

simbólicos da “imagens da água”, abordando a simbologia que as envolve, as quais

permeiam os momentos anteriores à travessia e a maturidade de Riobaldo. Na

seqüência, buscando aprofundar o sentido da “matéria água” no romance GSV,

averiguamos a simbologia da água nas várias figuras femininas que formam uma

instância de refúgio no imaginário de Riobaldo. Encerrando este capítulo, ressaltaremos

o aspecto trágico contido nas águas relacionadas a Riobaldo, as quais se apartam das

águas enigmáticas de Diadorim.

Introdução

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Concluímos analisando a expressão “Mentiras d’água”, que também nomeia

o capítulo final e é uma expressão do narrador protagonista do romance GSV. Dela nos

valemos para sintetizar e corroborar o objeto deste trabalho, quando este, conforme

veremos, metaforiza a narrativa riobaldiana.

Introdução

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Capítulo 1A água como matéria poética do sertão

Dize-me qual é o teu infinito e eu saberei o sentido do teu universo;

é um infinito do mar ou do céu, é o infinito da terra profunda ou da fogueira?

Gaston Bachelard

1.1. A natureza e a literatura brasileira

Segundo Antonio Candido, a literatura brasileira nasce sob o signo da

“vocação ecológica [que] se manifesta por uma conquista progressiva de território”,1

referenciada desde a crônica histórica de missionários e viajantes, a exemplo de Saint-

Hilaire (1779-1853) e Richard Burton (1821-1890), nos quais encontramos uma

valoração dos rios, que lhes serviam de estradas naturais, facilitadoras de suas entradas

pelo sertão brasileiro.

Até mesmo numa visão panorâmica, como aquela que se procede aqui,

evidenciam-se alguns autores brasileiros nos quais se verifica uma comunhão

importante entre literatura e natureza, e a partir dos quais se pode estabelecer, um

vínculo entre a natureza em GSV e a natureza na literatura brasileira em muitos de seus

momentos decisivos.

Vejamos, nesse sentido, o exemplo do poeta mineiro Cláudio Manuel da

Costa, um dos mais relevantes representantes do nosso Arcadismo.2 Apesar de Antônio

Candido ligá-lo ao elemento “terra”, ou melhor, referir-se ao poeta como tendo uma

“imaginação de pedra”, (dir-se-ia à maneira de Bachelard), em que se exprime a fixação

com o cenário rochoso da terra natal, — o famoso peito de ferro, de Gorceix”.3 Cláudio

Manuel da Costa também evoca imagens de água em sua poesia: no plano consciente,

1 Candido, 1993, p. 101.2 “O tempo era de literatura universalista, orientada para o que de mais geral houvesse no

homem. Fazendo as “nostre Indiane” aplaudirem o Metastasio e Tetis nadar no Recôncavo: metendoninfas no Ribeirão do Carmo e no próprio sertão goiano, os escritores asseguravam universalidade àsmanifestações da colônia, vazando-as na linguagem comum da colônia européia.” Candido, [s.d.]. p.77.

3 Candido, [s.d.], p. 93.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

afirma Antonio Candido, cultuava o berço evocando, sobretudo, o Ribeirão do Carmo, o

“pátrio ribeirão”.4

É a natureza, também, que irá inspirar Joaquim José Lisboa, alferes do

regimento regular de Vila Rica, a escrever e editar, em 1806, um longo poema intitulado

Descrição curiosa das principais produções, rios e animais do Brasil, principalmente

da Capitania de Minas Gerais. Produzindo uma mescla entre realidade geográfica e

ficção, esse poema tornou-se objeto de interesse para esta pesquisa, sobretudo no que

concerne à descrição dos rios mineiros. Na expressão de Antonio Candido, trata-se de

um “redemoinho de ervas, flores, rios, morros, feras, aves, frutas, comidas; verdadeira

‘aquarela do Brasil’ de modinheiro”.5

No Romantismo, José de Alencar irá dedicar-se à exaltação da natureza em

algumas de suas obras, como em Iracema, O Guarani e Ubirajara; nesta última, a

“nação Ubirajara” personifica a “senhora dos rios, montes e florestas”.6 Ainda no

mesmo período, destaca-se Bernardo Guimarães, a quem Antonio Candido irá chamar

de “Poeta da Natureza”.7 Gonçalves Dias, por sua vez, será elogiado por José de

Alencar, tratando-se, segundo o seu contemporâneo, de um “poeta nacional por

excelência, ninguém lhe disputa na opulência da imaginação, no fino louvor do verso,

no conhecimento da natureza do Brasil e dos seus costumes selvagens”.8 Visconde de

Taunay, também romântico, dedica as páginas iniciais de seu romance Inocência, de

cunho regionalista, ao “sertão” e ao “sertanejo” e às “nascentes”, como neste pequeno

trecho: “com que gosto demanda então o sertanejo os capões que lá de bem longe se

avistam nas encostas das colinas e baixuras, ao redor de alguma nascente orlada de

pindaíbas e buritis?”.9 Em Castro Alves, encontraremos a mistura eloqüente entre a

“paixão amorosa e o sentimento da natureza. A maioria de suas imagens são naturais,

tomadas ao cosmos e à terra”.10

4 Candido, [s.d.], p. 95.5 Candido, [s.d.], p. 218.6 Candido, 1993, p. 203.7 Candido, 1993, p. 151.8 Alencar, 1958-60, p. 1123.9 Taunay, 1999, p. 12.10 Candido, 1993, p. 251.

Capítulo 1 A água como matéria poética do sertão

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

No final do século XIX surge, com uma literatura regionalista, Afonso

Arinos, cujos dois primeiros livros, Os jagunços e Pelo sertão, foram respectivamente

editados em 1898. Ainda que em ambos o cenário da narrativa seja o sertão, é mais

expressiva a presença da natureza no segundo. Num dos contos desse livro, “Buriti

perdido”, o narrador se vale da figura emblemática do Buriti referência importante na

obra rosiana —, esse habitante das veredas, para saudar a natureza, chamando-o de

“Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evoé!”.11

No entanto, a figura de maior destaque nessa época é Euclides da Cunha,

com o romance Os sertões, que, publicado em 1902, faz referências cartográficas

importantes à bacia do São Francisco, na qual se insere a região de Canudos. Os rios

ajudam Euclides a situar o sertão geograficamente, como o faz João Guimarães Rosa em

GSV e em outras obras. O romance Os sertões influenciará substancialmente a literatura

rosiana.

Na produção modernista, por sua vez, na qual o olhar sobre a natureza passa

a ser mais crítico e metafórico, merece destaque a presença da natureza em

Macunaíma,12 de Mário de Andrade; Cobra Norato, de Raul Bopp; e Martin Cererê, de

Cassiano Ricardo. O referencial topográfico passa a ser problematizado pelo viés do

nacionalismo crítico, como nos versos de Oswald de Andrade: “Minha terra tem

Palmares/ Onde gorjeia o mar/ Os passarinhos daqui/ Não canta como os de lá”,13 nos

quais satiriza a alienação de Gonçalves Dias em seu nacionalismo acrítico expresso em

“Minha Terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá”, versos iniciais de Canção do Exílio.

Ainda nesse contexto, ressaltamos a forte presença do “cacto” como expressão ligada a

terra e à seca brasileira, eternizada por Manuel Bandeira em seu poema “O cacto”, de

1925. Este também irá utilizar-se, mais explicitamente, do elemento “água” em muitos

de seus poemas. Exemplo disso aparece em seu livro de estréia, Cinzas das horas, de

1917, especialmente no poema “À beira d’água”, escrito em Teresópolis, 1906, em

cujos versos lemos:

11 Arinos, 1981, p. 48.12 “Os dois movimentos literários de fundo nacionalista, Romantismo e Modernismo, tiveram

como livros epônimos uma história indianista. É uma aproximação que se impõe, a de Iracema eMacunaíma, pela identidade de tema, embora a diversidade de ângulo em que as duas fases indianistasem nossa literatura se colocaram”. (Proença, 1978. p. 34).

13 Andrade, 1990, p. 139.

Capítulo 1 A água como matéria poética do sertão

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

D’água o fluido lençol, onde em áscuas cintilaO sol, que no cristal argênteo se refrata,Crepitando na pedra, a cuja borda oscila,Cai, gemendo e cantando, ao fundo da cascata14

Chamamos a atenção, ainda, para o ressurgimento do regionalismo nos anos

30, pela influência dessa vertente literária na obra rosiana. Segundo Antonio Candido, o

romance brasileiro já “nasceu regionalista”,15 marcado pela presença antagônica entre o

campo e a cidade e buscando valorizar as questões locais; a natureza, no regionalismo,

ocuparia um lugar de relevo em obras como O menino do engenho e Riacho doce, de

José Lins do Rego, e, de acordo com Alfredo Bosi, no “alto regionalismo crítico”16 de

Graciliano Ramos.

Contemporaneamente, citamos Antônio Callado, com o romance Quarup,

história que se passa durante a festa xinguana do quarup, cerimônia intertribal, de cunho

religioso e social, e se liga ao mito do herói Mavotsinim, em que se celebram os mortos.

Eis um trecho do livro onde a referência à água ganha destaque: “Em longas caminhadas

de beira-rio, em visitas aos índios camaiurá acampados à beira do lago, embrenhando-se

na mata para ver um veado correndo na distância ou garças voando reto como flechas

brancas disparadas na copa das árvores...”.17

Com o romance O ciclo das águas, Moacyr Scliar utiliza-se das imagens de

águas para falar da dissolução dos valores, como a fé e a religião, daqueles que vivem

na diáspora: “As águas voltam a terra, infiltram-se, desaparecem. Ressurgirão como

nascentes depois riachos depois rios. E mares. E nuvens, e chuva: chove muito no

começo. As águas voltam a terra”.18

Mais recentemente, na prosa, sobressai-se o escritor amazonense Milton

Hatoum, com o livro Relatos de um certo Oriente, livro ambientado na região

amazônica, em que a narrativa é entrecruzada por várias águas: “No dia seguinte, a

história e o sonho pulsavam no meu pensamento como as águas de dois rios

14 Bandeira, 1993, p. 56. 15 Candido, 1993, p. 101.16 Bosi, 1997, p. 208.17 Callado, 1984, p. 167.18 Scliar, 1997, p. 5.

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tempestuosos que se misturam para originar um terceiro.”19 Temos ainda Thiago de

Melo, com a prosa poética de Amazonas, pátria das águas,20 e, na poesia, Manoel de

Barros, conhecido como poeta do pantanal, com o livro O guardador de águas:

Chove torto no vão das árvores.Chove nos pássaros e nas pedras.O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.Crianças fugindo das águasSe esconderam na casa.Baratas passeiam nas fôrmas de bolo...A casa tem um dono em letras.Agora ele está pensando –

no silêncio líquidocom que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.21

João Cabral de Melo Neto irá escrever poemas como “O poema e a água”,

“Rios sem discurso”. Além dos poemas, vale destacar o livro O rio e, mais

especialmente, aquele considerado por alguns autores, como um marco em sua obra, ou

seja, Cão sem plumas; nele, como se pode ler nestes versos, o cão é a estranha metáfora

de um rio:

Aquele rioEra como um cão sem plumas.Nada sabia da chuva azul,da fonte cor-de-rosa,da água do copo de água,da água de cântaro,dos peixes de água,da brisa na água.22

Lauro Escorel irá ressaltar no livro de estréia de João Cabral de Melo Neto,

Pedra do sono, uma recorrência à água, a que ele irá chamar de “metáforas líquidas”.23

João Cabral ainda lançaria, em 1956, mesmo ano de lançamento do romance GSV, uma

coletânea de seus livros, intitulada Duas águas.

19 Hatoum, 2000, p. 50.20 Melo, 2002.21 Barros, 1998, p. 59.22 Melo Neto, 1997b, p. 73.23 Escorel, 1973, p. 17.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Foi dentro dessa tradição literária que tematiza de forma emblemática a

natureza brasileira, com acento em suas águas, que buscamos o veio para tratar as

“imagens da água” no romance GSV de Guimarães Rosa.

1.2. A presença da água na obra rosiana

Os acontecimentos de águapõem-se a se repetir

na memória.

João Cabral de Melo Neto

Horas há em que o sonho do poeta criador é tão profundo, tão natural que ele reencontra, semperceber, as imagens de sua carne infantil.

Bachelard

Na trilha da “vocação ecológica” que verificamos na tradição literária

brasileira, surge o livro de contos Sagarana, obra de estréia de João Guimarães Rosa,

publicado em 1946. Nas primeiras páginas do conto “O Burrinho Pedrês”, conto de

abertura de Sagarana, a presença da “chuva... água... da serra que neblinava... do rio

Urucuia... do Rio Verde...”,24 é reveladora de uma espécie de procedimento que

marcaria uma relação simbólica de Guimarães Rosa com as águas. Assim, Guimarães

Rosa incorpora uma consciência hídrica que se refletirá por toda a sua obra, cujas

histórias são fábulas, mythoi que velam e revelam uma visão global daexistência, próxima de um materialismo religioso, porque panteísta, isto é,propenso a fundir numa única realidade, a Natureza, o bem, o mal, o divino eo demoníaco, o uno e o múltiplo.25

Dez anos depois de Sagarana, surgem as novelas da obra Corpo de baile,

editada em 1956. Na novela “Campo Geral”, o protagonista é apresentado em seu

espaço geográfico com sendo “um certo Miguilim [que] morava com sua mãe, seu pai e

seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras

veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutum”.26 Como se nota

no trecho citado, tornou-se um procedimento rosiano, como constataremos nesta

dissertação, mapear o espaço geográfico e identificar seus personagens, quase sempre,

24 Rosa, 1971, p. 3-4.25 Bosi, 1997, p. 431.26 Rosa, 1994, p. 465.

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junto às veredas, portanto, junto às águas. Numa das cartas a Edoardo Bizzarri,

Guimarães Rosa assim descreve as veredas:

Mas, por entre as chapadas, separando-as (ou, às vezes, mesmo no alto, emdepressões no meio das chapadas) há as veredas. São vales de chão argilosoou turfo-argiloso, onde aflora a água absorvida. Nas veredas há sempre oburiti. De longe a gente avista os buritis, e já sabe: lá se encontra água. Avereda é um oásis. Em relação às chapadas, elas são, as veredas, de beloverde-claro, aprazível, macio. O capim é verdinho-claro, bom. As veredas sãoférteis. Cheias de animais, de pássaros. [...] Há veredas grandes e pequenas,compridas ou largas. Veredas com uma lagoa; com um brejo ou pântano; compântanos de onde se formam e vão escoando e crescendo as nascentes dosrios; com brejo grande, sujo, emaranhado de matagal (marimbu); comcórrego, ribeirão ou riacho. [...] Nas veredas há às vezes grandes matas,comuns. Mas, o centro, o íntimo vivinho e colorido da vereda, é sempreornado de buritis, buritiranas, sassafrás e pindaíbas, à beira da água. Asveredas são sempre belas.27

Em seguida a Corpo de baile, é editado o romance GSV, também em 1956.

Parafraseando Flora Sussekind, em Guimarães Rosa, muitas vezes, mais importante que

o relato ou a narrativa, é o “inventário de paisagens”,28 o que se pode verificar nesta

paisagem do romance GSV:

Cheiros de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a inhiíca ea escova, amarelinhas... Isto no Sarinhém. Cigarras dão bando. Debaixo deum tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nostelhados das casas. Ou no Meãomeão – depois dali tem uma terra quase azul.Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventosde não deixar se formar orvalho... Um punhado quente de vento, passanteentre duas palmas de palmeira... Lembro, deslembro. Ou – o senhor vai – nosoposo: de chuva-chuva. Vê um córrego com má passagem, ou um rio emturvação. No Buriti-Mirim, Angical, Extrema de Santa-Maria...29

Uma paisagem altamente sinestésica, entre geadas, bois, ventos, sombras,

azuis, amarelos, roxos, sonhos, orvalhos, águas, palmeiras, chuva, córrego, rio, capaz

ainda de expor, como “inventário de uma paisagem”, a condição riobaldiana,30 sua

travessia, como enunciado e enunciação em fluxo, compondo um mapa hídrico que se

“desarticula e foge”31 o tempo todo.27 Rosa, 1981, p. 22-23. Observe-se, a propósito, que, em GSV, Riobaldo irá referir-se às

veredas como sendo as águas de menor porte em relação ao rio São Francisco: “Agora, por aqui, osenhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda” (Rosa, 1985. p.68).

28 Sussekind, 2000, p. 43.29 Rosa, 1985, p. 25.30 O adjetivo “riobaldiano (a)”faz referência a Riobaldo, narrador protagonista do romance GSV de

Guimarães Rosa31 Candido, 1957, p. 07.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Assim, para corroborar, e finalmente dar destaque ao nosso tema — as

“imagens da água” em GSV —, numa demonstração de como o autor do romance, desde

o início de sua formação intelectual, era familiarizado com os elementos da natureza —

terra, água, fogo e ar — como operadores capazes de materializar-se metonímica e

metaforicamente numa obra literária, citamos estas anotações de Guimarães Rosa, “A

Ilíada é uma pirâmide monolítica, que dá faíscas de fogo, como uma pederneira. A

Odisséia é uma rocha cyclópica, que dá dos flancos mil fontes de água viva. Guimarães

Rosa Hamburgo, 27/VIII/940”.32 Nesse sentido, destacamos a evidência de que o

romance GSV é atravessado, desde o título, pelas “veredas”, disseminadas em infindas

fontes de água viva, cujas imagens pretendemos explorar neste trabalho. Em Carta a

Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa afirma “Este ano teremos (...) na Alemanha o

‘GRANDE SERTAO’ (sem til).33 Ao lermos o Tao Te King encontramos os seguintes

versos:

Melhor ser como a água

Que faz bem as dez mil coisas

E não briga.

Ela se acumula onde os humanos não querem se deter

Junto ao TAO. 34

O versos do poeta Lao Tzu contribui ajudam-nos a compreender a

aproximação entre os seco (sertão) e o úmido (veredas).

Diferentemente das abordagens referentes ao elemento água no GSV feitas

até então, e desde que propusemos fazer uma leitura de suas imagens de água,

pensávamos fazer uma distinção entre a água e o rio, em que aquela se dinamiza muito

mais que este. Formulamos a hipótese de que, nesse caso, a água transcende os aspectos

geográficos locais devido às questões simbólicas que a envolvem, tornando-a

substancial nos momentos da travessia de Riobaldo. Um subsídio para esse aspecto da

transcendência pode ser buscado em Mircea Eliade, segundo o qual, no plano da

32 Costa, 1989, p. 49. Lembremo-nos, aqui, que os ciclopes, filhos de Poseidon, deus do mar, eramseres que possuíam apenas um olho no centro da testa e eram os senhores da Tempestade, do Raio, doTrovão. (Cf. Chevalier; Gheerbrant, 1999. p. 238).

33 Rosa, 1981, p. 103.34 Tzu, 2002, p. 08.

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“experiência mágico-religiosa a natureza nunca é ‘natural’”.35 Para ele as religiões, o

deuses da vegetação constituiriam “um bom exemplo de transmutação e de valorização

de um acontecimento cósmico “natural”.36 Essa premissa pode ser identificada em GSV

e, apesar da distinção que fazemos entre a água e o rio, o romance rosiano, muitas vezes,

irá conjugar, de maneira inextrincável, o rio que mapeia a superfície e a água que se

aprofunda, servindo de mediadora que melhor possibilita pensar o ser. Em entrevista a

Günter Lorenz, Guimarães Rosa compara os rios às almas dos homens: “os rios são

profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas

profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens”.37

O romance GSV insere-se nesta pesquisa ainda por outro viés, ou seja, como

depositário da memória do imaginário hídrico do sertão em seus múltiplos aspectos

geográficos e simbólicos. Quando nos defrontamos com as imagens da água nesse

romance, estamos diante de uma das matérias poéticas que o compõem.

De fato, Guimarães Rosa utiliza-se dos rios do sertão, muito à maneira dos

viajantes-geógrafos, para mapeá-lo, e o faz com consciência e admiração:

Sendo se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a caixa-d'água, o coração branco, difluente, multivertente, que desprende e deixa paratantas direções, formadas em caudais as enormes vias – o São Francisco, oParanaíba e o Grande que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce, o Pardo,os afluentes para o Paraíba, o Mucuri, o Amazonas, ou ainda – e que, desde ameninice de seus olhos d'água, da discrição de brejos e minadouros, e dessesmonteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora plácida.38

Sabemos que Minas Gerais é a terra natal de Guimarães Rosa. A matéria que

sobressai na citação acima é a água. Segundo Bachelard “a terra natal é menos uma

extensão que uma matéria; é um granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água

ou uma luz”.39 Para Scarpelli

de fato, as paragens abertas dos “gerais” mineiros constituem o referencialvisível dos territórios ficcionais rosianos. Estes, via de regra, são formadosde veredas que estão continuamente a minar a amplitude geofísica do sertão.Minúsculos veios d’água, as “veredazinhas”, formam fio por fio, o grande

35 Eliade, 1998, p. 347.36 Eliade, 1998, p. 347.37 Rosa, 1994, p. 37.38 Rosa, 1985b, p. 269-270.39 Bachelard, 1998, p. 09.

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curso d’água que atravessa e permeabiliza a impenetrável dureza do “grandesertão.40

Os rios são elementos importantes na visualização geográfica do sertão. Na

expressão de Alan Vigiano, “é aos rios que o roteiro de Riobaldo está sempre ligado”.41

Entendemos que a rede hídrica, um dos mais relevantes roteiros riobaldianos, transcende

a presença física do rio e potencializa-se simbolicamente, expande-se, por intermédio

das artimanhas da narrativa, para as águas e seus simbolismos. Enfim, dada a quantidade

de referências à água no romance rosiano, podemos afirmar que ela é um elemento

imprescindível à compreensão da travessia riobaldiana. Há no romance uma “luta”,42 na

qual as imagens de água, porque mais voltadas para o fluxo, apresentam-se mais afeitas

à própria expressão do tempo e da linguagem rosiana. Bachelard acredita que a água

“proporciona também um tipo de sintaxe”,43 e é muito comum que a crítica literária

exprima-se por intermédio de qualificadores “líquidos” para referir-se à natureza

peculiar da sintaxe rosiana. Expressões como jorro, fluxo ou “fronteiras movediças”;44

“uma textura, que [...] flui ao correr da leitura”;45 um “estilo que dissolve a acepção

clássica em que o estilo inventa o texto?”;46 “universo fluido de sentidos figurados”;47

ou ainda, a “estrutura meândrica da narrativa”48 proliferam sempre que se tenta dar conta

da linguagem rosiana. Para Scarpelli o escritor Guimarães Rosa situa-se “entre duas

águas. Desdobra-se entre o público e o privado, entre o mundo e o sertão”49

Na expressão de Riobaldo, quando este se refere à condição de Zé Bebelo,

encontramos uma síntese do sertão rosiano, na qual os elementos água (o qual aparece

enunciado em primeiro plano na expressão de Riobaldo) e terra preponderam e, ainda

40 Scarpelli, 2000, p. 27.41 Viggiano, 1993, p. 17.42 “Belo exemplo dessa ambivalência profunda que marca a adesão íntima do sonhador às suas

imagens materiais , essa cooperação das substâncias pode, em certos casos, dar origem a umaverdadeira luta: pode ser contra a terra um desafio da potência dissolvente, da água dominadora – ouentão contra a água um desafio da potência absorvente, da terra que seca”. .(Bachelard, 1991, p. 61.)

43 Bachelard, 1998, p. 13.44 Finazzi, 2001, p. 27.45 Vargas, 1957, p. 19.46 Hansen, 2000, p. 23.47 Rosenfield, [s.d], p. 28.48 Nunes, 1983, p. 18.49 Scarpelli, 2000, p. 102.

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que movediços, são mais fixos em relação ao fogo e ao ar, e, por isso mesmo,

metaforizam melhor o sertão: “Zé Bebelo ia e voltava, como um vivo demais de fogo e

vento, záz de raio veloz como o pensamento da idéia mas a água e o chão não queriam

saber dele”.50 O sertão é água e terra. Para Bachelard, a água tem uma vocação para

compor-se com outros elementos, mas, “o verdadeiro tipo da composição é, para a

imaginação material, a composição da água com a terra”.51 Terra que ajuda a conter os

aspectos fugidios da água. Mantendo essa tensão, o sertão é, ao mesmo tempo, fluido e

estático: “Ora, a água é sonhada sucessivamente em seu papel emoliente e em seu papel

aglomerante. Ela une e desune”.52 A água atua como mediadora sensível, enquanto

elemento físico e supra-sensível, enquanto dinamizadora do simbólico de alguns dos

principais eventos do romance GSV. De certa maneira, uma das “matérias poéticas” do

sertão ficcional, a água, mimetiza uma das matérias da vida, na proporção em que ela se

encontra na Terra, ou seja, no sertão ficcional, dentre os dois elementos, a água

prepondera. A esse respeito, Joca Ramiro também questionará Zé Bebelo: “O Senhor

não é do sertão. Não é da Terra...” e Zé Bebelo responde Sou do fogo? Sou do ar?

Da terra é a minhoca que galinha come e cata: esgaravata!”.53 O ar e o fogo ligam Zé

Bebelo ao fluxo rápido, ao mundo moderno, ao efêmero, em oposição ao arcaico, à

tradição. Para Bachelard, “tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo”.54 É assim,

também por intermédio do fogo, que Riobaldo revela a inconstância de Zé Bebelo, um

político da cidade. Heloísa Starling irá chamar a atenção para as questões políticas no

romance GSV, no qual Zé Bebelo aparece justamente marcado pelo caráter da

velocidade com que sonhava, planejava e abandonava tudo, “como se guardasse ardendo

dentro de si uma paixão incontida pela violência e destruição”.55

Apesar disso, Zé Bebelo aparece metaforicamente ligado às águas, visto que

se mostra capaz de dar curso aos homens. Se, para Riobaldo, Zé Bebelo não era água,

nem terra, era, por outro lado, um “canoeiro mestre, com o remo na mão, no atravessar o

50 Rosa, 1985, p. 290.51 Bachelard, 1998, p. 1552 Bachelard, 1998, p. 109.53 Rosa, 1985, p. 243.54 Bachelard, 1999, p. 11.55 Starling, 1999, p. 156.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

rebelo dum rio cheio. — “Carece de ter coragem... Carece de ter muita coragem...” —

eu relembrei”.56 Ou seja, o próprio Riobaldo reconhece a capacidade e mestria de Zé

Bebelo nas horas mais difíceis de uma travessia. É pertinente observar que “Rebelo” é o

mesmo que “Rabelo”,57 sobrenome de Zé Bebelo: José Rabelo Adro Antunes. Riobaldo

brinca poeticamente com o significante “rebelo”, no sentido de “rebelar”, mas também

no sentido de “rabelo”, ligado à tripulação da embarcação, “como canoeiro mestre”, e às

próprias embarcações e velas, ligando-o, portanto, à água. E a imagem do “canoeiro

mestre” evoca Diadorim, seu primeiro, quiçá, mais importante, “canoeiro mestre”.

1.3. A metafísica e as águas

Santas águas, de vizinhas.

João Guimarães Rosa

O que a água é na paisagem: mais luz, por reflexão, e o calmo equilíbrio da horizontalidade.

Salvador de Madariaga.

Tendo em vista a amplitude do termo metafísica e a sua importância na

investigação das imagens de água no romance GSV, concluímos pela necessidade de

adotar um conceito que melhor se adequasse a esta proposta. Assim, quando utilizamos

o termo “metafísica”, temos em vista a forma como São Tomás de Aquino o emprega;

estaremos, assim, partindo dos objetos sensíveis aos supra-sensíveis, considerando que:

Há, ademais, alguns objetos de ciência independentes da matéria em seu ser,pois ou existem sempre sem matéria como Deus e as substâncias espirituais, ou encontra-se às vezes na matéria, outras vezes não como a substância,a qualidade, a capacidade, a atualidade, a pluralidade, a unidade, etc. Taisobjetos são tratados pela ciência divina que também tem o nome demetafísica, isto é, além da física, pois dado que temos necessariamente queproceder dos objetos sensíveis aos supra-sensíveis, temos que ocupar-nosdela depois da física.58 (grifos nossos)

“Metafísica”, para São Tomás, confunde-se com “teologia”, portanto, com a

“revelação”. Os elementos simbólicos que estão em foco nesta leitura do GSV,

56 Rosa, 1985, p. 365. 57 Entre os significados do significante “Rabelo”, encontra-se um bastante sugestivo: “tripulante

de barco rabelo – adj. s.m. Mar P3 diz-se de ou barco à vela com grande esparrela a servir-lhe deleme, que era us. No rio douro esp. No transporte de pipas de vinho para Vila Nova de Gaia DOU.LIT; rebelo – adj. P4 diz-se da vela usada nessa embarcação” (Houaiss, 2001. p. 2371).

58 Mora, 1996, p. 470-471.

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mantendo homologia com esse processo de transmutação, revelam-se por intermédio da

natureza; ou seja, de um elemento sensível, como a água, manifesta-se o supra-sensível:

os desdobramentos das imagens de água, construídas por uma linguagem que Guimarães

Rosa considerava seu “elemento metafísico”59 que, em vista do sagrado, do poético, do

filosófico, tensionados nessas imagens, chamamos, aqui, a esse elemento, de metafísico.

Nossa intenção é nos deter na investigação do visível em busca do invisível, sem, no

entanto, pretender desmantelar o poético; as conexões são assim estabelecidas com

vistas a dinamizar o poético. Corroborando as intenções aqui expostas, buscamos apoio

nas palavras de Bachelard, quando ele diz: “não hesitaremos, aliás, (...) em tomar como

pretexto observações psicológicas para desenvolver nossas próprias teses sobre a

metafísica da imaginação, metafísica que continua sendo em toda parte nosso objetivo

confessado”.60 Queremos, como Bachelard, encontrar sob a “forma” a “matéria poética”,

as imagens da água, as quais achamos que comandam o imaginário rosiano nas

passagens que estudaremos nesta dissertação.

Bachelard também se apodera do conceito de arquétipo de Jung para

desenvolver a metafísica dos quatro elementos, que ele considera a substância primeira

das imagens literárias.

Um arquétipo é, antes, uma série de imagens que resumem a experiênciaancestral do homem diante de uma situação típica... (...) O “arquétipo”implica a ordenação das imagens literárias. Exemplo: a raiz é um“arquétipo” valorizado por uma imaginação estática e intimista. Outras,como o “céu azul”, são mais dinâmicas, enquanto a imaginação ativista terápreferência pela “pasta”.61

Em seu livro A água e os sonhos, Bachelard diz que

não é à toa que as filosofias primitivas faziam com freqüência, nessecaminho, uma opção decisiva. Associavam a seus princípios formais um dosquatro elementos fundamentais, que se tornavam assim marcas detemperamentos filosóficos. Nesses sistemas filosóficos, o pensamentoerudito está ligado a um devaneio material primitivo, a sabedoria tranqüila epermanente se enraíza numa constância substancial.62

59 Rosa, 1994, p. 45.60 Bachelard, 2001, p. 16.61 Felício, 1994, p. 92.62 Bachelard, 1998, p. 04.

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Nesse sentido, achamos que o romance GSV filia-se em vários momentos à

constância substancial desta água de que trata Bachelard, o qual afirma que podemos

reconhecer esse elemento, porque ele é capaz de deixar um “efeito prolongado no

leitor”.63 Desde as primeiras críticas feitas à obra de Guimarães Rosa, ainda que uma

referência às águas, no sentido que intentamos aqui, não tenha sido feita, a referência às

veredas e aos rios tem sido uma constante. Antonio Candido, em seu texto “O homem

dos avessos”, ao referir-se ao meio físico em GSV, termina por referir-se muito mais às

águas: “Desdobremos bem o mapa. Como um largo couro de boi, o Norte de Minas se

alastra, cortado no fio do lombo pelo São Francisco — acidente físico e realidade

mágica, curso d’água e deus fluvial, eixo do sertão”.64 Na toponímia do sertão rosiano,

as águas se destacam, tanto sensivelmente, “acidente físico”, quanto supra-

sensívelmente, enquanto “realidade mágica”.

Consuelo Albergaria considera que Guimarães Rosa utiliza-se de uma

“metafísica ‘oriental’ que ultrapassa o domínio do natural e portanto não pode ser

definida como ciência, engloba em si o nível do sobrenatural, reservando-se uma parcela

do inexprimível”.65 Assim também vemos este escritor em nosso percurso analítico da

imagens da água em GSV. Apesar de buscarmos nosso referencial teórico metafísico em

Santo Tomás de Aquino, discípulo de Aristóteles, o fazemos com a ressalva sugerida na

citação acima.

1.4. O veredeiro e o escritor

Quando vim de minha terra,se é que vim de minha terra

(não estou morto por lá),a correnteza do rio

me sussurrou vagamenteque havia de quedar

lá donde me despedia.

Carlos Drummond de Andrade

63 Felício, 1994, p. 9264 Candido, 1994, p. 80.65 Albergaria, 1977, p. 24.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Não há no romance GSV, em sua “ecologia belíssima”,66 um predomínio do

homem sobre a natureza. O homem da ficção rosiana não deseja subjugar a natureza à

maneira bíblica ou iluminista. Há, de fato, muitas vezes, procedimentos

intercambiáveis, ou seja, a personificação da natureza riachos que falam e a

animalização do homem homens comparados a touros, cavalos, iraras etc. com

vistas a dar prosseguimento ao devir complexo do sertão. O romance GSV é construído

por um intrincado entrelaçamento entre as necessidades humanas e as necessidades da

natureza, formando uma rede em que o sujeito e o objeto, homem e natureza, jamais se

separam. Esse entrelaçamento aparece também no nome do narrador protagonista do

romance, Riobaldo: rio+baldo, rio+raso; ou, numa leitura também possível, um rio de

poesia. Em estado de dicionário, “baldo”67 aparece primeiramente no sentido de

“desprovido, carente, falho, jogador; depois como “barragem” para represar águas. No

entanto, em alguns falares brasileiros, dá-se um fenômeno lingüístico chamado

“rotacismo”, ou seja, a troca do fonema /L/ pelo /R/, assim, “baldo” passa a ser

pronunciado “bardo”,68 que quer dizer poeta. O “rio”, por sua vez, apresenta-se como

“curso de água natural, mais ou menos torrencial, que corre de uma parte mais elevada

para um mais baixa e que deságua em outro rio, no mar ou num lago.69 Riobaldo é um

“rio” que quer ascender, busca laboriosamente as águas do alto; contudo, sabemos que

as águas do rio se deslocam fisicamente de um nível mais elevado para outro mais

baixo. Mas, no sertão rosiano, a hierarquia entre as coordenadas “alto” e “baixo” é

rompida pela ordem do sagrado.

Observe-se, nessa linha de análise, que vários personagens rosianos recebem

nomes ou sobrenomes em que o elemento água aparece: José Kakende,70 personagem do

conto “Um moço muito branco”, de Primeiras estórias; Tipote e José Vereda,

personagens de GSV, e Antônio Riachão, de Corpo de baile. Quanto ao nome do

romance, a palavra “sertão”, naturalmente, nos remete a uma paisagem inóspita, seca.

66 Expressão empregada por Antonio Candido com referência a Sagarana de Guimarães Rosa.Candido, 1994, p. 64.

67 Houaiss, 2001, p. 386.68 Bardo é também palavra que, “entre os celtas ou gauleses, [significa] poeta ou declamador 2

pessoa que compunha e recitava poemas épicos, ger. acompanhada de lira ou de harpa 3 p. ext.qualquer poeta, trovador etc.” (Houaiss, 2001. p. 403).

69 Houaiss, 2001, p. 2460.70 Kakende é nome de um ribeirão e de uma fonte em Sabará.

Capítulo 1 A água como matéria poética do sertão

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Gilberto Mendonça Teles, em seu ensaio “O lu(g)ar dos sertões”, estuda as várias

acepções de “sertão”, uma palavra que nasceria na metrópole e ganharia contornos

nacionais:

A obscuridade etimológica que envolve o termo sertão constitui um doselementos motivadores das várias significações que ele foi adquirindo, àmedida que o espaço brasileiro se foi ampliando para Oeste. Dir-se-ia que ahorizontalidade da conquista territorial atuou no esvaziamento do símbolocolonialista, transformando-o em signo lingüístico da nova realidade nacionale ampliando o imaginário dos nossos escritores. O percurso dessatransformação se deixa ler ao longo da poesia brasileira, não só através demudanças operadas no significante escrito e falado (sartão→ çartão→certam→ sertão → Sertão → sertões → e o lúdico ser tão).71

Para Gilberto Mendonça Teles, pode-se falar “no ‘entrelugar’ do sertão,

espaço entre a língua e a linguagem, entre a observação que se quer científica e a

imaginação que o leva à literatura”.72 O crítico destaca, ainda, a exploração de novos

significados realizada por Guimarães Rosa para a palavra sertão. Na obra rosiana, “as

definições do termo adquirem as mais ousadas acepções, de metafísica e de

linguagem”.73

No entanto, o sertão rosiano é ao mesmo tempo semelhante e diferente,

como aparece especificado na equação explicitada no título do romance Grande Sertão:

Veredas. E as veredas, para além do sentido de “via, caminho, orientação”,74

diversificam-se em várias manifestações hídricas, como vimos na explicação concedida

por Guimarães Rosa ao seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri.

Logo, “deserto/sertão” e “água/vereda” formam par, equilibram-se, ou seja,

o seco contém o úmido, e ainda o “sertão”, que remete ao desértico, apresentando-se ao

imaginário ingênuo como um espaço uno. O deserto/sertão contém as veredas, que se

apresentam disseminadas em uma hidrografia que é também simbólica.

[Os] rios não são apenas os que riscam caminhos de prata na verde planície.Rios somos também nós, as idéias que vêm e que vão, o fluxo dasexperiências, a vida que se renova todos os dias com o sol. Surpreendemo-nos rio-sol, sol-rio. O fluir é geral. Como preservar secas as psiques, quandonós próprios somos rios? Secas as teríamos se lográssemos mantê-las fora do

71 Teles, 2002, p. 264.72 Teles, 2002, p. 264.73 Telles, 2002, p. 298.74 “1 caminho estreito, senda, sendeiro; 2 caminho secundário pelo qual se chega mais

rapidamente a um lugar; atalho; 2.1 fig. Orientação de uma vida, de uma ação, rumo, direçãocaminho”. Houais, 2001, p. 2847.

Capítulo 1 A água como matéria poética do sertão

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corpo. O filósofo busca o seco ao se recolher em si mesmo para interpretar asinformações dos sentidos. Instala-se numa ilha para compreender o fluir. Masa ilha nunca será lugar seco. Inutilmente buscamos segurança num dos pólosda oposição. Somos seco-úmido, sensação-reflexão, fixidez-movimento,mesmo-outro. 75

Estas são características que compreendem a lógica do romance GSV desde

o título até o final da obra, e referimo-nos, mais especificamente, à tensão explicitada na

última frase da citação Schüler, ou seja, o atrito tensional entre o seco e o úmido, o

sertão enquanto deserto e a vereda enquanto água, pólos contrastantes, os quais, no

romance GSV, conforme veremos em vários momentos deste estudo, contêm, ainda

assim, um ao outro.

As “veredas” contribuem decisivamente no ordenamento da narrativa

riobaldiana, em que os elementos espaciais parecem ser utilizados com o intuito de

suprir a fragilidade dos marcos temporais. Os fatos que se deram na vida de Riobaldo

ocorrem, quase sempre, à beira, na barra, no poço, perto do riachinho, no Buriti, na

vereda, na banda de cá do rio, na banda de lá do rio, no meio do rio, ou seja, às voltas

com as águas. Como muitas vezes as águas ocorrem em fluxo, esse referente espacial é

dado também a desmanchar-se, é sempre o mesmo e o outro:

Escapulíamos, esquipávamos. Vereda em vereda, como os buritis ensinam, agente varava para após. Se passava o Piratininga, que é fundo, se passava: ouno Vau da Mata ou no Vau da Boiada; ou então pegando por baixo o SãoDomingos, no Vau do José Pedro. Se não subíamos à beira desse, até àsnascentes, no são Dominguinhos.76

Acreditar que uma sabedoria do equilíbrio entre a água e a terra foi

disseminada no romance somente pela via do conhecimento erudito seria contrariar a

experiência rosiana do convívio com os “matutos” bem como a de Riobaldo, que,

sendo um barranqueiro/veredeiro, ou seja, habitante dos barrancos e das veredas, possui

sabedoria e religiosidade que o liga aos saberes de outras culturas por intermédio de

uma “dimensão [própria] do pensar”.77 Os encontros entre os saberes locais e distantes

potencializam as dúvidas riobaldianas, tornando-as uma expressão da humanidade.

75 Schüler, 2000, p. 111-112.76 Rosa, 1985, p. 53.77 Nancy Mangabeira Unger estabelece uma relação entre a conversa de dois barranqueiros que,

vivendo à beira do rio São Francisco, fizeram-na lembrar-se “de um poema recolhido por Chuang Tzu,mestre do taoísmo chinês, que viveu há cerca de 2.500 anos, na mesma época em que viviam os pré-socráticos na Grécia”. (Unger, 2001. p. 68).

Capítulo 1 A água como matéria poética do sertão

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Segundo Nancy Mangabeira Unger, em correspondência com o pensamento de

Heráclito, há nisso um “reconhecimento do que é ‘comum a todos’”.78

A cultura do “veredeiro/barranqueiro” Riobaldo faz dele um homem de tal

forma integrado à natureza a ponto de um riachinho personificar-se, exatamente no meio

do romance, e dar-lhe uma ordem. Isso ocorre no episódio da “Guararavacã do

Guaicuí”, cujas imagens de água serão estudadas de maneira mais abrangente em outro

capítulo. Esta breve passagem é pertinente para que se compreenda desde já a relação de

Riobaldo com a natureza e mais especificamente com a água:

O tanto assim, que até um corguinho que defrontei – um riachim à-toa debranquinho olhou pra mim e me disse: Não... e eu tivesse que obedecera ele. Era para eu não ir mais adiante. O riachinho me tomava a benção.79

Ou seja, a natureza e a água, em GSV, literalmente, têm voz e atuam

decisivamente na travessia de Riobaldo, tanto no plano geográfico quanto no metafísico.

E a benção do riachinho a Riobaldo “significa uma transferência de forças. Abençoar

quer dizer, na realidade, santificar, tornar santo pela palavra, i.e., aproximar do santo,

que constitui a mais elevada forma de energia cósmica”. (grifos dos autores).80 Para

Bachelard,

as águas risonhas, os riachos irônicos, as cascatas ruidosamente alegresencontram-se nas mais variadas paisagens literárias. Esses risos, esseschilreios são, ao que parece, a linguagem pueril da natureza. No riacho quemfala é a Natureza criança.É difícil desprender-se dessa poesia infantil. Entrenumerosos poetas, os regatos dizem os seus glu-glu com esse mesmo tomespecial da nursery que quase sempre bloqueia a alma infantil nos dissílabosdas pobres consoantes: dada, bobô, lolô, cocô. Assim cantam os riachos noscontos infantis inventados pelos adultos.81

Esse mesmo procedimento de infantilização das águas dos riachos,

percebido por Bachelard, o encontramos no conto “Uma estória de amor”, de João

Guimarães Rosa, quando o narrador rosiano, além de comparar o riachinho a um

menino, cria o neologismo “bilbo”82 para referir-se à última gota desprendida pelo

riachinho. No romance GSV, Riobaldo utiliza-se em vários momentos dos diminutivos

78 Unger, 2001, p. 70.79 Rosa, 1985, p. 269.80 Chevalier; Gheerbrant, 1999. p. 129.81 Bachelard, 1998, p. 35.82 Rosa, 1994, p. 550.

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“corguinho”,83 “aguinha”84 e “riachinho”.85 Nesse sentido da infantilização das águas dos

riachos sugerido por Bachelard, Guimarães Rosa emprega procedimentos arquetípicos

literatura universal.

A ficção rosiana, ainda que nos impressione pela capacidade de

universalizar-se, revela-se a partir de um sertão local. O homem ribeirinho, o sertanejo,

ouve as vozes da natureza: “A cultura do povo sertanejo, principalmente na beira do São

Francisco, é permeada pelo sagrado que se expressa principalmente através de um

catolicismo popular, um cristianismo cósmico, no qual a Natureza comparece como

epifania”,86 ou seja, como manifestação do sagrado. Podemos pensar que a conversa do

“veredeiro/barranqueiro” desconhece fronteira, sua experiência é legítima do homem de

qualquer cultura. Talvez por isso, quando Riobaldo diz que “O Sertão está em toda

parte”,87 esteja manifestando que, em todos os lugares do mundo, as relações

estabelecidas entre os homens que não se apartaram da natureza, estão impregnadas de

uma religiosidade cósmica, cuja mediação se dá pelas manifestações da própria natureza

como, por exemplo, a água. Para Unger, o ser, “que se coloca em estado de afinidade e

de consonância com os demais seres, pode ouvir a sua voz, conhecer o seu mistério”.88

Entendemos que Riobaldo, como veredeiro/barranqueiro, e seu criador, Guimarães

Rosa, possuem, conforme demonstramos acima e em outros momentos deste trabalho,

esse estado de afinidade.

1.5. Velho Chico

83 Rosa, 1985, p. 348.84 Rosa, 1985, p. 390.85 Rosa, 1985, p. 269.86 Unger, 2001, p. 104.87 Rosa, 1985, p. 08.88 Unger, 2001, p. 71.

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“Opará”. Este foi o nomedado ao rio pelas populações indígenas.

Opará significa rio-mar.

Nancy Mangabeira Unger

Sobre o rio São Francisco ou “Opará” , Riobaldo vai dizer: “O São

Francisco partiu minha vida em duas partes”. Antonio Candido assim se refere a essa

divisão:

Atentando para a sua função no livro, percebemos, com efeito, que ele divideo mundo em duas partes qualitativamente diversas: o lado direito e o ladoesquerdo, carregados do sentido mágico-simbólico que esta divisãorepresenta para a mentalidade primitiva. O direito é o fasto: nefasto oesquerdo. Na margem direita a topografia parece mais nítida; as relações maisnormais. Margem do grande chefe justiceiro Joca Ramiro, do artimanhoso ZéBebelo, da vida corrente no Curralinho, da amizade ainda reta (apesar darevelação no Guararavacã do Guaicuí) por Diadorim, mulher travestida. Namargem esquerda, a topografia é freqüentemente fugidia, passando a cadainstante pelo imaginário, em sincronia com os fatos estranhos edesencontrados que lá sucedem. Margem da vingança e da dor, do terrívelHermógenes, das tentações obscuras, do pacto com o diabo. Nela se situamperdidos no mistério, o campo de batalha do Tamanduá-tão, as VeredasMortas, o arraial do Paredão, o liso do Sussuarão, deserto-símbolo. E, comoflor ou esperança de resgate, Otacília, da Fazenda Santa Catarina, nos BuritisAltos.89

São inúmeras referências que o barranqueiro Riobaldo faz ao rio São

Francisco, segundo Alan Vigiano, são “mais de cinqüenta”,90 e o próprio Guimarães

Rosa não esconde sua paixão pelo “Velho Chico”. Em entrevista concedida a Gunter

Lorenz, ele comenta:

Gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vemao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é umoceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade.Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundoscomo a alma do homem. [...]. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandesrios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugareternidade.91

A referência ao crocodilo ressoador de água na vida de Guimarães Rosa,

também se revela em momentos cruciais de seus enunciados. O jacaré, parente próximo

89 Candido, 1957, p. 7-8.90 Viggiano, 1993, p. 17.91 Rosa, 1994, p. 37.

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do crocodilo, aparece como uma sombra da canoa em “A terceira margem do rio”: “E a

canoa saiu se indo-a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa”,92 conto

dos mais enigmáticos do escritor. O trecho da entrevista a Günter Lorenz demonstra

que, certamente, Guimarães Rosa conhecia a força simbólica que envolve esse animal:93

O crocodilo [como o jacaré] é um cosmóforo ou ‘portador do mundo’,divindade noturna e lunar, senhor das águas primevas, o crocodilo, cujavoracidade é a mesma da noite, devorando diariamente o Sol, apresenta, deuma civilização ou de uma época a outra, muitas das inumeráveis facetasdessa cadeia simbólica fundamental que é a das forças que dominam a mortee o renascimento.94

Encontramos ainda um personagem com nome de Jacaré no romance GSV,

aquele que “exercia de cozinheiro”.95

Heloísa Vilhena de Araújo chama a atenção para o desejo rosiano de

misturar-se à água, para, como ele mesmo diz, “conjugar a eternidade”,96 bem como

para a viagem de Riobaldo, às voltas com às água, como às voltas com a eternidade:

O rio, portanto, “conjuga a eternidade”: é uma figura da eternidade. A viagemde Riobaldo cruzando repetidamente o São Francisco, uma primeira vez como Menino, prefiguração das outras, posteriores, algumas com o mesmoMenino, é, assim, uma viagem pela eternidade.97

Para Guimarães Rosa, os rios são capazes de assemelhar-se aos homens,

tanto na superfície, quanto na profundeza, numa metáfora da “alma”, adquirindo uma

conotação metafísica, líquida importante para esta dissertação , como será visto em

outros momentos, como no tópico “O gênio serpente e o retorno ao mar do Suçuarão”,

em que analisamos as circunstâncias em que a alma de Riobaldo parece liquefazer-se.

Tudo isso se coaduna com a visão de Bachelard, segundo o qual

“desaparecer na água profunda ou desaparecer num horizonte longínquo, associar-se à92 Rosa, 1969, p. 33.93 Aqui, está-se tomando deliberadamente, jacaré por crocodilo, aliás, o jacaré-de-papo-

amarelo, que é considerado o mais perigoso dos comuns Crocodilus sclerops. (Cf. Burton, 1977. p.235). No dicionário de símbolos de Chevalier; Gheerbrant, a simbologia desses animais se equivalem.

94 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p 305-306.95 Rosa, 1985a, p. 86.

96 Araújo, 1996, p. 41.97 Araújo, 1996, p. 39.

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profundidade ou à infinidade, tal é o destino humano que extrai sua imagem do destino

das águas”.98

É também em “A terceira margem do rio” que o narrador, não se

conformando com a própria finitude, expressa o desejo de mesclar-se à eternidade do

rio, como forma de pôr-se perpétuo na existência: “Mas, então, ao menos, que, no artigo

da morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água,

que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro-o rio”.99 O

mesmo “a fora a dentro”100 com que Riobaldo explica o sertão na primeira página

romance GSV reaparece, aqui, nesse enigmático conto, junto ao rio sem nome, podendo-

se considerar que o fato de não ser nomeado, faz desse rio todos os rios.

Donaldo Schüler vale-se de Heráclito para advertir: “se um homem se

inclinar para a água, ficará sujeito ao fluxo, à multiplicidade, ao caos das impressões

sensoriais podendo até ser levado à extinção na embriaguez do úmido”.101 Bachelard,

por seu lado, afirma, em Águas e os sonhos, que só uma mente muito perturbada se

deixaria enganar pelas miragens do rio: “O desejo de um homem [afirma Bachelard,

fazendo das palavras de Jung as suas] é que as sombrias águas da morte se transformem

nas águas da vida, que a morte e seu frio abraço sejam o regaço materno”.102 O desejo de

morte por intermédio da água termina por ser então um desejo de retorno à vida.

Numa imagem de grande energia, ao final do romance GSV, o São Francisco

encarna Eros, cuja força se estende não só “aos deuses e aos homens, mas aos elementos

da natureza”.103 Por isso, “O Rio São Francisco — que de tão grande se comparece —

parece é um pau grosso, em pé, enorme...”.104 Através dessa imagem erótica do rio,

Riobaldo reafirma o devir humano, por intermédio de Eros, na tensão entre a solidez da

árvore105 (o pau) e a sensualidade da água (o rio). O fato de Riobaldo, em sua descrição

98 Bachelard, 1998, p. 14.99 Rosa, 1969, p. 37.100 Rosa, 1985, p. 07.101 Schüler, 2000, p. 181.102 Bachelard, 1998, p. 75.103 Brunel, 2000, p. 320.104 Rosa, 1985, p. 568.105 Ao analisar a presença do carvalho na obra de Virgínia Wolf, Bachelard afirma que a autora, como o

“o sonhador beneficiou-se assim da solidez da árvore na planície com searas ondulantes; o tronco

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do rio São Francisco, representá-lo em pé, produz ainda uma imagem de verticalidade

ligando o rio São Francisco ao “rio que vem do alto [e] desce na vertical, conforme o

eixo do mundo”,106 portanto, conforme o “Axis mundi, pilar cósmico”,107 “eixo líquido

[do sertão, por onde] “simbolicamente os [homens] vão e vêm de uma a outra margem,

cruzando e tocando as duas partes qualitativas do sertão, do mundo” 108 ou, como diria

Bachelard, ao redor do qual “cresce-se a tela do quadro literário, de um mundo

comentado”. Em certa maneira, o rio São Francisco, representa metonimicamente a

matéria em análise nesse trabalho. Parece-nos, ainda, que, esta imagem ereta do São

Francisco, mistura a água da vida, com a árvore da vida, como Mircea Eliade demonstra

por intermédio do apocalipse “Ele mostrou-me, em seguida, o rio e a água da vida,

límpida como cristal, que brota do trono de Deus e do cordeiro... E nas duas margens do

rio cresce a árvore da vida”.109

1.6. Todas as águas

Quem crer em mim, como diz a Escritura,do seu interior fluirão rios de água viva.

João Evangelista (v.38, p. 122)

Riobaldo é um filósofo veredeiro, aberto a todas as manifestações religiosas:

“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas.

Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”,110 afirma

ele, em certa altura do romance GSV, ao beber de todas as águas para lavar a alma, livrá-

la da escuridão do “pacto com o demo” e, ao mesmo tempo, apresentar-se marcado pela

lógica das misturas, opondo-se, portanto, àquilo a que chamamos de pensamento único.

De certa maneira, a frase riobaldiana lembra-nos a frase bíblica “Todo o que bebe

robusto, a raiz dura, eis um centro fixo em cujo redor organiza-se a paisagem, em cujo redor cresce-sea tela do quadro literário, de um mundo comentado. (Bachelard, 1991, p. 56)

106 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 781.107 O “Axis Mundi” é símbolo do “enrolamento em torno do eixo de duas forças complementares

que se equilibram: as duas serpentes do caduceu, o duplo enrolamento em torno do bastão bramânico,o das duas nadi em volta do sushumna, no tantrismo”. (Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 359).

108 Candido, 1957, p. 08.109 Eliade, 1998, p. 157.110 Rosa, 1985, p. 15.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

dessa água, terá sede de novo; mas quem beber da água que eu darei, nunca mais terá

sede: porque a água que eu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando para a vida

eterna”. (Jo 4,13-14). Então Riobaldo, como veredeiro/barranqueiro e também, no

plano da enunciação, como expressão do misticismo brasileiro , compreendendo o

ecletismo das manifestações do sagrado, bebe todas as águas, ou seja, a todas respeita.

As palavras, “água” e “rio”, nesse contexto, metaforizam o sagrado, que se encontra

disseminado em todas coisas e situações da vida no sertão, tanto no alto, como

expressão das forças positivas, quanto no baixo, como expressão das forças negativas.

E, ao beber de todas as águas, que metaforizam, neste momento, as forças do bem,

Riobaldo procura proteger-se do mal. Naturalmente que, no sertão riobaldiano, um dado

negativo, profano, baixo pode manifestar o positivo, o sagrado, assim como do alto pode

vir o profano. São forças intercambiáveis, em luta constante no ser. E

em especial, é a água o elemento mais favorável para ilustrar a combinaçãodos poderes. Ela assimila tantas substâncias! Traz para si tantas essências!Recebe com igual facilidade as idéias contrárias, o açúcar e o sal. Impregna-se de todas as cores, de todos os sabores, de todos os cheiros. 111

A narrativa riobaldiana dá-se como a água, dispondo o mundo, misturando-

o, mas mantendo as alteridades, propondo uma unidade constituída de variedades.

Há em GSV, em seus personagens excetuando-se talvez o “seu Habão”,

representante visível do capitalismo, da usura, ou ainda Zé Bebelo, que queria pôr

ordem no sertão por intermédio de uma ordem exterior, a da cidade , uma

convergência inseparável entre o sagrado e o profano, de forma a não sabermos o ponto

em que essa confluência se dá, já que tudo nos é apresentado em rede, em que os nós,

como o da água, por exemplo, nos ajudam a pensar a condição riobaldiana como a

mesma condição humana.

Localizar a água no romance GSV, para esta dissertação, é abrir mais uma

“vereda”, uma clave de leitura para o romance, em que o elemento água é deflagrado no

enunciado por intermédio da experiência do autor Guimarães Rosa, como conhecedor de

outras culturas e como homem do sertão. Ciente das especificidades hídricas de sua

terra, Guimarães Rosa amplia pela via da erudição de quem viajou quase o mundo todo,

111 Bachelard, 1998, p. 97.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

ou mediante viajem através dos muitos livros lidos. O “rioágua” rosiano tem, portanto,

uma expressão simbólica local e universal.

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Capítulo 2Ressoadores líquidos

2.1. Cavalos, touros, orvalhos, luas de água

O objeto poético, devidamente dinamizado por um nome cheio de ecos, será,ao nosso ver, um bom condutor do psiquismo imaginante.

Gaston Bachlard

Neste capítulo pretendemos demonstrar como algumas imagens recorrentes

no romance GSV revelam-se, para além de sua simples exposição, como elos

importantes na rede hídrica rosiana. Ocorre de percebermos, por exemplo, a imagem do

cavalo, meio mais importante de locomoção dos jagunços, ecoando não só nas inúmeras

situações referenciais, em que aparece como montaria, mas, também, como elemento

que se aprofunda, simbolicamente, misturando-se à simbologia da água. Através dos

“ressoadores” nosso objeto de pesquisa, (as imagens da água), fica “devidamente

dinamizado (...) cheio de ecos”.1 Portanto, os ressoadores funcionam como ecos da

matéria água, dando maior densidade e dinamicidade à mesma.

Numa passagem do romance, Riobaldo resume acontecimentos importantes

para compreensão dessa abordagem:

O que guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira: oscavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim doorvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos, e acanção de Siruiz. Algum significado isso tem?2

Por intermédio dessas imagens de água acima, pretendemos estabelecer

relações de pertinência entre o alumbramento de Riobaldo diante do bando de jagunços

e o momento em que ele parece ser seduzido definitivamente para o jaguncismo.

Gilbert Durand, em seu livro As estruturas antropologias do imaginário,

detém-se longamente sobre a simbologia do cavalo que, muitas vezes, o narrador

protagonista de GSV utiliza para representar suas próprias atitudes.

1 Bachelard, 2001, p. 05.2 Rosa, 1985a, p. 114.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

As significações aquáticas são as mesmas para o touro e para o cavalo: otouro das águas existe na Escócia, na Alemanha ou nos países bálticos.Aquelau, deus do rio, tem a forma taurina; Poseidon mantém a forma asiânicado touro, e é sob essa forma que se manifesta a Fedra na tragédia deEurípedes ou de Racine. É assim que se deve explicar o caráter cornudo denumerosos rios: o Tibre de Virgílio, como o Eridan ou o Oceano grego, têm acabeça taurina.3

Partindo da premissa de Durand, em que a significação dos touros equivale à

dos cavalos, buscaremos investigar a simbologia do cavalo e, conseqüentemente a dos

touros, figuras recorrentes no romance GSV, conforme veremos neste trabalho.

Seguindo as investigações de Durand, abordaremos a relação do autor Guimarães Rosa

com esses animais e finalmente investigaremos uma passagem no romance GSV, em que

os cavalos, entre outros “ressoadores”, condensam intensa simbologia.

O cavalo aquático parece-nos que se reduz igualmente ao cavalo infernal.Não só porque o mesmo esquema de movimento é sugerido pela águacorrente, as vagas alterosas e o rápido corcel, não só porque se impõe àimagem folclórica da “Grande égua branca”, mas porque ainda o cavalo éassociado à água por causa do caráter terrificante infernal do abismoaquático. O tema da cavalgada aquática e fantástica é corrente no folclorefrancês, alemão e anglo saxônico. Encontramos também esse tipo de lendasentre os eslavos, os livônicos e os persas. No folclore destes últimos, é o reisassânida Yezdeguerd I que é morto por um cavalo saído misteriosamente deum lago, tal como é morto no ocidente Frederico, o Ostrogodo. Na Islância, éo demônio hipomórfico Nennir, irmão do Nykur da ilhas Féroe, e do Noknorueguês, irmão de Kelpi escocês e do demônio das nascentes do Sena, queanda pelos rios. Enfim, Poseidon dá o tom a toda simbologia grega do cavalo.Não só toma a forma desse animal como também é ele que oferece aosatenienses o cavalo. (...) O correlativo celta do Poseidon grego é Nechtan,demônio que anda pelas fontes, parente etimológico do Netuno latino.

Enfim, última manifestação, o cavalo vê-se ligado ao fenômenometereológico do trovão. E Pégaso, filho de Poseidom, demônio da água,transporta os raios de Júpiter. Talvez seja necessário ver nesse isomorfismouma confusão no seio do esquema da animação rápida com a fulgurância dorelâmpago. É o que Jung deixa entender a propósito dos Centauros,divindades do vento rápido, e acrescenta, como um freudiano, “do ventofurioso femeeiro”. Por outro lado, Salomon Reinach, mostrou que o rei míticoTindaro é um antigo deus cavaleiro, cujo nome se confunde com o vocábuloonomatopaico do trovão tundere. É, portanto, sob o aspecto de um cavaloruidoso e espantadiço que o folclore, como mito, imagina o trovão. É o quesignifica a crença popular que pretende que, quando troveja, “o diabo estáferrando o cavalo”. Voltaremos ainda a encontrar, a propósito do gritoanimal, este aspecto ruidoso da terrimorfia. O galope do cavalo é isomorfo dorugido do leão, do mugido do mar e dos bovídeos..4 (grifos do autor)

3 Durand, 2001, p. 82.4 Durand, 2001, p. 79.

Capítulo 2 Ressoadores líquidos

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Em entrevista de Guimarães Rosa a Günter Lorenz, este se refere à biografia

de seu entrevistado, Guimarães Rosa, e pergunta-lhe se ela contribuiu para constituir a

espinha dorsal do GSV. Guimarães Rosa responde afirmativamente, dizendo que na sua

diplomacia, influíramo trato com os cavalos, vacas, religiões e idiomas. (...) As vacas e cavalos sãoseres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos.(...) Quando alguém me narra um acontecimento trágico, digo-lhe apenasisso: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!”5

Guimarães Rosa ainda refere-se aos cavalos em dois outros momentos da

entrevista a Günter Lorenz, primeiro citando um ditado alemão “de repente o diabo

me cavalga6 , depois, falando enquanto homem do sertão: “gosto de pensar

cavalgando”.7

Como veremos, o respeito de Rosa por esses animais encena-se na relação

visceral de Riobaldo com os mesmos. No GSV, a repercussão desse ressoador, o cavalo,

pode ser avaliada desde o primeiro encontro de Riobaldo com os jagunços de Joca

Ramiro, encontro que acreditamos ter um valor iniciático e que insufla no menino

Riobaldo o desejo de ser jagunço. Para descrever a imensa massa de jagunços que chega

à fazenda de Selorico Mendes, Riobaldo os mistura aos animais e a ele mesmo, numa

atmosfera de água, sonho, penumbra, entre o sono e a vigília, de quem acabara de

acordar e tinha preguiça em fazê-lo.

Riobaldo não sabia se estava acordado ou sonhando “soubesse sonhasse

eu?”,8 mas repara, sente, minuciosamente o aglomerado de jagunços:a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles,de suor velho, semeado de poeiras do sertão, adonde o movimento esbarraque se sussurra de uma tropa assim – feito uma porção de barulhinhospequenos, que nem dum grande rio, do-aflor. A bem dizer, aquela genteestava toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, eestribeira, ou coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga. Couro raspaem couro, os cavalos dão de orelha ou batem com o pé. Daqui ali, um sopro,um meio-arquejo. E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada,avançando naquele bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia oshomens, sabia só dos cavalos.9

5 Rosa, 1994, p. 32.6 Rosa, 1984, p. 35.7 Rosa, 1984, p. 44.8 Rosa, 1985a, p 110.9 Rosa, 1985a, p. 109-110.

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Como uma criança, Riobaldo interessa-se mais pelo movimento das coisas

do que pelas coisas em si. Esse movimento ele o descreve por intermédio de inúmeras

sinestesias. Para ele a tropa de jagunços forma um “Estado de cavalos. Os cavaleiros”.10

A primeira vez que Riobaldo vê o bando é marcada pela movimentação, cuja percepção

se dá através dos sentidos. E o homem-animal, representação arcaica do guerreiro, de

que nos fala Kathrin Rosenfield, em seu livro, Os descaminhos do demo, manifesta-se

com toda a sua intensidade:

Para a criança pequena, como para o próprio animal, a inquietação éprovocada pelo movimento rápido e indisciplinado. Todo animal selvagem,pássaro, peixe ou inseto, é mais sensível ao movimento que à presença formalou material. O pescador de trutas sabe muito bem que só os seus gestosdemasiado bruscos parecerão insólitos ao peixe. O teste de Rorschachconfirma esse parentesco no psiquismo humano entre o animal e seumovimento.11

Riobaldo, nesse instante, como já fizera antes, animaliza-se — “ao que

farejei pé de guerra”12 — para melhor ver pelos sentidos, o movimento, os “barulhinhos

pequenos” da massa de jagunços em jorro de rio, que quase dava para beber, sorver o

bafo. Estaria ele pressentindo, entre aqueles, seus pares? Riobaldo deduzia “dos grilos a

cavalhada a peso”.13 As imagens da água, nesse episódio, aparecem em sua variedade de

formas — líquidas, vaporosas, suores, bafejos, águas celestes, lunares, o poço, o rio —

formando o conglomerado de imagens, com vistas a dar destaque ao bando de jagunços.

A seqüência de imagens em fluxo, do rio dentro do rio, “dum grande rio”, a massa de

cem jagunços, cem cavalos (“simbolicamente, o cavalo e as águas correntes ou dos rios

são a mesma coisa, são forças vitais geradoras e destruidoras”);14 e os jagunços são

navegantes do rio que eles mesmos formam, “pois tinham navegado na sela a noite

toda.”15 servem, também, para a narrativa equilibrar o peso das forças do mal que se

divulgam nesse momento, reforçando uma atmosfera de sonhos.16 Segundo Leonardo10 Rosa, 1985a p. 109.11 Durand, 2001, p. 73.12 Rosa, 1985a, p. 108.13 Rosa, 1985a, p. 110.14 Cavalcanti, 2000, p. 124.15 Rosa, 1985, p. 11116 Para Bachelard “Mais ainda que os pensamentos claros e as imagens conscientes, os sonhos estão

sob a dependência dos quatro elementos fundamentais. (Bachelard, 1998, p. 04.) Durante a narrativaRiobaldo tem dúvidas. Ele se pergunta se o que viveu são memórias, sonhos ou realidade. Achamos

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Arroyo, “foi Pascal que chamou aos rios de ‘caminhos que andam’ e, sendo caminhos,

identificam-se com os homens e sua mobilidade e, por isso, são personificados”.17

Riobaldo, lembrando-se da batalha do Tamanduá-tão, diz, num momento em

que sentiu muito medo: “Que eu de repente me perguntei, para não me responder:

‘Você é o rei dos homens?...’ Falei e ri. Rinchei, feito um cavalo bravo.”18

Em homologia com os movimentos percebidos por Riobaldo

quando as respostas cinestésicas [isto é, os movimentos musculares deRiobaldo] são acompanhadas com as de animais, [como se observa nesseepisódio do encontro de Riobaldo com o bando de jagunço], tem-se a invasãoda psique pelos apetites mais grosseiros, acidente normal na criança pequena,mas que no adulto é sinônimo de inadaptação e regressão às pulsões maisarcaicas.19

Essa porção de “barulhinhos pequenos, que nem de um rio, à-flor”,

metaforiza a tropa de jagunços, e se traduz por um “formigamento”, que levaria ao

fervilhar da larva; “é esse movimento que, [para Durand], revela imediatamente a

animalidade à imaginação e dá uma aura pejorativa à multiplicidade que se agita. É a

este esquema pejorativo, que está ligado o substantivo do verbo fervilhar (grouiller), a

larva”.20 Apesar da ameaça traduzida pelo bando, Riobaldo doura a imagem da chegada

do bando de jagunços, como se vê no trecho citado acima, também de uma aura de

encantamento, que se dá pelo assombro, pelo alumbramento de um adolescente, nem

menino nem homem, diante do mito da jagunçagem que, até então, só ouvira em história

contadas por seu eloqüente Padrinho Selorico Mendes. Como na canção de ninar, no

acalanto, a imagem heróica do bando de jagunços revela-se num misto de encanto e

horror, remetendo à tradição das cantigas populares, na qual justamente aqueles

acalantos mais evocados apresentam conteúdo aterrorizante.

Ainda segundo o antropólogo Gilbert Durand,

Os cavalos são divindades das águas. Só que os poetas fazem é reencontrar ogrande símbolo do cavalo infernal, tal como aparece em inumeráveis mitos elendas em ligação quer as com as constelações aquáticas, quer com o trovão

que a matéria água, contribui no sentido de dissolver as fronteiras entre o vivido e o sonhado. 17 Arroyo, 1984, p. 188. 18 Rosa, 1985, p. 130.19 Durand, 2001, p. 73.20 Durand, 2001, p. 74.

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ou com os infernos, antes de ser anexado pelos mitos solares. Mas essasquatro constelações, mesmo a solar, são solidárias de um mesmo temaafetivo: medo diante da fuga do tempo simbolizado pela mudança e peloruído.21

Achamos que Riobaldo se utiliza de uma “constelação aquática”, os

“ressoadores”, por intermédio dos quais, as imagens da água, ganham universalidade.

Essa reflexão em torno das imagens simbólicas do cavalo contribui para a compreensão

do universo de Riobado, que se deixa seduzir pelas coisas informes, pelo movimento,

pelo fluxo, pela mudança, enfim, pela natureza sempre diversa, múltipla, paradoxal.

O mês de maio, em “má lua”, dá o tom de sonho e fantasia, de quem acaba

de acordar. A lua, importante ressoador de água, que também influenciará esse

momento riobaldiano, simboliza a dependência do princípio feminino, por não ter luz

própria, e também é símbolo dos ritmos biológicos: “Ela controla todos os planos

cósmicos regidos pela lei do vir-a-ser cíclico: águas, chuva, vegetação, fertilidade... (...)

Para os iacutos, as manchas da lua apresentam uma menina que leva sobre os ombros

uma vara com dois baldes de água”.22 Segundo Mircea Eliade, “os ritos lunares e

aquáticos são orquestrados pelo mesmo destino; dirigem o aparecimento e

desaparecimento periódico de todas as formas, dão ao devir universal uma estrutura

cíclica”.23 Já Paracelso acha que a “lua impregna a substância da água com uma

influência deletéria. A água que ficou muito tempo exposta aos raios lunares é uma água

envenenada”.24

Riobaldo vale-se, ora de uma imagem de água para referir-se aos jagunços,

ora compara-os com árvores crescidas. Os jagunços mais terríveis ali estavam, e quando

Riobaldo sente saudade, sua memória afetiva revela minúcias através da água celeste, do

orvalho, do significante “mar” sugerido na palavra “formar” que forma o bando, o qual

Riobaldo vê como algo “escorrido”:

A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso,estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a peso. Dava o raiar,entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o

21 Durand, 2001, p. 75.22 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 563-56423 Eliade, 1998, p. 154.24 Bachlelard, 1998, p. 93.

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formar daqueles cavaleiros, escorrido, se divisava. (...) Mas até hoje eurepresento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.25

Para Bachelard, o orvalho “é ‘uma umidade radical de todas as coisas’ que o

vento traz ‘em seu ventre’, vinda da esfera celeste, da lua, ‘leite que os céus enviam a

terra.’ Ele segue a vida das estações, ajuda à primavera”.26

O orvalho tem outra virtude, a “de saber resolver a oposição das águas de

cima e de baixo, das águas terrestres e celestes.”27 Nesse primeiro contato de Riobaldo

com o bando de jagunços, Joca Ramiro e Hermógenes representam, a seus olhos, a

presença do bem e do mal, respectivamente, e Riobaldo se detém desdenhoso sobre a

figura de Hermógenes, “o ser de uma irara, com seu cheiro fedorento.”28 Riobaldo

compara Hermógenes a um animal, ao mesmo tempo em que sugere no nome do animal

“irara”, o mal como “ira”. Sié Marques, desconfiado, pergunta, em voz alta, se quem

vem vindo é irmão. Riobaldo ouve. Hermógenes intercede por ele, que se emparelha ao

cavalo de Hermógenes, levando o bando para o poço do Cambaubal. Atrás de Riobaldo

vem a cavalaria, ele a sente num “empurro continuado”.29 E foi quando um falou mais

alto, “aquilo [que] era bonito e sem tino: — Siruiz cadê a moça virgem? Largamos a

estrada, no capim molhado meus pés se lavavam”.30, e os pés de Riobaldo se lavaram no

capim úmido. O jagunço Siruiz cantou a canção oracular, a “canção de Siruiz”, generosa

em imagens de água, no entanto, enigmáticas como todas as imagens da canção, que se

apresenta como síntese do romance.

O nome Siruiz irá abarcar várias misturas, nome de Jagunço, de canção, de

estrela e de cavalo, além das questões anagramáticas, tratadas por Consuelo Albergaria,

já que se pode ver, conforme ela, no nome Siruiz, o anagrama de Osíris, “deus egípcio,

irmão e esposo de Íris [que] foi primeiro um deus agrário e [que] simboliza a força

inesgotável da vegetação”,31 Esse anagrama explicaria, segundo a autora, questões

25 Rosa, 1985ª, p. 110.26 Bachelard, 1991, p. 258.27 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 665.28 Rosa, 1985a, p. 111.29 Rosa, 1985a, p. 111.30 Rosa, 1985a, p. 111.31 Albergaria, 1977, p. 92.

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esotéricas encontradas ao longo da narrativa de Riobaldo. Consuelo Albergaria estuda

cada um dos significados de Siruiz. A figura do cavalo, que interessa especialmente a

nossa investigação, é por ela analisada amplamente: questões de hierofania,

clarividência, morte, conjeturas sobre as possíveis relações entre o cavalo e a canção, o

cavalo e Riobaldo, o cavalo e o homem, o cavalo como ser ctônico e como força

auxiliar, supraterrena.

A imagem dos pés molhados no capim, “no capim molhado meus pés se

lavavam”,32 também chama a atenção:

O pé do homem deixa sua marca sobre as veredas – boas ou más – que eleescolhe, em função de seu livre arbítrio. Inversamente o pé leva a marca docaminho – bom ou mau – percorrido. Isso explica os ritos de lavagem de pés,que são ritos de purificação.33

Por intermédio da análise dessas imagens de água e de algumas simbologias

veiculadas pela presença dos ressoadores cavalo, lua, orvalho, poço esperamos ter

contribuído para dar mais um ponto na rede que constituí o imaginário rosiano.

2.2. O sapo e a rã

O senhor saiba Diadorim: que, bastava ele me olhar com os olhos verdes tão em sonhos, e,por mesmo de minha vergonha, escondido de mim mesmo eu gostava do cheiro dele, do existir dele,

do morno que a mão dele passava para a minha mão. O senhor vai ver.Eu era dois, diversos? O que não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia.

João Guimarães Rosa

A imagem da “rã”, que “traz consigo todos os significados nascidos da

grande cadeia simbólica água-noite-lua-yin”,34 aparece num momento do romance GSV

em que Riobaldo e Diadorim, sob a chefia de Medeiro Vaz, foram buscar água.

Riobaldo sente-se fortemente atraído por Diadorim, que segura, nesse momento uma

cabaça. Do ponto de vista simbólico cabaça é um

símbolo feminino e solar (...) substituto do vaso de terracota (...) que ésímbolo da luz, do verbo, da água, do esperma, dos princípios fecundantes.(...). O Nommo, deus da água, grande demiurgo da cosmogonia dos dogons,

32 Rosa, 1985, p. 111.33 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 695.34 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 803.

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apresenta-se às vezes na terra sob a forma de cabaça. Entre os bambarras,símbolo do ovo cósmico, da gestação, do útero em que se elabora a vidamanifestada. Os bambarras chamam o cordão umbilical a corda da cabaça dacriança.35

Mas, dentro da cabaça há um ferro que, ao balançar, produz gastura, nojo,

em Riobaldo. Walnice Nogueira Galvão analisou várias imagens no romance GSV

utilizando-se de um procedimento recorrente na narrativa de Riobaldo, ao qual ela

chamou de “a coisa dentro da outra”.36 Em homologia com o esse procedimento,

analisaremos esse episódio do romance GSV que envolve a imagem da rã destacando as

imagens de água, implícitas em “ressoadores” como a cabaça e a rã, bem como em

alguns significantes que contribuem para a dinamização das imagens da água.

Vimos que o ferro símbolo fálico que a cabaça traz dentro de si faz

destoar o caráter feminino que este objeto representa, e que, no entanto, confirma a

natureza ambígua de Diadorim, sempre atraente e repulsiva aos olhos de Riobaldo.

Riobaldo diz a Diadorim, referindo-se ao ferro: “— Bota isso fora, Diadorim! ”.37

Diadorim acha que Riobaldo tinha “falado causa impossível”,38 e guarda o ferro num

outro recipiente, a algibeira, ou seja, apenas trocou o ferro de lugar, passando para uma

bolsa; tanto num quanto noutro recipiente, a imagem uterina, feminina, maculada pelo

ferro, salta aos olhos. A “causa impossível” sugere que Diadorim esteja pensando em

sua roupagem masculina. Em seguida, a esse episódio, ambos saem para procurar água e

encontram um poço que “abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato,

ali intrim, toda luz verdejada. Mas a água, mesma, azul, dum azul que haja que roxo

logo mudava”.39 As formas circulares sugeridas por “poço”, “redondo”, “ovalado”,

acrescidas da cor da água “verdejada”, que pode significar a relação entre o sonhador

e a realidade; da cor “azul”, que se pode representar como cor do pensamento; e a cor

“roxa” que, popularmente, representa-se como a cor da paixão , sugerem uma gradação

crescente dos sentimentos que Riobaldo nutre por Diadorim. Mas a enorme atração,

experimentada por Riobaldo, sugestionadas pela água em sua vitalidade e pureza, é35 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 151.36 Galvão, 1986, p. 121.37 Rosa, 1985a, p. 57. 38 Rosa, 1985a, p. 57.39 Rosa, 1985a, p. 58.

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interceptada quando este e Diadorim, concomitantemente, vêem uma rã: “Debrucei, ia

catar água, mas, qual, se viu um bicho rã brusca, feiosa: botando bolhas, que à lisa

cacheavam. Resumo que nós dois, sob num tempo, demos para trás, discordes”.40 Da

água limpa, “feliz”, surge o elemento repelente, como o “ferro” dentro da “cabaça”. A rã

é empregada em várias acepções simbólicas, a principal delas “está relacionada com seu

elemento natural, a água”.41 A simbologia desse animal registra que seu coaxar atrai os

trovões e as chuvas. Cremos que é justamente o aspecto repugnante e dúbio da rã, mal

se distinguindo do sapo, que leva tanto Riobaldo quanto Diadorim a repelirem-se,

neutralizando a feminilidade da água e os símbolos uterinos contidos nas formas ovais

sugeridas pela cabaça e pelo poço. A imagem da rã opõe-se, então, ao aforismo

riobaldiano “perto de muita água, tudo é feliz”,42 e destaca um outro que reafirma a

ambigüidade estrutural do narrador e da narrativa, “no sertão tudo é e não é”.43 Diadorim

desaparece, como sempre faz. Diante disse, Riobaldo sugere que o companheiro de

armas sentiu-se culpado: “Ah, quem faz isso não é por ser e se saber pessoa culpada?”.44

Mas a culpa é também de Riobaldo; os dois viverão sempre no interstício da repulsa e

da atração, entre a culpa e o desejo, conforme vimos no epísódio acima.

2.3. Morte sob as águas

A água leva-nos. A água embala-nos. A água adormece-nos. A água devolve-nos a nossa mãe.

Bachelard

A chuva que marca as mortes no sertão é portadora de vários significados.

Neste tópico, veremos certos momentos em que o imaginário riobaldiano irá envolver

alguns de seus mortos ilustres com a chuva,45 Nesse sentido, buscaremos desvelar

40 Rosa, 1985a, p. 58.41 Chavalier; Gheerbrant, 1999. p. 764.42 Rosa, 1985, p. 2843 Rosa, 1985a, p. 11.44 Rosa, 1985a, p. 58.45 A chuva é universalmente considerada o símbolo das influências celestes recebidas pela terra:

Chavalier; Gheerbrant, 1999. p. 235.

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alguns dos aspectos simbólicos referentes à chuva e aos momentos fúnebres, ambos de

importância crucial na narrativa riobaldiana.

A primeira morte importante enunciada no romance GSV é a de Medeiro

Vaz. “Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio; conforme já

comparei, uma vez: touro preto urrando no meio da tempestade”.46 A morte de Medeiro

Vaz é, por essa relação touro/tempestade, comparável à morte de Joca Ramiro. Ainda

que, de fato, a primeira grande perda de Riobaldo tenha sido a da sua mãe, a Bigri, e,

depois dela, a de Joca Ramiro, Riobaldo somente irá narrar essas duas mortes após

narrar a de Medeiro Vaz.

Medeiro Vaz, “o rei dos Gerais”, um dos títeres de Joca Ramiro, morre, e

Riobaldo assim se refere a esta morte: “Grandes momentos. Demorava”.47 Como o

próprio Ribaldo atesta, a morte de Medeiro Vaz é uma morte lenta. Morte que ocorre

sob forte temporal: “E deu Panca, troz-troz forte, como de propósito: uma chuva de

arrobas de peso”.48 A chuva, como um símbolo celeste, ajuda a corroborar o tratamento

nobiliárquico atribuído por Riobaldo aos líderes jagunços. Segundo Bachelard “para

certas almas, a água guarda realmente a morte em sua substância. Ela transmite um

devaneio onde o horror é lento e tranqüilo”.49

A ocorrência das chuvas no instante dessas mortes dotam-nas de uma

espécie de benesse: “Deus envia um anjo a cada gota de chuva, dizem os esotéricos do

Islã”.50 Nas tradições dos maia-quichés, “não apenas o morto é lavado ritualmente, mas

também sua tumba é aspergida de água virgem; em suma, pode-se dizer que, no

momento de partir para sua outra vida, o morto é batizado, tal como o ser vivo, no início

de sua vida terrena”.51 Essa imagem liga-se, também, a momentos de passagem,

apontando para mudanças imediatas, para ocorrências cruciais que determinarão

decisivamente a vida de Riobaldo.

46 Rosa, 1985a, p. 289.47 Rosa, 1985a, p. 73.48 Rosa, 1985a, p. 73.49 Bachelard, 1998, p. 93.50 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 236.51 Chavalier; Gheerbrant, 1999. p. 126.

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Isso ocorre, por exemplo, com a morte de Medeiro Vaz. Sob terrível

temporal, ela abre caminho para que Riobaldo chegue à liderança dos jagunços. Em

homologia com Bachelard a águas riobaldianas misturam “símbolos ambivalentes de

nascimento e morte. É uma substância cheia de reminiscências e de devaneios

divinatórios”, 52 conforme podemos ler na citação abaixo:

Pois porém, ao fim retomo, emendo o que vinha contando. A ser que, decampinas a campos, por morros, areiões e varjas, o Sesfrêdo e eu chegamosno Marcavão. Antes de lá inchou o tempo, para chover. Chuva de desenraizartodo pau, tromba: chuvão que come terra, a gente vendo. Quem mede e pesaesses demais d’água? Rios foram se enchendo. Apeamos no Marcavão, beirado do-Sono. Medeiro Vaz morreu, naquele país fechado. Nós chegamos emtempo.53

Medeiro Vaz morre à beira do rio do-Sono, no Marcavão. Ambos — “Sono”

e “Marcavão” — apontam para a morte. Além dessa ocorrência, Riobaldo compara

Medeiro Vaz a um rio doente: “O barulhim do rio era de bicho em bicheira.(...) A

barriga dele tinha inflamado muito, mas não era de hidropisia. Era de dores”.54 Medeiro

Vaz apresenta-se aos olhos de Riobaldo como um homem/rio em putrefação, quase em

estado larvário, o que, de certa forma, aproxima o moribundo à figura do mal, do

inferno. Diadorim aponta Riobaldo para substituir Medeiro Vaz, mas ele recusa, e passa

a vez para Marcelino Pampa. Pampa, além de região do sul do Brasil, é um tipo de

cavalo. Riobaldo apresenta Marcelino Pampa como sendo mais capaz, apenas para

retirar Diadorim da disputa que, diante da recusa de Riobaldo, chamava para si a

incumbência da chefia. Não queria embates futuros com Diadorim, pois, no fundo,

almejava o cargo de chefia, achando apenas que não era o momento para tanto; sabe,

contudo, da importância que envolve a situação: “Quem mede e pesa esses demais

d’água”? A pergunta riobaldiana aponta para questões metafísicas, cujas respostas

buscamos nos aspectos hierofânicos, contidos na água. Em suma, a chuva comporta, na

morte de Medeiro Vaz, um aspecto positivo e contrariando a finitude da morte, afirma-

se como vida, como potência, devir, que abriria caminho para a ascensão de Riobaldo

como o chefe Urutu-Branco.

52 Bachelard, 1998, p. 93.53 Rosa, 1985a, p. 72-73.54 Rosa, 1985a, p. 73.

Capítulo 2 Ressoadores líquidos

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Outra morte ilustre é a da Bigri, mãe do protagonista do romance GSV. A

morte da Bigri é sucintamente narrada, mas a chuva comporta aí, como no episódio de

Medeiro Vaz, elementos iniciáticos, como favores celestes, benções dos céus. Bigri

morreu “num dezembro chovedor.”55 E a vida de Riobaldo “mudaria para uma segunda

parte”.56 Depois da morte da mãe, Riobaldo seguiria viagem até a fazenda São Gregório,

de seu padrinho Selorico Mendes (seu pai), numa viagem de seis dias, sempre sob a

chuva.

2.4. Águas de Maria Mutema

No início do romance, Riobaldo narra histórias em que expõe a banalidade

do mal, a história contada por Jõe Bexiguento, cujas “idéias não variavam”,57 ou seja, o

bem e o mal para ele eram coisas distintas, claras, como se o mal, por exemplo, fosse

um agente externo, enquanto Riobaldo tudo está impregnado de seu contrário “este

mundo é muito misturado.”58

Uma das histórias , emblemáticas, em que o “mundo é muito misturado”,

tem como personagem “Maria Mutema”

Trata-se do caso “Maria Mutema”, que ficou sendo a Maria do Padre, o

Padre Ponte. A “Ponte” que se presta à ligação de uma outra margem remete a passagem

feita por Maria Mutema, do mundo sensível ao supra-sensível.59 Nesse episódio, o

significante “ponte”, constitui um ressoador de água, da mesma forma que o chumbo.

Ambos, “ponte” e “chumbo” atuaram decisivamente na metamorfose sofrida por Maria

Mutema, mulher comum que, ao encarnar o mal absoluto e gratuito, chega à

santificação.

Riobaldo tenta entender a estranha lógica das misturas lançando mão de

imagens de água, traduzidas pela tempestade e pelas nuvens: “quem é que pode divulgar

55 Rosa, 1985a. p. 103.56 Rosa, 1985a, p. 103.57 Rosa, 1985a, p. 207. 58 Rosa, 1985a, p. 207.59 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 729.

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o corisco de raio do borro da chuva, no grosso das nuvens altas?”60 As nuvens

dinamizam ainda mais o exemplo riobaldiano para o absurdo dos acontecimentos que se

apresentam como “borro” (borrados, embaçados) devido a seu alto grau de

mutabilidade, o qual Bachelard ressalta nos temas religiosos da Índia, citando Bergaine,

para, em seguida, salientar o caráter zoomórfico peculiar das nuvens:

A nuvem que encerra essas águas, a nuvem não somente mugidora emurmurante, mas também móvel, parece oferecer-se por si mesmo aos jogosdo zoomorfismo. (...) o zoomorfismo do dia está em constante transformaçãona nuvem. O sonhador tem sempre uma nuvem a transformar. A nuvem nosajuda a sonhar a transformação.61

A nuvem, além dos aspectos religiosos, relevantes nas culturas indiana e

chinesa, é “símbolo da metamorfose viva, não por causa de alguma de suas

características, mas em virtude de seu próprio vir-a-ser.”62 Riobaldo busca nas nuvens a

força metafórica que elas evocam, o que as aproxima do processo de metamorfose, e

paradoxais misturas, ocorridas com Maria Mutema. Ela era uma mulher simples, e,

subitamente, sem maiores explicações, encarna o mal. Primeiro mata o marido, depois

leva o Padre Ponte à morte. Ambos, parecem-nos, elementos sacrificiais do estranho

ritual alquímico dessa mulher, em que ela consegue elevar-se “de modo desprezível (vili

figura). E dela surge [a] aqua permanens, (...) Água da Juventude”,63 matéria-prima de

Maria Mutema. “Matéria-prima que os alquimistas identificam com o mercúrio ou com

o enxofre, ou o chumbo, outros com a água, com o sal, o fogo, etc.; outros, ainda, com a

terra, com o sangue, A água da Juventude, O Céu, a mãe, a lua, o dragão, ou com

Vênus, o caos, e até com a pedra filosofal ou com Deus”.64

Segundo Paracelso, o chumbo seria a água de todos os metais... Se osalquimistas conhecessem o que contém Saturno, eles abandonariam todas asoutras matérias para trabalhar apenas com aquela (...). Essa seria a matériada obra chegada ao ponto do negrume; o chumbo branco identificar-se-iacom o mercúrio hermético. Ele simbolizaria a matéria, enquanto estáimpregnada de força espiritual e a possibilidade das transmutações daspropriedades do corpo nas de um outro, assim como das propriedades gerais

60 Rosa, 1985a, p. 207.61 Bachelard, 2001, p. 192.62 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 648.63 Eliade, s/d. p. 128.64 Eliade, s/d. p. 128.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

da matéria em qualidades do espírito. O chumbo simboliza a base maismodesta de onde pode partir uma evolução ascendente.65 (grifos dos autores)

Para matar o marido, Maria Mutema usa o chumbo derretido, despejando-o

dentro de sua orelha enquanto ele dormia.66 Ao dirigir-se ao Padre Ponte, Maria Mutema

usa o verbo, confessando-lhe coisas terríveis ao pé do ouvido, infernizando-o até à

morte. Estariam, então, compreendidas, em mórbida ironia, nas qualidades alquímicas

do chumbo, uma das etapas pelas quais teria que passar Maria Mutema cujo nome

esconde um mudo tema, o qual está velado em sua metamorfose? Os acontecimentos na

vida de Maria Mutema, incompreensíveis à primeira vista, a levou à matéria humana

purificada, ascendente. Uma das máximas dos alquimistas era: “Não efectues nenhuma

operação antes que tudo tenha sido reduzido à Água”.67 Pode-se inferir, desprendendo-se

das limitações individuais e atingindo valores coletivos e universais, através da

transmutação de si mesma, que foi pelo chumbo e a ponte, (ressoadores de água) que

Maria Mutema empreendeu sua jornada. Como Riobaldo, ela não era do “cero”, mas da

“sina”.

2.5. Águas (im)puras

Não se pode depositar o ideal de pureza em qualquer lugar, em qualquer matéria. Por mais poderoso quesejam os ritos de purificação, é normal que eles se dirijam a uma matéria capaz de simbolizá-los.

Bachelard

Riobaldo é barranqueiro, ainda que se queira “quase barranqueiro”,68 daí a

natureza, os bichos, as plantas e, principalmente, as águas transbordarem em suas

metáforas quando busca expressar o universo que o rodeia, como bem explica Leonardo

Arroyo:

65 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 235.66 O occipício é recipiente de transformação, porque o crânio é um recipiente do pensamento e

do intelecto. (Eliade, s/d, p. 124).67 Eliade, s/d, p. 121.68 Rosa, 1985a, p. 568.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Ao longo da narrativa de Riobaldo os rios são quase sempre metáforas deintegração ecológica, sem as quais Riobaldo não saberia, talvez, expressar-secom o mesmo vigor. Por essa comunhão com as forças da natureza apura-se onível de integração homem/natureza, com o predomínio do mais simbólicodas representações naturais do mundo circundante. De um modo geral afiguração dos rios na narrativa tem uma função aglutinante e exemplificativadaquela integração de mundo e linguagem.69

Em uma das inúmeras imagens da água em GSV, ao conjeturar sobre a

bondade divina, Riobaldo mostra a água misturada ao diabo. Ele o faz depois de dizer

que as pessoas ainda não foram terminadas, como um rio, elas mudam sempre. Riobaldo

se expressa de maneira enigmática, por intermédio de uma imagem de água parada e

escura, na qual Deus sorrateiramente manifesta sua força:

o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dágosto! A força dele, quando quer, moço – me dá o medo pavor! Deus vemvindo, ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. EDeus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume,a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca decurtir, barbatimão, angico, lá sei. – “Amanhã eu tiro...” – falei, comigo.Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah! Então saiba: no outrodia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase que por metade, poraquela aguinha escura, toda quieta. Deixei, pra mais ver. Estala, espoleta!Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se achava ocabo... O cabo – por não ser de frio metal, mas de chifre galheiro. Aí está:Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...70

Por intermédio da dissolução da faca na água do tanque, pode-se extrair uma

lição de pureza e manifestação do sobrenatural. Como veremos, não se trata

propriamente de uma água suja, como, em princípio sugere a cor “escura” da água.

Trata-se de uma água com fins específicos de limpar, curtir, putificar. A água e o chifre

o “arcaico” respeitam-se numa espécie de solidariedade entre elementos naturais,

enquanto o frio metal o profano está ligado ao mal. O ferro (o frio metal) que “pode

encarnar o espírito diabólico”,71 da guerra e da civilização, será corroído pela água, por

meio de uma reação química, na qual, para Riobaldo, Deus, se manifesta. Uma água

imobilizada sorve o duro metal. Há um duelo de titãs entre as forças elementares, em

69 Arroyo, 1984, p. 188.

Arroyo, 1984, p. 189.70 Rosa, 1985a, p. 21-22.71 Eliade, s/d, p. 24.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

que a água segue seu curso natural de liquefazer outros elementos. O que impressiona

Riobaldo é a rápida ação corrosiva daquela “aguinha escura, toda quieta”.

A água sempre nos faz intuir a pureza, ela se oferece como um símbolo

natural de pureza, “a água tende ao bem”;72 no entanto, qualquer alteração em sua cor

leva-nos a tomá-la como suja. Para uma mente moderna, civilizada, alerta-nos

Bachelard, a diferença entre uma água pura e uma água impura é inteiramente

racionalizada.

Nós, civilizados, de um modo geral, temos uma repugnância direta pelas

imagens de água suja. A água suja provoca-nos asco, medo, rancor, devido ao alto valor

que damos à água pura.

A água impura, para o inconsciente, é um receptáculo do mal,

um receptáculo aberto a todos os males; é uma substância do mal. Por isso

pode-se carregar a água suja com uma soma indefinida de malefícios. Pode-

se maleficiá-la, isto é, por ela pode-se colocar o mal sob uma forma ativa.

Nisso se obedece às necessidades da imaginação material, que tem

necessidade de uma substância para compreender uma ação. Na água assim

maleficiada, um signo não basta: o que é mal sob um aspecto, numa de suas

características, torna-se mal no conjunto. O mal passa da qualidade à

substância”.73

O aspecto da água leva-nos, apressadamente, a concluir sobre sua

malignidade ou bondade. Assim o mal passa, segundo Bachelard, da “qualidade à

substância”. A pureza da água do tanque é destruída por um pensamento malsão que

podemos ter ao nos depararmos com sua cor turva. No entanto no romance GSV, tudo

ocorre de forma misturada. A presença sorrateira de Deus na água aparentemente suja

do tanque e os atributos sagrados do chifre reforçam essa mistura, que confirmamos

com existência de uma luta entre as forças do bem e do mal, em que, do escuro extrai-se

o claro. “No maniqueísmo entre água pura e impura, a balança tende para a água pura.

Há uma tentação constante para o simbolismo fácil de pureza”.74 A água é um elemento

ligado ao bem. No entanto, no romance GSV, tudo está impregnado de seu contrário, o

puro e o impuro, o bem e o mal, não há como distingui-los totalmente.

72 Bachelard, 1998, p. 146.73 Bachelard, 1998, p. 145.74 Bachelard, 1998, p. 140.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Na busca de compreensão da im/pureza da água, Bachelard faz uma

distinção entre purificar-se e limpar-se, por intermédio de exemplos ritualísticos

paradoxais como

Os cafres que se lavam para se purificar de uma sujeira convencional nuncase lavam na vida comum (...): “o cafre só lava o corpo quando a alma estásuja”. Acredita-se com demasiada facilidade que os povos meticulosos napurificação estejam preocupados com uma limpeza higiênica.75

A purificação não tem a ver com a qualidade da água. Diante da fé a água

pura recebe uma hiper-valorização, conseguindo uma pureza que não se encontra nela

mesma, é resultado de uma racionalização do sujeito. No poema Contrição, de Manuel

Bandeira, encontramos um “eu lírico” que se sente moralmente sujo e quer banhar-se:

Quero banhar-me nas águas límpidas

Quero banhar-me nas águas puras

Sou a mais baixa das criaturas

Me sinto sórdido76

No estudo de Bachelard, toda pureza é substancial, isto é, toda purificação

deve ser pensada como a ação de uma substância. A psicologia da purificação decorre

de uma imaginação material, e não de uma experiência externa, ou seja, a impureza ou

pureza encontra-se no ser, dentro do ser, e não fora, nas coisas. A faca (seu metal)

imersa na água detém, portanto, nessa passagem de GSV, uma simbologia poderosa.77

Também não é por acaso que seja um chifre (símbolo de grande poder) o

cabo da faquinha de Riobaldo. Quando Riobaldo diz “Aí está Deus”, vincula alguns

elementos contidos na água, e a própria água, ao sagrado. Como descrevem Chevalier e

Gheerbrant, no Dicionário de símbolos, no cabo de chifre da faquinha encontramos toda

uma mitologia que passa por Dioniso, pelos gauleses e seus capacetes, por Amon que

no Livro dos mortos dos egípcios é chamado o Senhor dos Chifres , por Xiva, Brama,

75 Bachelard, 1998, p. 147.76 Bandeira, 1993, p. 155.77 (…) na água tudo se “dissolve”, toda a “forma” se desintegra, toda a “história” é abolida;

nada do que anteriormente existiu subsiste após uma imersão na água, nenhum perfil, nenhum “sinal”,nenhum “acontecimento”. A imersão equivale, no plano humano, à morte, e, no plano cósmico, àcatástrofe (o dilúvio) que dissolve periodicamente o mundo no oceano primordial. Eliade, 1998. p.159.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

pela tradição judaico-cristã, na qual a palavra “chifre” é, por vezes, empregada para

designar os braços transversais da cruz, e ainda aparece na tradição celta, como uma

força defensiva, um escudo. Quanto à água, temos uma imagem de água parada,

estagnada, que, no budismo, seria a imagem do manifestante imóvel, do qual partem

todas as manifestações e no qual todas elas terminam por se reabsorver, significando a

atividade celeste que nasce do motor imóvel, e, portanto, do imutável. Tudo nessa água

parada remete simbolicamente para Deus. A cor escura da água revela a natureza

ambígua, às avessas, da narrativa riobaldiana e do Deus riobaldiano, Deus “traiçoeiro”,78

o qual se manifesta nos lugares mais inesperados. Todavia, mesmo o chifre, com todo o

seu referencial ligado ao bem, também, está impregnado de seu contrário, “todo chifre

acaba por significar potência agressiva, do bem ou do mal”.79 Então, Deus, na realidade,

se manifesta, simbolicamente, nos elementos da natureza, menos no ferro. Porque a

faquinha de Riobaldo, é arma de matar, por isso encarna o mal nesse momento, não

possibilitando a presença do bem que o ferro, por outro lado, pode evocar em sua

simbologia: “é, sobretudo, à faca que compete afastar os demônios”.80. E a água que, em

tese, demoraria anos para dissolver o ferro, para espanto de Riobaldo, o faz em um dia.

Assim, cremos que Riobaldo atribui à água valores positivos, e ao ferro valores

negativos, em que a água e o chifre saem vencedores contra o mal comportado na

lâmina da faca do jagunço. Não seria, nesse momento, inverossímil atribuir a Riobaldo

o pensamento de Bachelard, segundo o qual “uma gota de água poderosa basta para criar

um mundo e dissolver a noite”.81

78 Rosa, 1985a, p. 22.79 Durand, 2001, p. 143.80 Eliade, Mircea, s/d, p. 24.81 Bachelard, 1998, p. 10.

Capítulo 2 Ressoadores líquidos

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Capítulo 3Ramagens de água

3.1. Rios às voltas com o mundo

Alongo-me

O rio nascetoda a vida.

Dá-seao mar a alma vivida.A água amadurecida,

a faceida.

O rio sempre renasceA morte é vida.

João Guimarães Rosa

Pensamos, nesta parte, em estabelecer um lastro entre a poesia homérica,

referência basilar para a formação do homem grego e, portanto, da civilização ocidental,

passando por Heráclito, até o ponto em que esse pensamento homérico entra em

confluência com as águas rosianas, por intermédio das águas do rio Urucuia. Riobaldo,

em certa maneira, como o herói homérico, encontra-se perdido em sua travessia no mar,

mas num “mar de territórios”,1 representação metafórica do sertão. A referência ao mar

na obra rosiana é bastante recorrente, como se verá mais adiante. Ao nos atermos à

representação do mar na obra rosiana, pensamos como os pré-socráticos; segundo os

quais, o mar representa a “água em geral”.2 Veremos também que, desde o início, tanto

o destino de Riobaldo, quanto suas memórias estão ligados às águas. Fechando o

capítulo retornamos às imagens de água do rio Urucuia,3 rio que Riobaldo confessa

como sendo o que ele mais ama. Veremos como essas águas, em vários momentos,

revelam-nos aspectos melancólicos da memória riobaldiana.

1 Rosa, 1985a, p. 24.2 Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 206.3 Guimarães Rosa, ao referir-se ao aguardado contato com editores alemães para a tradução de sua obra,nessa língua que ele toma contato aos nove anos de idade, língua de sua confessada predileção, usa osnomes dos rios, “O Reno e o Urucuia (à guisa de história entre editor e autor)”. Rosa, 2003, p. 323.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Confunde-se com os primórdios da civilização grega a idéia de que a Terra

era circundada pelas águas. Encontramos referências a respeito em Eurípides, Heródoto,

Homero, sugerindo que esta era uma idéia amplamente aceita.4

Kirk, Raven e Schofield,5 iniciam seus estudos sobre os pré-socráticos

justamente pela referência à água. A aliança dessa crença pré-socrática (de um rio que

circundava o mundo) com a narrativa rosiana nos pareceu pertinente quando

analisávamos a maneira como Riobaldo refere-se ao Urucuia nesta passagem: “O que eu

pensei:.. rio Urucuia é o meu rio – sempre querendo fugir, às voltas, do sertão, quando e

quando, mas ele vira e recai claro no São Francisco”.6 A frase sugere a possibilidade de

pensarmos o rio Urucuia como aquele que vive no entorno e no entremeio do sertão (em

certa maneira como o próprio homem do sertão e mais especificamente como Riobaldo,

que vive querendo fugir ao próprio destino). Sabemos que existem “terras altas demais

além do Urucuia”; no entanto, o sertão é o mundo. Vimos o Urucuia, também como

metonímia das águas do sertão, portanto das águas de Riobaldo. Nesse sentido, o

Urucuia assemelha-se ao

Oceano [que] é a representação da força que envolve e governa tudo, que semove e não se move ao mesmo tempo, que está longe e está perto, que estádentro e fora de tudo, como representação da totalidade, corresponde àdescrição do tão de Lao Tse, no Tao Te King

O grande Tao espraia-se como uma onda,É capaz de ir para a direita e para a esquerda.Todos os seres nasceram dele

sem que ele seja o autor.Realiza as suas obrasmas não se apropria delas.

Protege e alimenta todos os seressem que seja seu senhor,por isso podemos chamar-lhe grandeza.

É por não conhecer sua grandezaQue sua grandeza se realiza.

Dentro desta acepção, Oceano é o deus que faz a doação de sua essência, desua totalidade, de seu próprio corpo, isto é, da sua matéria-prima para acriação e para a transformação daquilo que é ideal em real. Ele fornece aágua, a matéria-prima universal, ainda que informe, para a construção domundo, conduzindo as correntes vitais do oceano do seu ser. Assim, este deus

4 Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 06.5 O ensaio que analisa a tese de que a Terra seria circundada pelas águas é “A visão ingênua do

mundo”. Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 03.6 Rosa, 1985a, p. 356-357.

Capítulo 3 Ramagens de água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

possibilita que a criação abra caminho do informe para o formal, da escuridãodo inconsciente para a luz.7

A água, como matéria sensível e supra-sensível, propicia, muitas vezes, o

caminho para a travessia de Riobaldo rumo à sua própria transformação. O Urucuia

aparece também como sendo o meio do sertão: “— ‘Ao que pois, Tatarana: em faltas de

notícias, formei meu pião por aí... Já estive em Ingazeiras, na Barra-da-Vaca, no Oi-

Mãe, em Morrinhos...O Urucuia não é o meio do mundo?’”8

Riobaldo fala, às vezes, como um homem primitivo e como poeta. Em certa

maneira, ele é muito parecido aos primeiros pensadores, dono de uma sabedoria e

intuição notáveis. Quando ele pensa o ser, se expressa por aforismos, poesia, parábolas,

adágios, paradoxos ou a partir de um elemento, como por exemplo, a água. Por isso,

cremos que o rio Urucuia representa, nesse momento, a idéia dos precursores da

civilização ocidental, para os quais a água se revela como matéria originária do mundo e

que o mesmo é contornado pela água. O escritor João Guimarães Rosa era leitor de

Homero, 9 para quem Okeanos ou Oceano era “como um rio que circunda a terra, e

fonte de todas as águas”,10 bem como, fonte e origem da existência: “pois eu vou ver os

limites da terra fecunda e Okeanos, progenitor dos deuses, e Tétis, sua mãe...”.11 Sabe-se

que Tétis forma com Okeanos um casal de deuses, do qual se originaram e para onde

irão todas as águas: “Da união de Oceano e Tétis, representantes da Totalidade, se

originaram os rios, e para o Oceano eles retornam, isto é para o Self, para o ventre da

Mãe”.12

Para Aristóteles, segundo os estudiosos Kirk, Raven e Schofield, Homero

seria o precursor de Heráclito de Éfeso, na sua afirmação de que todas as coisas teriam

origem no fluxo e no movimento. Para esses estudiosos, as proposições de Tales de

Mileto, de que a terra flutuaria nas águas e era a origem de todas as coisas, já haviam

7 Cavalcanti, 2000, p. 29-30.8 Rosa, 1985a, p. 454.9 Guimarães Rosa lê as epopéias em mais de uma língua, cotejando o original com traduções

em inglês e alemão. Em vários momentos, ele próprio busca equivalentes em português para palavras eexpressões de difícil tradução. Cf. Costa, 1998. p. 60.

10 Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 04.11 Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 08.12 Cavalcanti, 2000, p. 165.

Capítulo 3 Ramagens de água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

sido formuladas por pensadores mais antigos, que poderiam ser egípcios ou babilônicos.

Dessa forma, tais noções adviam de narrativas mitológicas de outras culturas

predecessoras: “Nos relatos babilônicos e em algumas versões egípcias, a terra era

considerada como estando em vias de secar, ou emergir, no meio das águas primevas”.13

Okeanos ainda aparece simbolicamente representando a água primordial, a

“prima matéria” que, por sua vez, compõe a substância da serpente mítica primordial.14

Referimo-nos, aqui, à Uroboro, serpente que morde a própria cauda, símbolo tantas

vezes utilizado pela crítica para referir-se à condição riobaldiana retida no círculo

infindo de bem e de mal, de Deus e o diabo, da vida e da morte. A serpente é um animal

que vive à beira das águas. Apesar de Bachelard chamar a serpente de “o mais terrestre

dos animais”,15 é possível encontrar relações importantes entre a serpente e a água. O

círculo formado pela serpente Uroboro aproxima-se, pela forma sinuosa, à imagem do

rio de um modo geral, e ao rio que vive “às voltas com o mundo”, ao rio da existência, à

Banda de Moebius ou ao símbolo do infinito, que encontramos ao final do romance

GSV. Nas palavras de Cavalcanti,

Oceano é a polaridade yang, a água masculina, o lado patriarcal da Uroboro.A Uroboro patriarcal é o princípio masculino mais profundo e arcaico contidodentro da Totalidade urobórica. Tétis [esposa e irmã de Oceano], a Uroboromatriarcal é a polaridade yin, a água feminina. Mas, como diz Neumann:“Esse primeiro movimento, o elemento criativo do ato genésico, agregadonaturalmente ao lado paterno da Uroboro como começo do vir a ser notempo é mais difícil de ser apreendido numa imagem do que o lado daUroboro materna.16

Riobaldo é um rio, e contém dentro de si uma “serpente” e será chamado,

quando chefe de jagunço, de Urutu-Branco, designação de uma cobra voadeira. O rio de

amor de Riobaldo chama-se Urucuia, o qual flui serpenteando. Em GSV são várias as

imagens de água sobrepondo-se, multiplicando-se e ligando-se ao grande rio cósmico,

de onde tudo vem e para onde tudo retorna, como os rios que vão dar no mar.

13 Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 06.14 Cavalcanti, 2000, p. 31.15 Bachelard, 1990, p.202.16 Cavalcanti, 2000, p. 26.

Capítulo 3 Ramagens de água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Riobaldo é uma espécie de gênio-serpente, de herói, de santo, imortalizado

pela narrativa e que está sempre nas imediações das águas, reguladora, na maior parte

das vezes, de sua vida.

Por intermédio da narrativa riobaldiana, O rio Urucuia liga-se à tradição de

outros rios do mundo, como o Servern (Grã-Bretanha), o Jordão (Palestina), o Tibre

(Itália), e o Boand (Irlanda), que antes dele receberam o status de “rio cósmico”.17

3.2. Águas da memória

Os acontecimentos de águapõem-se a se repetir

na memória.

João Cabral de Melo Neto

O romance GSV filia-se ao pensamento dos filósofos e sábios orientais e

ocidentais vinculados a uma visão cósmica do mundo, que pode ser traduzida por uma

unidade estabelecida pela tensão entre os contrários. Ao narrar, Riobaldo que é “só um

sertanejo e nessas altas idéias [navega] mal”18, o faz epicamente, como um aedo, poeta

grego: afasta-se do legendário rio Léthe (água do esquecimento) e aproxima-se de

aletheia (o não esquecimento), aliando-se à ” (Mnemosýne),19 “água da memória que é

também uma “fonte de imortalidade”.20 Riobaldo narra também para não esquecer, e o

faz, muitas vezes, por meio de paradoxos, ou seja, para além da doxa, do comum. A

linguagem riobaldiana não é uma linguagem da polis, que seria caracterizada pela doxa,

pela filosofia, pela sofística; ao contrário, está impregnada do mito e da poesia, não

deseja convencer, quer mais narrar para tentar decifrar, como ele próprio afirma: “Eu

queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é a vida de

sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da

coragem e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder”.21

17 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 781.18 Rosa, 1985a, p. 13.19 Chauí, 2002. p 43.20 Le Goff, 1996. p. 438.21 Rosa, 1985a, p. 93

Capítulo 3 Ramagens de água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

O “suceder” riobaldiano, sua “matéria vertente”,22 lembra-nos o movimento,

a mudança, o devir, o fluir constante, o corpo de um rio, a própria existência.

Movimento que Riobaldo traduz multifacetadamente pelas imagens da natureza, de

água, por meio de uma narrativa “polifônica”.23 Em vários momentos, Riobaldo se porta

como um pré-socrático, quando, por exemplo, ao formular uma imagem referente ao rio

das Velhas, ele faz com que o rio ganhe um status de rio da existência, como no

fragmento de Heráclito, “entramos e não duas vezes no mesmo rio”: “Cheguei a encarar

a água, o Rio das Velhas passando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade”;24

status que também o rio Urucuia irá ganhar: “Mesmo a hora em que eu for morrer, eu

sei que o Urucuia está sempre, ele corre”. No conto “Pantanal” do livro Ave palavra, de

Guimarães Rosa, o narrador enuncia: “As águas nunca envelhecem de verdade”.25 As

imagens de água riobaldianas constituem-se como verdadeiras “vozes e consciências

independentes”,26 que contribuem como as outras vozes, para a unidade contraditória e

multifacetada do romance GSV. Sobre o fragmento de Heráclito, dirá Bachelard: “Não

nos banhamos duas vezes no mesmo rio, porque, já em sua profundidade, o ser humano

tem o destino da água que corre”.27 Riobaldo utiliza-se das águas, como “substância de

seus devaneios” e de sua memória em várias passagens do romance GSV, para dar forma

ao sertão.

Em outro momento, Riobaldo referindo-se ao seu pensamento, em

conjecturas sobre sua incapacidade de narrar os fatos acontecidos, refere-se aos

acontecimentos, ao devir, comparando-se com um rio que, preso ao fluxo das águas, não

consegue discernir o que se passa ao seu redor:

Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos — às vezes achei; ou àsvezes, também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zúo de umminuto mito: briga de beija-flor. Agora, que mais idoso me vejo, e quantomais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor — se transforma, se

22 Benedito Nunes vai dizer que a “recordação leva Riobaldo ao fundo de si mesmo, levando-oao dúbio conhecimento do que foi e daquilo que se tornou, em meio ao vago discernimento do quepoderia ter sido”: Nunes, 1983. p. 17.

23 Cf. Bakhtin, 1997.24 Rosa, 1985a, p. 136.25 Rosa, 1985b, p. 182.26 A esse respeito ver Bakhtin, 1997, p. 04.27 Bachelard, 1998, p. 6-7.

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compõe, em uma espécie de decorrido formoso. Consegui o pensar direito:penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo...28

3.3. Águas primordiais, águas batismais

Elas foram no princípio, elas voltaram no fim de todo ciclo histórico ou cósmico;elas existirão sempre se bem que nunca sós, porque as águas são sempre germinativas,

guardando na sua unidade não fragmentada as virtualidades de todas as formas.

Mircea Eliade

Diadorim, o Reinaldo,me lembrei dele como menino,

com a roupinha nova e o chapéu novo de couro,guiando meu ânimo para se aventurar na travessia

do Rio do Chico, na canoa afundadeira.

João Guimarães Rosa.

No episódio do primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim, algumas

imagens de água se destacam por seus valores iniciáticos, em que as águas do rio de-

Janeiro e do rio São Francisco, do barqueiro, e de Diadorim (mestre iniciador de

Riobaldo) metaforizam a primeira etapa pela qual Riobaldo tem de passar em sua

travessia. O próprio Riobaldo assim se refere, “foi um fato que se deu um dia, se abriu.

O primeiro”.29 Para Chevalier; Gheerbrant, “Iniciar é, de certo modo, fazer morrer,

provocar a morte. Mas a morte é considerada uma saída, a passagem de uma porta que

dá acesso a outro lugar. À saída, então, corresponde uma entrada. Iniciar é também

introduzir”.30 Ao introduzir-se no rio São Francisco, Riobaldo amanhece “sua aurora”,31

ou seja, abre-se para ele um novo começo. Fica evidente a estatura mítica de Diadorim

quando Riobaldo termina de narrar sua primeira travessia e refere-se a Diadorim,

questionando o próprio destino: “Por que foi que eu precisei encontrar aquele

Menino?”; por mais três vezes a palavra menino, referindo-se a Diadorim, é grafada em

letra maiúscula. Nesse momento da narrativa, Diadorim se assemelha, em certa medida,

às ninfas, como nessa passagem em que Diadorim mostra a Riobaldo os encantos da28 Rosa, 1985a, p. 321.29 Rosa, 1985a, p. 93.30 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 506.31 Rosa, 1985a. p. 100.

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natureza: “Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha atenção para o mato de

beira, em pé, paredão, feito à régua regulado”.32 Segundo Mircea Eliade,

as ninfas, uma vez personificadas, intervêm na vida do homem. Sãodivindades do nascimento (água=fertilidade) e Kourotrophoi, educam ascrianças ensinam-lhes a tornarem-se heróis. Quase todos os heróis gregosforam educados quer por ninfas, quer por centauros, isto é, por seres sobre-humanos que participam das forças da natureza e as controlam. Umainiciação heróica nunca é “familiar”; em geral, nem mesmo é “cívica”, não sefaz na cidade, mas na floresta, no mato.33

Diadorim intervém decisivamente na vida de Riobaldo levando-o,

primeiramente, das águas do rio de-Janeiro às do rio São Francisco. Decisivamente

influencia-o desde o início, apresentando-lhe a natureza: “Foi o menino quem me

mostrou. E chamou minha atenção para o mato de beira, em pé, paredão, feito a régua

regulado. ‘As flores...’ ele prezou”.34 Como um herói grego, a iniciação de Riobaldo

é feita na floresta.

Na beira do rio, Riobaldo surge, ainda menino e muito pobre. Ele lembra

que tinha vindo do “do sertãozinho de minha terra baixo da ponta da Serra das

Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera de um sítio dito do Caramujo,

atrás das fontes do Verde, o Verde, que verte no Paracatu”.35 O caramujo ou caracol

apresenta-se, nesse momento, como um ressoador líquido, trata-se de um símbolo lunar,

portanto ligado à água, de nascimento e fecundidade; “entre os astecas simbolizava

comumente a concepção, a gravidez, o parto”,36 e na “África do norte (...) participa do

elemento úmido e só sai da terra, como costumam dizer os homens do campo, depois da

chuva”.37 E a fonte do “Verde” lembra-nos que, na antiguidade, “a fonte dos rios era,

aliás, considerada a vagina da Terra”.38 Logo em seguida as referências ao local de seu

nascimento, aparece o nome “Bagre”, como nome de cidade que não existe mais; trata-

se de um peixe, o qual segundo Chevalier; Gheerbrant é “Símbolo das águas,

32 Rosa, 1985a. P. 97.33 Eliade, 1998, p. 166.34 Rosa, 1985a, p. 97.35 Rosa, 1985a, p. 39. 36 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 186.37 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 186.38 Eliade, s./d. p. 34.

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cavalgadura de Varuna, o peixe está associado ao nascimento ou à restauração cíclica”.39

Riobaldo envolve o seu nascimento de imagens de água. Esse nascimento é marcado

pelos símbolos da lua, do peixe, da mulher e da água, conjunto que tem sido percebido

como o circuito antropocósmico da fecundidade: “A aspiral, o caracol (emblema lunar),

a mulher, o peixe pertencem constitucionalmente ao mesmo simbolismo de

fecundidade, verificável em todos os planos cósmicos”.40

Dessa maneira errante, entre vários ressoadores líquidos, Riobaldo introduz

sua própria estória, ligando-a às mitologias de grandes nomes da história da humanidade

cujo

nascimento é como que instaurado pelo mito aquático: é perto do rio quenasce Mitra, é num rio que renasce Moisés, é no Jordão que renasce Cristo,nascido pela primeira vez da pêgê, sempiterne fons amoris. Não escreve oprofeta, acerca dos judeus, que “provêm da nascente de Judá”41?

Com referência ao rio Jordão, Riobaldo cita-o, a certa altura da narrativa,

tentando compreender a grandeza de seu amor por Diadorim e demonstra estar disposto

a qualquer sacrifício para estar perto desse amor: “Eu ia com ele até o rio Jordão”.42 O

que permite estabelecer outras relações simbólicas com a descida de “Cristo no Jordão

que foi ao mesmo tempo, uma descida às águas da morte”.43 Segundo Mircea Eliade,

“Cristo fora ali para quebrar o poder do dragão [Behemot] ali escondido”; de acordo

com Jó, o dragão recebia as águas do Jordão em sua boca. De certo modo, a imagem

também nos lembra o cavaleiro medieval dos “romances de cavalaria”,44 em analogia

com o qual vemos que Riobaldo seria o cavaleiro disposto a ir até as águas da morte e

matar o dragão para salvar a donzela Diadorim, caso fosse necessário.

Onde Riobaldo viveu a infância, não se pode mais localizar: os nomes das

cidades, no sertão, vão mudando. O próprio João Rosa não gostava de falar de sua

infância. Novamente, vida e literatura confluem na medida em que não conhecemos

nada da infância de Riobaldo. Essa falta redunda também no nonada que inaugura o39 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 703.40 Eliade, 1998, p. 154.41 Durand, 2001, p. 226.42 Rosa, 1985a, p. 180.43 Eliade. 1996, p. 155.44 Proença, 1976, p. 167.

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surgimento do mundo e do sertão rosiano e, de certa maneira, na imagem da travessia.

Riobaldo diz que conta “as coisas que formaram passado com mais pertença”.45 É o real

traduzindo-se no meio da travessia, quando o sujeito está em plena ação e, portanto, sem

condições de refletir sobre os acontecimentos, como também podemos ver nesse trecho

do romance GSV, em que Riobaldo enquanto bebe a água do córrego, sorvendo a água

com a boca como se fosse um cavalo, perde-se em devaneios sobre a realidade e o

sonho. As imagens de água no romance GSV são extraídas sem intermediários,

diretamente da natureza, daí a sua força mais viva, cósmica. “Para sonhar

profundamente, cumpre sonhar com matérias. Um poeta que começa pelo espelho deve

chegar à água da fonte se quiser transmitir sua experiência poética completa”.46 Assim é

o procedimento riobaldiano, tudo é extraído diretamente da natureza, sem

intermediários, como nestas imagens que nos lembra o mito de Narciso, quando

Riobaldo ajoelha-se à beira do rio, e espiando-a faz reflexões em torno do sonho e a

realidade:

Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse então eu carecia deuma realidade no real, sem divago!” Ajoelhei na beirada, debrucei, bebi águacom encostando a boca, com a cara, feito um cachorro, um cavalo. A sedenão passava minha barriga devia de estar inchada, igual a de um sapo, igualum saco de todo tamanho. Umas cem braças para cima, onde o córregoatravessava a capoeira, estavam esfaqueando um rapaz, e eu espiava para aágua, esperando ver vir misturado o sangue vermelho dele — e que eu nãoera capaz de deixar de beber. Acho que eu estava com febre.47

A proximidade da água, mais a matéria água, que temos distinguido na

intimidade das imagens rosianas, parece contribuir, no sentido de não desvelamento do

real. Riobaldo contempla a água do córrego e ela parece consumi-lo.48 Acreditamos que

em Riobaldo, o homem rio, é a água que sonha, pode-se dizer que “a água é seu

aparelho de olhar o tempo”,49 que este é para ele “matéria vertente”.50 Diante do córrego,

no momento em que o rapaz é assassinado e seu sangue mistura-se à água, “a água

45 Rosa, 1985a, p. 93.46 Bachelard, 1998, p. 24.47 Rosa, 1985a, p. 225.48 “Contemplar a água é escoar-se, é dissolver-se, é morrer.” (Bachelard, 1998, p. 49.)49 Bachelard, 1998, p. 33.50 Rosa, 1985a, p. 93.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

mistura seus símbolos ambivalentes de vida e morte”.51 Segundo Chevalier e

Gheerbrant, “o sangue — misturado à água — da chaga de cristo, recolhido no Graal, é,

por excelência a bebida da imortalidade”.52 É pela simbologia encerrada na mistura entre

a água e o sangue, no intuito de saciar a sede de imortalidade, que Riobaldo não

consegue deixar de beber a água do córrego. A imagem contém implicitamente aspectos

simbólicos positivos que tensionam o conteúdo moralizante, negativo, demoníaco, do

homem que bebe deliberadamente o sangue de outro homem.

“Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro”.53 As palavras

destacadas entre vírgulas, “um” e “dia” enunciam-se na narrativa riobaldiana apontando

para várias etapas importantes da vida de Riobaldo. Na tradição chinesa, o número um

corresponde à água na teoria dos cinco elementos a água, o fogo, madeira, o metal, a

terra “A cada um dos elementos, os chineses fizeram corresponder um animal, uma

víscera, uma cor, um sabor, uma planta, um modo da escala pentatônica e um planeta”,54

sendo que os elementos reportam-se à ação do Yin e do Yang. “Os cinco elementos

reagem, uns sobre os outros, alternadamente, ou destruindo-se um pelo outro”.55

Corroboram o comportamento reativo ou destrutivo entre os elementos, os filósofos

ocidentais: Empédocles, Platão, Aristóteles, Plotino a água é o primeiro elemento,

numa concepção evolutiva cíclica entre os elementos, e a terra o último, passando pelo

fogo e ar, elementos intermediários. Nietzsche, em seu texto A Filosofia na época

trágica dos gregos, chama a Tales de Mileto de mestre criador que, sem fabulação

fantástica, teria começado a ver as profundezas da natureza. Através da afirmação “tudo

é água”,56 Tales teria, ainda segundo Nietzsche, dado um salto filosófico, pressentindo a

solução última das coisas, sendo contemplativo como um artista plástico e compassivo

como um religioso: “Assim, Tales contemplou a unidade de tudo o que é: e quando quis

comunicar-se, falou da água”.57 Na tradição sufi, estabelecem-se quatro etapas da

51 Bachelard, 1998, p. 93.52 Chevalier; Gheerbrant, 1999. p. 800.53 Rosa, 1985a, p. 93.54 Chevalier ; Gheerbrant, 1999, p. 360.55 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 361.56 Nietzsche, 1983, p. 33.57 Nietzsche, 1983, p. 33.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

tradição iniciática, a terceira é a água, onde o iniciado aprende “a divina e única

realidade, inicialmente no que ela tem de mais fluido e impreciso”.58

Com a água tem-se o início da viagem iniciática de Riobaldo, que resultará

na travessia do deserto do Suçuarão e culminará na morte de Diadorim. Mas o devir

riobaldiano, como o das águas, não tem fim. Riobaldo é, de acordo com o tratamento

dado nesta investigação, um ser votado para a água; tem, portanto, um tipo de destino

especial, o destino da água, “não mais apenas o destino das imagens fugazes, o vão

destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia

incessantemente a substância do ser”.59 Todas as etapas que Riobaldo terá que passar

perfazem níveis de sua progressão espiritual, que o transformam sempre.

Para falar do sertão, para falar das águas passadas, do que não sabe, do que

ninguém não sabe, as “veredas, veredazinhas”, no romance GSV, metaforizam a

umidade e as águas, recorrentes na vida de Riobaldo. Disso só sabem “umas raríssimas

pessoas e só essas poucas veredas, veredazinhas.”60 Percebe-se que a vereda, a

“veredazinha”, metalingüisticamente, metaforiza o caminho frágil do relato. Cremos que

as veredas são, também, como nódulos de regenerescência, no sertão, memória e

linguagem emergindo dos inumeráveis centros móveis, que a rede hídrica é capaz de

conectar. É a linguagem fluida, como uma veredazinha, em constante verter “de uma

poesia que escoa como fonte”,61 que torna possível a narrativa riobaldiana. Quando

Riobaldo diz: “foi um fato que se deu um dia, se abriu. O primeiro”,62 está usando a

palavra “abriu” como chave iniciática de uma série de portas que o levariam, depois da

travessia de muitas águas, às terras altas do Urucuia.

Toda a literatura épica com a qual o GSV, sem dúvida, apresenta um

vínculo, é marcada pelo tema da viagem iniciática. No porto, sem nome, do rio de-

Janeiro, rio do início, rio baldo, menor, “sem importância”, na idade da inocência,

Riobaldo inicia-se nos ritos de passagem que

58 Chevalier; Gheerbrant, 1999. p. 363.59 Bachelard, 1998, p. 6.60 Rosa, 1985a, p. 93.61 Bachelard, 1998, p. 193.62 Rosa, 1985a, p. 93.

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desempenham um papel importante na vida do homem religioso. É certo queo rito de passagem por excelência é representado pelo início da puberdade, apassagem de uma faixa de idade a outra (da infância ou adolescência ajuventude). 63

A primeira porta se abre pelas mãos de Diadorim, no porto ao qual veio para

comprar arroz com o tio, conforme a própria Diadorim diz: “— ‘meu tio planta de tudo.

Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou de morte de minha tia...’”.64 O arroz,

como o milho e o trigo, para algumas culturas, possui grande força espiritual.

Reproduzimos, aqui, um momento em que a imagem do arroz mistura-se à do rio, na

fórmula proferida pelos Karens da Birmânia, que chamam de volta o Kelah, a alma do

arroz, que foi embora em razão da colheita ruim:

Oh, vem, Kelah do arroz, vem! Vem para o campo. Vem para o arroz. Comsementes dos dois sexos, vem! Vem do rio Kho, vem do rio Kaw; do lugaronde elas se encontram, vê; vem do Ocidente, vem do Oriente. Da gargantado pássaro, das mandíbulas do macaco, da garganta do elefante. Vem danascente dos rios e da sua embocadura. Vem do país do Chan de do Birman.Dos reinos longínquos, de todos os celeiros, oh, vem! Oh! Kelah do arroz,vem para o arroz.65

A imagem do arroz, ainda que pareça distante do objeto desta dissertação,

dinamiza-se suficientemente para integrar a perspectiva dos ressoadores líquidos que

compõem o grande mosaico das imagens de água no romance GSV. Consideramos,

também, no episódio do primeiro encontro, o aspecto ritualístico do arroz que é usado

em cerimônias de casamento, já que o encontro de Riobaldo e Diadorim transforma-se

numa espécie de casamento, no sentido de associação, aliança, como atesta o próprio

Riobaldo: “Reinaldo — ele se chamava. Era o Menino do Porto, já expliquei. E desde

que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio

querer, ir me separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia?”66 Uma outra imagem

ligando as águas ao arroz ocorre quando Riobaldo ganha o cavalo de seô Habão e sente

que isto seria ofensivo a Zé Bebelo. No entanto, para surpresa de Riobaldo, Zé Bebelo

aprova o presente: “‘Tal te fica bem, professor, amontado nesse estampo, queremos

63 Eliade, 1999, p. 150.64 Rosa, 1985a, p. 95.65 Eliade, 1998, p. 274.66 Rosa, 1985a, p. 130.

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havemos de te ver garboso, guerreando as boas batalhas... Em hora!...’ foi o que ele

disse, se me seja que gostou pouco. Choveu para o meu arrozal!”67

Entre a terra e a água, “o menino tinha me dado a mão para descer do

barranco”.68 Se o barranco é formado pela escavação do rio, ele nos remete ao barro, ou

seja, à mistura da água com a terra. Riobaldo refere-se, à maneira de Manuel Bandeira,

com emoção social69 ao barranco, momentos antes: “Dá dó, ver as pessoas descerem na

lama aquele barranco, carregando sacos pesados, muita vez”.70 Para Mircea Eliade, a

água onde se amassa a argila equipara-se à água primordial. Em outra referência vemos

que “na iniciação maçônica (...) o Recepiendário começa por sair da Terra”.71

Na Divina Comédia, no início da jornada até Beatriz, no Canto III, na

entrada do inferno, Dante segue Virgílio, e este o conforta diante do assombro da

travessia pelo rio dos mortos: “Livra-te desse medo circunspecto;/ aqui toda tibiez esteja

morta”. Analogamente a essa passagem Diadorim vai dizer “carece de ter coragem...”.72

Nesta mesma cena Riobaldo diz “o menino pôs a mão na minha.73” Através da

sensibilidade e da emotividade, peculiaridades ligadas à água, ao feminino, Diadorim

estimula em Riobaldo a coragem que mais tarde se revelaria, embora sempre

problemática. Davi Arrigucci, em O mundo misturado, afirma ser essa a condição do

herói Riobaldo, aliás, problematizada pelo próprio personagem como narrador e

protagonista. Riobaldo é, segundo Arrigucci, um “herói problemático, debruçado sobre

o fluxo do vivido”.74 Diadorim vai dizer, “Você também é animoso...”75, ou seja, que

tem ânimo.76 Não diferentemente Vírgilio também confortará Dante “Depois, na sua

tomando com meiguice/ minha mão, com o que me confortei, fez que no umbral secreto

67 Rosa, 1985a, p. 403.68 Rosa, 1985a, p. 96.69 Bandeira, 1984. p. 102.70 Rosa, 1985a, p. 94.71 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 362.72 Rosa, 1985a, p. 98.73 Rosa, 1985a, p. 101. 74 Arrigucci, 1994. p. 09.75 Rosa, 1985a, p. 100.76 Do latim “Animosus: corajoso, intrépido, ardente (Cic. Mil. 92). Daí: 2) Magnânimo, que tem

grandeza de alma. Sên. Prov. 5, 5) Orgulhoso, impetuoso (Ov. Met. 6, 206). 4) Apaixonado, ardente(Tac. H. 1, 24)”. (Faria, 1956. p. 73.)

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eu o seguisse”77 quando eles passam pelo rio dos mortos com o barqueiro Caronte.

Assim por intermédio da Divina Comédia, é possível explicar também a presença do

barqueiro na iniciação de Riobaldo: em Dante, como no romance GSV, notam-se as

presenças do barqueiro, do poeta e do mestre. Há um momento de GSV em que o

barqueiro, sem resolver-se quanto ao rumo que tomaria, fica pelas águas da barra, ou

seja, da morte, no braço morto do rio, entre duas águas, que inferimos serem, dado o

aspecto iniciático em questão, as águas de uma vida que se encera, que sai de um

pequeno rio, o de-Janeiro, e adentra as da nova vida na imensidão do rio São Francisco.

Nessa confluência entre o de-Janeiro e o São Francisco, podemos perceber

idéia de conjunção, de mistura, [que] evoca, segundo Granet, os ritos sexuais(...) a noção de confluência é igualmente sensível na Índia, onde a união doGanges (Ganga) e do Yamuna (Jumna) (...) [que] não são apenas doiscompanheiros simétricos de Varuna, mas que o primeiro é límpido e osegundo é escuro, que o primeiro se relaciona com Xiva e o segundo comVixenu; e, finalmente, que ao rei dos rios sagrados, se une a filha do sol.78

Como o rio Ganges, o de-Janeiro “é de águas claras”, límpido, e o SãoFrancisco, como o rio Yamuna, é de águas “escuras”, barrentas. Diadorim, por sua vez,parece-se com a “filha do sol”, porque ela “era uma mulher como o sol não acende aságuas do Urucuia”.

E o São Francisco “bem reto vai”, imagem que ressurge como um “paugrosso, em pé, enorme.”79 Porque “os rios são vistos como agentes fertilizadoresdivinos, daí serem apresentados, como em GSV, simbolicamente, muitas vezes, com umcaráter de sexualidade exacerbada”.80 Todo o tempo, no de-Janeiro, ficam as canoasesperando os passageiros. As canoas são símbolos de passagem para outro mundo.Nesse momento de travessia do rio de-Janeiro para o rio São Francisco, o meninoRiobaldo morre, para ser outro,81

Morrer é verdadeiramente partir, e só se parte bem, corajosamente,nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio. Todos

77 Alighieri, 1998, p. 38.78 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 272.79 Rosa, 1985a, p. 568.80 Cavalcanti, 2000, p. 107.81 Existe um tipo de canoa chamada igara (“yg, água e “jará”, dono. “Meu dono da água era de

mandim ou peroba”: (Burton, 1977. p. 43). Curiosamente, algumas das qualidades de madeira citadaspor Riobaldo, neste episódio, também foram catalogadas por Burton: “Tamboril, Vinhático, Cedro,Peroba”: (Burton, 1977, p. 14).

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os rios desembocam no Rio dos Mortos. Apenas essa morte é fabulosa.Apenas essa partida é uma aventura82

Riobaldo se refere ao São Francisco como sendo um rio de “Terrívellargura: imensidade (...) se moendo todo barrento vermelho”.83 Ao adentrar o rio SãoFrancisco, Riobaldo de tanto medo nem se lembra do “Caboclo d’água, nem do perigoque é a onça-dágua, se diz ariranha”.84 Assombrações que, segundo a crença dobarranqueiro Riobaldo, podem virar a canoa.

Retomando a imagem do barqueiro, a ela irá referir-se Bachelard,desenvolvendo todo um complexo através de imagens literárias, de lendas, imagensmíticas, bíblicas, no que ele chama de “Complexo de Caronte”,85 que aparece, segundo oautor, desbotado em nossos dias, entre a natureza e a cultura. O barqueiro, por mais que“atravesse um simples rio, ele traz o símbolo de um além. O barqueiro é o guardião domistério”.86

Riobaldo estava ali, por haver sido curado de uma doença, para pagar umapromessa ao “Senhor Bom Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode”.87 Pelas mãosde Diadorim Riobaldo vai encontrando serenidade para adentrar o de-Janeiro, porto deentrada para o São Francisco e para uma série de travessias, rio de águas claras que é“quase um rego verde só”,88 para abrir o sertão ao jagunço que ele, naquele tempo aindanem suspeitava que seria.

Já atravessando as águas barrentas do São Francisco, Riobaldo com medo,porque não sabia nadar, diz, sugerindo de maneira ambígua, que nada sabe: “Eu não seinada...” Diadorim sorri e diz: “ ‘Eu também não sei’. Sereno, sereno. Eu vi o rio. Viaos olhos dele produziam uma luz. ”89 Não fica muito claro se Riobaldo se refere aosolhos do rio ou aos olhos de Diadorim, mas, venha a luz dos olhos de um ou de outro, aambos o destino de Riobaldo está para sempre ligado. O canoeiro canta uma canção,capaz de ressoar na viagem iniciática de Riobaldo: “‘Meu rio São Francisco, nessa

82 Bachelard, 1998, p. 77.83 Rosa, 1985a, p. 97.84 Rosa, 1985a, p. 98.85 Bachelard, 1998, p. 78-82.86 Bachelard, 1998, p. 80-81.87 Rosa, 1985, p. 94.88 Rosa, 1985a, p. 97.89 Rosa, 1985a, p. 99.

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maior turvação: vim te dar um gole d’água, mas pedir tua benção...’ e aí, o desejado,arribamos na outra beira de lá”.90 A benção para Riobaldo só virá explicitamente, pelaságuas de um riachinho, no episódio da Guararavacã do Guaicuí, quando ele diz: “oriachinho me tomava a benção”.91 A primeira travessia, “o desejado”, se dá e Riobaldo,ao voltar, sente que houve uma transformação, “só uma transformação pesável”,92 queele não consegue nomear, encerrando com uma frase que aponta para o mundofenomênico, metafísico: “Muita coisa importante falta nome”.93

Espero, com esse mosaico líquido, entre o particular e o geral, terdemonstrado o valor iniciático dos elementos que revelam, ora mais visíveis, ora maisinvisíveis, a água como matéria poética determinante na vida e na narrativa riobaldiana.

3.4. Águas emblemáticas

As primeiras páginas do romance GSV nos colocam às voltas com a figura

do mal por intermédio de vários casos, como os de Pedro Pindó, o delegado Jazevedão

etc. Notamos, também, que o narrador Riobaldo põe-nos a localizar o que, como o mal

ou o bem, é também ilocalizável em sua singularidade: o “sertão”, tão áspero pela sua

dureza, e tão próspero pela sua hidrografia. Com marcas de interesse para esta

dissertação, sobressaem, de início, quatro imagens de água: primeiramente a imagem do

“baixo do córrego”, depois a do “rio Urucuia”, em seguida a “Vereda da Vaca-Mansa-

de-Santa-Rita” e, finalmente, a do “rio São Francisco”. De certa maneira, as quatro

imagens contemplam emblematicamente a importância da rede hídrica que irá

disseminar-se no decorrer da narrativa riobaldiana, alinhavada, quase sempre, por vários

“fios de água”. Uso uma metáfora poética de João Cabral de Melo Neto, retirada de seu

poemas “Rios sem discurso”,94 em que a palavra “discurso” e “rio” se equivalem,

formando, aliás, um único vocábulo composto “discurso-rio”. Em GSV, como no poema

de Melo Neto, podemos dizer que há uma homologia entre o discurso e o fluxo dos rios.

90 Rosa, 1985a, p. 100.91 Rosa, 1985, p. 269.92 Rosa, 1985a, p. 102.93 Rosa, 1985a, p. 102.94 Melo Neto, 1997. p. 21.

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Mas o sertão é situado sem “fechos”, sem “tamanhos”, terminando Riobaldo

por localizá-lo “em toda parte”,95 como se dissesse em oração: “Ele está no meio de

nós”.96 Assim como o demo, Deus, o fluxo do rio, fluxo circular, é a lógica paradoxal da

linguagem corrente, para uma vida corrente, ou, como diz Rosa em entrevista a Günter

Lorenz, “Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não

existem palavras”.97 Riobaldo irá entrecruzando as várias faces do bem e do mal através

de várias histórias que vai contando ao seu hóspede e ouvinte, cujo silêncio magnífico

dá-lhe tom e voz. O que Guimarães Rosa buscava era escrever, parafraseando Ecléa

Bosi, para um escutador infinito, fazendo de suas reminiscências as do narratário e do

leitor. Para ilustrar a paradoxal mescla rosiana, veremos alguns momentos em que o

imaginário barranqueiro e metafísico de Riobaldo entram em ação.

3.5. Águas do bem e do mal

A discórdia ou a guerra é a metáfora favorita de Heráclito para o predomínioda mudança do mundo. Está obviamente relacionada com a mudança entre os contrários.

Kirk; Raven; Schofield.

Riobaldo, muitos anos depois de ter vivido como “peixe vivo no

moquém”,98 ou seja, como um peixe na grelha, na aspereza e fogo da guerra, na

jagunçagem, sem tempo para fantasias, fala, calmamente, no “range rede”,99 ou seja, no

ócio, ao seu interlocutor silencioso sobre a natureza das coisas do mundo e formula uma

questão sobre a natureza do mal, com uma imagem de água, a cachoeira:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos.Vivi puxando o difícil do difícel, peixe vivo no moquém: quem moi no aspronão fantasêia. Mas agora, feita a folga que me vem, e sem pequenosdesassossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto, de especularidéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essasmelancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barrancode chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água,

95 “O sertão está em toda parte” (Rosa, 1985a, p. 7.)96 Resposta dos fiéis em diálogo da liturgia católica.97 ROSA, 1994, p. 32.98 Rosa, 1985a, p. 9. A comparação do narrador com um peixe ressoador de água é

recorrente; outro exemplo dessa comparação ocorre quando Riobaldo refere-se a si mesmo como um“peixe de grotão”: Rosa, 1985a. p. 175.

99 Rosa, 1985, p. 09.

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ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muitoperigoso.100

Maria Luiza Ramos observa, a propósito da imagem da água e do barranco,

que “o caminho é sem fronteiras”.101 Segundo ela, Rosa, como Lacan, estaria tentando

“precisar a natureza do sentido”.102 Como verificaremos, no sertão, o sentido é

“misturado”.103 Para Francis Utéza, a busca do sentido imagem acima, perfaz-se na

busca da unidade: “a imagem da cachoeira ilustra o conceito de unidade fundada na

dualidade”:104 o fixo, a terra, e o móvel, a água, de maneira equilibrada, sem categorias

de positivo ou negativo.

Na tradição chinesa, a água contrapõe-se ao rochedo, no par fundamental

montanha e água, como o yin ao yang. Seu movimento descendente alterna-se como o

movimento ascendente da montanha, e seu dinamismo com a impassibilidade do

rochedo.105 Cabe, ainda, recorrermos, à expressão “no mesmo rio não entramos duas

vezes”, de Heráclito, ao pensarmos que a cachoeira, local em que o rio é mais rápido,

desconstrói, ainda mais, o pensamento que deseja imobilizar em algo fixo o que é

móvel. Heráclito para quem a metáfora favorita é a discórdia acredita que “a

imagem do rio [que se transforma em cachoeira devido aos acidentes geográficos]

esclarece o gênero de unidade que depende da conservação da medida e do equilíbrio na

mudança.”106 Na imagem em análise, o barranco é a “conservação da medida”, e a

cachoeira o “equilíbrio da mudança”.

Continuando em sua busca para compreender a natureza do bem e do mal,

depois de falar das singularidades da mandioca má e da boa, cada uma das quais

podendo transformar-se em seu contrário, Riobaldo vê o demo até dentro das pedras que

habitam o fundo da água; para ele o “demo” vive é misturado em tudo, até dentro das

100 Rosa, 1985a, p. 10.101 Ramos, 2000, p. 22.102 Ramos, 2000, p. 23.103 Arrigucci, 1994, p. 7-29.104 Utéza, 1994, p, 71.105 Cf. Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 159-160.106 Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 201.

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“tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas que estragam mortal a água, se estão

jazendo no fundo do poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo”.107

Como em Edgar Alan Poe,108 Riobaldo, às vezes, toma “contacto com a

matéria irracional, com a matéria atormentada,”109 por intermédio da água. Amparados

por Bachelard, vemos que a água de que fala Riobaldo estragada pelas “raças de

pedras horrorosas” que já estão mortas “jazendo no fundo do poço” experimenta “uma

perda de velocidade, que é uma perda de vida, [tornando-se] uma espécie de mediador

plástico”110 do mal. O caráter benigno da água é estragado pelo aspecto tortuoso da

pedra, na qual o mal se instalou. Aqui, não se deve esquecer que o poço, que aparece

disseminado em vários momentos no romance GSV, realiza uma espécie de

síntese de três ordens cósmicas: céu, terra, infernos; de três elementos: aágua, a terra e o ar (...) Ele faz a comunicação com a morada dos mortos; ecocavernoso que sobe dele os reflexos fugidios da água quando se agita,aumentam o mistério mais do que esclarece (...). O poço é além disso símbolode segredo, de dissimulação da verdade; sabe-se que ela dele sai nua. Ele éainda no extremo oriente, símbolo do abismo e do inferno. [O poço pode serainda] o próprio homem.111

Claro que o poço está ligado também ao bem, como fonte de água, no

entanto Riobaldo parece destacar, nesse momento, o seu lado nefasto. Logo em seguida

à imagem do poço, Riobaldo expõe o demo se gastando, aos pouquinhos, dentro dele,

como a água que bate na pedra a proximidade das imagens faz com que vejamos o

próprio Riobaldo como sendo um “poço”: “Que o que gasta, vai gastando o diabo de

dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor”,112 cuja

verdade, ao ser enunciada, é dissimulada como os “reflexos fugidios” de uma água

quando se agita.

107 Rosa, 1985a, p. 11.108 Em Poe, essa matéria atormentada é a água ou, mais exatamente, uma água especial, uma

água pesada, mais profunda, mais morta, mais sonolenta que todas as águas dormentes, que todas aságuas paradas, que todas as águas profundas que se encontram na natureza. A água, na imaginação deEdgar Alan Poe, é um superlativo, uma espécie de substância mãe. Cf. Bachelard, 1998. p. 48.

109 Bachelard, 1998, p. 13.110 Bachelard, 1998, p. 13.111 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 726-727.112 Rosa, 1985a, p. 11.

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3.6. Águas melancólicas

O sofrimento da água é infinito

Gaston Bachelard.

O chapadão, no pardo, é igual, igual — a muita gente ele intristece; mas eu já nasci gostando dele.As chuvas se temperam...

João Guimarães Rosa

Nesta parte, pretendo pensar sobre as águas do rio Urucuia, evocando sua

condição sombria, melancólica, sempre ao fundo, sob a sombra das árvores, velado pela

natureza e pela narrativa riobaldiana, que se ocupa em metaforizá-lo, muitas vezes,

como o rio mapeador de mistérios, rio que guarda mais que os inúmeros que perfazem

a rede hidrográfica do romance GSV o indecifrável, o indizível, a neblina, que é

também a condição de Diadorim. A neblina não é, senão, água e ar, vapores, brumas,

falta de nitidez, mistério: “Diadorim é minha neblina”,113 diz Riobaldo. Interessante

notar que, para Heráclito, “o fogo é o elemento comum entre todos os vapores”114 e é,

também, o elemento que simboliza a guerra, o ódio (condição de Diadorim) No

entanto, o fogo, no âmbito das abordagens que vimos até agora, é bom e ao mesmo

tempo mau.115

No início do romance, ainda que a lógica do GSV não autorize a pensar em

cronologias ou hierarquias (refiro-me, aqui, a procedimentos rosianos, em que o

pequeno contém o grande, o que está em cima está em baixo, bem como às

aproximações a sabedorias orientais verificáveis na obra rosiana), a aparição do rio

Urucuia leva-nos (reforçados pelas frases-recados que Riobaldo vai lançando no

decorrer de sua narrativa) a atribuirmos a este rio, desde o início, um valor de destaque.

Para fundamentar esse ponto de vista, apóio-me no Urucuia, em seu aspecto geográfico

113 Rosa, 1985a, p. 23.114 Kirk; Raven; Schofield, 1994, p. 198.115 “O fogo é ultravivo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe

das profundezas da substância e se oferece com amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente,contido como o ódio e a vingança. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de recebertão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no paraíso, abrasa noinferno. É doçura e tortura. (...) É um deus tutelar e terrível, bom e mau. Pode contradizer-se, por isso,é um dos princípios de explicação universal.” Bachelard, 1999. p. 11-12.

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e, principalmente, em seu aspecto sombrio, arcaico, melancólico, misterioso, atributos

da travessia riobaldiana, na qual outras incursões do herói a descida aos infernos, entre

o bem e o mal, e o dom da poesia, por exemplo convergem para a formação da

melancolia como traço da personalidade de Riobaldo, manifesta em sua linguagem.

Pensamos que ele se encaixa nos perfis do melancólico traçados pelo cabalista alemão

Cornélio Agrippa, que define

três tipos de melancolia, de acordo com as mais altas faculdades humanas: amelancolia imaginativa (imaginatio), própria de artistas que de alguma formase ligam a atividades artesanais como pintores e arquitetos; a melancolia quese concentra na razão (ratio), própria daqueles que se interessam em obterconhecimento sobre o ser humano e a natureza, ou seja, os filósofos ecientistas; e, finalmente, o grau mais alto que a disposição melancólica podealcançar, a melancolia que se concentra na mente (mens), que é instruída por“demônios”, espíritos, superiores quanto a questões da lei divina e aoconhecimento de realidades eternas e da salvação da alma.116

O próprio Riobaldo irá relacionar o gosto pela especulação das idéias à

melancolia: “Me inventei no gosto de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou

o dito. Abrenúncio. Essas Melancolias.”117

As águas recônditas do Urucuia aliam-se aos rios sagrados de outras

culturas, ou seja, aos rios que vêm dos lugares altos, misteriosos, dos montes, como

metáforas celestes de ascensão: “O Urucuia vem dos montões Oestes”.118 No entanto,

para o oeste também fica o entardecer, o crepúsculo, que remete à velhice; momento em

que o narrador enuncia sua história de vida ao interlocutor estrangeiro. Segundo Otto de

Lara Rezende, Guimarães Rosa, quando menino, aos onze anos de idade “achou São

João Del Rei triste. Oralmente e por escrito, mais de uma vez referiu-se, dirigindo-se a

mim, aos sinos de São João del Rei. Há alusões à tristeza do Oeste mineiro em sua obra,

por certo a partir da experiência infantil.”119

Durante a travessia riobaldiana, as alusões ao rio Urucuia enunciam um

devir de sombras, neblinas; condição do herói diante das forças do destino: “E o Urutu-

Branco. Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi que era um pobre

116 Lages, 2002. p. 41-42.117 Rosa, 1985a, p. 9.118 Rosa, 1985a, p. 8.119 Guimarães Rosa, 1999, p. 372.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

menino levado do destino...”120 Ainda que não nos aventuremos pelo aspecto formal da

linguagem rosiana, não se pode deixar de considerar a semelhança sonora contida entre

Urucuia e Urutu, um dos apelidos de Riobaldo, cuja aventura o levaria ao mais

melancólico de todos os personagens concebidos pela humanidade, o próprio Belzebu,

em todas as suas tipologias e manifestações possíveis, uma delas expressa em seu

próprio nome, Riobaldo, anagrama de diabo, que ressaltamos nas letras em negrito:

Riobaldo. Observe-se, ainda, que Riobaldo chama o chefe Urutu-Branco, ele mesmo, de

“tristonho”, um dos nomes do diabo.

Os nomes Urucuia e Urutu recorrem igualmente à vogal lúgubre “u”

ocorrendo três vezes em ambos, vogal que “os defensores do simbolismo orgânico

acreditam”121 evocar objetos fechados, escuros, que, por sua vez, traduzem experiências

melancólicas, tristeza e morte. Apesar do caráter arbitrário dessas afirmações, na rede

melancólica riobaldiana a vogal “u” contribui para ensombrar mais o ambiente. E, à

cobra Urutu, com toda a sua vocação para o baixo, se junta o branco, como no Urucuia

se juntam o claro e o escuro, em várias ocasiões, como veremos.

Kathrin Rosenfield chama a atenção para as semelhanças entre “Urutu” e

“Urucuia” explicando que

a travessia sem fim e a existência sem fundo nas quais Urutu Branco seengaja apontam par o “umbigo” do mundo: Itambé — omphalos — caos —o tudo-nada produtor de todas as coisas. A origem mítica do universo — oUrucuia, que é o ‘meio do mundo’, procurado pó Urutu — e a terraoriginária, cujo nome traz o eco da cidade bíblica de Ur contituem oprincipal alvo da campanha de Urutu Branco. Entretanto, esta experiência doinfinito, do retorno cíclico e das reversões permanentes da matéria vertenteparece tornar-se articulável e significativa apenas na retrospecção, no olhar eno discurso de um narrador situado fora desta confusão inextrincável —narrador este que passou pela experiência oposta: a das fronteiras, distinçõese limites.122 (grifos da autora)

“Fonteiras”, “distinções” e “limites”, quase sempre envolvidas pelas águas.

Corroborando as incursões feitas até aqui, o Dicionário de Símbolos irá

definir o verbete Oeste ligando-o ao feminino, ao declínio, chamando-o de “região das

120 Rosa, 1985a, p. 16.121 Bosi, 1977, p. 46.122 Rosenfield, s/d, p. 145-146.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

brumas, porta do mistério, do não manifesto, do aquém e do além”.123 Levando-se em

consideração essa referência do Oeste, juntamente com outras relações que serão

estabelecidas com o Urucuia, durante a travessia riobaldiana, é possível reconhecer

neste rio o fluir melancólico que corre ao fundo do discurso e devir riobaldiano.

Susan Sontag, ao fazer considerações sobre a vida do filósofo e crítico

literário alemão Walter Benjamin, assim se refere à natureza do melancólico, cujo

pensamento é regido por saturno, muito próxima à natureza de Riobaldo:

A característica do pensamento saturnino é a relação consciente e implacávelcom o eu, que nunca pode ser dada como certa. O eu é um texto – precisa serdecifrado. (Logo é um temperamento adequado ao intelectual.) O eu é umprojeto, algo a ser construído. (Logo, é um temperamento adequado aosartistas e aos mártires, àqueles que cortejam “a pureza e a beleza de umfracasso”124

Riobaldo, professor, jagunço letrado, intelectual às avessas, se encaixa no

perfil do melancólico traçado por Susan Sontag. E o rio Urucuia traduz, pelas imagens

que vai sugerindo durante a narrativa, a condição e o sofrimento riobaldianos que,

debruçado sobre as águas passadas, tenta reconstruir sua vida em busca da “pureza” e da

“beleza de um fracasso”: a morte de Diadorim. Riobaldo sabe, por intermédio do

diálogo com Heráclito de Éfeso também um melancólico, conhecido e citado entre

seus pares como o “obscuro” , que “no mesmo rio não há como entrar duas vezes”.125

Riobaldo é um rio, conforme a marca em seu nome rio+baldo , e, por sua

vez, navega dentro do rio da existência cujas águas são sempre outras. E é como

Sócrates, outro melancólico “Alguns pensavam que a melancolia de Sócrates se ligava

a manifestações de seu Daimon126 querendo decifrar a si mesmo enquanto perscruta

seu passado, que Riobaldo reconhece a precariedade de suas memórias. Num certo

momento da narrativa, em lembranças coloridas de imagens em fuga, Riobaldo irá

refletir essa precariedade diante dos acontecimentos; e lá está o rio Urucuia, no poente,

no “ermo dos Gerais”:

123 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 732.124 Sontag, 1986, p. 91.125 Shüler, 2000, p. 133.126 Pigeaud, 1998, p. 9.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Da banda do serro, se pegava no céu azul, com aquelas peças de nuvens semmovimento. Mas, da parte do poente, algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, com que eles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe, ermodos Gerais, nas beiras matas escuras e águas todas do Urucuia, e nesse céusertanejo azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar rajas feito deferro quente e sangues”.127

Temos, então, misturadas nessas imagens fugidias de céu e nuvens, as matas

longínquas, escuras, que velam as águas do Urucuia, e o devir de um destino trágico, de

“ferro” e “sangue”. Depois dessas elucubrações sobre o destino, Riobaldo afirma: “era

de Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti. O sol entrado”.128 O sol

desaparece no Oeste, de onde vem o Urucuia. “O sol entrado” traz a noite, a bruma, a

morte, no entanto a mesma imagem suscita toda a ambivalência simbólica do sol que,

ora traduz-se como imagem de vida, ora de morte. “O sol é considerado fecundador.

Mas também pode queimar e matar”.129 No sertão rosiano, as coisas são e não são.

Para ilustrar a confusão que marca como as coisas se apresentam, Riobaldo,

depois de discorrer sobre a natureza do amor, dizendo que ele tem muitos nomes,

recorre ao rio Urucuia: “Confusa é a vida da gente; como esse meu rio Urucuia vai se

levar no mar.”130 A frase riobaldiana parece remeter, nesse momento, ao fato de que,

para “se levar no mar”, o Urucuia tem que confundir-se com as águas de outro rio, o São

Francisco, perder-se nele, para encontrar a totalidadade simbolizada pelo mar. Dentro da

lógica do romance GSV, entre o ser e o não ser, Riobaldo irá referir-se ao Urucuia como

rio de águas claras e certas: “Ah!, o meu Urucuia, as águas deles são claras certas”,131

para, em seguida, revelar o paradoxo: “O meu Urucuia vem, claro, entre escuros”.132

Num outro momento, o Urucuia liga-se ao difuso, à sombra: “Uma poeira

dessa dúvida empoou minha idéia como a areia que a mais fininha há: que é a que o

rio Urucuia rola dentro de suas largas águas, quando as chuvaradas do inverno”.133 Outra

imagem reúne a saudade ao Urucuia: o bando parado debaixo de uma árvore chamada

127 Rosa, 1985a, p. 181-182.128 Rosa, 1985a, p. 182.129 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 836.130 Rosa, 1985a, p. 178.131 Rosa, 1985a, p. 286.132 Rosa, 1985a, p. 289.133 Rosa, 1985a, p. 338.

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“paratudo”, daquelas “crescidas em lontão”, do italiano lontano (distante):134 “árvore

que respondia à saudade de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do

Urucuia”.135

É sempre ambígua a simbologia do Urucuia, que vem dos montões oestes,

das montanhas, portanto, do alto, do bem, “de onde algum santo ainda haveria de vir”,136

mas que, também, sugestiona o trágico, sina riobaldiana e de todos: o devir das águas é

um devir para a morte. Riobaldo irá dizer, melancolicamente, a certa altura, pouco antes

de se tornar chefe do bando, querendo saber sobre a verdade das coisas comuns, numa

espécie de ub sunti, ou seja, onde estão as coisas e pessoas que, no passado, aqui

estiveram: “Antes, as verdades, as coisas comuns, conforme foi que se passaram. Mais

não sei?”.137 Refere-se, em seguida, a essa indagação, ao seu amor por Diadorim e,

imediatamente, ao rio Urucuia, lembrando-nos suas várias faces, misturando o rio a si

mesmo e, à maneira de Heráclito, transforma o rio Urucuia no rio da existência:

Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. Orio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, maisfundo. O Urucuia é um rio, o rio das montanhas. Recebe o encharcar dosbrejos, verde a verde, veredas, maribus, a sombra separada dos buritizais, ele.Recolhe e semeia areias. Fui cativo para ser solto? Um buraquinho d’águamata minha sede, uma palmeira só me dá minha casa. Casinha que eu fiz,pequena – ô gente! – para o sereno remolhar. O Urucuia, o chapadão derredordele. Estas árvores: essas árvores. (...) Mesmo a hora que eu for morrer, eu seique o Urucuia está sempre, ele corre.138

Assinalo a ambigüidade sugerida pela colocação do pronome pessoal “ele”

no final da frase: “a sombra dos buritizais, ele”, como se o rio fosse somente a sombra

dos buritizais. Para Gaston Bachelard, “as sombras sobre as águas são de certa forma

mais móveis que as sombras sobre a terra”.139 De acordo com o olhar bachelardiano,

posso dizer que o rio “encharcado” de sombras torna-se mais etéreo, sombrio como a

neblina, como o amor de Riobaldo por Diadorim.

134 Castro, 1970, p. 97.135 Rosa, 1985a, p. 351.136 Rosa, 1985a, p. 452.137 Rosa, 1985a, p. 405.138 Rosa, 1985a, p. 406.139 Bachelard, 1998, p. 107.

Capítulo 3 Ramagens de água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Como poeta, Riobaldo irá compor uma canção baseando-se na Canção de

Siruiz. Nesta, as imagens de água aparecem de forma generalizada; na canção

riobaldiana, o rio Urucuia aparece ao centro, como as águas que, ainda que claras,

turvam-lhe o coração e traduzem a feição do narrador: “Urucuia rio bravo / cantando à

minha feição: / é o dizer das águas claras / que turvam na perdição”.140 A canção fecha-

se, ainda, com imagens de águas a fluir na noite, num jogo de claro/escuro que, a

exemplo do destino de Riobaldo, termina em reticências, deixando tudo em suspenso,

configurando, assim, o misterioso, o devir, o não sabido metaforizado pela escuridão:

“toda noite é rio-abaixo, / todo dia é escuridão...”141 Na passagem abaixo Diadorim é

comparada a um rio bravo:

Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo. É, toda vida, de longe alonge, rolando essas braças águas, de outra parte, de outra parte, de fugida, nosertão. E uma vez ele [Diadorim] tinha falado: “Nós dois, Riobaldo, a gente,você e eu... Por que é que separação é dever tão forte?...” Aquilo de chumboera.142

Riobaldo encerra as considerações sobre Diadorim com um enigma:

“Diadorim era um nome rodeante”,143 ou seja, um ser misterioso diante do qual se vive

em roda. Imagens de água como “Diadorim é minha neblina”, é, “entre-onde-a-chuva-

esconde-os campos”, corroboram a misteriosa presença de Diadorim. E o chumbo, “que

seria a água de todos os metais”,144 metaforiza, nesse momento, o destino de Riobaldo e

Diadorim, destino trágico da separação, porque o chumbo é “tradicionalmente atribuído

ao deus separador, Saturno (a delimitação)”.145

O Urucuia é também silencioso: “sai do mato e não berra; desliza: o sol,

nele, é que se palpita no que apalpa. Minha vida toda”.146 O rio Urucuia sai do mato e

não berra, mas poderia, como o fazem os “leões”, o “mar” e os “bovídeos”.147 Riobaldo

140 Rosa, 1985a, p. 297.141 Rosa, 1985a, p. 297.142 Rosa, 1985a, p. 399.143 Rosa, 1985a, p. 399.144 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 235.145 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 235.146 Rosa, 1985a, p. 497.147 Durand, 2001, p. 79.

Capítulo 3 Ramagens de água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

parece dizer que o sol “que está no centro do céu como o coração está no centro do

ser”148 é que se comove, sente palpitações, quando toca, “apalpa”,149 acaricia, sonda,

quando procura conhecer, com seu brilho, o sombrio Urucuia. Imagem que irá redundar

num dos paradoxos mais belos e terríveis das águas riobaldianas, com o qual ele

constata, logo em seguida à morte de Diadorim: “Diadorim era uma mulher. Diadorim

era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia”.150 Eis uma espécie de síntese

hídrica da imagem paradoxal de Diadorim, “uma mulher”, como o sol (o fogo), ardente,

mas também, como o rio Urucuia (a água), rio que Riobaldo toma por “ázigo”,151 ou

seja, que não tem par, solitário.

Lembramos que as imagens opositivas do fogo e da água não formam uma

terceira, para o que Octávio Paz chama a atenção em seu livro El arco y la lira, no

capítulo em que trata das imagens no texto poético. Em algumas imagens, há a

devoração de um termo pelo outro, em outras “los elementos aparecen frente a frente,

irreductibelis, hostiles”,152 ou seja, esse tipo de imagem não se resolve, pairando, numa

espécie de resultado em tensão. Entendemos que é isso o que ocorre na imagem em que

“o sol não acende a água do Urucuia”. Bachelard, em seu livro A água e os sonhos, no

capítulo em que analisa as “As águas compostas”, afirma que, “no reino das matérias,

nada encontraremos de mais contrário que a água e o fogo”.153 Diadorim,

paradoxalmente, é sol, fogo (guerreiro/a) e água, o feminino (donzela). Riobaldo, como

poeta, capta bem a imagem irresoluta de Diadorim, e só poderia fazê-lo por intermédio

de um paradoxo, em que o fogo e a água perdurassem em tensão. Riobaldo convoca o

encontro das imagens do fogo e da água para representar a experiência ímpar e dúbia de

Diadorim. Ainda para Bachelard, quando dois elementos, fogo e água, por exemplo, se

fundem, eles se sexualizam, já que, na “ordem da imaginação, ser contrário para duas

substâncias é serem de sexos opostos”.154 As imagens do elemento água e do elemento

148 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 837.149 Alertamos que o significante palpitar pode, também, significar apalpar: Houaiss, 2001, p.

2113.150 Rosa, 1985a, p. 560.151 Rosa, 1985a, p. 556.152 Paz, 1998, p. 99.153 Bachelard, 1998, p. 102.154 Bachelard, 1998, p. 98.

Capítulo 3 Ramagens de água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

fogo não se fundem, portanto, não se sexualizam. Ainda que seja notável o erotismo

entre Riobaldo e Diadorim, não há a cópula.

É também à beira do Urucuia que Riobaldo imaginou que sua vida findaria:

“Mas porém, quando isso tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir

viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do rio Urucuia... O

Urucuia perto da barra”.155 A barra

é mesmo a simples junção de dois cursos d’água: ou quando um rio oucórrego ou riacho recebe um afluente, ou quando um desses entra num lago,ou no mar, ou quando há confluência de dois rios, etc. O lugar se chama “abarra”. O rio que cai no outro: “faz barra” nesse outro.156

Para Cavalcanti Proença, a referência à “barra” é uma referência à morte.

“Para os rios, a barra é a morte”.157

Tentando compreender seu amor por Diadorim, Riobaldo lamenta a cegueira

que caracteriza o momento da travessia, como um instante em que não há tempo para

refletir, não há uma parada para “meditar”, e compara a si mesmo com um rio se

arrastando: “Ao tanto com esforço meu, em esquecer Diadorim, digo que me dava

entrante uma tristeza no geral, um prazo de cansado. Mas eu não meditava para trás, não

esbarrava. Aquilo era a tristonha travessia, pois então era preciso. Água de rio que

arrasta”.158 Riobaldo não esbarrava, em identidade com o rio não se permitia “esbarrar”,

interromper-se, buscando fluir, mesmo que se arrastando.

Em seu descolamento no sertão, Riobaldo, veredeiro, está sempre “entretido

com as idéias de chegada e saída”, na babel de culturas e situações deflagradas pelo

sertão que está em toda parte. Essa abertura riobaldiana para mundo, situando o sertão

em toda parte, traduzida numa linguagem ambígua, também coincide com os olhares de

Walter Benjamin, que

se colocava nas encruzilhadas. Era importante para ele manter aberta suasmuitas “posições” (...) uma posição corrige a outra; precisava de todas elas.

155 Rosa, 1985a, p. 549.156 Rosa, 1981, p. 92.157 Proença, 1976, p. 188.158 Rosa, 1985ª, p. 217.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

As decisões tendiam, evidentemente, a prejudicar o equilíbrio destasposições, mas a vacilação mantinha as coisas no lugar.159

As vacilações de Riobaldo diante das situações limites coincidem com o

perfil melancólico de Walter Benjamin. Como o crítico e filósofo frankfurtiano,

Riobaldo lança mão desse procedimento vacilante, com vistas a manter as coisas “no

lugar”, pois o “sertão está movimentante todo-tempo”.160 Verificamos em certo

momento que Riobaldo refere-se ao sertão, qualificando-o como se fosse um rio: “O

senhor vê o sertão? Beira dele, meio dele?”161 Para o veredeiro Riobaldo, como as

águas, o sertão parece mover-se sob seus pés e ante seus olhos.

Mesmo havendo com mais freqüência imagens melancólicas relacionadas ao

Urucuia, vacilamos em nossa análise, seguindo a lógica de Benjamin, e do próprio

romance em questão. Não descartamos as referências ao rio Urucuia como sendo claro e

escuro; ou seja, alegre quando claro, e melancólico, quando escuro, apenas ressaltamos

sua feição sombria, escura, como traço mais fecundo; afinal, é à beira do Urucuia que

Riobaldo irá terminar melancolicamente seus dias.

Lembramos, ainda, que o rio Urucuia é o rio de amor de Riobaldo; se o

amor de Riobaldo se dividiu em três amores Otacília, Inhorinhá e Diadorim , é

Diadorim quem melhor corresponde a esse rio de amor. Diadorim morreu: “Chapadão.

[que inferimos por ser o do Urucuia] Morreu o mar, [de territórios] que foi [o sertão]”.162

Sem Diadorim, como na Canção do Azulão, não há mais o sertão. Tudo foi, mas as

águas do Urucuia não cessam.

159 Sontag, 1986, p. 103.160 Rosa, 1985a, p. 438.161 Rosa, 1985a, p. 556.162 Rosa, 1985a, p. 562.

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Capítulo 4Águas do nunca mais

4.1. O nome líquido

Nos nossos olhos, é a água que sonha.

Gaston Bachelard

A Guararavacã do Guaicuí é um lugar paradisíaco, e as imagens de água o

vinculam à idéia de pureza, feminilidade e morte. Neste capítulo ressaltamos alguns

aspectos líquidos que ressoam no nome Guararavacã do Guaicuí,1 nome composto, uma

criação do escritor João Guimarães Rosa com propósitos metafísicos que serão

explicitados de início. Em seguida, por intermédio de imagens da água, estarão em foco

alguns momentos em que a Guararavacã do Guaicuí aparece como um “divisor de

águas” no romance GSV, ou seja, é na Guararavacã que se anuncia uma nova etapa da

travessia riobaldiana; ainda buscaremos estabelecer relações metafísicas que, neste

episódio, são intermediadas pela água, simbolicamente conectada com as águas de

outras culturas.

Inicialmente, levando-se em conta a importância simbólica dos nomes de

pessoas e lugares na obra do escritor João Guimarães Rosa, buscamos encontrar

relações de pertinência líquida e metafísica em torno no nome Guararavacã do Guaicuí.

Primeiramente, chama a atenção o excesso da letra “a” no nome

Guararavacã do Guaicuí, ao todo, seis ocorrências. Há toda uma simbologia envolvendo

o número seis, inclusive a de representar o “equilíbrio entre a água e o fogo”.2 Na língua

suméria, a letra “a” significava “água”, mas significava também “esperma, concepção,

geração.”3 Ressalte-se, ainda, que há relações pertinentes entre as letras e nos sons do

nome Gauraravacã do Guaicuí e Riobaldo. Para Eliade

as letras e nos sons desempenham o papel de imagem que, por mediação oumagia, o homem insere-se em certos centros de energia cósmica e realiza

1 Guimarães Rosa faz uma lista de nomes que ele inventou para o tradutor alemão Curt Meyer-Clason,entre eles conta a Guararavacã do Gauicuí. Rosa, 2003, p. 166.2 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 810.3 Eliade,1998. p. 154.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

assim uma harmonia perfeita entre ele e o todo. As letras e os sonsdesempenham papel de imagens que, por meditação ou magia, tornampossível a passagem por diversos planos cósmicos.4

Como na palavra indiana prathama-svara-parinatam, no nome Guararavacã

do Guaicuí, a letra “A” parece também desempenhar o papel de produzir o efeito sonoro

que preconiza a passagem do personagem Riobaldo para outros planos, conforme se

verá neste capítulo:

Para dar um único exemplo, a meditação que precede a criação iconográfica euma imagem divina indiana comporta, entre outros, o seguinte exercício, noqual a Lua, a fisiologia mística, o símbolo gráfico e o valor sonoro constituemum conjunto de refinada sutileza: “concebendo no seu próprio coração aforma da Lua tal como saiu do som primordial (prathama-svara-parinatam),quer dizer, ‘surgindo da letra A’), ele deve aí vislumbrar um belíssimo lótusazul que tem entre os seus filamentos o disco lunar imaculado, e no centro asílaba-germinal amarela “Tâm”, etc.5

Em prathama-svara-parinatam, tem-se a “sílaba germinal amarela ‘Tâm’”,6

em Guararavacã do Guaicuí, temos um som muito semelhante produzido pela sílaba

“cã”. Chamamos a atenção também para a palavra “g-u-ara-ã, um grande comedor muito

voraz. “G” é o pronome relativo, “u”, comer e “ára” (em hindustani “wala”) a

desinência verbal. Guará (comedor) é fortalecida pelo positivo “ã”. O nome é do animal

chamado cachorro-do-mato ou lobo”.7

A palavra “feminina”8 Guararavacã é determinada pelo artigo “a” que a

antecede e provoca, por aglutinação, a palavra “água” “Gará: [é] ave paludal, muito

conhecida pelo nome de guará. Penso eu que esse nome anda corrompido de sua

verdadeira origem que é ig – água e ará; arara, arara d’água, assim chamada pela bela

4 Eliade, 1998, p. 147.5 Eliade, 1998, p. 147.6 Eliade, 1998, p. 147.7 Buton, 1977, p. 57.8 Bachelard vai desenvolver um longo estudo em seu livro A poética do devaneio, “Devaneios

sobre os Devaneios, o sonhador de palavras”, chamando a atenção para o sexo na estética daspalavras. Bachelard, citando o prefácio que Gabriel Bounoure escreveu para a coletânea de EdmundJabés, diz: “O poeta sabe que uma vida violenta, rebelde, sexual, analógica se desdobra na escrita e naarticulação. As consoantes que desenham a estrutura masculina dos vocábulos casam-se às nuançascambiantes, às colorações finas e matizadas das femininas vogais. As palavras são sexuadas como nós,e como nós membros do Logos. Como nós, buscam sua realização num reino de verdade; suasrebeliões, suas nostalgias, suas afinidades, suas tendências são, como as nossas, imantadas peloarquétipo do andrógino”. Bachelard, 1996, p. 48-49.

Capítulo 4 Águas do nunca mais

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

cor vermelha”;9 Guaraguaçu “peixe da família dos carangídeos, espécie de xaréu.”10

Destaca-se, ainda, a palavra “vacã”, que sugere o significante vaca, animal sagrado em

algumas culturas orientais, cuja simbologia mistura-se facilmente à da água. “Símbolo

da nuvem das águas celestes, a vaca, que se desfaz no céu, se refaz na terra graças ao

alimento que a chuva torna abundante”.11 Há que se considerar também o elemento

masculino Guacuí, introduzido pelo feminino Guararavacã que evoca a ambivalência

entre o feminino e o masculino (condição de Diadorim). O nome guará vem do “Do tupi

agwa’rá” S. m. Bras. Ave cicoforme, da família dos tresquiornitídeos (Eudocimus

ruber), típica de manguezais da costa atlântica setentrional da América do Sul,

encontrada sempre em bandos dos mangues e estuários da América do Sul.”12 Trata-se

de um nome e de um local especialmente aquoso, por tudo que as águas irão representar

no romance e particularmente nesse episódio, que a crítica13 aponta unanimemente como

um divisor de águas do romance e da travessia riobaldiana. Assim surge a Guararavacã

do Guaicuí, no meio do romance, no meio do deserto/sertão, “Bom ermo”,14 onde ocorre

uma espécie de redemoinho de águas, a que os ribeirinhos chamam rebojo, em que as

águas do rio circulam, ou seja, o rio forma, em determinado ponto, um eixo de águas,

como que buscando as águas profundas. No romance GSV, as águas riobaldianas

encontram nesse “rebojo”, que é a Guararavacã do Guaicuí, forças que abrirão um novo

caudal. Como no momento em que o discurso riobaldiano, parodiando João Cabral de

Melo Neto, enfrasa-se com fios inesperados, como, por exemplo, a grandiloquente

morte de Joca Ramiro. É na Guararavacã do Guaicuí que Riobaldo fará intensa e

decisiva reflexão, por intermédio de um sono impelido pelas águas.

4.2. Mel

É na Guararavacã, em meio a tantas imagens de água, que Riobaldo sente

que ama perdidamente Diadorim e, nesse momento, parece não sentir vergonha, não9 Cunha, 1982, p. 138.10 Cunha, 1982, p. 138.11 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 927.12 Houaiss, 2001, p. 1491.

13 Márcia Marques de Moraes, utiliza-se de Benedito Nunes e Kathrin Rosenfield, para os quais, aGuararavacã do Guaicuí constiui-se como o meio do romance. (Moraes, 2001, p. 158.)14 Rosa, 1985a. p. 273.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

acha ruim: “Aquele lugar, o ar. Primeiro fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de

amor, mesmo amor, mal encoberto em amizade.”15 Riobaldo está sozinho, melancólico,

sente saudades dos Gerais e começa a descrevê-lo, suas serras, rios, bois buritis,

pássaros. Como o rio, a água, “cheiro de boi sempre alegria faz”,16 Riobaldo se abraça

com o nome de Diadorim lambuzando-se da doçura daquela hora e utiliza-se do mel, o

qual tomo neste estudo como imagem de água, baseando-me na concepção

bachelardiana, quando ele diz “para a imaginação [material] tudo que escoa é água; tudo

que escoa participa da natureza da água”:17 “O nome de Diadorim que eu tinha falado

permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente”; o mel, com

toda força mítico-religiosa que evoca, mistura-se ao adágio popular, muito comum para

nós brasileiros: quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. O mel possui

extensa e forte simbologia, tanto no Ocidente quanto no Oriente, estando associado à

riqueza, à doçura. Opõe-se ao fel e possui conotação erótica nos livros sagrados de

algumas culturas: “O mel não é uma mera e inerte presa que a abelha encontra na

cavidade do cálice. É uma substância que já ajudou a vegetação, que seguiu o impulso

vital dos germes na própria semente quando foi trazido pelo orvalho prolífico; mas ele

não se deixou aprisionar pelo vegetal, subiu até a flor”.18 É importante ressaltar essa

relação do mel com o orvalho para demonstrar a infinita solidariedade das águas. O mel

ainda “difere do açúcar, como difere daquilo que a natureza oferece ao homem, daquilo

que ela esconde dele. Leite e mel correm em cascatas em todas as terras primeiras das

quais o homem se viu expulso”,19 como no Cântico dos cânticos:

Teus lábios, minha noiva,

destilam o mel virgem.

O mel e o leite

estão sob tua língua...

Entro em meu jardim

minha irmã, minha noiva,

colho minha mirra e meu bálsamo,

como meu mel e meu favo,

15 Rosa, 1985. p. 270.16 Rosa, 1985. p. 271.17 Bachelard, 1998, p. 121.18 Bachelard, 1991, p. 263.19 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 603

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bebo meu vinho e meu leite.20

No poema bíblico o Cântico dos cânticos,21 acima citado, a palavra

“virgem” remete-nos a Diadorim, casta, a “moça virgem” que Riobaldo ouviu muito

cismado, como espécie de mote para a canção de Siruiz. No Veda, o mel é celebrado

como agente principal da fecundação, fonte de vida e de imortalidade, como o leite e o

soma, é ainda comparado com o esperma do Oceano, o grande leite onívoro:

Do mesmo modo que, fazedoras de suco,

As abelhas derramam suco no suco,

Que da mesma forma em mim, ó Asvin,

Em meu ser, o esplendor se consolide...

Do mesmo modo que as moscas

Se banham no suco, o suco que aqui está

Assim em mim, ó Asvin, que esplendor, a acuidade

a força, o vigor, se consolidem.

Ó Asvin, espalhe sobre mim o suco

da abelha, ó mestre do esplêndido,

para que eu leve aos homens

uma palavra plena de esplendor.22

Conforme a tradição na história dos paraísos, o par problemático Riobaldo e

Diadorim, logo é levado a sair da Guararavacã do Guaicuí, como que expulsos, em

virtude do assassinato de Joca Ramiro.

4.3. Como quando a chuva entre-onde-os-campos

Antes do mundo já sonhávamos.Era um mundo estranho que queríamos.

Estivemos lá. Mas esquecemos o que ele era.Queremos lembrar.E o que lembramos

é mar.

Sérgio Nazar David20 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 603.21 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 603.22 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 603.

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Riobaldo quer um Diadorim ímpar, um Diadorim só para ele, e o imagina

desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuvaentre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios.Eu não sabia. Mas com minha mente, eu abraçava com meu corpo aqueleDiadorim — que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não podeexplicar essas coisas. Eu devia de ter pensado nele do jeito que cobra pensa:quando mais olha para um passarinho pegar. Mas — de dentro de mim umaserepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer de um modo, que doía eaprazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.23

A imagem da água acima impõe-se como algo distante, fantasiosa, capaz de

guardar “entre-onde” ela se dá, dentro de Riobaldo, mas sob a influência da travessia

dos campos paradisíacos da Guararavacã do Guaicuí, a qual já é pura memória, não

existindo mais no momento em que é narrada, “o senhor tome nota desse nome. Mas

não tem mais, não encontra”.24

Para o escritor e crítico italiano Ítalo Calvino, a “fantasia, o sonho, a

imaginação é um lugar dentro do qual chove”.25 Para desenvolver seu conceito de

“visibilidade”, em seu livro, Seis propostas para o próximo milênio, Calvino utiliza um

verso do purgatório de Dante: “chove dentro da alta fantasia” e, para ele, essa “alta

fantasia” vem da parte “mais elevada da imaginação, diversa da imaginação corpórea,

como a que manifesta no caos dos sonhos”.26 Para Dante, as sensações e imagens

provocadas pela “alta fantasia” vinham diretamente do céu, de Deus, ou da própria

memória. Para Dante “ – e segundo São Tomás de Aquino – há no céu uma espécie de

fonte luminosa que transmite imagens ideais, formadas segundo a lógica intrínseca do

mundo imaginário, (‘persé’) ou segundo a vontade de Deus (“o per voler Che giù lo

escorge’)”.27 É como se, para Dante, as imagens se apresentassem à distância, como

numa tela de cinema, separada do poeta e da realidade objetiva.

Riobaldo irá experimentar sensação semelhante na Guararavacã do Guaicuí,

quando devaneia e imagina Diadorim apartado de todos, utilizando epifanicamente a

imagem de água que, mesmo que dentro de Riobaldo, em sua imaginação, parece

23 Rosa, 1985, p. 272.24 Rosa, 1985, p. 270.25 Calvino, 1998, p. 97.26 Calvino, 1998, p. 98.27 Calvino, 1998, p. 98.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

ocorrer à distância: “Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado por

completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como

quando a chuva entre-onde-os-campos”.28 Mentalmente, Riobaldo contempla e abraça

Diadorim, mas projetando a imagem fora dele. Para Santo Ignácio “a contemplação dos

próprios pecados não deve ser visiva, ou – se bem entendo – ela deve ocorrer a uma

visibilidade do tipo metafórico”.29 Riobaldo visualiza seus desejos por Diadorim

distante de tudo a culpa, o nojo, tantas vezes manifesto por amar Diadorim a quem ele

tinha por homem Daí a sua imaginação por intermédio de uma metáfora, uma

comparação, faz com que a imagem ocorra, paradoxalmente, dentro dele e ao mesmo

tempo em um lugar que impõe-se enquanto imagem distante.

Mas Riobaldo sofre quando se depara com a imagem real de Reinaldo, o

jagunço de carne osso; as imagens de água, achegam-se às de fogo e desmantelam-se

quando ele procura Diadorim: “Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim

estava”.30 Riobaldo refletindo sobre o ocorrido, sobre a natureza do amor impossível por

Diadorim, pensa em suicidar-se pondo “barra em tudo”, ou seja, pondo morte, impondo

ao Rio+baldo, a barra, o braço morto do rio; pensa em suicidar-se, dá um tiro a esmo e

termina referindo-se ao caráter antitético do amor também com uma imagem de água:

“Ah, meu senhor! – como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário... O

senhor vê nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta

barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um

rio?”31 Novamente a vida sendo mesclada ao devir das águas, que determinam o devir

do mundo até sem que o saibamos, por intermédio das águas subterrâneas. Assim, o

narrador deixa entrever, poética e filosoficamente, o sertão sempre às voltas com o devir

das águas.

Percebemos que na imagem assim misturada de Diadorim, “como quando a

chuva entre-onde-os-campos”, escondem-se outras. As quais possibilitam um leque

amplo de leituras. Entretanto, pensamos na força poética dessa imagem, em que os

28 Rosa, 1985, p. 272.29 Calvino, 1998, p. 100.30 Rosa, 1985, p. 272.31 Rosa, 1985, p. 271.

Capítulo 4 Águas do nunca mais

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

vocábulos, elementos da natureza, campos “símbolo do paraíso” 32 e chuva, como

símbolo mediador das “influências celestes recebidas pela Terra”,33 unidos

precariamente por um artifício da linguagem, ou seja, por hífens, traduzem a unidade

tensional do que, para Riobaldo, são os mais representativos do sertão, a Água e a Terra.

Mas, como afirma Calvino, se as “altas fantasias” de Dante vinham do

altíssimo, direto de Deus, em GSV, o sagrado e o profano são as faces de uma mesma

moeda, daí o caráter transcendente da “chuva” como elemento celeste, e dos “campos”

como elemento paradisíaco. Riobaldo, diferentemente de Dante, cuja fantasia é

estritamente platônica, não descola o corpo da mente, é com ambos que ele abraça

Diadorim, e sente um desejo de morte, de amor, de fecundidade, de sexo, de culpa,

representados (pela maneira como ele esconde Diadorim entre onde a chuva).

Ainda é possível relacionar o envolver de Diadorim pela “chuva-entre-onde-

os-campos”, com a bolsa d’água, o líquido amniótico, já que “cobrir alguém com um

manto é tornar esse alguém invisível e pô-lo ao abrigo da infelicidade”.34 As chuvas, as

águas e o amor de Riobaldo por Diadorim, aparecem, num outro momento, que nem

mesmo Riobaldo lembra qual foi

Foi mesmo aquela vez? Foi Outra? Alguma, foi; me alembro, meu corpogostava de Diadorim. Estendi a mão, para suas formas; mas quando iabobamente, ele me olhou os olhos dele não me deixaram. Diadorim sério,testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam. Vi ele mesmo não percebeunada. Mas nem eu; eu tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpogostava do corpo dele na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redor denós, como quando carrega para toda chuva. (...) De tristeza, tristes águas,coração posto na beira.35

Nessas imagens identifica-se a mesma relação de impossibilidade de

consumação do amor carnal entre Riobaldo e Diadorim metaforizada pelas chuvas,

enfim, pelo movimento incessante das águas.

4.4. Águas inesperadas

32 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 172.33 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 235.34 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 46.35 Rosa, 1985, p. 170.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

A água não teme os abismos: a grande incólume.João Guimarães Rosa

A natureza dionisíaca da Guararavacã do Guaicuí determina o afloramento

dos desejos mais profundos de Riobaldo e Diadorim. Mas o tempo, na Guararavacã,

pelo trovão, dá sinal que a vida de todos iria mudar: “Daí deu um sutil trovão. Trovejou-

se outro. As tanajuras revoaram. Bateu primeiro toró de chuva”.36 Na extensa

simbologia do trovão,37 encontramos que ele “manifesta o poder de Jeová, e

especialmente sua justiça e cólera. Representa a ameaça divina da destruição (Jó, 36, 29-

33) ou o anunciar de uma revelação”.38 Revelação que vem da boca de um jagunço, não

um qualquer, mas “um cafuz pardo, de sonome o Gavião-Cujo”.39 Do alto “Gavião” e

do baixo “Cujo”, que chegava “Ele tinha tomado muitas chuvas, que tudo era lamas,

dos copos do freio à boca da bota, e pelos vazios do cavalo” 40 misturado, com água,

lama e o cavalo, anunciando a morte de Joca Ramiro. Riobaldo narra a morte de Joca

Ramiro, por intermédio de um hiperbólico desarranjo da natureza, o qual ele encerra

com uma imagem de água personalizando-se, avançando feito gente: “Aí estralasse tudo

– no meio ouvi o uivo doido de Diadorim : todos os homens se encostavam nas armas.

Aí, ei, feras! Que no céu, só vi tudo quieto, só um moído de nuvens. Se gritava – o

araral. As vertentes verdes do pindaibal avançasse feito gente pessoas.”41 Diadorim

desmaia, o jagunço Paspe, esparge água no rosto de Diadorim que, ao sentir que iam

abrir-lhe o colete, levanta-se depressa com os olhos formando lágrimas. Riobaldo sente

o cuspe secar-lhe na boca, e tudo veio de repente, diz Riobaldo, “Tudo tinha vindo por

cima de nós, feito um relâmpago em fato”,42 em verdade inquestionável que veio de

cima. Símbolo de grande poder, o relâmpago é fogo celeste em várias culturas. As

imagens da água que cercam os mortos importantes para Riobaldo não são simples

36 Rosa, 1985, p. 275.37 Na cultura grega, Zeus é considerado “um deus da atmosfera. Ombriós e Hyétios (Chuvoso), Úrios (oque envia ventos favoráveis), Astrápios ou Astrapaîos (o que lança raios), Brontaîos (o que troveja)”.(Cavalcanti, 2000, p. 135.) Nas chuvas, nas águas do sertão rosiano, Deus, deuses e homens se misturam.38 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 912.39 Rosa, 1985, p. 275.40 Rosa, 1985, p. 276.41 Rosa, 1985, p. 276.42 Rosa, 1985, p. 277.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

fenômenos naturais; a água unge esses mortos, tornando-os únicos, emblemáticos de

uma linhagem especial, demiurgos do sertão:

Na tradição védica, o acólito do Agnihotra recita, tocando a água: Tu és orelâmpago/ afasta de mim o mal. / Da ordem sagrada, dirijo-me à verdade.Nesse trecho do Veda, a associação da água e do fogo é particularmentenotável; pois, se é uma associação fecunda em verdade, adquire mais umsentido duplamente purificador: a verdade a exigir pureza. A água e orelâmpago estão igualmente associados na Chandogya Upanishad, numadescrição da tempestade fecundante da monção. Pois o relâmpago não éapenas o que apresenta ser – só a luz, ou só a chuva fecundante. Na verdade,ele é o símbolo de uma outra realidade: a dos mundos resplandecentes ondereina Brama. A Kena Upanishad explica que o brâmane é aquele que alumiaos relâmpagos... na ordem do divino. Mas essa verdade só pode serconhecida, compreendida e apreendida numa intuição global por aquele quehouver afugentado o mal, que tiver sua posição consolidada no mundoinfinito e inviolável do céu. 43 (grifos dos autores)

Quando descobre que o assassino de Joca Ramiro foi Hermógenes, Riobaldo

aproxima este do diabo, enquanto ilustra a trágica revelação da morte daquele por

imagens de água “Aquilo era como se fosse um touro preto, sozinho surdo nos ermos

da Guararavacã, urrando no meio da tempestade”. A tempestade é um símbolo

teofânico, ou seja da onipotência de Deus, de sua cólera, de seu castigo, quanto ao

“touro”, já estabelecemos relações entre esse animal e as água como importante

“ressoador”. Assim, Joca Ramiro tinha morrido. Morreu à beira d’água: “A desgraça foi

num lugar, na Jerara, terras do Xanxerê, beira da Jerara lá onde o córrego da Jerara

desce o morro do Vôo e cai barra no Riachão... Riachão da Lapa...”44 Pode-se inferir que

as imagens do “córrego Jerara”, do “vôo” e da “barra do Riachão” correspondem, em

certa maneira, à vida e morte de Joca Ramiro: o córrego representaria o homem; o

morro do Vôo, o salto; e a barra, como já vimos neste trabalho, representa a morte do

homem, como o braço morto do rio. E essa mistura de touro e tempestade possui forte

simbologia, ou seja,

quanto ao touro do trovão, nada é mais universal que o seu simbolismo, daAustrália atual à antiguidade fenícia ou védica encontra-se sempre o touroligado á fúria atmosférica. Tal como o Bull roarer dos australianos, cujomugido é o do furacão em fúria. Pré-dravidianos prestam honras ao touro doraio e Indra – chamado pelos vedas o “touro da terra” – é, com os seusauxiliares, os Maruts, o possuidor de Vajra, o raio. Todas as culturaspaleorientais simbolizam a potência metereológica e destruidora pelo touro.Os cognomes sumérios de Enlil significam: “Senhor dos ventos e do furacão”,

43 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 777.44 Rosa, 1985, p. 277.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

“Senhor do furacão”, “Deus do corno”, cuja companheira é Ningala, “aGrande Vaca”. O deus Min, protótipo do Amom egípicio, é qualificado detouro e possui o raio como atributo, a sua companheira é a vaca Hator; eenfim Zeus tonante arrebata Europa, une-se a Antíope e tenta violar Demétersob a forma de um touro fogoso.45

No romance GSV, é Titão Passos quem primeiro declara guerra contra

Ricardão e Hermógenes, assassinos de Joca Ramiro. Perguntando pelos outros chefes,

Titão Passos fica sabendo que o grosso do bando de Sô Candelária está “nos pertos da

Lagoa-do-boi, em Juramento...”46 e que Medeiro Vaz está nos Gerais, “no de lado de lá

do Rio...”.47 Diadorim quer saber onde o pai (Joca Ramiro) fora enterrado, Gavião-Cujo

responde que decerto teria sido na Jerara, como cristão. Diadorim toma cachaça (água e

fogo), todos tomam. Titão Passos refere-se a Joca Ramiro, evitando as lágrimas, “um

homem em tão alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais cedo ou mais

tarde vivendo no meio de gente tão ruim...”48 Para Riobaldo, parecia que Titão Passos

havia se esquecido de que eram jagunços. Restava agora, então, a guerra. E numa

imagem de água fervendo Riobaldo diz: “Mão do homem e suas armas. A gente ia com

elas buscar doçura de vingança, como o rominhol no panelão da calda.”49 Rominhol ou

reminhol, segundo o dicionário Houaiss, é uma lata com um cabo de pau, usada para

tirar o melado quente do tacho ou mexer o açúcar nas casas de caldeiras. Vemos aqui a

imagem do tacho, que comporta a imagem da água e do fogo, como caldeirão, que

simbolicamente revela-se ambivalente, ora reportando-se ao bem, ora ao mal. Riobaldo

refere-se ao lado nefasto do caldeirão, ligando-o aos assassinos, aos culpados pela morte

de Joca Ramiro, em conformidade com os chineses, para os quais o caldeirão “é o vaso

ting, vaso ritual onde se põe a ferver as oferendas, mas também os culpados a título de

condenação e até mesmo os acusados a título de ordálio (prova judiciária

estabelecida através dos elementos naturais: água e fogo)”.50 O caldeirão encontra-se

expressivamente nas culturas céltica, galeza, irlandeza, os povos uralo-altaicos, Grécia e

Ásia xamânica. E a morte de Joca Ramiro veio como o “decreto de uma lei nova”, como

45 Durand, 2001, p. 82-83.46 Rosa, 1985, p. 278.47 Rosa, 1985, p. 278.48 Rosa, 1985, p. 278.49 Rosa, 1985, p. 279.50 Chavalier; Gheerbrant.1999. p. 166.

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“águas inesperadas”. Morto Joca Ramiro, precisavam agir, reunir o bando. Diadorim se

prontificou, Riobaldo olha para ele e lembra: “Vi que ele fervia ali assim no pego do

parado”51 Diadorim, como a água, fervia o ódio na sua parte mais funda, “no pego”.

Ódio que transborda logo à frente, com Diadorim em desespero, deitada soluçando e

mordendo “o capim do campo”.52 Ódio misturado às águas de um devir para a morte. E

assim terminava a passagem pela “tão célebre – a Guararavacã do Guaicuí, do nunca

mais”,53 com Riobaldo sendo requerido para chefe jagunço, mas recusando, e Diadorim,

a seu lado, em tristeza de luto.

4.5. Riachinho: águas fadadas

O melhor dos homens é como a águaA água a todas as coisas beneficia

E não compete com elas.Ocupa (os humildes) locais vistos por todos com desdém,

Nos quais se assemelha ao Tao

Lao Tse

Por tudo que o riachinho representa na obra rosiana,54 parece-nos pertinente

dedicar um tópico deste capítulo a esse personagem quase humano e fundamental na

compreensão dinâmica das águas rosianas. Corroborando esse ponto de vista, Sandra

Guardini T. Vasconcelos, ao estudar o conto de Guimarães Rosa, “Uma estória de amor

(festa de Manuelzão)”, irá dizer que o “conto tece uma intrincada rede de imagens que

tem no riacho sua imagem-matriz. Feito uma cicatriz riscando o chão da fazenda, o leito

seco do riacho, meio oculto por entre o traçado das árvores, se desenha como marca do

texto”.55 Encontramos em Bachelard, no livro A água e os sonhos, um capítulo, ao final

do livro, que ele chama de “A palavra da água”, no qual destacamos a seguinte

passagem, “O riacho, o rio, a cascata têm pois um falar que os homens compreendem

51 Rosa, 1985a, p. 278.52 Rosa, 1985a, p. 279.53 Rosa, 1985a, p. 280.54 Desde quando ele morre e renasce no conto “Uma estória de amor (festa de Manuelzão)”, passandopelo romance GSV, para finalmente receber um capítulo especial, chamado “Jardins e riachinhos”, nolivro póstumo Ave palavra, no qual João Guimarães Rosa narra as aventuras do riachinho “Sirimim”.( Rosa, 1985b, p. 277-304.55 Vasconcelos, 1997, p, 144.

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naturalmente”.56 Na correspondência com o tradutor alemão Meyer Clason, Guimarães

Rosa tenta uma definição do Sirimim: “Aliás o próprio SIRIMIM é apenas um

“Blächlein. E os “pocinhos” são também artificiais, feitos desviando-se a água do

Sirimim; neles não mana água própria.”57

Riobaldo acredita que na Guararavacã seu destino foi fechado; acreditamos

que seu destino foi, nesse episódio, em que o romance parece apontar para o fim,

determinado pelas águas, numa espécie de pequena e inesperada fábula, cujo clímax

ocorre, depois de tramado por vários ressoadores líquidos:

Um dia sem dizer o que a quem, montei a cavalo e sai a vão, escapado. Arteque eu caçava outra gente, diferente. E marchei duas léguas. O mundo estavavazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas.Atravessei um ribeirão verde, com os embuzeiros e ingazeiros debruçados – eali era vau de gado.58

Após o encharcamento de sucessivas imagens de água “cavalo”, “bois e

bois”, “vacas”, “um ribeirão verde”, “gado” etc. todos simbolicamente ligados à água

a matéria hídrica se aprofunda e atinge a fabulosa personificação do riachinho que

intima Riobaldo a parar, estabelecendo um limite, ao mesmo tempo, geográfico,

religioso e metafísico. É como um cavalo que Riobaldo obedece ao riachinho que é o

médium da passagem deste narrador para outros planos:

O tanto assim, que até um corguinho que defrontei – um riachim à-toa debranquinho – olhou para mim e me disse: - Não... – e eu tive que obedecer aele. Era para eu não ir mais adiante. O riachinho me tomava a benção. Apeei.O bom da vida é para o cavalo que vê capim e come.59

O riachinho metaforiza a vida de um homem regida pelo devir das águas e,

nesse momento, ele não é adorado por Riobaldo enquanto tal, assim como “a pedra

sagrada, a árvore sagrada, não são adoradas como pedra ou como árvore, mas

justamente por que são hierofanias, porque revelam algo que já não é nem pedra, nem

árvore, mas o sagrado.60 Riobaldo obedece ao riachinho, dorme à beira dele e sonha. No

56 Bachelard, 1998, p. 201.57 Rosa, 2003, p. 290.58 Rosa, 1985a, p. 268-269.59 Rosa, 1985, p. 269.60 Eliade, 1999, p. 18.

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sonho transforma-se ora em pedra, ora em flor: “Quando a gente dorme, vira tudo: vira

pedras, vira flor”.61 De fato, só se chega a tal nível de metamorfose pelo “sono da

morte”, quando entramos, segundo Cavalcanti em consonância com o Cosmo.

A morte é uma mudança profunda e corresponde simbolicamente a umainiciação. A morte do neófito tem a significação de uma volta temporária aum estado virtual pré-cósmico, uma regressão a um estado fetal embrionárioque precede o momento cosmogônico, anterior ao nascimento do novo ser oudo novo mundo. Morrer, no sentido simbólico, quer dizer recomeçar e é acondição indispensável de passagem para uma outra forma de vida.62

Riobaldo diz que dormiu para reconfirmar sua sorte, que a partir daí será

regida por Lúcifer, seu orientador espiritual, com quem afinal fará um pacto, realizado,

em certa maneira, sobre as águas, sobre as águas das simbólicas “Veredas Mortas”, que

“mais certo não era Veredas-Mortas, mas Veredas Altas...”.63

Enquanto Riobaldo dorme à beira do riachinho, Lúcifer aparece-lhe na

imagem alegre, dionisíaca, de um romãozinho, eufemismo de diabinho, um “diabo

menino que corre adiante da gente, [como um riachinho?] alumiando com a lanterninha,

em o meio certo do sono”.64 Antecipando a imagem do pacto, reforçando, à maneira

rosiana, um pacto com a alegria, com a luz, mas que não elimina o seu contrário, a treva.

Aquele que aspira ao saber oculto, ao Poder oculto, deve ficar em equilíbriocomo o Mago, ou manter neutralizadas as tendências opostas do Abismo,como o herói em seu carro, adquirir a paz interior, como o Eremita, oudistribuir, como vencedor altruísta dos próprios desejos, como o Enforcado,os benefícios da ciência: senão cairá vítima das correntes fluídicasdesregradas, que ele mesmo evocou ou projetou, mas não sabe controlar.Diante do oculto, há que dominar ou resignar-se a servir. Vencedor ouvencido: ninguém trata em pé de igualdade com as forças do nada.65

Sonhar com o romãozinho constitui uma revelação divina, mítica, ancorada

naquilo que Mircea Eliade chama de “Coincidentia oppositorum – modelo mítico –

todos os mitos nos apresentam uma dupla revelação.”66 Os acontecimentos no romance

GSV, devido ao alto grau de religiosidade, assemelham-se às realidades divinas. Lúcifer

61 Rosa, 1985a, p. 269.62 Cavalcanti, 2000, p. 119.63 Rosa, 1985a, p. 562.64 Rosa, 1985a, p. 269.65 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 338.66 Eliade, 1998, p. 341.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

trás a dupla revelação do bem e do mal conforme nos revela esse episódio do riachinho

que culminará no episódio do pacto.

Riobaldo, Professor, Cirzidor, Tatarana-lagarta-de-fogo ou Urutu Branco,

“um pobre menino do destino”, parecia resignado às correntes fluídicas e desregradas

que ele mesmo evocou, e sobre as quais não tem o menor controle. Kathrin Rosenfield,

por intermédio das imagens do próprio pacto, e sensível aos elementos da natureza,

corrobora essa interpretação possível para o sonho de Riobaldo na Guararavacã do

Guaicuí; para ela:

Riobaldo invoca “Lúcifer” e recebe do “brilho da noite” e das “absolutasestrelas” o impulso para a sua estranha dança noturna. As constelaçõescósmicas transformam-se em constelações significantes do texto que inspiramao personagem do pactário os gestos de unificação simbólica com oselementos de baixo: a água e a terra. Dissolvendo-se na vida vegetal,Riobaldo afirma simbolicamente sua relação com as forças vitais: com amatriz materna a noite metamorfoseada em “corpo de mãe” e iluminadapelo brilho de Vênus o “mermar da d’alva” – e com os símbolos dafecundação (orvalho, árvore – “pé de breu-branco” , estrume, mel.).67

Trata-se de um pacto feito de muitas misturas, deixando margens a várias

interpretações. O que interessa aqui, principalmente, é que, sonhando perto do

riachinho, Riobaldo antecipa sua aventura, na qual os elementos da natureza, a água e

seus ressoadores, contribuem decisivamente para a compreensão das imagens dinâmicas

de seu imaginário.

Cremos ser possível vincular Riobaldo, por intermédio de seu nome que,

como já foi dito, anagramaticamente, permite a leitura da palavra “diabo”, e mais ainda

à sua condição de “pactário”, à estrutura de um mito como o de Varuna e Vrtra,68

oriundos da mitologia indiana. Varuna é um deus celeste lunar e aquático, chamado de

“ligador” pelo seu poder espiritual e mágico. Riobaldo recebe de Zé Bebelo a alcunha de

“Cerzidor”, que quer dizer, em estado de dicionário: unidor, reunidor, juntador,

portanto, “ligador”. Como Varuna, “aquele que envolve com a escuridão”,69 Riobaldo

possui desde cedo uma certa propensão noturna, como vimos ao analisar sua relação

com as águas sombrias do rio Urucuia. Segundo Mircea Eliade “foi essa modalidade

67 Rosenfield, s/d, p. 117.68 Eliade, 1998, p. 349-350.69 Eliade, 1998, p. 349.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

noturna de Varuna que lhe permitiu tornar-se um deus das águas e que abriu o caminho

à sua assimilação com o “demônio”, Vrtra”.70 Varuna relaciona-se, em primeiro lugar,

com as águas paradas, cerceadas, com o mar, mas não excluindo outras águas. Essa é

também uma condição riobaldiana, segundo ele próprio, quando se refere à vida como

sendo “embrejada”,71 ou mesmo quando ele se relaciona com “poços”, “lagoas” etc. A

relação Varuna/Vrtra, coincide em muitos aspectos com esse momento de contato de

Riobaldo com o riachinho, que desperta mais explicitamente a relação Riobaldo/Lúcifer.

A noite, (o não manifestado), as águas (o virtual, os germes), a“transcendência” e o “não agir” (caracteres dos deuses celestes e soberanos)têm uma solidariedade ao mesmo tempo mítica e metafísica com os“ligadores” de qualquer tipo, de um lado, e com o Vrtra, que “reteve”,“estancou” ou “acorrentou as águas”, de outro lado. No plano cósmico, Vrtraé também um “ligador”.72

Riobaldo, como um rio, é estancado, pára por exigência da água do

riachinho. É Vrtra que prende as águas. Podemos inferir que, em certa maneira, é

Lúcifer quem prende e solta as águas riobaldianas. A ação de Varuna, como a de Vrtra,

“tem por efeito parar a vida, trazer a morte – no plano individual num caso, no plano

cósmico no outro”.73 Diante do riachinho, a vida de Riobaldo pára e ele morre, para

nascer outro, por intermédio do sono. Apesar de Riobaldo estar sendo aqui relacionado

ao diabo, relações de pertinência entre Reinaldo/Diadorim cujo apelido também traz

impresso a figura do diabo e Riobaldo, envolvendo o mito de Varuna e Vrtra são

também plausíveis. Afinal, é Diadorim seu par e seu amigo, que estará ao seu lado

quando ele acordar do sono na beira do riachinho.

A relação de Riobaldo com o riachinho assemelha-se também à de Sidarta,

personagem do livro homônimo, escrito e editado em 1931, do escritor alemão Hermam

Hesse, que, pelos mesmos motivos iniciáticos de Riobaldo, dormirá profundamente à

beira do rio e acordará com “Govinda” seu amigo de infância, a seu lado a vigiar-lhe o

sono. Por intermédio do sono, Sidarta acordará outro, e irá ao encontro do rio e do

70 Eliade, 1998, p. 349.71 Rosa, 1985, p.137.72 Eliade, 1998, p. 350.73 Eliade, 1998, p. 350.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

balseiro Vasudeva: “Sidarta chegou ao grande rio, que passava pela selva, o mesmo rio

que o barqueiro o ajudara a transpor, quando o então jovem vinha da cidade habitada

por Gotama. Ali se deteve. Indeciso permanecia em pé à beira d’água”.74 À beira d’água,

Sidarta irá ouvir o som sagrado “Om”, que significa “perfeição”, então irá dormir um

sono profundo e, ao acordar, descobrirá que sua vida mudara e estava ligada ao devir

das águas. Sidarta passa, assim como o barqueiro, a ouvir a voz do rio. O barqueiro

Vasudeva e Sidarta, “calados, escutavam o que lhes segredava a água, a qual, para eles

não era apenas água, senão a voz da vida, a voz do que é, a voz do eterno Devir”.75

Para Bachelard, nós sonhamos antes de contemplar, “antes de ser um

espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica”.76 No entanto, a

“paisagem onírica não é um quadro que se povoa de impressões, é uma matéria que

pulula.”77 Em estado de dicionário, encontramos várias acepções para o vocábulo

“pulular”, que se interpenetram e dão uma dimensão da palavra e do quadro onírico

dessa matéria que pulula. Neste estudo, essa matéria é a água: “1 int. lançar rebentos (a

planta); brotar. 2 int. germinar com rapidez; brotar nascer (pulula a plantação) 3 int.

multiplicar-se rápida e abundantemente, espalhando-se profusamente; irromper,

surgir.”78

O sono de Riobaldo à beira do riachinho tem, em sua vida, uma pujança e

força vegetativa e é decisivo em sua travessia rumo ao poder. É esse sono que o insere

na ordem da morte, do renascimento:

Do ponto de vista simbólico Tânatos é o aspecto perecível e destruidor davida. Como índice que desaparece na ordem da evolução fatal das coisas, aMorte prende-se à simbologia da Terra. Divindade que introduz as almas nosmundos desconhecidos das trevas dos Infernos ou nas luzes do Paraíso,patenteia sua ambivalência, como a Terra, relacionando-se, de alguma forma,com os ritos de passagem. Revelação e Introdução, toda e qualquer iniciaçãopassa por uma fase de morte, antes que as portas se abram para uma vidanova. Nesse sentido, Tânatos contém um valor psicológico: extirpa as formasnegativas e regressivas, ao mesmo tempo em que liberta e desperta asenergias espirituais. Filha da Noite e irmã de Hipno, o Sono, possui como suamãe e irmã o poder de regenerar. Quando se abate sobre um ser, se esteorientou sua vida apenas num sentido material, animalesco, a Morte o lançaránas trevas; se, pelo contrário, deixou-se guiar pela bússola do espírito, ela

74 Hesse, s/d, p. 77.75 Hesse, s/d, p. 94.76 Bachelard, 1998, p. 05.77 Bachelard, 1998, p. 05.78 Houaiss, 2001, p. 2334.

Capítulo 4 Águas do nunca mais

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

mesma lhe abrirá as cortinas que levam aos campos da luz. Não há dúvida deque em todos os níveis da vida humana coexistem a morte e a vida, ou seja,uma tensão entre as forças contrárias, mas Tânatos pode ser a condição deultrapassagem de um nível para um outro nível superior. Libertadora dossofrimentos e preocupações, a Morte não é um fim em si; ela pode nos abriras portas para o reino do espírito, para a vida verdadeira: mors ianua uite, amorte é a porta da vida. 79

A morte (o sono de Riobaldo na Guararavacã) é a porta de uma nova vida

para Riobaldo, que o levará a vencer o inimigo Hermógenes. E quando Riobaldo acorda

refere-se ao absurdo da vida e a Deus: “Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri:

tudo que é bonito é absurdo – Deus é estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a

uns dois passos de mim, me vigiava”.80 Entregue às forças da natureza, mais

especialmente às forças aquáticas, dormindo sobre ventos, Riobaldo sente-se purificado,

interpenetrado de Deus, ouro, prata e Diadorim, também seu amigo de infância, como

Govinda o é de Sidarta:

No sistema de correspondência dos metais e dos planetas, a prata está emrelação com a lua. Pertence ao esquema ou à cadeia simbólica Lua-água,princípio feminino. Tradicionalmente, por oposição ao ouro, que é princípioativo, macho, solar, diurno, ígneo, a prata é princípio passivo, feminino,lunar, aquoso, frio (...). Para os bambarras, [a prata] é o símbolo da águapurificadora; Deus que reúne os dois elementos purificadores, fogo e água, éao mesmo tempo ouro e prata.81

Sendo o ouro, para os alquimistas, uma cor que corresponde à terra, e a prata

à água, ouro e prata corresponderiam, novamente, nesse momento, aos elementos que

compõem o sertão, conforme vimos no início deste trabalho, e que ressoa agora como

espécie de epíteto implícito nas palavras ouro e prata.

Assim, por intermédio da análise das imagens de água no episódio da

paradisíaca Guararavacã do Guaicuí, o meio do romance GSV, vimos consolidar o papel

da matéria água no percurso de Riobaldo. Matéria que o levaria à radicalidade do pacto

com o “demo”.

79 Brandão, 1987, p. 227.80 Rosa, 1985, p. 269.81 Chavalier; Gheerbrant, 1999. p. 739.

Capítulo 4 Águas do nunca mais

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Capítulo 5O deserto antes e depois

5.1. O deserto

Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na tramaespinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados

em lanças; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores semfolhas, de galhos retorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou

estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...

Euclides da Cunha

Convinha esperar regras d’água.

João Guimarães Rosa.

Investigaremos, neste capítulo, o episódio do “deserto símbolo”,1 o “Liso do

Suçuarão”, em dois momentos, conforme aparecem narrados no romance. No primeiro,

antes da travessia, a água aparece farta, envolvendo as ações dos protagonistas numa

espécie de banho ritualístico, que antecede o desafio de atravessar o “Liso do Suçuarão”.

No entanto, o deserto se apresentará como uma espécie de lava intransponível, mesmo

pelos cavalos. Mas a viagem não é de todo perdida, pois, é no deserto que Riobaldo fica

sabendo que Hermógenes havia feito um pacto com o demônio. Hermógens que “era um

sujeito vindo saindo de brejos, pedras e cachoeiras, homem todo cruzado”.2 Na segunda

tentativa de travessia do “Liso do Suçuarão”, um deserto considerado intransponível por

todos irá abrir-se para Riobaldo como que por encanto. Veremos que esse encanto que

está fortemente ligado às águas riobaldianas, que atingiam, nesse momento, uma espécie

de maturidade.

Medeiro Vaz, influenciado por Diadorim, reúne o bando de jagunços para

realizar a travessia do Liso do Suçuarão com o intuito de atacar Hermógenes de

surpresa. Diadorim, mentor da decisão, não media esforços para vingar a morte de seu

pai, Joca Ramiro, perpetrada por Hermógenes e Ricardão. Mas o deserto, o Liso do

1 Candido, 1957, p. 08.2 Rosa, 1985a, p. 245.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Suçuarão, como se esperava, revelar-se-á terrivelmente inóspito, fechado, ficando,

então, a travessia, para a segunda tentativa, quando outra realidade se manifesta.

Riobaldo inicia a narrativa desse episódio a partir do momento em que

Medeiro Vaz afirma: “com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso do Suçuarão”.3

Em seguida, descreve as árvores do cerrado, que são maiores no “se caminhar para as

cabeceiras”,4 relacionando-as com as cabeceiras dos rios, local em que a natureza é mais

generosa. Riobaldo vai descrevendo a natureza conforme ela vai aparecendo na

caminhada, concomitante aos preparativos para a travessia, numa descida vertiginosa,

ao “miolo do sertão”, o Liso do Suçuarão, que irá lembrar a descida ao inferno

protagonizada por personagens da literatura mundial, como Odisseu, que desce ao

Hades para estar com Tirésias, o cego vidente, que poderia ajudá-lo no caminho de volta

para Ítaca; e Dante que passa pelo inferno com o poeta Vergílio, em busca de sua musa

Beatriz.

No caminho surge um ressoador de água: o “Boi Brabeza”, boi que fugiu e

vive bravo e à solta no catingal, reforçando o caráter, imprevisível e agreste do sertão.

Uma lagoa surge “felizinha de aprazível”,5 buritis, e um bambual, chamado Bambual do

Boi, que reproduzia, “quase igualmente. Som bom de chuvas”,6 onde pernoitam. Ali, os

homens são comparados a meninos: “Dali eu via aquele movimento: os homens,

enxergados tamaninho de meninos, numa alegria, feito nuvem de abelhas em flor de

araçá, esse alvoroço, como tirando roupa e correndo para aproveitarem de se banhar no

redondo azul da lagoa, de donde fugiam espantados todos os pássaros as garças, os

jaburus, os marrecos, e uns bandos de patos-pretos”.7 Finalmente, eles se banham no

redondo do azul da lagoa, entre os vários pássaros. Vemos, nesse momento, o caráter

ritualístico do banho para o enfrentamento do deserto. “A virtude purificadora e

regeneradora do banho é bem conhecida e atestada, tanto no âmbito do profano como no

do sagrado”.8 Essas várias imagens de água e ressoadores também ajudarão a compor,

3 Rosa, 1985a, p. 42.4 Rosa, 1985a, p. 42.5 Rosa, 1985a, p. 42.6 Rosa, 1985a, p. 437 Rosa, 1985a, p. 42.8 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 119.

Capítulo 5 O deserto antes e depois

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

por contraste, o caráter inóspito do Liso do Suçuarão, que nesse momento irá contrariar

a lógica misturada do sertão, apresentado propositadamente seco, nessa primeira

tentativa de travessia. Apesar do aspecto ritualístico-simbólico dessas águas, que

antecedem a travessia do Liso do Suçuarrão, suas benções não serão suficientemente

fortes. Justamente porque falta a maturidade hídrica àquele que é ainda o Tatarana-

lagarta-de-fogo (um dos apelidos de Riobaldo).

Preparados, com os “bogós de couro [que] foram enchidos nas nascentes da

lagoa, e enqueridos nas costas dos burrinhos”,9 e as “cabaças d’águas”10 cheias, e mais

três rastreadores, cujos nomes sugerem cada qual uma serventia Suzarte, Joaquim

Beiju e Tipote. Os dois últimos, particularmente, mostram-se mais afinados ao tema

desta dissertação. Joaquim Beiju, que conhecia recantos dos Gerais, era capaz de

encontrar planta, portanto água. O beiju é um tipo farinha, pequenas placas formadas

por grãos de farinha, que assemelham-se à superfície da Terra, muito principalmente, ao

terreno seco da caatinga; Tipote, por seu turno, é o sujeito capaz de encontrar água, um

significante, confeccionado a partir do encontro das palavras tipo+pote, portanto, é um

homem que é também um tipo de pote, um tipo de vaso de barro, no qual se colocam

líquidos. Segundo o dicionário Aurélio, tipote é também uma antiga unidade de medida

para líquidos, “equivalente a seis canadas, i. e., 15, 972 litros”. Riobaldo referi-se à

qualidade de seus rastreadores, entre imagens de um sertão quase líquido:

Tudo eles achavam, tudo sabiam; em pouquinhas horas, tudo tradiziam. Ochão, em lugares, guardavam molde marcado dos cascos de muitíssimasreses, calcados para um rumo só um caminho eito. Aqueles rastros tinhamvigorado por cima da derradeira lama da derradeira chuva. E dequantidade e de quanto tinha chovido eles liam, no capim e nos regos deenxurradas, e na altura da cheia já rebaixada, a deixa, beiradas de ribeirão.11

Na medida em que vão caminhando, o sertão enquanto deserto vai

crescendo, e as veredas enaquanto água vão ficando para trás. Assim, deram com

“uma terra diferente, louca, e lagoa de areia”.12 A areia, simbolicamente, termina por ser

9 Rosa, 1985a, p. 43.10 Rosa, 1985a, p. 44.11 Rosa, 1985a, p. 372.12 Rosa, 1985a, p. 42.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

um ressoador de água, a água da lagoa. Em algumas cerimônias, por seus inúmeros

grãos, às vezes é comparável à água:

Os punhados de areia jogados durante certas cerimônias xintoístasrepresentam a chuva, o que é, ainda, uma forma de simbolismo daabundância. Em circunstâncias especiais a areia pode também substituir aágua nas abluções rituais do islamismo. Ela é purificadora, líquida comoágua, abrasiva como o fogo.13

A areia do deserto do Suçuarão, nesse momento, é abrasiva como o fogo,

como o sal. E no deserto do Suçuarão, Riobaldo, como Cristo é tentado pelo demônio,

ao saber, por intermédio do Jagunço João Bugre, que o seu maior inimigo, o

Hermógenes, fez um pacto com o demônio: “... O Hermógenes tem pauta... Ele se quis

com o Capiroto...”14 A malfadada travessia do Suçuarão, em suas falsas águas, “lagoas

de areias”, constitui-se um momento iniciático importante na ascensão de Riobaldo.

Como se ele fosse ao deserto purgar, refletir e encontrar a solução para combater o feroz

inimigo Hermógenes, ou seja, a decisão de, como seu adversário, também fazer um

pacto com o “demo”.

“As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do sertão residia ali, era

um sol em vazios”.15 A partir desse momento, o sol e a areia dão o tom duro, agreste, da

travessia. Riobaldo vê “visagens”.16 Acha que andou vagando, bebe econômico seu

“primeiro chupo d’água, da cabaça”.17 Riobaldo pergunta a si mesmo se Medeiro Vaz

não estaria insensato. Diadorim, percebendo a desconfiança de Riobaldo, diz-lhe no

meio da noite: “Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem”.18 Enquanto Riobaldo

dorme, uma imagem de água, comum em nossa crendice popular, surge: “Diadorim

passando por debaixo do arco-íris”.19 É de conhecimento público, em nossa cultura, que,

se uma pessoa passar sob o arco-íris, que sempre aparece durante ou logo após a chuva,

muda de sexo. Guimarães Rosa utliza-se da imagem do arco-íris na novela “Campo

geral”: “Entre chuva e outra, o arco-da-velha aparecia bonito, bebedor; quem13 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 79.14 Rosa, 1985a, p. 45.15 Rosa, 1985a, p. 46.16 Rosa, 1985a, p. 46.17 Rosa, 1985a, p. 46.18 Rosa, 1985a, p. 47.19 Rosa, 1985a, p. 47.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

atravessasse debaixo dele — fu! — menino virava menina, menina virava menino: será

que depois desvirava?”20 A fantasia riobaldiana, do arco-íris, ramifica-se por várias

culturas, como, por exemplo, a dos pigmeus, polinésios, escandinavos, japoneses,

iranianos, tibetanos, africanos, para os quais “o arco-íris é caminho e mediação entre o

céu e a terra. É a ponte, de que se servem os deuses e heróis, entre o Outro-Mundo e o

nosso”.21 Riobaldo, no momento em que narra, busca, de todas as maneiras possíveis,

intermediários para a o outro mundo. A imagem do arco-íris é tratada ironicamente pelo

narrador do GSV , o qual sabe, ao tempo da enunciação, do momento em que

atravessavam o Liso do Suçuarão, que Diadorim era mulher e, passando sob o arco-íris,

viraria homem. A ironia ocorre visto o narrador ignorar essa informação no momento da

travessia do Liso do Sussuarão.

Mesmo os cavalos, únicos capazes de entrar nas águas mortais do rio

Estige22 sofriam sobre as areias23 do Liso do Suçuarão. Já abordamos as relações

intrínsecas entre a água e o cavalo, no entanto, mesmo esse animal, que muitas vezes

recebe estatura mítica no romance GSV, ressente-se sobre a areia do deserto, “areia que

escapulia sem firmeza, puxando o casco dos cavalos para trás”.24 Em pleno Liso do

Suçuarão, não há mais sombra, capim, poço, água. Os cavalos sabiam e “olhavam para

seus cascos, mostrando tudo o que cangavam de esforço”,25 sobre a lagoa esturricante de

areia. Riobaldo sente-se fraco, tudo pesava, “até [suas] testas formaram chumbo”.26

Também aqui o chumbo aparece como ressoador de água e, parece-nos, como mediador

das imagens que virão em seguida, a imagem refrescante de Otacília, em meio aos

buritis que existiam nas “Serras dos Gerais Buritis Altos, cabeceira de vereda na

Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como a diguice duma música, outra água eu

20 Rosa, 1994, p. 485.21 Chevalier; Gheerbrant, 1999. p. 77.22 Estige, em princípio, é o nome de uma nascente ou fonte da Arcádia, não distante da cidade

de Nonácris. As águas desta fonte desciam de um rochedo escarpado e perdiam-se nas entranhas daterra. Tinham propriedades altamente nocivas: envenenavam seres humanos e rebanhos; destruíamferros, metais, e qualquer tipo de cerâmicas que nelas se mergulhassem. O único material que resistia atamanho poder de corrosão era o casco do cavalo. (Cavalcanti, 2000. p. 111.)

23 A areia simbolicamente pode ser representada como água em algumas circunstâncias, conformevimos neste trabalho, o que faz da areia um ressoador de água.

24 Rosa, 1985a, p. 46. 25 Rosa, 1985a, p. 48. 26 Rosa, 1985a, p. 48.

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provava”.27 Os sonhos e devaneios riobaldianos são naturalmente, nesse episódio,

voltados para as águas, como que para compensar a secura do Liso do Suçuarão. A

saudade e os devaneios aprofundam-se na matéria riobaldiana, a água, como Riobaldo

exemplifica por intermédio da poesia, nos aquosos versos: “Buriti, minha, palmeira,/ Lá

na vereda de lá:/casinha da banda da esquerda,/ olhos de onda do mar...”.28

Excetuando-se a canção acima, em nenhum momento, nessa primeira

tentativa de travessia do Suçuarão, o mar será citado. Diferente do que ocorrerá na

segunda travessia, quando então o deserto, como um oceano, se abre para Riobaldo.

Pensamos que há nessas imagens algo de maternal, de retorno ao útero, configurando-se

um sentido premonitório do fim da jornada do narrador protagonista.

5.2. O gênio serpente e o retorno ao mar do Suçuarão29

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto

Euclides da Cunha

Já fizemos referência ao gênio-serpente quando tratamos do rio Okeanos, rio

que, segundo se acreditava, contornava o mundo. Mas cremos que é importante

estabelecer relações mais diretas entre essa imagem e Riobaldo. No encalço de

Hermógenes, Riobaldo agora como chefe Urutu-Branco, por intermédio de uma imagem

de sol (fogo) e água, retorna ao “miolo mal do sertão”, ao centro do sertão, o “Liso do

Suçuarão, em busca de um resultado “sobre-humano”. Seu projeto, como sabemos, é

vencer o mal:

Só aquele sol, a assaz claridade o mundo limpava que nem num tremerd’água. Sertão foi feito é para ser sempre assim: alegrias! E fomos. Terrasmuito deserdadas, desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha umcaminho novo. Caminho de gado.Arte que achei o meu projeto.30

27 Rosa, 1985a, p. 48.28 Rosa, 1985a, p. 48.29 Segundo Ângelus Silesisus, como o ponto conteve o círculo, o círculo retorna ao ponto. O

homem primordial ou o homem verdadeiro (tchen-jen), reintegrado no estado edênico, retornou dacircunferência ao centro. Ora, o centro do mundo, o centro do Éden, é o ponto de comunicação entre aTerra e o Céu, aquele que a partir do qual são obtidos os estados sobre-humanos. (Chevalier ;Gheerbrant, 1999, p. 779.)

30 Rosa, 1985a, p. 469.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Nessas imagens, o sol provoca uma evaporação criando na paisagem um

tremor ondulado, parecido com o da água, quando esta treme. Seguindo um preceito

riobaldiano, se há a água, há a alegria; os desdobramentos que analisamos seguem essa

máxima rosiana. Surge, então, um caminho novo, “caminho de gado”, e é quando

Riobaldo acha seu projeto. Vimos no “gado”,31 um ressoador de água, que lembra a

vaquinha do conto “Seqüência”, do livro Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa,

que irá abrir, entre riachinhos, rios e montanhas, o caminho para o moço até a sua

amada: “Na estrada das Tabocas, uma vaca viajava. Vinha pelo meio do caminho, como

uma criatura cristã”.32 O “novo”, o “caminho do gado” é, nesse sentido, da ordem do

simbólico, do sagrado, indicando o caminho para Riobaldo: “Arte que achei o meu

projeto”. Numa de suas acepções “arte” é aquela que, “segundo a tradição filosófica que

remonta ao platonismo, [quer dizer] habilidade ou disposição dirigida para a execução

de uma finalidade prática ou teórica, realizada de forma consciente, controlada e

racional”.33 Riobaldo age com a certeza de quem vinha se preparando para esse

momento.

Dessa vez, diferente da primeira tentativa de travessia do “Liso do

Suçuarão”, Riobaldo não fará nenhum preparativo, dispensa os farejadores, como

Tipote, Suzarte e Joaquim Beiju, encarnando em si mesmo as qualidades antes

atribuídas a seus rastreadores:

Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado, solidão, chãoaventesma – mas sem preparativos nenhuns, nem cargueiros repletos de bommantimento, nem bois tangidos para carneação, nem bogós de couro-cruderramando de cheios, nem tropas de jegues para carregar água.34

Riobaldo nega a água, nega aquilo que menos há no deserto, para encontrá-

la onde ela não deveria existir. No entanto, “o deserto onde reina apenas Deus é

31 Do conto Pé-duro, chapéu-de-couro retiramos o seguinte trecho: “Antigo veio o tema: o de estrênuospegureiros, que lutavam com os anjos, levantavam suas tendas e vadeavam os desertos — Caldéia aCanaã um rastro de rebanhos, e o itinerário do espírito”. (Rosa, 1985, p. 129). A citação acimacorrobora a relação que estabelecemos entre o ressoador de água “gado”, “vaca”, “boi”, espírito e aabertura do Liso do Sussuarão para Riobaldo.

32 Rosa, 1969, p. 65.33 Houaiss, 2002, p. 306.34 Rosa, 1985a, p. 472-473.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

indiferenciação reencontrada pela experiência espiritual, idêntica nesse sentido

particular ao mar do simbolismo búdico”.35

Riobaldo será o grande farejador do “Liso do Suçuarão”, daquilo que

ninguém desconfiava que podia ser diferente. A “arte” de Riobaldo mistura-se a uma

forte intuição, uma força mágico-religiosa da qual a água é uma das mediadoras.

Riobaldo tinha a certeza de que atravessaria o “Liso do Suçuarão”: “Ninguém me fazia

voltar a seco de lá. Aquela hora, eu só não me desconheci, porque bebi de mim esses

mares”.36 De que mares o narrador está falando? Em situações limites, de grande tensão,

Riobaldo recorre, quase sempre, às águas. Num outro momento ele dirá: “Chapadão é

uma estada, estando, somente eu sabia respirar. Sumo bebi de mim, e do que eu não me

tonteava”.37 Riobaldo refere-se ao “Chapadão” como sendo o do rio Urucuia. O mar,

para Bachelard, falta “ao dever de servir diretamente aos homens”,38 ou seja, nós não

bebemos a água do mar. O que faz do mar, segundo Bachelard, uma referência distante;

e da água doce, pela sua imprescindibilidade imediata, uma referência mais próxima. No

entanto, interessa-nos ressaltar a semelhança visual do mar com o deserto, do mar como

matriz e, finalmente, como água simplesmente. Riobaldo ao referir-se ao “Liso do

Suçuarão”, fala de um lugar distante, e as referências ao mar ajudam a torná-lo mais

distante ainda. “O herói dos mares sempre volta de longe; volta de um além. (...) O mar

é fabuloso porque se exprime primeiro pelos lábios do viajante da mais longínqua

viagem”.39 O mar de que fala Riobaldo apresenta-se como o próprio “sertão”, que “está

em toda parte”, “a fora a dentro.” Riobaldo, por todas as referências às águas, sente-se

como um navegante do sertão. E o sertão narrado por Riobaldo apresenta-se muitas

vezes distante como as águas do mar.

Num certo momento, quando ainda era o jagunço “Tatarana”, Riobaldo

recebe ordens de Hermógenes, as quais aceita ao mesmo tempo com gosto e desgosto.

Para considerar a situação, utiliza-se de imagens de água: “Natureza da gente bebe de

35 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 331.36 Rosa, 1985a, p. 472.37 Rosa, 1985a, p, 434.38 Bachelard, 1998, p. 159.39 Bachelard, 1998, p. 159.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei”.40 Em seguida, Riobaldo pensa em

Joca Ramiro com admiração e diz “A arga que em mim roncou era um despropósito,

uma pancada de mar”.41 Assim, para uma água suja que parece seduzi-lo o

Hermógenes Riobaldo clama pelo mar e regula, equilibra as forças em suas águas.

“Uma pancada de mar” é o que representa a chefia de Joca Ramiro e as forças do bem e

do mal se equilibram e tudo se passa dentro de Riobaldo; seus mares, “esses mares”. O

vocábulo “arga” é de origem mongólica, “argali. [do mongol, de arga, ‘crista da

montanha’]”.42 O que ronca em Riobaldo é a natureza do sertão, que é terra montanha

e água o mar.

Pela maneira como o “Liso do Suçuarão” irá se apresentar nesta segunda

travessia, com grande recorrência às águas, percebe-se a intimidade de Riobaldo com as

águas. Não é à toa que ele se refere ao sertão como sendo “um mar de territórios”.

Cremos que Riobaldo compreende sua matéria como sendo a mesma do sertão que é

feito de água e terra. Em seguida, compara a fazenda e a família de Hermógenes como

ovo da serpente e diz: “Ovo é coisa esmigalhável”.43 Estabelece, portanto, uma relação

de espelhamento com Hermógenes e o Urutu Branco, que, como o próprio Riobaldo, é

uma serpente. Riobaldo sente, nesse momento, que “não era o do certo: eu era o da

sina”.44 Assim, entendemos que Riobaldo é uma espécie de “gênio serpente”, encarnado

pelo chefe Urutu-Branco, cuja sina é a mesma das águas. Sobre o “gênio serpente”

afirma Mircea Eliade:

Os gênios serpentes não residem sempre nos oceanos e nos mares, mastambém nos lagos, nos poços, nas nascentes. Os cultos das serpentes e dosgênios serpentes, na Índia e em outras regiões, mantêm, em todos osconjuntos em que se encontram esta ligação mágico-religiosa com as águas.Uma serpente ou um gênio serpente encontra-se sempre nas imediações daságuas ou estas são reguladas por eles. 45

Nossa hipótese é que, finalmente, no episódio do deserto do Suçuarão, as

águas riobaldianas chegam a uma espécie de maturidade, ou ápice do simbolismo40 Rosa, 1985a, p. 188.41 Rosa, 1985a, p. 188.42 Ferreira, 1994, p. 161.43 Rosa, 1985a, p. 472.44 Rosa, 1985a, p. 473.45 Eliade, 1998, p. 171.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

hídrico. É o que se pode ver numa pequena retrospectiva da vida do narrador

protagonista Riobaldo: seu destino ligado às águas desde o nascimento, desde o “sítio

do Caramujo”, na “fonte de Rio Verde”; o nome que recebeu; a iniciação no “De-

Janeiro”, caindo no “São Francisco” e recebendo a benção do “riachinho” na

“Guararavacã do Guaicuí”; as chuvas, o orvalho, as veredas, poços, sua relação com os

vários ressoadores de água, até a metamorfose em gênio serpente, o chefe Urutu-Branco;

enfim, pelas inúmeras passagens em que “as vertentes do [seu] viver”46 representam, no

plano geográfico e no simbólico, as travessias riobaldianas, nas quais ele beberá de

todas as águas, criando uma rede líquida capaz de enfrentar o inferno do pior dos

desertos, o “Liso do Suçuarão”, em que o sol, o fogo, a seca são os elementos

preponderantes, paisagem que metaforiza a situação de enfrentamento do Hermógenes,

o pior inimigo do herói. Somente a um ser votado para a água, como Riobaldo, em que

até o pensamento é líquido “De repente, de repente, tomei em mim o gole de um

pensamento”47 , as águas se abririam como que por encanto, pelas faíscas que

respingam-lhe o espírito. Isso lembra-nos o que disse seo Emílio Wusp dizia “— Senhor

atira bem, porque atira com o espírito. Sempre é o espírito que acerta....”48 Quando

pensa em atravessar o deserto do Suçuarão, Riobaldo mira com o espírito:

O que na hora achei, foi que Diadorim, também, não adivinhou meu espírito.Pois, por aquela conta, mesma, era que eu queria. Sobre o que eu era umhomem, em si, fantasia forra, tendo em nada aqueles perigos capaz do caso.Para vencer vitória, aonde nenhum outro antes de mim tivesse! Respingueidessas faíscas constantes. Eu, não: o cujo do orgulho, de mim, doimpossível.49

Pensamos que as imagens de água, sugeridas no significante “respinguei”,

ressoam novamente na possibilidade de que Riobaldo tome o espírito, sua alma, seu

pensamento, como matéria líquida. Respingar-se seria benzer-se com as faíscas, o

brilho certeiro do espírito. Uma das acepções de “faísca” é “vivacidade espiritual,

brilho, graça”.50 Benzido pelas faíscas do próprio espírito, Riobaldo diz confiante: “O

resto, foi ondas. Reprazer cru dessa espiritação — eu ardia em mim, e em satisfa

46 Rosa, 1985a, p. 471.47 Rosa, 1985a, p. 143.48 Rosa, 1985a, p. 116.49 Rosa, 1985a, p. 471.50 Houaiss, 2001, p. 1300.

Capítulo 5 O deserto antes e depois

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

contente, feito fosse véspera de uma patusqueira”.51 Riobaldo se sente como alguém que

vai para uma patusca, uma festa. A alma de Riobaldo liquefaz-se, a despeito do que

pensava Heráclito, que ligava a alma ao elemento “fogo”, “aither”, que, para ele, era o

princípio de todas as coisas. Mas Riobaldo “arde”, qualidades próprias do fogo. O

estudiosos de Heráclito, Kirk; Raven; Schofield afirmam que:

O cosmos consiste, de uma maneira geral, de massas de terra (interpenetradasde fogo secundário, como nos vulcões) e mar, cercado pelo brilhanteinvólucro de fogo ou aither. Este fogo (...) foi considerado por Heráclitocomo centro motor dos processos cosmológicos: da sua região parece vir achuva, que em última análise alimenta o mar, sendo ela própria reabastecida(pois o fogo “consome” umidade) pela evaporação úmida que ascende domar. Este, como o filósofo Xenófanes havia demonstrado, transforma-se emterra, e a terra em outras ocasiões e lugares dilui-se em água”52

Há, na realidade, uma relação intrínseca entre os elementos, ainda que o

filósofo acreditasse que uma alma úmida não possuía as qualidades superiores de uma

alma seca.

Diferentemente da primeira travessia, os cavalos, na segunda travessia, ao

“Liso”, estão em perfeita sintonia com as areias do deserto do Suçuarão: “Soltando as

rédeas, entrei nos horizontes. Aonde entrei, na areia cinzenta, todos me acompanhando.

E os cavalos, que “vagarosos; viajavam como dentro dum mar”.53 Eram como a água

dentro da água.

Riobaldo acredita que alguém o trouxera até ali: “Alguém a alto me levou,

alguém, salvo a um seguinte. Águas não desmanchavam meu torrão de sal”.54

Aparentemente, o sal parece opor-se ao caráter corrosivo das águas riobaldinas. “O

porta-voz de Cristo como sal da terra (Mateus, 5, 13) é, sem dúvida, a sua força e sabor,

mas é também o seu protetor contra a corrosão.”55

Por outro lado o deserto do Suçuarão “se passou como se passou, nem refiro

que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios”,56 dirá Riobaldo, confirmando

51 Rosa, 1985a, p. 471.52 Kirk; Raven; Schofield. 1994, p. 207.53 Rosa, 1985a, p. 474.54 Rosa, 1985a, p. 474.55 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 797.56 Rosa, 1985a, p. 474.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

com o neologismo “sobrelégios” a “sobrenatural” situação de “privilégio” que para ele

se abria. Continuando a caminho do “Liso do Suçuarão”, Riobaldo confirma sua sorte.

Ainda que ele estivesse “encostado no sol. Mas com sorte [sortilégio] nos mandada, o

céu enuveou, o que deu pronto mormaço, e refresco. Tudo de bom socorro em az”.57

Frise-se que a expressão “em az” denota que Riobaldo é assistido com competência.

Riobaldo percebe a natureza nos carrapatos, no gado fugido perambulando, nas abelhas,

nas aranhas, formigas. Finalmente, chegam “em paragens com plantas”,58 “paragens”

que, em estado de dicionário, significam, além de parada, parte do mar acessível à

navegação. As referências ao mar no GSV e, principalmente, no episódio do Suçuarão,

tornam legítima essa aproximação hídrica entre o significado de “paragens” no romance

GSV e o contexto do Suçuarão, já que, nesse momento, eram “paragens” com plantas,

portanto navegáveis, atravessáveis, pelos cavalos que “viajavam dentro dum mar”.

Aliás, a idéia de navegação no chão do sertão ocorre em outros momentos, como aquele

em que Riobaldo vê pela primeira vez os jagunços chegarem à casa de seu padrinho

Selorico Mendes e diz, em imagem apresentada anteriormente, que os jagunços “tinham

navegado na sela a noite toda”; ou ainda quando entende o estado de jagunço “como

marinheiro de primeira viagem”.59 O mar é para Chevalier e Gheerbrant

símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar dosnascimentos, das transformações e dos renascimentos. Águas em movimento,o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informese as realidades configuradas, uma situação de ambivalência, que é a decerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bem ou mal. Vem daíque o mar é ao mesmo tempo imagem de vida e imagem de morte.60

No simbolismo do mar nota-se a semelhança com a forma mediante a qual

Riobaldo dispõe o sertão como sendo e não sendo, recaindo na ambivalência invocadas

na simbologia do mar.

No que se refere às paragens, o que Riobaldo e seu bando terão pela frente

no é uma espécie de repetição do próprio sertão rosiano, em que a figura da tensão,

como, por exemplo, entre a água e a terra, predomina. O “Liso do Suçuarão” apresenta-

se, quase como é “outro” o cerrado após a chuva:57 Rosa, 1985a, p. 474-475.58 Rosa, 1985a, p. 475.59 Rosa, 1985a, p. 159.60 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 592.

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Eu que digo. Mesmo, não era só capim áspero, ou planta peluda com umgambá morto, o cabeça-de-frade pintar-roxa, um mandacaru que assustava.Ou o xiquexique espinharol, cobrejando com suas lagartonas, aquilo que, emchuvas, de flor dói em branco. Ou o cacto preto, cacto azul, bicho luís-cacheiro. Ah, não. Cavalos iam pisando no quipá, que até rebaixado, esgarçono chão, e começavam as folhagens que eram urtigão e assa-peixe, e osneves, mas depois a tinta-dos-gentios de flor belazul, que é o anil trepador, eaté essa sertaneja assim e a maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, ea sinhazinha, muito melindrosa flor, que também guarda muito orvalho,orvalho pesa tanto: parece que as folhas vão murchar. E erva curraleira... Equixabeira que dava quixabas.61 (grifos nossos)

Essas paragens só seriam possíveis graças à água. É pertinente observar,

nesse ponto da travessia, que a recorrência à cor azul lembra-nos a água e lembra-nos o

mar, tantas vezes citado nesse episódio. Riobaldo chama a atenção para pedras azuis:

“cavalo repisa em pedra zul”.62 O azul é “o caminho do infinito, onde o real se

transforma em imaginário”.63 Nessa segunda travessia do “Liso do Suçuarão” deserto

símbolo estamos no campo do “simbólico”.64 Nesse parágrafo, há, ainda, referências

às chuvas, ao cavalo, ao peixe, à neve, sugerida no vocábulo “neves”, e a planta “tinta-

dos-gentios” em que, o vocábulo “tinta”, para a imaginação material, sugere a água.

No “Liso do Suçuarão” como era possível? achava-se água, e portanto,

se achava a alegria:

Digo se achava água. O que não em-apenas água de touceira de gravatá,conservada. Mas, em lugar onde foi córrego morto, cacimba d’água, viável,para os cavalos. Então, alegria. E tinha até uns embrejados, onde só faltava oburiti: palmeira alalã pelas veredas. E buraco-poço, água que dava prazerem se olhar. Devido que nas beiras o senhor crê? se via coragem deárvores, árvores de mata, indas que pouco altaneiras: simaruba, o anis,canela-do-brejo, pau-amarante, o pombo; gameleira. A gameleira branca!Como outro tempo se cantava: Sombra, só de gameleira,/ na beira doriachão...65

E o sertão vira uma espécie de mar que se abre para Riobaldo, o escolhido,

como antes o mar o fizera para Moisés, com ajuda dos céus, em sua famosa travessia do

Mar Vermelho. Assim, Riobaldo chega às paragens do sertão da Bahia.

61 Rosa, 1985a, p. 475.62 Rosa, 1985a, p. 474.63 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 107.64 “o liso é simultaneamente transponível e intrasponível, porque sua natureza é mais simbólica do que

real” (Candido, 1958, p. 09.)65 Rosa, 1985a, p. 476.

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Uma outra imagem, em meio a um tiroteio na batalha do Tamanduá-tão que

“é o varjaz”.66 A vargem ocorre sempre à beira de ribeirões ou rios e, na passagem

acima, evoca uma mulher sem nenhuma mácula ou uma “vereda com seus buritis altos e

a água ida lambida, donzela de branca, sem um celamim de barro. Diz-se que lá se

pesca, e gordas piabas”.67

Riobaldo, enquanto o Tamanduá-tão “se alastrou em fogo de guerra”,68 não

recorreu nem a Deus nem ao demônio, como aqueles capazes de protegê-los, a ele e ao

seu bando, mas ao Urutu-Branco:

À fé, que fiz. Se não vivei Deus, ah, também com o demo não me peguei refiro ; mas um nome só eu falava, fortemente falado baixo, e que pensadocom mais força ainda. E que era: Urutu-Branco!... Urutu-Branco!... Cujoera eu mesmo. Eu sabia, eu queria. E quando a guerra para o meu ladorelambeu, feito repentina labareda dum fogo. Uns vieram. E tiros, deles bala batia e rebatia. Costavam capim do chão, que riscavam com punhado deterra. Tch’avam partes de ramos da árvore por cima de mim, e vagens deangico, que então reconheci por isso. Como quieto fiquei. Eu não era o chefe?Mesmo que uma carga de rifle se passou em meu chapéu-de-couro-de-vaca, eque outra, zoante, em meu jaleco raspou. A mil, que não movi mão, mas deidesprezo. Mas, eu tivesse alargado braço e movido mão, para com tiros demeu revólver ripostar, e eu mal morto estava ponto que enquadrado depassantes balas, que rentes, até quentes. Urutu Branco... eu só relembrei,sussurrado ditoso, como quando com mocinha meiga se namora. Cachaçasque em minha alegria. Em vento. E balas, mais, só; num enorme minuto. Mas,bem: que, aluir dali, eu não aluía. Morresse tive preguiça de pensar mas,morresse, então morria três-em-pé, de valente: como o homem maior valenteno mundo todo, e na hora mais alta de sua maior valentia! À fé, que foi. Deiem lagoa de tão filho tranqüilo...69

Pelo que traduzem essas imagens, pensamos que Riobaldo sente-se filho das

águas e muito ciente de suas forças e de seu destino, apesar dos muitos perigos, ele tem

fé, como aquele que irá retornar à água. Ele parece, realmente, conhecer o valor

simbólico de seu nome, e de seus apelidos, o que contribui sumamente para respaldar a

importância do gênio serpente na multifacetada figura de Riobaldo.

O que disse sobre o “Liso do Suçuarão” ajuda-nos a refletir sobre as

artimanhas da narrativa de Riobaldo. Na primeira aparição do “Liso do Suçuarão”, no

66 Rosa, 1985a, p. 510.67 Rosa, 1985a, p. 510-511.68 Rosa, 1985a, p. 518.69 Rosa, 1985a, p. 518.

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enunciado, ele se apresenta categoricamente como aquele que “água não tem”.70 Mas

Riobaldo está narrando suas memórias, já havia atravessado o “Liso do Suçuarão”, e o

fez porque o deserto, o sertão, o seco, são também as veredas, as águas, o “mundo é

misturado”. Cremos que Riobaldo, se não entende racionalmente, compreende que sua

“sina” é a mesma das águas.

5.3. Lembrares e sustâncias

As formas femininas nascerão da própria substância da água,em contato com o peito do homem, quando, parece, o desejo do homem se definirá.

Mas a substância voluptuosa existe antes das formas da volúpia.

Gaston Bachelard

Sonso, o leite dele, todo, é um berço é sempre assim o Sirimim.

João Guimarães Rosa

Para contrapor-se às imoralidades e brutalidades perpetradas por ele,

enquanto investido do poder de chefe Urutu-Branco, Riobaldo convoca no íntimo de

suas lembranças uma série emblemática de figuras femininas. Analisaremos esse núcleo

de imagens, alinhadas quase ao final do romance, destacadas em um pequeno parágrafo

de grande força hídrica. Vejamos como Riobaldo resume as imagens que alimentam

suas lembranças e dão, sustância, (substância, matéria), à sua memória, nesse momento:

Somente que me valessem, indas que só em breve e poucos, na idéia dosentir, uns lembrares e sustâncias. Os que, por exemplo, os seguintes era: acantiga de Siruiz, a Bigri-minha mãe me ralhando; os buritis dos buritis assim aos cachos; o existir de Diadorim, a bizarrisse daquele pássaro galante;o manuelzinho-da-crôa; a imagem de minha Nossa Senhora da Abadia, muitosalvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como os anjos não são, atrás dasmulheres mães deles, que iam apanhar água na praia do Rio de São Francisco,com bilhas na rodilha, na cabeça, sem tempo para grandes tristezas; e a minhaOtacília.71

São imagens de grande ressonância líquida. Vê-se ai um apelo feminino e

materno, uma oportunidade de se estabelecerem relações entre as forças do feminino, da

mãe, da água e da terra no romance GSV. Sempre nos perturbou a presença sucinta da

70 Rosa, 1985a, p. 32.71 Rosa, 1985a, p. 483.

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mãe de Riobaldo, a Bigri, em suas memórias. Neste momento de nosso trabalho, essa

perturbação deixa de existir, uma vez que a simplicidade da Bigri,72 em consonância

com às imagens de água, torna-se dinâmica como estas. Riobaldo ainda liga “no sirgo

fio dessas recordações”,73 o nome de Inhorinhá, a prostituta filha de Ana Duzuza, que irá

seduzi-lo em meio a suas andanças pelo sertão. Essas recordações riobaldianas

apresentam-se como uma tábua de salvação, uma embarcação, e pela relação íntima que

elas estabelecem com o elemento água, uma embarcação cuja matéria é a própria água.

Analisando esses lembrares, veremos o quanto eles têm de afinidade com a

matéria água, como substância/sustância da memória riobaldiana, e como matéria do

imaginário do romance GSV. Percebe-se nessas imagens, uma recorrência do elemento

feminino, que se aprofunda e é mediado pelas águas, criando uma rede de imagens que

perfazem, também, uma idéia de maternidade, de leite, de mar, de felicidade, enfim de

água, já que, para Riobaldo “perto de muita água, tudo é feliz”.

Com referencia, ainda, aos “lembrares” de Riobaldo, retomamos a “canção

de Siruiz”, analisada anteriormente, em meio a muitas imagens de água, como o orvalho

“pripingando baciadas”, o “poço do Cambaubal”, os “pés molhados” de Riobaldo. Na

canção, ainda aparece o elemento feminino, a “padroeira”, como sendo também, em

nosso ponto de vista, a virgem, a Mãe das águas; depois, “o boi”, “o buriti”, “a água

azulada” e o “remanso de rio largo”; a “Bigri”, a mãe, o útero, o líquido amniótico; os

“Buritis”, sempre às margens das veredas; Diadorim, que apresenta a natureza a

Riobaldo; o delicado pássaro “Manoelzinho-da-crôa”, que vive em par numa espécie

de encarnação da fidelidade amorosa , “rio-abaixo e rio-acima”,74 uma imagem que

metaforiza, também, a própria condição errante do homem do sertão; a “Nossa Senhora

da Abadia”, que também aparece como espécie de Mãe das águas; “os meninos

nuzinhos atrás das mães, com bilhas na cabeça, indo apanhar água no Rio de São

Francisco”, uma referência explicita ao Santo São Francisco, tão ligado aos elementos

da natureza. A “bilha”, por sua vez, é um vaso de cerâmica em que se carrega ou

conserva água, no entanto, sua primeira acepção simbólica aponta “sua identificação

72 O seguinte é simples. Minha mãe morreu — apenas a Bigri. (Rosa, 1985a, p. 103)73 Rosa, 1985a, p. 483.74 Rosa, 1985a, p. 134.

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como o útero ou matriz”.75 E Otacília, esposa de Riobaldo, portanto, também filiada à

maternidade. É plausível supor que todas essas presenças do feminino aludem à mãe,

nesses lembrares e sustâncias de Riobaldo, sugerindo que “o simbolismo da mãe

[presente no romance GSV] (fr. mére) está ligado ao de mar (fr. mer), na medida em que

eles são receptáculos e matrizes da vida. O mar e a terra são símbolos do corpo

materno”.76 Apesar de ser uma imagem dissonante, devido a seu caráter estático, duro, a

terra corrobora esta análise por ser símbolo do corpo materno. A água e a terra, que

“simbolizam a mãe no sentido mais primordial”,77 representam, para Riobaldo, a síntese

do sertão, como vimos anteriormente. Há, sempre, uma aproximação entre as mulheres

de Riobaldo e as águas. As prostitutas Maria da Luz e Hortência, por exemplo; enquanto

a primeira tem os “olhos água-mel, [a segunda tem o] fio-do-lombo: mexidos curvos de

riacho serrano”.78 Diadorim é a “neblina”, Otacília “ sol dos rios...”,79 e as moças da

“dona fazendeira [que] era mulher já em idade fora de galas; mas tinham três ou quatro

filhas, e outras parentas, casadas ou moças, bem orvalhosas”.80 Parece que existe uma

relação simbólica efetiva entre “a Mãe eterna e a água (oceano ou rio) que representa o

conjunto das possibilidades contidas dentro de um determinado estado de existência”.81

Essas analogias indicam que o romance GSV comporta esse “estado de existência” e

permite a relação entre mãe e água.

Bachelard, por seu lado, liga o mar ao leite, e a mãe, ao dizer que “o mar é

para todos os homens, um dos maiores, um dos mais constantes símbolos maternos”.82

No entanto, ele próprio afirma que o mar em si não é uma imagem suficientemente forte

para fascinar os homens. O canto do mar somente fascinaria os homens porque, antes, é

um canto maternal, “é a voz maternal, é a voz de nossa mãe”.83 O amor pela água viria

em primeiro lugar de um amor “pela criatura abrigo, pela criatura nutrição, que foi a

75 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 221.76 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 580.77 Cavalcanti, 2000, p. 159.78 Rosa, 1985a, p. 491.79 Rosa, 1985a, p. 509.80 Rosa, 1985a, p. 423.81 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 581.82 Bachelard, 1998, p. 120.83 Bachelard, 1998, p. 120.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

mãe ou a ama de leite...”. 84 Dessa maneira, Bachelard chega a um momento importante

de sua teoria da imaginação material, quando defende que “a matéria comanda a

forma”.85 Para ele, a relação orgânica do homem com o mundo em seus primeiros

contatos com a vida, (os contatos de nutrição do corpo faminto da criança) são evocados

quando estamos diante da água.

Essa valorização substancial que faz da água um leite inesgotável, o leite danatureza Mãe, não é a única valorização que marca a água com um cunhoprofundamente feminino. Na vida de todo homem, ou pelo menos na vidasonhada de todo homem, aparece a segunda mulher: a amante ou a esposa.86

Na cosmogonia Desâna, espalhada pela bacia amazônica, encontramos um

mito de criação da humanidade em que o “trovão”e o “leite”, aparecem juntamente com

o “rio” e o “oceano” como intermediários fundamentais para a criação da humanidade:

Ëmekho sulãn Panlãmin voltou à morada original, à ëtan bë tali bu, levando ariqueza que encontrou na casa do terceiro trovão. Depois subiu à superfícieda terra, ao patamar chamado etãn bhasí bohó tali bu até chegar a um grandelago, o diá ahpikun dihtáli (rio, leite, lago) que deve ser o oceano.87

Ao construir aquele parágrafo de “lembrares e sustâncias” como uma

espécie de oásis feminino em meio à narrativa do “sertão que está movimentante o

tempo todo”, Riobaldo revela-nos “a Uroboro do mundo maternal [que] é vida e psique

numa só coisa; fornece alimento e prazer, protege e aquece, conforta e perdoa”.88 De

certa maneira, revela-nos também a substância, a matéria de sua intimidade, que é a

água. Assim como na análise que Bachelard realiza sobre a obra de Novalis, cremos que

o sonho de Riobaldo é idêntico ao do poeta: “O sonho de Novalis é um sonho formado

na mediação de uma água que envolve e penetra o sonhador, de uma água que traz um

bem-estar cálido e maciço, um bem estar ao mesmo tempo em volume e em densidade.

“É um encantamento, não pelas imagens, mas pelas substâncias”.89 Se na narrativa de

Novalis quem comanda é a substância (a água), achamos que o mesmo ocorre, em

muitos momentos, na narrativa riobaldiana, na qual certas imagens são comandadas pela84 Bachelard, 1998, p. 120.85 Bachelard, 1998, p. 124.86 Bachelard, 1998, p. 131.87 Kenhíri, 1980, p. 61.88 Raïssa, 1997, p. 160.89 Bachelard, 1998, p. 135.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

substância água. Para Vilma Guimarães Rosa, em entrevista concedida a Fábio

Freixeiro, “O sertão sonha, no espírito de seus homens, com a presença do mar. E o

chão sertanejo, lavrado nas veredas pelas águas dos rios, tem pedaços dissolvidos

viajando até o mar. Conhecem-se. Encontram-se”.90

5.4. O desencontro das águas

A água é assim o olhar da terra, seu aparelho de olhar o tempo.

Paul Claudel

O pássaro que se separa de outro, vai voando adeus o tempo todo. Ah, não eu não rio, riachos!

João Guimarães Rosa.

Pouco antes da batalha no “paredão”, Riobaldo convoca alguns homens, o

Alaripe e o Quipes, para proteger Otacília. Resguardada Otacília, Riobaldo lembra de

Diadorim:

E então, por uma vez, eu peguei o pensamento em Diadorim, com certo susto,na liberdade. Constante o que relembrei: Diadorim, no Cererê-Velho, no meioda chuva ele igual como sempre, como antes, no seco do inverno-de-frio. Achuva água se lambia a brilhos, tão tantos riachos abaixo, escorrendo nogibão de couro. Só esses pressentimentos, sozinho eu senti. O sertão seabalava?91

90 Freixeiro, 1971, p. 169.91 Rosa, 1985a, p. 534-535.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Já analisamos outras imagens de água que envolvem Diadorim nas fantasias

riobaldianas. Nesta, agora, a imagem da água da chuva escorre por Diadorim; pode-se

notar que esse lamber, “a chuva se lambia a brilhos”, associado ao “tão tantos riachos

abaixo escorrendo no gibão”, geram juntos em Riobaldo um pressentimento. Pode-se

inferir, além disso, que há um pressentimento de morte, na chuva e no escorrer das

águas, já que “a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal”.92 Num outro

momento, Riobaldo compara Diadorim e ele mesmo a dois riachinhos que se apartam:

Diadorim ele ia para uma banda, eu para outra, diferente; que nem, dosbrejos dos Gerais, sai uma vereda para o nascente e outra para o poente,riachinhos que se apartam de vez, mas correndo, claramente, na sombra deseus buritizais...93

Propugnamos que essas imagens seriam premonitórias dos acontecimentos

que viriam, com Diadorim indo para o “poente”, (a morte), e Riobaldo voltando para o

nascente, (a nascente do rio Urucuia) de onde narraria sua história, que lhe escapava,

durante a travessia, como a água entre os dedos: “e tudo se desmanchava delicado para

diante de mim, pelo meu vencer: ilha em águas claras... Conheci. Enchi minha

história”.94 Riobaldo sente-se como uma ilha cuja água, que tudo desmancha, é seu

entorno, quer dizer, sua história. Para Bachelard, “as imagens de que a água é o pretexto

ou a matéria não têm a constância nem a solidez das imagens fornecidas pela terra, pelos

cristais, pelos metais e pelas gemas”.95

É interessante a expressão que Riobaldo utiliza, nesse momento, para

referir-se à teimosia de Diadorim em querer acompanhá-lo:

Invocava minha teima, a balda de Diadorim ser assim. tu volta, mano. Eusou o chefe! pronunciei. E ele, falando de um bem-querer que tinha ainocência enorme, respondeu assaz: “Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...”96 (grifos nossos)

O substantivo “balda”, além de significar, em estado de dicionário, defeito

ou hábito arraigado, parceiro, liga-se também a “balde”, que serve para carregar

92 Bachelard, 1998, p. 07.93 Rosa, 1985a, p. 509.94 Rosa, 1985a, p. 552.95 Bachelard, 1998, p. 21.96 Rosa, 1985a, p. 529.

Capítulo 5 O deserto antes e depois

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

líquidos, relaciona-se, ainda, ao adjetivo “baldo”, que significa, como já vimos nesta

dissertação, desprovido de algo, carente, falho, barragem, e compõe, junto com o

significante “rio”, o nome Riobaldo. O substantivo “balda” não similariza apenas a

teima de Diadorim à de Riobaldo; ele concentra e amplia a condição de Diadorim como

sendo a de Riobaldo, e mistura, pelo menos na linguagem, as águas, sempre apartadas,

sempre as mesmas e outras; condição do sertão e principalmente de Riobaldo e

Diadorim.

A imagem do apartamento das águas se repete, quando Riobaldo está indo

com o bando para o “Paredão”, e Diadorim quer acompanhá-lo, mas Riobaldo o evita,

dizendo ao narratário: “O senhor diria, dirá: como naquela hora Diadorim e eu

desapartávamos um do outro feito, numa água só, um torrãozinho de sal e um

torrãozinho de açúcar... Fui, com desejos repartidos”.97 Como o “sal” e o “açúcar”

separam-se, mas numa “água só”, a água da existência e da história, onde as coisas estão

e não juntas, enfim, como se apartar de Diadorim se Diadorim é sua “neblina”.

Antes de guerrear, Riobaldo busca alívio nas águas:

como que o avio de descangar as armas de sobre mim e as cartucheiras, e ovagar de tirar a roupa e remolhar os pulsos, e fazer menção para entrar naágua com conforto essas ações tiravam conta do meu estar, com um alíviode sossego. Eu tinha certeza de paz, por horas.98

Riobaldo compara-se sutilmente a um boi,99 ressoador de água, cujas cangas

são armas, sugerindo também a imagem recorrente no romance GSV, a da água que

adentra a água. Ele ainda vai remolhar os pulsos, os punhos, buscando uma espécie de

benção para o trabalho manual de fazer a guerra. “Comandando o trabalho manual, o

punho é, para os bambarras, o símbolo da habilidade humana”.100 Riobaldo, outra vez,

compartilha água e sossego, conforme a citação, quando, depois de uma batalha, ele

procura a “beira-d’água de sossego”. Novamente as águas antecedem um grande

acontecimento na vida de Riobaldo, ou seja, a guerra contra Hermógenes ia começar

97 Rosa, 1985a, p. 529.98 Rosa, 1985a, p. 541.99 Dionísio o Areopagita resume nos seguintes termos a simbólica do boi: a figura do boi marca a força

e a potência, o poder de cavar sulcos intelectuais para receber as fecundas chuvas do céu, ao passo queos chifres simbolizam a força conservadora e invencível. (Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 138.)

100 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 747.

Capítulo 5 O deserto antes e depois

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

quando Riobaldo ainda mergulhava. Riobaldo, cuja certeza do sossego foi quebrada, faz

esse relato “choque que levei foi feito um trovão. Começou a se bradar”.101 O trovão é

uma imagem de água que, neste momento, cremos, além de metaforizar os estampidos e

gritos da guerra que se armara, representa a “Justiça e a cólera. Representa a ameaça

divina de destruição ou o anunciar de uma revelação”.102 Talvez a destruição do sertão,

conforme atesta o próprio Riobaldo em imagem que já apresentamos: “Chapadão.

Morreu o mar, que foi”, e a revelação de Diadorim como sendo mulher, depois de,

tragicamente, morta.

Riobaldo passa mal no meio da batalha, sua “boca se encheu de cuspes,

babei”.103 “A saliva é símbolo da criatividade e da destruição (...) dotada de um poder

mágico ou sobrenatural de duplo efeito: ela une ou dissolve, cura ou corrompe, aplaca

ou ofende”.104 Novamente, defrontamo-nos com um símbolo de destruição ligado às

águas e anunciando o devir no sertão. Em seguida, Riobaldo assiste, de longe, a luta

entre Hermógenes e Diadorim:

... O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah mirei e vi o claroclaramente: aí Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou novão e ressurtiu o alto esguincho de sangue: porfiou para bem matar! Soluçoque não pude, mar que eu queria um socorro de rezar uma palavra que fosse,bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios doarrebatado no momento, foi de poder imaginar a minha Nossa-Senhoraassentada no meio da Igreja... Gole de consolo... Como lá embaixo era o felda morte, sem perdão nenhum. Que engoli vivo. Gemidos de todo ódio. Osurros... Como, de repente, não vi mais Diadorim! No céu, um pano denuvens... Diadorim! Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordiminha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi abismos... De mais longe,agora davam uns tiros, esse tiros vinham das profundas profundezas.Trespassei.Eu estou depois das tempestades.105

Hermógenes finalmente morria, a honra de Joca Ramiro era lavada com

sangue. Riobaldo recorre às águas, soluça, lembra-se do mar, mas este secou “acabou

o mar, que foi” e só lhe resta o orvalho nele mesmo, o prestígio de suas águas, a

lembrança de Nossa-Senhora, a matriz, que ressoa como água, como vimos ao analisar

101 Rosa, 1985a, p. 541.102 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 912.103 Rosa, 1985a, p. 555.104 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 799.105 Rosa, 1985a, p. 556.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

seus lembrares e sustâncias, mas que, para Diadorim, era o “fel da morte sem perdão

nenhum.”106 O fel é uma água amarga, mas ao mesmo tempo é o gerador, “da cólera e da

coragem”.107 Água amarga que Riobaldo engoliu juntamente com o “gole de consolo” da

lembrança de Nossa Senhora. Riobaldo inicia sua vertigem. Diadorim desaparece,

“como de repente não vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens... Diadorim”. No

céu, nas nuvens, portanto, o desígnio terrível de Diadorim, seu vir-a-ser trágico.

Riobaldo sente-se “no corte da dor”, trespassa, quer dizer, desmaia e acorda “depois das

tempestades”.108 Em Tutaméia, o narrador do conto “Desenredo” lança mão do mesmo

adágio “depois da tempestade vem a bonança”; lá, como aqui, o narrador diz “a bonança

nada tem a ver com a tempestade”.109 Ao acordar da vertigem, depois de terminada a

guerra contra Hermógenes, Riobaldo retoma seu depoimento:

Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava recebendo socorro dos outros oJacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã e que molhavam minhasfaces e minha boca, lambi água. Eu despertei todo como no instante em queo trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu um raio...Diadorim tinha morrido mil-vezes-mente para sempre de mim; e eu sabia,e não queria saber, meus olhos marejavam.

Riobaldo “sobrenadou”, ou seja, não se afogou nas águas, não morreu e

recebe ajuda de jagunços cujos nomes estão ligados ao elemento água e ao ar, ou seja,

Jacaré, Pacamã, ou pacamão, “peixe encontrado nos rios como São Francisco, Mogi

Guaçu, Pardo etc.”,110 e pássaros como o Curiol e o Acauã. Eles irão lhe molhar “as

faces” e a “boca”. Em certa maneira, socorrem-lhe a água e o ar. A presença do trovão e

do raio, como “intervenção súbita e brutal do céu”,111 liga-se, inapelavelmente, à

constatação da morte de Diadorim. O significante “marejavam”, do verbo marejar, ou

seja, mar+ejar, aparece como uma pequenina filigrana de água, uma pequena marca

d’água nos olhos do homem rio, o “Rio+baldo”, ampliando a precariedade de sua

condição, a condição de estar ligado ao fluxo, ao devir das águas que, como atesta

Bachelard, é um devir para a morte, porque a “água acaba sempre em sua morte

106 Rosa, 1985a, p. 556.107 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 427.108 Rosa, 1985a, p. 556.109 Rosa, 1976, p. 39.110 Houaiss, 200, p. 2100.111 Chevalier; Gheerbrant, 1999, p. 767.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

horizontal”.112 No entanto, a “água [também] suaviza uma dor”,113 como ocorre no luto

de Riobaldo. Quando Riobaldo finalmente vê o corpo de Diadorim morto, ele exclama:

“Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes... Buriti, ouro da flor...

E subiram as escadas, em cima da mesa foi posto. Diadorim, Diadorim será que a

mereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem como que garças

voam...”114

O corpo de Diadorim é lavado pela mulher de Hermógenes, um “corpo

jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos

dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada”.115 Riobaldo destaca a

secura da boca de Diadorim, agora sem vida, porque estão ausentes dela as águas que

ele sempre desejou. Finalmente Riobaldo fica sabendo que Diadorim era mulher, “Que

Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...”116 e chora inconsolável e

copiosamente. “Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha

boca, mas que já frias rolavam”.117

Bachelard chama a atenção para a acridez e doçura, qualidades dos odores

humanos, para ele a “doçura da água triunfa. (...) A doçura da água impregna a própria

alma. Lê-se no Hermes Trismegiste: “Um excesso de água torna a alma doce, afável,

fácil, sociável e disposta a ceder”118. Finalmente Diadorim é enterrada numa vereda, a

pedido de Riobaldo: “Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde

ninguém ache, nunca se saiba”.119 É enterrada, portanto, sobre as águas, perto dos buritis

“ouro da flor”.120

112 Bachelard, 1998, p. 07.113 Bachelard, 1998, 163.114 Rosa, 1985a, p. 559.115 Rosa, 1985a, p. 559.116 Rosa, 1985a, p. 560.117 Rosa, 1985a, p. 559.118 Bachelard, 1998, p, 163.119 Rosa, 1985a, p. 561.120 O cálice da flor, tal como a taça, é o receptáculo da atividade celeste, entre cujos símbolos se devem

citar a chuva e o orvalho (...) O simbolismo tântrico-taoista da Flor de Ouro é também o atingimentode um estado espiritual: a floração é o resultado de uma alquimia interior, da união da essência (tsing)e do sopro (K’í) da água e do fogo. A flor é idêntica ao centro, à unidade, ao estado primordial; a floridentifica-se ao simbolismo da infância e, de certo modo, ao do estado edênico. (Chevalier;Gheerbrant, 1999, p. 437.)

Capítulo 5 O deserto antes e depois

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Poder-se-ia dizer, então, que o “ouro” simbolizado pelos buritis é aquele

elaborado por intermédio das águas celestiais. É por tudo que as veredas representam na

vida de Riobaldo, principalmente pelo aspecto sagrado o sossego, a paz, a alegria ,

enfim, pelo aspecto hierofânico das águas, que ele vai enterrar Diadorim numa vereda,

sabendo que “na água reside a vida, o vigor e a eternidade”.121

Além de ser, em muitos momentos, a matéria, a água é, também, o relevo,

ou seja, a geografia, e aparece ainda, recorrente, nos inúmeros significantes próprios da

linguagem do barranqueiro/veredeiro, tais como, cachoeiras, nuvens, rios, sapos,

navegando, marinheiro, neblina, cachaça, chuva, vereda, vau, cavalos, barra, beira,

cabeceiras, banda, margem, reis-coado, mar, curtume, orvalho, tempestade, trovão,

claráguas, fontes, poço, dechover, brejo, chuvisco, lontra, chupante, sereno, rego, remei,

barqueiro, buriti, beber, jacaré, cágado, chupando, lambendo, empapapar, abarcava,

escorrido, gole, esbarrancados, escorregador, mel, lagoa, bebível, areia, renuvem,

suante, escaldado, lancei, vomitavam, tinto, pescou, nascentes, vertente, cuia, garapa,

pia, gotas, várzea, bolhas, verter, escorregável, enxuto, vargens, boiava, suasse,

varjeado, tromba, enchendo, umidades, pingos, remar, estiou, molhadas, cuspes,

lágrimas, balsa, canoa, lamentas, enxaguando, melava, remanso, porto, anzol, arroz,

ponte, barrento, aguagem, moles, boiando, sobrenadam, embebido, alambiques,

pripingando, baciadas, escorrido, navegado, lavavam, lavar, nublo, escorregada etc.

Os eventos de superfície, as “qualidades ou acidentes” da narrativa no

romance GSV mudam porque a matéria do romance, como diz Riobaldo, é “vertente”,

“movimentante”, enfim, “um mar de territórios”, para encerrar este capítulo com uma

metáfora que alude a águas em constante mudança e movimento.

121 Eliade, 1998, p. 157. 40.

Capítulo 5 O deserto antes e depois

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Conclusão: mentiras d’água

Ó, meu remanso,Meu remanso do rio!

Ninguém sabiaQue teus peixes eram de ouro,

Ninguém sabiaQue teus pátios eram de prata.

José Maria Arguedas

A certa altura da narrativa de GSV Riobaldo se acha no encalço de Ricardão

e Hermógenes, ao mesmo tempo em que guerreia com os praças, isso ocorre depois do

“seguinte risco: o Imbiruçu, a Serra do Pau-d’Arco, o Mingu, a Lagoa dos Marruás, o

Dominus-Vobiscum, o Cruzeiro-das-Embaúbas, o Detrás-das-duas-Serras. O Brejo-dos-

Mártires, a Cachoeirinha Roxa, o Mocó, a Fazenda-Riacho-Abaixo, a Santa Polônia, a

Lagoa da Jabuticaba. E daí, por uns atalhos: o Córrego Assombrado, o Sassapo, o Poço

d’Anjo, o Barreiro do Muquém”.1 Trata-se, como mostra o traçado acima, de um mapa

quase inteiramente líquido, numa reunião de águas que esbarra ainda pela “Lagoa

Clara”, para desaguar no “Chico o poder dele largas águas, seu destino”, próximo ao

“porto-de-balsa, que distava pouco”,2 onde teriam que fazer perigosa travessia, por

causa da proximidade dos soldados. Nesse momento, Riobaldo exclama referindo-se às

mulheres da vida “O vau do mundo é a alegria!”,3. Trata-se de uma imagem de água, em

que “vau”, é a parte rasa do rio. A expressão refere-se, também, à escassez dos

momentos de alegria no mundo. Mas “vau” também “reúne o simbolismo da água (lugar

de renascimentos) e o das margens opostas (lugar das contradições, das travessias, das

passagens perigosas”.4 Ao “balseiro”, eles chamam de “Hô Passador!”,5 que avista João

Vaqueiro e o Fafafa, os quais vinham com cinco cavalos, e que, por sua vez seriam

levados para o Urucuia, num local chamado “Olho-d’Água-das-Outras”,6 uma espécie

1 Rosa, 1985a, p. 285.2 Rosa, 1985a, p. 285.3 Rosa, 1985a, p. 285.4 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 932.5 “Nas ribeiras do São Francisco e rios do interior dos Gerais o passador transformou-se em

balseiro ou canoeiro profissional “que ganha a vida transportando gente e animais de um lado paraoutro do grande rio”. Arroyo, 1984. p. 175.

6 Rosa, 1985a. p. 285.

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

de nascente, comportando algo de sagrado, das outras águas, da outra margem do São

Francisco. E era onde o bando se encontraria para reunir forças.7 Com Riobaldo ficaram:

Alaripe, Diadorim e Jesualdo, eles caminhavam pela beira do rio e se aproximaram de

um lugar chamado “porto-de-lenha”, onde Diadorim pergunta a Riobaldo se ele tem

receio de atravessar, o que nos lembra o primeiro encontro entre este e Diadorim no rio

de-Janeiro. Riobaldo responde que embarcaria com Diadorim em qualquer parte “até na

prancha de Pirapora! [dizendo em seguida] Vau do mundo é a coragem...”8 Dessa vez,

“vau do mundo” vem acompanhado da palavra “coragem”,9 mas o procedimento é o

mesmo dispensado à alegria, ou seja, na coragem, rasa como rara, o que mais há é o

medo. É quando eles acenam para uma barca cujo “bico da frente era uma cabeça de

touro”,10 o que sugere a Riobaldo bons agouros. O imaginário hídrico, o número de

ressoadores líquidos, nesse momento, impressiona: cavalos, ribeirões, córregos, brejos,

sapos, poços, lagoas, marruás, portos, touros. Tudo isso levando a um só lugar, à

imensidão do rio São Francisco, que por sua vez mistura-se com as águas do oceano,

após ser hidratado pelos “fios de água” que Riobaldo vai citando, para marcar sua

passagem pelo sertão. Ao balseiro, Riobaldo o chama de “Patrão”, tratamento comum

dado ao chefe dos remadores no sertão, este afirma, não sem uma ponta de ironia, em

nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, como sendo amigo de todos segundo a sua

condição, ou seja, a de atravessar a todos aqueles que, indistintamente, chegam ao rio, o

que nos remete ao rio Aqueronte e seu barqueiro Caronte (o barqueiro do inferno). O

barqueiro “Patrão” oferece ao bando um gole de cachaça. Todos aceitam. Quem

responde ao barqueiro, não sem desconfiança, é o jagunço Jesualdo: “Amigo de todos?

Rio-abaixo, na canoa, quem governa é o remador!” Riobaldo faz digressões sobre o rio e

o remador, realçando ora as forças da natureza, ora o pulso do remador: “Bem que rio-

acima é que era, mas com remeiros muito bons esforçados. Aí constante, o velejo, vento

7 o rio, malgrado seus mil rostos, recebe um destino único; sua fonte tem a responsabilidade e omérito de todo o curso. A força vem da fonte. A imaginação quase não leva em conta os afluentes. Elaquer que uma geografia seja a história de um rei. O sonhador que vê passar a água evoca a origemlegendária do rio, sua fonte longínqua. (Bachelard, 1998. p. 158.)

8 Rosa, 1985a. p. 285. Note-se a relação entre essa passagem e a primeira travessia deRiobaldo, nas águas do de-Janeiro para o São Francisco, quando Diadorim diz a Riobaldo, no intuitode apaziguar o seu temor: “Carece de ter coragem...” (1985a. p. 99)

9 A palavra coragem lembra-nos a travessia de Riobaldo e Diadorim, do Rio de-Janeiro para oSão Francisco, naquele instante Diadorim diz a Riobaldo “Carece de ter coragem”.

10 Rosa, 1985a. p. 285.

Conclusão: mentiras d’água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

em pano nem remeiro com varejão não carecia de fazer talento”. Riobaldo desconfia

dos barqueiros, apesar da hospitalidade. Quando estes perguntam, pedindo notícias do

sertão, Riobaldo responde por todos no enunciado: “Viemos da Serra Rompe-Dia... –

respondemos. Mentiras d’água. Tanto fazia dizer que tínhamos vindo da de São

Felipe”.11 Claro que Riobaldo está tergiversando; no entanto, segundo ele mesmo, “o

sertão nunca dá notícias”,12 e essas mentiras ditas sobre as águas do rio transformam-se,

pelo viés desta dissertação, em síntese metonímica da travessia riobaldiana. No que diz

respeito ao enunciado, ele é também, um contar, um narrar que, como as águas

heraclitianas, são sempre outras. O que nos lembra o aforismo de Bachelard, “as águas

não constroem mentiras verdadeiras.”13

Pensamos, também, que as “notícias” estariam mais ligadas a um

acontecimento verificável historicamente. Noticiar no sertão é quase impossível, o

sertão é móvel, sempre outro, como as águas do rio. Para Riobaldo, mesmo a linguagem

jornalística, que tradicionalmente se utiliza em oposição à linguagem literária, perde

qualquer vinculação com a verdade.

As “mentiras d’águas” são mentiras literárias, como as que ocorrem no

conto rosiano “A hora e a vez de Augusto Matraga”: “sem mentira nenhuma, porque

esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido não senhor”.14 No

entanto, dentro da lógica paradoxal do romance GSV, em que “tudo é e não é”, as águas

são, como diz Riobaldo, ao referir-se aos rios que correm para o norte, o caminho para

encontrar a verdade, como o Urucuia que eles adentram, fazendo com que Riobaldo

comente: “Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em

caminho para se encontrar com o sol”.15 São os rios, caminhos que levam ao encontro da

verdade ou ao ouro alquímico que o sol representa metaforicamente.

Após a morte de Diadorim Riobaldo refugia-se no alto Urucuia em busca do

conhecimento místico que o libertaria de suas incursões ao inferno, metaforizadas pelo

pacto nas Veredas-Mortas. Ao mesmo tempo, as imagens das águas que rumam para o

11 Rosa, 1985a, p. 286.12 Rosa, 1985a, p. 286.13 Bachelard, 1998, p. 21.14 Rosa, 1971, p. 343.15 Rosa, 1985a, p. 286.

Conclusão: mentiras d’água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

norte revelam, no romance GSV e na simbologia que envolve esse rumar para o norte,

uma ambigüidade: “o mal está no norte, e Satã, enquanto princípio de sedução, princípio

do mal, vem do norte. O norte é o lugar do infortúnio”.16 Riobaldo passa pelo norte,

onde faz um pacto como Lúcifer.

Mas o norte lembra também o personagem Titão Passos que, segundo

Riobaldo, era o homem que “achava o Norte natura”.17 Pensamos que o norte, para Titão

Passos, tivesse um significado mais local, norte como sertão, como o mundo dos

jagunços, “Norte que leva os seus habitantes à necessidade de fazer a lei”.18

Por intermédio da arte, do fingimento veiculado pelas reminiscências,

traduzidas em “mentiras d’água”, Riobaldo, o homem-rio, que se diz o tempo todo um

rio raso, reles, sem a menor importância, expõe sua travessia em caudalosa narrativa ao

narratário silente. “Mentiras d’águas” são, portanto, artifícios da narrativa riobaldiana,

registrados em prosa poética, na qual segundo Kathrin Rosenfield as “figuras autênticas

do sertão sofrem imperceptíveis torções, que terminam por aproximá-las de outros

contextos e culturas, de literaturas e gêneros diversos”.19

A água é a “Metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra”. E as

“mentiras d’águas” sobressaem-se, não como mentira deslavada, mas como

metalinguagem riobaldiana, como arte literária. Há ainda um outro momento para

corroborar essa hipótese, momento em que Riobaldo compara sua narrativa à água e

toma o narrar como um falseamento da realidade:

Para que referir tudo no narrar, por menor e menor? Aquele encontro nossose deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal elivro é que se lê. Mesmo o que estou contanto, depois é que eu pude reunirrelembrando e verdadeiramente entendido porque, quanta coisa assim seata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Doque o que: o real roda e põe adiante: “Essas são horas da gente. As outrasdo tempo, de todo tempo, são as horas de todos” me explicou compadremeu Quelemém. Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água,dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece só rara vez se conseguesubir com a cabeça fora dela, feito milagre: peixinho pediu.20

16 Chavalier; Gheerbrant, 1999, p. 642.17 Rosa, 1985a, p. 139.18 Candido, 1957. p. 10.19 Rosenfield, 2001, p. 90.20 Rosa, 1985a, p. 129-130.

Conclusão: mentiras d’água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

Riobaldo vive como uma água dentro da água, daí ele não conseguir

discernir o que “é” e o que não “é” água, o que é e o que não é sonho, — “Os gerais

desentende de tempo. Sonhação.”21 O que é e o que não é verdadeiro, porque vive “a

fora a dentro” das águas, como do sertão. Água, sonho e memória entrecruzam-se no

sertão que “desentende de tempo”. Bachelard acredita que “o sonho dá à água o sentido

da mais longínqua pátria, de uma pátria celeste”.22

Esperamos que esta dissertação possa contribuir no sentido de abrir mais

uma clave de leitura do GSV, de Guimarães Rosa, a partir da análise dessas inúmeras

imagens de águas, cuja acridez e doçura correm permeando toda a travessia de

Riobaldo. Sabemos que muitas imagens de água presentes no romance não foram

contempladas, no entanto, fica-nos a sensação do objetivo cumprido, demonstrando que

a travessia de Riobaldo é mediada, quase sempre, pela matéria água, a qual procuramos

descortinar, entre o local e o universal, por intermédio de uma leitura imanente, e com

ajuda de consistente bibliografia do campo literário e de outros campos dos saberes. As

vertentes geográficas e metafísicas, veladas na rede hídrica dinâmica do romance GSV,

foram dinamizadas pela análise dos ressoadores de água. Seus desdobramentos

simbólicos, como esperamos ter sido evidenciado nas imagens do cavalo, da lua, do

cágado, do jacaré, do caramujo etc., corroboraram a hipótese sobre a água como matéria

importante na constituição e compreensão do romance GSV.

Riobaldo nasce como um rio, de uma fonte, um olho d’água incrustado entre

montanhas e, no decorrer da narrativa, solidariza-se com todas as águas para compor o

rio de sua existência. Sua individualidade é a história de um “mundo misturado” em que

as águas contribuem para dar suporte e aporte à sua vida. No entanto, Riobaldo

compreende a precariedade desse “suporte/aporte” em sua vida, tecendo elucubrações

em torno de um dos principais temas que norteiam o romance GSV, quando busca

compreender sua travessia:

Ah!, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Euatravesso as coisas e no meio da travessia não vejo! só estava eraentretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: agente quer passar um rio a nado, e passa; mais vai dar na outra banda é numponto muito mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Vivernão é muito perigoso?

21 Rosa, 1985a, p. 103.22 Bachelard, 1998, p. 51.

Conclusão: mentiras d’água

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IMAGENS DA ÁGUA NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA

O aforismo de Heráclito parece fundamentar a experiência de Riobaldo, as

águas da existência independem, muitas vezes, do querer, daquilo que se demarcou

como itinerário, porque nenhum lugar se sedimenta, os lugares são sempre outros,

sempre diferentes a cada milésimo de segundo; a vida, no romance GSV, como tudo

mais, é “matéria vertente”, “movimentante”. Parece que o dilema heraclitiano,

apropriado por Riobaldo para expor suas memórias, vale para qualquer tentativa de

apreensão do mundo, seja uma apreensão de fato, no instante em que as coisas se dão,

seja por intermédio da memória, seja por intermédio de uma apreensão teórico-textual,

como a que intentamos fazer. Como Riobaldo, concluímos que apenas “atravessamos as

coisas”. Atravessamos as águas do herói Riobaldo, as águas no plano geográfico e

metafísico. E, para fazê-lo, nesta nossa travessia, buscamos dar consistência àquela que,

por si mesma, se apresenta sempre fugidia, a matéria água.

Não é só o sal que diferencia rio e mar: mas o irremediável.

João Guimarães Rosa.

Conclusão: mentiras d’água

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