Grande Sertão: veredas (trechos)

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ZÉ BEBELO E OS ANSEIOS DA MODERNIDADE Na medida em que parte da elite brasileira procura se inserir no sistema capitalista mundial, primeiro no regime imperial e depois no republicano, cresce a necessidade de adequar o país às ideias liberais provindas da Europa. É daí que surgem todas as nossas angústias: entre a utopia a ser realizada e a permanência de uma economia baseada em grandes unidades agrícolas em que se perpetua o poder de mando dos “senhores rurais” existe um grande fosso. Para que o regime político consiga se mostrar como republicano, essa diferença precisa ser tanto negada como deslocada no espaço social. Para que o “senhor rural” possa permanecer com a sua legitimidade, no novo regime, é preciso que o desajuste entre o progresso desejado e as práticas sociais vigentes tenha como alvo principal os grupos marginalizados. Apesar dos conflitos simbólicos entre a elite capitalista e a tradicional estarem no cerne do problema, ele tende a ser transferido para os subordinados, que, a mando dos coronéis, praticam de forma direta a violência. São os jagunços e não os seus chefes os principais responsáveis pela desordem de um país que se quer civilizado. A existência de homens armados que, sem um pouso certo, podem ser arregimentados pela elite tradicional, essa é a causa de todos os desajustes do país. A inserção do Brasil na modernidade passa a ser significada apenas como o desejo de uma elite que tem que

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Trechos do romance Grande-Sertão é que Zé

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ZÉ BEBELO E OS ANSEIOS DA MODERNIDADE

Na medida em que parte da elite brasileira procura se inserir no sistema

capitalista mundial, primeiro no regime imperial e depois no republicano, cresce a

necessidade de adequar o país às ideias liberais provindas da Europa. É daí que surgem

todas as nossas angústias: entre a utopia a ser realizada e a permanência de uma

economia baseada em grandes unidades agrícolas em que se perpetua o poder de mando

dos “senhores rurais” existe um grande fosso.

Para que o regime político consiga se mostrar como republicano, essa diferença

precisa ser tanto negada como deslocada no espaço social. Para que o “senhor rural”

possa permanecer com a sua legitimidade, no novo regime, é preciso que o desajuste

entre o progresso desejado e as práticas sociais vigentes tenha como alvo principal os

grupos marginalizados.

Apesar dos conflitos simbólicos entre a elite capitalista e a tradicional estarem

no cerne do problema, ele tende a ser transferido para os subordinados, que, a mando

dos coronéis, praticam de forma direta a violência. São os jagunços e não os seus chefes

os principais responsáveis pela desordem de um país que se quer civilizado. A

existência de homens armados que, sem um pouso certo, podem ser arregimentados pela

elite tradicional, essa é a causa de todos os desajustes do país.

A inserção do Brasil na modernidade passa a ser significada apenas como o

desejo de uma elite que tem que lidar com formas de agir bárbaras e violentas de um

povo inculto. Isso só poderia acontecer na medida em que as mudanças não eram

analisadas em profundidade, levando em conta aspectos econômicos, sócio-culturais e

simbólicos que afetaria drasticamente os modos de vida de todos os agrupamentos

sociais. Não se percebia, portanto, que o problema desse desejo de ordenação é que ele

não consegue progredir sem causar mudanças profundas no espaço social. Quanto mais

se deseja criar uma equivalência entre o ideal republicano e a sociedade que deve

reproduzi-lo, mais essa parece recuar e insurgisse. É essa ambivalência da ordem que

Bauman procura indicar:

O caos, "o outro da ordem", é pura negatividade. É a negação de tudo o que a ordem se empenha em ser. É contra essa negatividade que a positividade da ordem se constitui. Mas a negatividade do caos é um produto da autoconstituição da ordem, seu efeito colateral, seu resíduo e, no entanto, condição sine qua non da sua possibilidade (reflexa).

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Sem a negatividade do caos, não há positividade da ordem; sem o caos, não há ordem. (BAUMAN, 1999, p. 15)

Sem ter mecanismos capazes de difundir os seus anseios aos dominados, e sem

querer compreender os simbolismos dos mesmos, resta ao grupo hegemônico a coerção

através da força. As classes subalternas resistem com a única compreensão do fenômeno

de que são capazes. Elas acusam a modernidade e as mudanças advindas dela de todo o

mal existente no país. A explicação, impossível de ser compreendida por grupos

dirigentes que têm na Europa o único referencial, faz todo sentido quando se leva em

conta as formas de perceber o mundo dos dominados. Havia sido com a chegada do

regime republicano que os sistemas de representação de mundo tradicionais se

mostraram inadequados. Essa desordem, vista como caótica e incompreensível pela

população, teria gerado a sensação de que o mal proveria de desejos obscuros presentes

nas classes dirigentes que usariam a República como forma de perpetuar a injustiça

social.

É nesse contexto que pretendemos situar o personagem do romance que, no

plano ficcional, representa os anseios de modernidade. Zé Bebelo, como coronel

associado às forças do governo, pretendia dizimar completamente os jagunços. A maior

difusão desses homens armados não correspondia nem às representações de mundo

tradicionais, nem às ambições da modernidade. O jagunço era o mal a ser extirpado:

Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste nosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo destruírem, do civilizado e legal! (ROSA, 1994, p. 179)

Zé Bebelo depois complementava reprovando todas as atitudes contra a ordem: a

invasão de cidades, os saques, o desrespeito ao juiz de direito e ao promotor, os ataques

à religião oficial, a ofensa aos costumes e a violência contra as mulheres. Todos os

males tinham um único culpado: os jagunços. Dizimados estes, tudo se ordenaria.

Comentando o discurso do coronel, diz Riobaldo:

‘Só eu que sou capaz de fazer e acontecer’. (...) Dizendo que depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo apobreza, estreando mil escolas. Começava por aí, durava um tempo, crescendo voz na fraseação, o

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muito instruído no jornal. Ia me enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa. (ROSA, 1994, p. 179)

O narrador percebia a superficialidade do coronel que só repetia o discurso

redundante dos jornais. A modernidade de Zé Bebelo não passava de uma tentativa

acrítica de imitar o desenvolvimento econômico e tecnológico europeu, sem que seus

elementos reflexivos tivessem sido introjetados. Daí a incapacidade de perceber as

consequências que formas de agir dissonantes com a tradição poderiam acarretar. A

forma como, apressadamente, o personagem procura tudo aprender e decorar, pode ser

vista como uma alegoria de uma sociedade que procurou se modernizar sem que tivesse

tido tempo suficiente para assimilar as ideias liberais e a valorização da autonomia

individual nela contidas:

O que ele queria era botar na cabeça, duma vez, o que os livros dão e não. Ele era a inteligência! Vorava. Corrido, passava de lição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim. (ROSA, 1994, p. 176).

O desejo voraz de suprir em pouco tempo uma falta educacional para inserir-se

no mundo desenvolvido e contribuir dessa forma para o destino da nação diz muito

sobre o tipo de desenvolvimento que tivemos no Brasil no século XIX e inicio do século

XX. Não por acaso, as ideias positivas foram as que durante mais tempos ganharam

adeptos entre os membros da nossa elite. A objetividade que elas preconizavam melhor

condizia com o nosso desejo apressado de harmonizar o mundo caótico em que

vivíamos.

Quando vencia uma batalha contra os jagunços, Zé Bebelo subia numa tribuna e

dava vivas à república, à lei, à nação, e fazia muitas promessas, demonstrando um ávido

desejo de seguir carreira de deputado. O discurso do coronel da situação, segundo

Roncari, seguia as seguintes orientações:

No âmbito político, propunha o combate à ação violenta e arbitrária do mandonismo local e a afirmação dos poderes do Estado; no econômico-administrativo, defendia a extensa da ação governamental para o interior, com a devida promoção do progresso material; e, no ideológico-cultural, pregava a afirmação de uma identidade nacional, de modo a superpô-la às solidariedades locais (RONCARI, 2004, p. 282).

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Tudo aquilo que não condizia com os valores positivos defendidos por ele, na

sua tentativa de associar progresso material, identidade nacional, e a promoção dos

valores democráticos, se convertia em negatividade, em natureza que precisava ser

controlada, e cuja explicação ou compreensão era de antemão negada. Povo não podia

ser aquela comunidade de homens violentos, com ideias dispersas e visões milenaristas

de mundo, deixando-se apadrinhar por algum coronel redentor, e lutando contra as

injustiças do governo. O povo teria que se submeter a alguma autoridade maior,

legitimada pela Estado, que cumpriria o papel de instrui-lo e pacificá-lo.

Como não era possível descrever em seus próprios termos um mundo que tinha

sido ordenado de modo divino, um mundo que se simbolizava como se ainda desse

continuidade ao feudalismo europeu, o melhor era ver nele uma mescla de descuido e

irracionalidade, de onde se bifurcaria, mais tarde, o caos e a necessidade de ordená-lo. O

mundo que antes se fechava numa tradição cuja mitificação correspondia ao poderio dos

senhores rurais, agora, para se sustentar, precisava de dicotomias que afirmassem o

progresso como uma necessidade inadiável. Diz Bauman:

A dicotomia é um exercício de poder e ao mesmo tempo sua dissimulação. (...) No entanto, sua própria existência é testemunho da presença de um poder diferenciador. (...) Assim, a anormalidade é o outro da norma, o desvio é o outro do cumprimento da lei, a doença é o outro da saúde, a barbárie o outro da civilização, (...) o inimigo o outro do amigo, "eles" o outro de "nós", a insanidade o outro da razão, o público leigo o outro do especialista. Um lado depende do outro, mas a dependência não é simétrica. O segundo lado depende do primeiro para o seu planejado e forçado isolamento. O primeiro depende do segundo para sua auto-afirmação. (BAUMAN, 1999, p. 22).

Na sua obsessiva marcha adiante, a modernidade vê o passado como algo que

tem que ser superado e faz do futuro um contínuo estado de imperfeição, de

incompletude, de progresso ainda a ser alcançado. Esse é a postura de Zé Bebelo. Para

ele, o que deveria ser levado em conta era apenas o desejo de progresso e

uniformização:

Considerava o progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios – e falava, horas, horas. – “Vim de vez!” – disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão, nunca (ROSA, 1994, p.100).

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Zé Bebelo desejava separar, purificar, e nisso ele produzia um refugo, algo de

intolerável, de impensável, grupos de indivíduos que não se deixavam assimilar, e que,

por isso, se situavam do lado de fora da ordem almejada. Jagunço era homem sem

pouso certo, podendo prestar serviços armados para mais de um chefe, desestabilizando

assim o jogo político.

Na ânsia voraz de dominar o sertão, porém, Zé Bebelo é derrotado. No lugar de

impor a sua voz vitoriosa em nome do progresso e do nacionalismo, ele é obrigado a

ceder à fala de tradicionais e sertanejos chefes de jagunços. Invertia-se a ordem: pela

primeira vez era a modernidade, na pele de um dos seus representantes, quem deveria se

deixar julgar pela tradição. Começa o tribunal, e as divergências, entre tradição e

modernidade, adquirem voz no sertão:

Joca Ramiro não reveio logo. Mexeu com as sobrancelhas. Só, daí:– “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os

sertanejos de seu costume velho de lei...”– “Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu

enquanto foi novo...”– “O senhor não é do sertão. Não é da terra...”– “Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é a minhoca – que galinha

come e cata: esgaravata!” (1994, p.364).

As primeiras falas separam nitidamente tradição e modernidade, uma sendo a

negação da outra, em dois movimentos opostos de conservação e de mudança. Surgem

outras falas. O primeiro acusador de Zé Bebelo é o chefe de jagunços Hermógenes:

Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar este cujo, feito porco. O sangrante... (...) Cachorro que é, bom para a forca. O tanto que ninguém não provocou, não era inimigo nosso, não se buliu com ele. Assaz que veio, por si, para matar, para arrasar, com sobejidão de cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a pago do Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos... Merece ter vida não. Acuso é isto, acusação de morte. O diacho, cão!

A atitude do Hermógenes é vingativa e condizente com a imagem negativa que a

modernidade faz da tradição. Em nada ela parece alterar a divisão que coloca a

racionalidade moderna como polo positivo e os costumes bárbaros como polo negativo.

Zé Bebelo pode uma vez mais confirmar seus posicionamentos: “Porque acusação tem

de ser em sensatas palavras – não é com afrontas de ofensa de insulto..” (ROSA, 1994,

p. 369). É a vez do chefe Sô Candelário julgar Zé Bebelo:

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Crime?... Crime não vejo. É o que acho, por mim é o que declaro com a opinião dos outros não me assopro. Que crime? Veio guerrear, como nós também. Perdeu, pronto! A gente não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço – aos peitos, papos. Isso é crime? Perdeu, rachou feito umbuzeiro que boi comeu por metade... Mas brigou valente, mereceu... Crime, que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado... não cumprir a palavra...

Em nome da tradição, Sô Calendário absorve Zé Bebelo vendo nele um igual. A

sua atitude corresponde a de uma cultura patriarcal que pune com a morte os crimes de

furto e de traição, ao mesmo tempo em que dignifica os assassinatos cometidos em

nome da honra. O pensamento tradicional, mesmo nos momentos de guerra, mostrava-

se capaz de não subordinar os meios aos fins e de colocar os costumes acima das

exigências de maior racionalidade. A essa atitude complacente e mais próxima do

humanismo cristão, a modernidade, no seu viés positivista do século XIX, mostrava

toda a sua faceta violenta e perversa de negação da alteridade e afirmação da ordem.

É passada a palavra para uma outra voz acusatória. É a do chefe Ricardão:

Compadre Joca Ramiro, o senhor é o chefe. O que a gente viu, o senhor vê, o que a gente sabe o senhor sabe. Nem carecia que cada um desse opinião, mas o senhor quer ceder alar de prezar a palavra de todos, e a gente recebe essa boa prova... Ao que agradecemos, como devido. Agora, eu sirvo a razão de meu compadre Hermógenes: que este homem Zé Bebelo veio caçar a gente, no Norte sertão, como mandadeiro de políticos e do Governo, se diz até que a soldo... A que perdeu, perdeu, mas deu muita lida, prejuízos. Sérios perigos, em que estivemos; o senhor sabe bem, compadre Chefe. Dou a conta dos companheiros nossos que ele matou, que eles mataram. Isso se pode repor? E os que ficaram inutilizados feridos, tantos e tantos... Sangue e os sofrimentos desses clamam. Agora, que vencemos, chegou a hora dessa vingança de desforra. A ver, fosse ele que vencesse, e nós não, onde era que uma hora destas a gente estava? Tristes mortos, todos, ou presos, mandados em ferros para o quartel da Diamantina, para muitas cadeias, para a capital do Estado. Nós todos, até o senhor mesmo, sei lá. Encareço, chefe. A gente não tem cadeia, tem outro despacho não, que dar a este; só um: é a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada. Assim que veio, não sabia que o fim mais fácil é esse? Com os outros, não se fez? Lei de jagunço é o momento, o menos luxos (ROSA, 1994, p. 376).

O fazendeiro Ricardão representaria, no seio da tradição, os valores da

modernidade, revelando que os dois opostos em luta, no sertão, eram bem mais

parecidos do que se imaginava. Aliando-se a perversidade do Hermógenes, ele procura

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demonstrar que, na guerra, a vingança é a forma de agir mais prudente e mais

condizente com os prejuízos causados pelo grupo adversário. A racionalidade de

Ricardão é instrumental. Diante da ausência de cadeia, e do perigo representado pelo

outro, o mais lógico seria dizimá-lo. O fazendeiro demonstra fazer uso da tradição numa

lógica de conveniências, filtrando apenas aquilo que é do interesse do grupo. É isso que

fica patente quando ele relembra a Joca Ramiro as alianças feitas com outros coronéis

oposicionistas:

Relembro também que a responsabilidade nossa está valendo: respeitante ao seo Sul de Oliveira, doutor Mirabô de Melo, o velho Nico Estácio, compadre Nhô Lajes e coronel Caetano Cordeiro... Esses estão aguentando acossamento do Governo, tiveram de sair de suas terras e fazendas, no que produziram uma grande quebra, vai tudo na mesma desordem... A pois, em nome deles, mesmo, eu sou deste parecer. A condena seja: sem tardança! Zé Bebelo, mesmo zureta, sem responsabilidade nenhuma, verte pemba, perigoso. A condena que vale, legal, é um tiro de arma. Aqui, chefe – eu voto!...

No julgamento do sertão, é a vez de Tião Passos falar. Homem simples e de

pensamento reto, amigo fiel de Joca Ramiro, ele é incapaz de conceber que se possa

sequer discordar da nobreza do chefe. É difícil precisar sua posição social no romance.

Mas, pelo que se verifica nas entrelinhas, parece não ter fazenda a partir da qual se

proteger, pois, quando perseguido pela polícia, foge para a Bahia e se coloca a mando

de outras chefias. Diz Titão Passos:

O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem crime constável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio – achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora, ele escopou e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se, na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrego de tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah, eu, não. Matar, não. Suas licenças...

Para Titão Passos, o assassinato só se justifica no momento da guerra, quando os

ânimos estão exaltados e todos lutam em condições de igualdade. Passado esse

momento, ela perderia o seu sentido inicial. Mais importante do que a vingança era a

demonstração de força, de coragem, e a tentativa de legitimação da ação através dos

costumes. Não por acaso, segundo Mello (2011, p. 113), embora muitos cangaceiros

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justificassem suas condutas a partir da necessidade de vingar os parentes mortos, a

concretização da vingança, passado o momento inicial de luta, muitas vezes não se

cumpria.

Verifica-se que, na fala de Titão Passos, existe uma tentativa de criar uma clara

separação entre os critérios de justiça do governo e suas entidades jurídicas, e o modo

de agir dos sertanejos. O modo de ser da população rural, mesmo afirmando-se como

violento e reproduzindo assim os preconceitos que a classe dominante tinha deles, busca

instituir-se como o outro da ordem vigente. Trata-se, quando se leva em conta a

mentalidade popular materializada no romance, não de um governo, mas de um

“sobregoverno”, como diria Medeiro Vaz. Joca Ramiro, como líder supremo do grupo, é

uma figura incomum: ele é aquele que chega sempre montado no seu cavalo branco,

como se pairasse numa dimensão acima das contingências terrenas. Por isso, ele é

aquele que se reveste de cordialidade, concedendo aos seus homens a palavra, apenas

para melhor decidir qual a melhor sentença para o réu. A fala do chefe é paternal: “Que

tenha algum dos meus filhos com necessidade de palavra para defesa ou acusação, que

pode depor!” (ROSA, 1994, p. 380).

O último a falar é Riobaldo e toda a sua argumentação se dá na defesa de

costumes que não se submetem a um fim determinado. Na guerra contínua dos

jagunços, os valores como valentia e honra seriam mais importantes do que a destruição

do adversário. Toda a lógica da guerra jagunça é a de tirar os homens da condição

miserável em que eles estão e gerar a esperança de um governo que se situa para além

das injustiças terrenas. Por isso, mas importante do que a destruição do inimigo é a fama

que poderá advir se o grupo conseguir demonstrar a capacidade de unir honra e justiça,

numa clara transgressão dos poderes vigentes que se deseja combater.

A cultura popular que Riobaldo representa, ao mesmo tempo que reproduz a

hierarquia vigente ao escolher como chefe um membro da elite agrária, contribui para a

sua transgressão ao tentar resignificar a violência dos que são despossuídos em nome de

um governo que se contrapunha as injustiças. Ela, como indica Chauí, é ao mesmo

tempo conformista e resistente. O que as formas de violência populares buscam é

sempre uma tentativa de autorizar uma justiça futura diante de uma injustiça real que se

pretende desautorizar. Nesse anseio, tanto se reproduz as hierarquias dominantes, como

se faz uma quebra com elas. É por isso que os dominados, ao escolherem um

representante de fora, buscam sempre aquele que, não sendo identificado com a

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onipotência do governo que se quer combater, possa representar os seus anseios de um

mundo outro. Diz Marilena Chauí:

Quando a força do adversário é percebida como onipotente, ainda que saiba de onde ela provém (...), não só é preciso que os fracos estejam “todos unidos”, mas também que seu anseio de mudança não seja causa de causa de carnificina e destruição. O que se busca é a Justiça e não a morte. (CHAUI, 1985, p.81).

Enquanto a guerra moderna busca muitas vezes a morte do adversário em nome

de uma racionalidade; a popular é aquela que se faz em nome de um outro reino, o qual

encontra-se tanto presente, na figura de um líder e de uma lógica comunitária, como

ausente, num futuro que transcende o plano terreno.

Depois das palavras de Riobaldo, é que Joca Ramiro, encarnando todas as

atribuições de um líder que está para além da história, resolve julgar Zé Bebelo. O seu

papel é o de afastá-lo do sertão, para longe do universo Jagunço, devendo este cumprir o

exílio no Estado de Goiás e só retornar depois da morte do chefe.

Zé Bebelo, aquele que queria tomar conta dos sertões, e representava os

interesses do governo, é obrigado a recuar. Num ardil, ele procura representar-se como

um membro da tradição rural, encarnando seus valores de honra e valentia, mas não

esconde seus anseios de modificar o sertão, trazendo para este o progresso. Por conta da

derrota, porém, Zé Bebelo é obrigado a constatar que o sertão simbólico da jagunçagem

só se modifica e desaparece a partir de dentro, num diálogo com sua tradição, e não pela

imposição de ordens do governo. Diz ele: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai

do sertão é tomando conta dele a dentro...” (ROSA, 1994, p. 392).

A modernidade, encarnada por Zé Bebelo, iria assumir em breve um viés mais

encoberto e reflexivo: a luta contra a jagunçagem já não poderia existir mais apenas no

plano de uma violência armada e direta. Ela teria que se utilizar de ardis, manipulações,

formas capazes de controlar o sertão a partir de dentro.

Para ilustrar essa nova faceta da modernidade, a história do coronel Horácio de

Matos, citado inúmeras vezes no romance de Guimarães Rosa, é um excelente exemplo.

Segundo Facó (1965, p. 61) e Santiago (2013, p. 171), Horácio de Matos era senhor

absoluto da região da Chapada Diamantina, tendo conseguido, com a ajuda de centenas

de jagunços, o domínio político de 12 municípios da região, desde as Lavras

Diamantinas até o São Francisco. Contraditoriamente, depois da Revolução de 1930,

Horácio de Matos alimenta o desejo de desarmar o sertão e passa a atuar como auxiliar

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da comissão de desarmamento do governo Vargas, acreditando que com isso ganharia

algum tipo de promoção. Depois de desarmado o sertão, Vargas manda prender todos os

coronéis que poderiam apresentar algum perigo para o seu governo e o coronel da

Chapada é detido, sendo assassinado logo depois de sair da cadeia. A história de

Horácio de Matos e de muitos coronéis sertanejos oposicionistas fazem parte daqueles

relatos que, reveladores do nosso passado, não se adequam bem às verdades de uma

História Instituída.

Em Ricardão os costumes são seguidos segundo a lógica das conveniências.

Também a tradição é evocada por Ricardão, numa fidelidade mais às alianças

políticas feitas do que aos costumes.

Relembro também que a responsabilidade nossa está valendo: respeitante ao seo Sul de Oliveira, doutor Mirabô de Melo, o velho Nico Estácio, compadre Nhô Lajes e coronel Caetano Cordeiro... Esses estão aguentando acossamento do Governo, tiveram de sair de suas terras e fazendas, no que produziram uma grande quebra, vai tudo na mesma desordem... A pois, em nome deles, mesmo, eu sou deste parecer. A condena seja: sem tardança! Zé Bebelo, mesmo zureta, sem responsabilidade nenhuma, verte pemba, perigoso. A condena que vale, legal, é um tiro de arma. Aqui, chefe – eu voto!...

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Surge uma outra voz, a de

Recuar significa aqui ter que escutar, pela primeira vez, como se o sertão tivesse se

tornado um imenso tribunal, a voz d

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chefes jagunços. É apenas nesse recuar que pela primeira vez muitos dos grupos

marginalizados conseguem

Ou, mesmo depois de terminado o massacre, a obra de Euclides da Cunha revelaria para

os dominantes uma vitória nada alentadora.

dep num primeiro momento.

, depois de terminado o massacre, revelaram para os dominantes uma vitória nada

alentadora. Zé Bebelo é derrotado, recua, e no tribunal fictício que se arma pel

que dele fazia uso.

O que fazer com esse refugo, quando se sabe que ele mantém

que não se deixou planificar.

tendo que escolher entre assimilar ou destruir as ervas daninhas que não se harmonizam

com o desejo de um jardim planificado.

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que poluem o desejo de planificação do jardim. Na sua obsessiva marcha adiante, ela

vê o passado como algo que tem que ser superado e faz do futuro um contínuo estado de

imperfeição, de incompletude, de progresso ainda a ser alcançado.

um estado de imperfeição contínua.

que é sempre protelado para mais adiante.

em busca de um futuro que é sempre se mostra incompleto e insuficiente.

e aqueles que não se deixam assimilar são

O encargo de ter de resolver a ambivalência recai, em última análise,sobre a pessoa lançada na condição ambivalente. Mesmo que ofenômeno da estranheza seja socialmente estruturado, assumir o statusde estranho, com toda a sua conseqüente ambigüidade, com toda asua incômoda sobredefinição e subdefinição, é algo que carregaatributos os quais no fim são construídos, sustentados e utilizadoscom a ativa participação de seus portadores — no processo físico daautoconstituição.

Ser um estranho significa, primeiro e antes de tudo, que nada énatural; nada é dado por direito, nada vem de graça. A união primitivado nativo entre o eu e o mundo foi dividida. Cada lado da união foicolocado sob o foco da atenção — como um problema e uma tarefa.Tanto o eu como o mundo são claramente visíveis. Ambos requeremconstante exame e precisam urgentemente ser "operados", "manejados",administrados. Sob todos esses aspectos, a situação do estranhodifere drasticamente do modo de vida nativo, com conseqüências delongo alcance.

A situação existencial do estranho é radicalmente diferente. A eleé negado o luxo da presunção e da autocomplacência. A sua existênciaé opaca, não transparente. O estranho é o seu próprio problema. Suaidentidade foi deslegitimada; seu-poder de determinação, de "afinação",foi declarado criminoso na pior das hipóteses e, na melhor,aviltante. Aí não terminam, porém, os problemas do estranho. Apeculiaridade da situação do estranho em relação aos nativos não selimita ao fato de não estar "afinado" da maneira certa e à conseqüenteausência de conhecimento e habilidades relevantes. Não pode sersimplesmente removida pelo processo de aprendizado e auto-instrução.Tal processo está fadado ao autoderrotismo. O mesmo conhecimentoque serve de forma tão adequada às funções de vida dos nativos

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podem muito bem revelar-se inútil para os estranhos mesmo que (eparticularmente se) conscientemente absorvidos e assimilados. (p. 45)

a bifurcarção de onde surgia o caos e a necessidade de ordená-lo.

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e se instruir rapidamente para inserir-se no mundo e tentar também tentar nele

enquadrar a nação,

O caos, "o outro da ordem", é pura negatividade. É a negação de tudo o que a ordem se empenha em ser. É contra essa negatividade que a positividade da ordem se constitui. Mas a negatividade do caos é um produto da autoconstituição da ordem, seu efeito colateral, seu resíduo e, no entanto, condição sine qua non da sua possibilidade (reflexa). Sem a negatividade do caos, não há positividade da ordem; sem o caos, não há ordem. (BAUMAN, p. 15)

A existência pura, livre de intervenção, a existência não ordenada, ou a margem da existência ordenada, torna-se agora natureza: algo singularmente inadequado para a vida humana, algo

Page 16: Grande Sertão: veredas (trechos)

em que não se deve confiar e que não deve ser deixado por sua própria conta — algo a ser dominado, subordinado, remodelado de forma a se reajustar às necessidades humanas. Algo a ser reprimido, refreado e contido, a resgatar do estado informe e a dar forma através do esforço e à força. (p. 15)

Podemos dizer que a existência é moderna na medida em que é produzida e sustentada pelo projeto, manipulação, administração, planejamento. A existência é moderna na medida em que é administrada por agentes capazes (isto é, que possuem conhecimento, habilidade e tecnologia) e soberanos. Os agentes são soberanos na medida em que reivindicam e defendem com sucesso o direito de gerenciar e administrar a existência: o direito de definir a ordem e, por conseguinte, pôr de lado o caos como refugo que escapa à definição.

A prática tipicamente moderna, a substância da política moderna, do intelecto moderno, da vida moderna, é o esforço para exterminar a ambivalência: um esforço para definir com precisão — e suprimir ou eliminar tudo que não poderia ser ou não fosse precisamente definido. A prática moderna não visa à conquista de terras estrangeiras, mas ao preenchimento das manchas vazias no compleat mappa mundi. É a prática moderna, não a natureza, que realmente não tolera o vazio.

construção da ordem coloca os limites à incorporação e à admissão. Ela exige a negação dos direitos e das razões de tudo que não pode ser assimilado — a deslegitimação do outro. Na medida em que a ânsia de pôr termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é intolerância — mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância (o que muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou generoso e o deixarei viver).

A disfuncionalidade da cultura moderna é a sua funcionalidade.