A Ação Política Em Paulo Freire

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A AÇÃO POLÍTICA EM PAULO FREIRE: UMA INTRODUÇÃO SOBRE O PROCESSO DE LIBERTAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DOS OPRIMIDOS. Gabriel Pompeo Pistelli Ferreira 1 CIÊNCIA POLÍTICA Resumo: Este artigo visa dissertar sobre o pensamento de Paulo Freire em uma área pouco estudada do autor: seu pensamento político. Freire formula uma teoria que supera qualquer mecanicismo ou voluntarismo, focando-se na política enquanto práxis de transformação social feita pelos homens diante de seus desafios e aspirações sociais e pessoais. Entendendo o homem como um ser de esperança, cuja prática social visa a realização de sua vocação de ser mais, existente mesmo diante dos problemas e obstáculos à sua humanização, a política serve para concretizar esses anseios. Contudo, segundo ele, isso não se dá de forma espontânea na realidade: esta libertação está condicionada, na realidade capitalista, pela condição de opressão, resultado da alienação social; por isso, a concretização do ser mais somente será alcançada com a libertação dos oprimidos, em um esforço hérculeo para despejarem de si mesmos o opressor introjetado dentro de si mesmos, que, humanizando-se, humanizam também os opressores. Tal libertação, porém, além de possuir seu aspecto eminentemente político, não se faz possível sem a educação, a qual é a principal encarregada da reprodução das práticas culturais das sociedades. Freire, portanto, a imperatividade de uma pedagogia do oprimido, que auxilie na organização do povo e em sua conscientização em torno da necessidade de sua libertação. Traremos nesse artigo, então, uma introdução e classificação de seu pensamento sobre a organização dos oprimidos, sob a perspectiva política. Palavras-chave: ação política; Paulo Freire; libertação; organização; alienação. Educação e política: a necessidade de outra educação para a construção de outra hegemonia. 1 Estudante de ciências sociais da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected].

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Apresentação do pensamento de Paulo Freire sobre a política e organização das classes oprimidas.

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A AO POLTICA EM PAULO FREIRE: UMA INTRODUO SOBRE O PROCESSO DE LIBERTAO E ORGANIZAO DOS OPRIMIDOS.Gabriel Pompeo Pistelli Ferreira[footnoteRef:1] [1: Estudante de cincias sociais da Universidade Federal do Paran. E-mail: [email protected].]

CINCIA POLTICA

Resumo: Este artigo visa dissertar sobre o pensamento de Paulo Freire em uma rea pouco estudada do autor: seu pensamento poltico. Freire formula uma teoria que supera qualquer mecanicismo ou voluntarismo, focando-se na poltica enquanto prxis de transformao social feita pelos homens diante de seus desafios e aspiraes sociais e pessoais. Entendendo o homem como um ser de esperana, cuja prtica social visa a realizao de sua vocao de ser mais, existente mesmo diante dos problemas e obstculos sua humanizao, a poltica serve para concretizar esses anseios. Contudo, segundo ele, isso no se d de forma espontnea na realidade: esta libertao est condicionada, na realidade capitalista, pela condio de opresso, resultado da alienao social; por isso, a concretizao do ser mais somente ser alcanada com a libertao dos oprimidos, em um esforo hrculeo para despejarem de si mesmos o opressor introjetado dentro de si mesmos, que, humanizando-se, humanizam tambm os opressores. Tal libertao, porm, alm de possuir seu aspecto eminentemente poltico, no se faz possvel sem a educao, a qual a principal encarregada da reproduo das prticas culturais das sociedades. Freire, portanto, v a imperatividade de uma pedagogia do oprimido, que auxilie na organizao do povo e em sua conscientizao em torno da necessidade de sua libertao. Traremos nesse artigo, ento, uma introduo e classificao de seu pensamento sobre a organizao dos oprimidos, sob a perspectiva poltica.Palavras-chave: ao poltica; Paulo Freire; libertao; organizao; alienao.

Educao e poltica: a necessidade de outra educao para a construo de outra hegemonia.

Todo ato educativo, segundo Paulo Freire, um ato poltico. Isso se d porque educar um processo dinmico no qual se expressa uma viso sobre o mundo, uma vez que, por meio dessa ao, faz-se homens e mulheres usarem a palavra para entender e tomar partido sobre o que os rodeia. Toda educao, ento, por mais que se tente imbuir a tal ato um aspecto neutro, interfere na realidade, transforma-a; se transforma a realidade, e tambm as prprias relaes entre sujeitos e suas condies de vida, no pode deixar de ser um ato poltico. Este processo pode ser democrtico (como propunha o educador) ou, ento, imposto (como o caso da educao bancria). Por isso, Freire prope uma educao que, ao invs de inculcar uma noo de mundo, parta diretamente da realidade dos sujeitos para buscar a sua libertao; esta educao, por isso, chamada de problematizadora, porque prope no somente uma viso crtica sobre a realidade, mas principalmente uma prxis que v em direo ao ser mais, com a resoluo de problemas e conceitos sociais alienantes[footnoteRef:2] (FREIRE, 1972). [2: Nesse sentido, torna-se interessante assinalar que o conceito de alienao, para Freire, embora se espelhe em Marx, no se limita ao que este falou: as suas bases no se do numa crtica da diviso e reificao do trabalho embora desta no prescinda , mas, sim, na crtica ao fatalismo e inrcia perante as oportunidades de mobilizao e avanos histricos. Este conceito encontra-se mais prximo ao de Sarte (mais especificamente deste em sua obra Crtica da razo dialtica, na qual a superao da alienao seria a compreenso efetiva do real e poder intervir seguramente neste) e Fanon (destacamos a noo de Fanon sobre a dessubjetivao do negro e sua negao, a qual, suspeitamos, forma a base para o pensamento da psique do oprimido formulada por Freire). Veja-se FREIRE, 1992, p. 173-174.]

Desta forma, a crtica de Paulo Freire educao bancria, segundo a qual uns sabem mais que outros, e, portanto, devem prescrever a estes as verdades, d-se por, justamente, esta negar uma perspectiva interventiva sobre a realidade, atravs de discursos palavrosos afastados da realidade concreta, e por fundamentar o progresso e o avano social no na ao consciente e na funo utpica, mas no conformismo e imobilismo, propositadamente calando a democracia e a ao das grandes massas, num ato paternalista[footnoteRef:3]. Assim, a educao bancria interessa aos opressores, uma vez que mantm sua generosidade e sua dominao sobre os oprimidos. Ou seja, esta educao no consegue ser neutra, como nenhuma outra, uma vez que serve a determinados interesses de uma classe (FREIRE, 1972). [3: Falar da realidade como algo parado, esttico, compartimentado e bem-comportado, quando no falar ou dissertar sobre algo completamente alheio experincia existencial dos educandos, vem sendo, realmente, a suprema inquietao desta educao [bancria]. A sua irrefreada nsia. Nela, o educador aparece como seu indiscutvel agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinvel encher os educandos dos contedos de sua narrao. Contedos que so retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram em cuja viso ganhariam significao. A palavra, nestas dissertaes, se esvazia da dimenso concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante. FREIRE, 1972, p. 79.]

Nem mesmo a tcnica possui um simples aspecto neutro: o que Freire alerta em sua obra Extenso ou comunicao? (1978), escrita durante seu exlio no Chile, alertando ao perigo da extenso rural aos assentamentos chilenos promover a chamada invaso cultural, qual tenta dissipar as debilidades da cultura mecanisticamente e por meio de uma doao dos verdadeiros conhecedores. Por isso, Freire deixa bastante claro:Estamos convencidos de que, qualquer esforo de educao popular, esteja ou no associado a uma capacitao profissional, seja no campo agrcola ou no industrial urbano, deve ter, pelas razes at agora analisadas, um objetivo fundamental: atravs da problematizao do homem-mundo ou do homem em suas relaes com o mundo e com os homens, possibilitar que estes aprofundem sua tomada de conscincia da realidade na qual e com a qual esto (FREIRE, 1978: 45).Isso se d com a superao da viso focalista e contemplativa do mundo, possvel somente com uma educao libertadora. O ato educativo pode servir libertao, enquanto ao que se percebe influente no mundo e supera o fetiche da neutralidade, comprometendo-se com sujeitos concretos . Freire prope, portanto, a educao que representaria, de fato, a libertao: a educao problematizadora. Essa concepo somente pode possuir sentido se se dispor a pensar a educao como um processo constante (o educando e o educador nunca deixam de aprender, porque o aprendizado vem da experincia, da prxis ao e reflexo sobre o mundo, que permite o homem se compreender como sujeito e se comprometer com um projeto), coletivo (focado no dilogo, e no em comunicados; isto est sintetizado na famosa frase: ningum educa ningum, ningum educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo) e humanizador (isto , que se interessa na busca pelo ser mais do qual Freire fala, na transformao do mundo e prtica libertadora, visando lutar contra a alienao e explorao dos oprimidos) (FREIRE, 1972).Por isso, a reestruturao da educao significa a construo de uma nova prxis social, a qual, se analisarmos mais fundo a obra de Freire, se dar por uma democratizao do sistema poltico (aqui, fica explcita sua crtica ao paternalismo e ao populismo), da economia (isto se encontra explcito atravs da sua defesa da liberdade dos oprimidos afinal, qual liberdade ter o trabalhador submetido s foras do mercado e afastado da interveno sobre a produo? [1978]) e pela formao de um novo homem (Freire chega a lembrar que a revoluo ser tambm tica, pois somente com a escolha dos homens em lutar por uma nova prtica social que esta se torna possvel [FREIRE, 2000] esta noo encontra-se em Fanon e Guevara, tambm, que vem na revoluo no somente a transformao da produo ou da cultura, mas da prpria conscincia do ser social). Em todas essas etapas a educao possui papel fundamental para formular a nova realidade, uma vez que ela fundamental para reproduzir o processo social, os conhecimentos adquiridos at o presente e moldar a subjetividade humana.Assim sendo, em Freire, o ato de educar nunca se distingue do ato poltico, por mais tcnica que seja a discusso. A revoluo torna-se um ato de educao, no qual no somente as massas aprendem com a liderana revolucionria, mas principalmente estas aprendem sobre o povo, considerando-o em sua amplitude e com ele se comprometendo a superar as situaes-limite. Dito isto, vejamos, agora, como se d o processo de conscientizao nas obras de Freire.A poltica e o sujeito oprimido: o processo de construo da conscincia crtica.

Ao iniciar a discusso de sua primeira obra eminentemente poltica, escrita logo aps o golpe militar, Freire apresenta conceitos fundamentais para se pensar a poltica brasileira, discustindo desde a questo do paternalismo at a inexperincia democrtica do Brasil de sua poca e o levante das massas em pocas pr-golpe de 64 (FREIRE, 1967). Nesse bojo, o autor discute, especialmente, a transio dos nveis de conscincia, colocados por ele como: intransitivo, transitivo ingnuo e transitivo crtico. A transio destas conscincias decorreriam de condies sociais especficas que levassem problematizao no somente da realidade nacional, mas tambm do prprio ser poltico brasileiro, isto , de seu povo. Ou seja, para Freire, a questo da transio de uma sociedade fechada para outra aberta seria resultado tanto das condies objetivas quanto subjetivas da sociedade em questo, uma vez que a experincia democrtica no algo que possa simplesmente ser ensinada: esta tem que ser vivenciada pelo povo atravs de debates crticos e participao nas decises da realidade nacional.A rachadura latino-americana, que se voltou possibilidade de desenvolvimento de uma sociedade aberta, foi a industrializao e urbanizao do Brasil, fruto das polticas desenvolvimentistas de substituio de importaes[footnoteRef:4]; isto levou, pois bem, a uma superao da conscincia inicial, intransitiva (na qual o sujeito simplesmente no se reconhece como agente social e suas preocupaes se do somente com as formas vegetativas de vida, sem conscincia histrica), para o segundo nvel, a conscincia transitivo-ingnua, na qual o povo inicia sua empreitada em direo discusso e participao poltica, afirmando seu compromisso com a existncia, mas de forma superficial e preponderantemente emocional. Agora, a transio para a conscincia crtica, na viso freireana, se daria somente pela educao (esta interpretada de forma ampla, levando em conta as experincias de vida e a troca de saberes entre os indivduos), marcada no respeito cultura e sabedoria populares, mas comprometida com o desenvolvimento de uma conscincia crtica (isto , empiricamente comprovada, lgica e comprometida, afastando-se da conscincia mgica e/ou fatalista [FREIRE, 1967]). [4: Aqui fica clara a ligao de Freire, na poca, com os pensamentos desenvolvimentistas, uma vez que fornece a estes importante mrito (PAZELLO, 2013; WEFFORT, 1967). A transformao do pensamento de Freire sobre esta questo ser desenvolvida progressivamente neste trabalho.]

Caso contrrio, sem esse trabalho educativo, Freire adverte aos problemas da massificao, a qual possui um srio aspecto mstico, no qual prepondera a irracionalidade, torna-se o dilogo inexistente e faz temer a liberdade. Nesse plano, no se dialoga com o povo: d-lhe comunicados, prescries, os quais no so capazes de efetivar a transio da conscincia ingnua para a crtica, fazendo, ao contrrio, um rebaixamento da conscincia. Essa condio se d, especialmente, quando os poderosos se veem ameaados pela organizao dos oprimidos e iniciam uma luta pelo silncio destes; mas, uma vez no conseguindo este plenamente, diante dos avanos gerais da sociedade, encontram como alternativa a massificao, na qual o povo pseudoprotagonista na poltica, sempre sujeitando-se vontade de outros como se fosse a sua (no um fatalismo, mas, sim, uma conscincia transitiva, na qual todo o seu ser encontra-se limitado por elementos irracionais e personalistas [1967 e 1981]).Nesse caminho, o pensamento poltico de Freire deve ser pensado sob esses moldes: como uma disputa pela hegemonia da sociedade, igual ao proposto por Gramsci, na qual a educao se insere de forma especfica dentre outros elementos e fundamental para o desenvolvimento dessa dinmica poltica[footnoteRef:5]. Porm, essa disputa de conscincias no ficar clara em sua primeira obra: reconhecida pelo prprio Freire[footnoteRef:6], sua obra inicial fora deveras ingnua, faltando ainda pontos importantes em sua teoria, como a noo da luta de classes e da funo eminentemente poltica da educao (embora isso j possa ser entendido pelas entrelinhas dessa primeira obra, Freire no assinala esta questo). Assim, ser somente em Pedagogia do Oprimido, gestada no seio da luta de classes latino-americana, diante da experincia chilena, marcada pelo governo democrata cristo de Eduardo Frei (do qual Freire fora assessor de reforma agrria) e socialista de Salvador Allende, que teremos sua obra poltica desenvolvida adequadamente[footnoteRef:7]. [5: Como nota de rodap, torna-se importantssimo resaaltar que Freire, em sua discusso poltica, segue o caminho de Gramsci, em reconhecer o Estado de forma ampla, incluindo, a, a sociedade civil, representada em seus aparelhos privados de hegemonia. Por isso, a luta poltica, para o pedagogo, jamais se esgota na disputa pelo poder do Estado, mas, sim, na formulao de um novo consenso social que leve a uma sociedade regulada, conforme propunha Gramsci. Isto, por outro lado, na realidade latino-americana, jamais se daria (ainda mais pelo contexto vivenciado por Freire, durante a ditadura militar) na discusso dentro do Estado, mas, sim, com as massas, aliando-se a elas para efetivar uma nova hegemonia; por isso, sua ttica tambm no seria contraditria com o proposto por Gramsci, sobre a diferena entre sociedades ocidentais e orientais, sendo coerente a afirmao da necessidade do testemunho e comunho popular como forma de garantir a segurana da revoluo (mas isto algo a ser discutido na prxima seo). Veja-se: GRAMSCI, 1999 e 1989.] [6: Veja-se suas delcaraes contidas em TORRES, 1987: Nos meus primeiros trabalhos, no fiz quase nenhuma referncia ao carter poltico da educao. Mais ainda, tambm no fiz referncia ao problema das classes sociais nem luta destas. Por qu? Creio que a explicao est em que no fui capaz de esclarecer o processo de conscientizao como o fiz com a prtica, produzindo-se, assim, um distanciamento entre a busca da teorizaao e a prtica que eu fiz (...) No tendo esclarecido a questao das classes sociais, a dimenso poltica da educao, o pano de fundo ideolgico que condiciona os prprios mtodos de ao educativa, abri caminho para ser cooptado, embora esta no fosse a minha prtica (p. 40-41).] [7: Visitei o Chile duas vezes durante o governo da Unidade Popular e costumava dizer, na Europa e nos E.U.A., que quem quisesse ter uma ideia concreta da luta de classes, expressando-se das mais diferentes formas, teria de visitar o Chile. Sobretudo quem quisesse ver, quase pegar, as tticas com que as classes dominantes lutavam, a riqueza de sua imaginao para tornar a luta mais eficaz no sentido de resolver a contradio entre poder e governo (...) Teria sido, na verdade, impossvel viver um processo politicamente to rico, to problematizador, ter sido tocado to profundamente pelo clima de aceleradas mudanas, ter participado de discusses animadas e vivas em crculos de cultura em que os educadores no raro tiveram que quase implorar aos camponeses que parassem, pois que j se achavam extenuados, sem que isto tudo viesse depois a explicitar-se nessa ou naquela posio terica defendida no livro [Pedagogia do Oprimido] que, na poca, ainda no era sequer projeto (p. 51-55, 1992). Outra fonte importante para isso confirmar ser TORRES, 1996, que afirma: Aps o golpe de estado brasileiro de 1964, Freire deixou o pas para viver e trabalhar no Chile no ICIRA, um rgo do governo Democrtico Cristo responsvel pela extenso educacional no interior do programa de reforma agrria. Freire teve a oportunidade de experimentar sua metodologia num novo ambiente intelectual, poltico, ideolgico e social, trabalhando com os setores mais progressistas do Jovem Partido Democrata Cristo, alguns deles foram posteriormente incorporados a novos partidos dentro da coaliso da Unidade Popular e em contato com o pensamento marxista, altamente estimulante, e com fortes organizaes da classe trabalhadora (...) O pensamento de Freire pode agora ser claramente percebido como uma expresso da pedagogia socialista e sua anlise tem sido, atravs do tempo, trabalhada dentro da moldura histricomaterialista, redefinindo seus velhos temas existencialistas fenomenolgicos sem, no entanto, adotar uma posio ortodoxa (TORRES, 1996, p. 123-124)]

Aqui, conceitos fundamentais surgiro, mas o principal ser a sua diviso entre opressores e oprimidos: entre dominantes e dominados, colocados de forma clara, disputando a hegemonia da sociedade, e no somente a conscincia dos indivduos. Se antes Freire distinguia radicais de sectrios (1967), nesta obra mantm a distino, mas amplia o leque para inserir, ali, a noo de classe, da necessidade de superao de um sistema dominado pelos opressores para se fazer uma sociedade livre desta diviso. E tal potencialidade encontrada, em Freire, nos oprimidos: somente estes podem gestar a libertao (no somente sua, mas tambm dos opressores, que, oprimindo, desumanizam-se tambm). Mas tal libertao no somente uma ao planejada pelos oprimidos, sua organizao: , tambm, sua conscientizao sobre o mundo e retirada do opressor hospedado dentro de si, ao qual leva ao fatalismo e masoquismo dos oprimidos. Em Freire, ento, conscincia e ao so sinnimos: se algum possui conscincia, mas no age, na verdade no realmente se conscientizou da necessidade da libertao (1972).Todo o pensamento freireano, ento, reprime a famosa distncia entre palavra e ao, sendo isto um elemento de conscincia burguesa, a qual se aproveita desta contradio para maquiar sua explorao e privilgios, ou, ainda, representao da alienao dos oprimidos. De um lado, pelos opressores, esse afastamento da realidade se d no paternalismo, na defesa de seu direito de ter privilgios porque, com eles, ajuda aos oprimidos; pelos oprimidos, ao contrrio, sua contradio discursiva d-se no fatalismo e na aderncia ao opressor, nos quais, ambos, retiram de si mesmos o seu compromisso com a ordem opressora e a naturalizam de formas diferentes (o primeiro como destino divino, mgico, no qual cada um tem seu destino selado logo ao vir para o mundo, e o outro como se a opresso fosse necessria e natural aos homens, cabendo aos mais fortes dominarem os mais fracos [1972]).A disputa principal para Freire, ento, na sociedade, torna-se a luta pela conscincia e libertao dos oprimidos: uma luta eminentemente poltica. O resgate da vocao de ser mais, da superao do imobilismo e da conscincia ingnua somente possvel com a ao poltica, numa disputa das relaes de poder da sociedade. a partir dessa constatao que o pedagogo brasileiro esboa seus princpios polticos. O principal deles o dilogo, o qual se faz com quem verdadeiramente ama o mundo logo, no com os opressores, necrfilos, que somente amam a si mesmos e no aceita o sectarismo de querer impr s massas a sua libertao. Aqui, ento, nega-se o vanguardismo e, tambm, o fisiologismo, a concentrao apenas naquilo que Gramsci chamou de pequena poltica[footnoteRef:8], uma vez que o interesse real da poltica, para nosso autor, o avano concreto na vida dos oprimidos, algo que possvel plenamente somente com uma reformulao do modo de produo e gesto da sociedade, visando a ampliao da democracia. [8: Gran poltica (alta poltica)-pequea poltica (poltica del dia por da, poltica parlamentaria, de corredor, de intriga). La gran poltica comprende las cuestiones vinculadas on la fundacin de nuevos Estados, con la lucha para la destruccin, la defensa, la conservacin de determinadas estructuras orgnicas econmico-sociales. La pequea poltica las cuestiones parciales y cotidianas que se plantean en el interior de una estructura ya establecida por las luchas de preemencia entre las diversas facciones de una misma clase poltica (GRAMSCI, 1999, p. 20)]

Por isso, negar o dilogo como princpio seria um ato de negao da superao da opresso: sem dilogo, coisifica-se o homem, colocando-o como objeto a ser dominado pelas elites. O dilogo compromete-se com a vocao de ser mais, com a humanizao do sujeito e sua liberdade, o que implica em, necessariamente, respeitar a todos e no coisificar os homens, negando-se a eles sua vocao primeira. A ao poltica em Freire, pois, jamais se faz para os oprimidos, mas, sim, com eles. Eles so sujeitos da histria e seres capazes de se libertarem; neg-los essa capacidade impedir a verdadeira libertao e reproduzir a opresso (1972). neste caminho que surge a necessidade da educao problematizadora: a ao poltica, enquanto ao pedaggica, tambm deve se comprometer com essa humanizao de seu sujeito, e isto no possvel sem uma reformulao pedaggica que supere o formalismo, o verbalismo e a neutralidade. nesse momento que surge, de fato, a pedagogia do oprimido, com este, a ser realizada em comunidades e movimentos, tendo em vista a sua mobilizao. Essa pedagogia se compromete, entretanto, no somente a respeitar a subjetividade e protagonismo popular, mas, tambm, se encontra disposta efetivar as mudanas da realidade (por isso, no neutra), por meio da conscientizao; ela se compromete, portanto, em palavras freireanas, a tentar realizar o indito vivel, o nunca visto, mas possvel, uma transformao poltica almejada pelas classes populares acompanhadas (1972).Esse comprometimento, entretanto, no surge seno como resultado da compreenso de situaes-limite que impem ao homem uma nova prxis, qual lhe d possibilidades efetivas de superar os limites polticos em busca da concretizao de sua vocao de ser mais. O homem se faz, para Freire, no confronto com seus problemas e dilemas da existncia; nessa concepo, ento, a poltica somente uma faceta desse desafio ao qual o sujeito se joga para fazer sua existncia em conjunto com os Outros. A ao poltica somente faz sentido enquanto uma ao coletiva, enquanto uma ao social que una o sujeito e sua coletividade. Sob essa perspectiva, a famosa frase: ningum liberta ningum, ningum se liberta sozinho; os homens se libertam em comunho torna-se sntese para a compreenso da ao poltica freireana. A educao e a poltica somente podem ser concebidas sob uma perspectiva coletiva: com e para o Outro. Assim, no h educao sem unio e organizao; vejamos agora o pensamento de Freire sobre a organizao poltica do povo.

Aco cultural e poltica: a teoria da ao dialgica e da organizao em Paulo Freire.

O nome que Freire pretende dar sua atividade enquanto militante comprometido com as causas populares denominada ao cultural (1981 e 1972); embora seu nome, inicialmente, no traga qualquer noo politica, na verdade todo este pensamento est fortemente imbudo de princpios e conceitos polticos elaborados pelo prprio Paulo Freire. Primeiro, por trazer a diviso entre oprimidos e opressores, um primeiro ato que reconhece a politicidade de toda e qualquer ao cultural; e, segundo, por trazer, nessa ao cultural, a misso histrica de promover a superao das situaes-limite dos povos subalternos. Sua ao cultural, ento, possui, como em sua pedagogia, em seu cerne a valorizao do saber popular e da ao dialgica, evitando a massificao ideolgica e a manipulao das massas populares.A necessidade da ao cultural surge diante da compreenso de que a superestrutura (isto , a cultura) no se modifica automaticamente diante da mudana da infraestrutura: estas duas se do em uma relao dialtica de condicionamentos entre si. Por isso, a luta de classes, em Freire, no deve jamais deixar de lado seu aspecto cultural, uma vez que este serve tanto para educar as massas e formular o homem novo, como tambm para ser elemento de resistncia cultura e explorao dominante, uma vez que a cultura tambm joga papel fundamental na economia[footnoteRef:9] (veja-se 1978 e 1981). Sem isso, a revoluo no somente impede seus avanos reais, como tambm no se sustenta: todo movimento revolucionrio encontra-se incumbido de realizar, em sua realidade nacional, uma revoluo cultural que reafirme ao povo o seu protagonismo em sua prpria histria e seu compromisso de superao das relaes de explorao, acelerando o processo de transio da conscincia intransitiva para a transitiva crtica (1981). [9: As principais bases de Freire, sob nossa perspectiva, para desenvolver esse pensamento so Ernesto Guevara, que discute a questo da relao do homem comum com a revoluo socialista, como esse lida diante das mudanas culturais existentes no pas socialista, e Amlcar Cabral, liderana revolucionria de Guin-Bissau, que encontrava na cultura a principal base da resistncia ao colonialismo e via nela funo essencial para manuteno e desenvolvimento do movimento revolucionrio, que no somente preservava a cultura tradicional africana e os valores do movimento, como tambm era essencial para fazer superar as debilidades da cultura, isto , as prticas mgicas, fatalistas e preconceituosas do povo. Veja-se FREIRE, 1978, e CABRAL, 1979.]

Esta transformao, por isso mesmo, tem de vir como expresso da comunho com as massas populares: no deve vir como condescendncia e aceitao de todas as prticas e noes populares (oras, o autor j nos alerta sobre os opressores introjetados na conscincia dos oprimidos), mas, muito menos, como portador da verdade absoluta que deve ditar as prticas do povo. Este precisa forjar sua prtica, mas uma prtica libertadora, que dizime o opressor dentro de si, mas tal ao histrica no vem dos cus ou de vontades aleatrias dos oprimidos: ela vem, sim, do surgimento da organizao destes, empunhada pela liderana revolucionria (1972). Freire bem diz:O povo, (...) enquanto esmagado e oprimido, introjetando o opressor no pode, sozinho, constituir a teoria de sua ao libertadora. Somente no encontro dele com a liderana revolucionria, na comunho de ambos, na prxis de ambos, que essa teoria se faz e re-faz (1972: 252).A noo de nosso autor sobre a relao entre vanguarda e massas assinala, ento, um aspecto essencial: enquanto reconhece a existncia de uma vanguarda revolucionria, nega qualquer forma de vanguardismo, de pensar e falar frente das massas como se esta devesse ser simplesmente inculcada pelo intelectual conhecedor da realidade. Na perspectiva de Freire, sendo todos intelectuais, todos tm condio de contribuir para o pensamento e desenvolvimento da luta socialista; a vanguarda surge como expresso do todo, que constri seu pensamento e prtica junto aos oprimidos, e no como um punhado de intelectuais que conhecem a realidade e trazem ao povo sua conscincia (1972 e 1992). Por isso, a organizao surge como uma comunho entre os intelectuais pequeno-burgueses que fizeram sua opo de classe e o povo.Embora massa e dirigentes se distinguam, estes devem representar os anseios dela, enquanto ela deve superar a sua imobilidade e assumir cada vez mais a sua ao e destino poltico. Para isso fazer, ento, os dois grupos precisam selar compromissos que se distinguem: o povo sela o compromisso de se entregar luta, de expelir o opressor dentro de si e participar ativamente da poltica, enquanto a vanguarda compromete-se com aquilo que Amlcar Cabral chamou de suicdio de classe, isto , com a sua identificao com as massas populares e superao de seus vcios e ideologias burguesas. Sem isto, Freire alerta sobre a probabilidade de massificao e burocratizao dos governos revolucionrios (1978).Com tal comunho, os movimentos revolucionrios (e aqui este deve ser entendido de diversas formas, desde movimentos sociais empenhados na transformao da sociedade at partidos polticos) tornam-se mais do que meras organizaes de transformao da produo ou distribuio da sociedade: so, como j propunha Cabral, fatores de cultura, que reconstroem as prticas cotidianas e forjam o homem novo. Por isso, uma interpretao errnea da poltica em Freire seria entender a ao poltica como fruto da ao cultural: na verdade, o que se diz que a ao cultural revolucionria j , em si, uma ao poltica, enquanto toda ao poltica necessariamente um fator de cultura, ainda mais se se compromete a fazer a superao de um bloco histrico a outro.Tal organizao, enquanto fator de cultura, para Freire, deveria necessariamente seguir uma base de ao que se caracteriza especialmente pelo seu teor revolucionrio: a ao dialgica. Nesta, ao invs de comunicados, h dilogo; no lugar da hierarquia rgida, a democracia mais ampla; em frente diviso excludente, a unio na diversidade, etc. Por isso mesmo, sua ao poltica, aqui, torna-se uma ao radical, no sentido freireano da palavra: compromete-se com a mudana do mundo, mas tambm com a preservao da humanidade dos esfarrapados e daqueles que ao seu lado lutam (mesmo que de diferentes formas); jamais se aceita, em sua obra, uma ao que retire o direito das massas e sua possibilidade de satisfazer sua vocao de ser mais, reconhecida na organizao dos oprimidos em busca da superao de suas situaes-limite.Esta noo se conflitua com a ao (antidialgica) dos opressores, que dominam e organizam atravs da conquista (feita, muitas vezes, por armas e sempre contra a vontade dos oprimidos), da manipulao (isto , na distoro dos fatos e enganao do povo), da diviso entre os oprimidos (separados, eles, alm de mais fracos, tendem a disputar para receber atos paternalistas das elites dirigentes, reconstruindo, dia-a-dia, o opressor dentro de si) e da invaso cultural (imposio da viso de mundo dos opressores, atravs da imbecilizao dos oprimidos). Ao contrrio, a ao cultural se caracteriza pela co-laborao (o encontro de sujeitos para a sua pronncia e interveno no mundo, de acordo com suas ideias em comum), unio (unidade para conter a dominao e expandir as potencialidades de avano coletivo da sociedade), organizao (unio da ao e colaborao entre as massas para transformar a realidade) e, por fim, pela sntese cultural (formao de uma teoria e cultura que representa a viso tanto do oprimido quanto da liderana revolucionria, sendo smbolo de sua comunho [1972]).Por isso, o pensamento poltico de Paulo Freire se caracteriza pela dialogicidade e respeito s massas populares, algo expressado, de forma bastante sintetizada, nas revolues cubana e chinesa, assim como na maioria das revolues africanas. Freire torna-se um pensador da transformao social do terceiro mundo. Sua base crist tambm d nfase essencial ao seu pensamento, ligando-se s prticas e noes da teologia da libertao latino-americana, a qual prope uma ao poltica eminentemente tica e contrria dominao e explorao do povo. Este pensamento poltico discorrido neste trabalho ser, portanto, constituinte de uma nova perspectiva poltica que supera a ligao s tradies comunistas ortodoxas e constitui uma nova prxis socialista, seguida por diversos grupos revolucionrios, em especial latino-americanos, como diversos movimentos sociais (dentre eles, o MST, por exemplo[footnoteRef:10]) e alguns partidos populares. [10: Veja-se, sobre isso, por exemplo, uma obra organizada pelos integrantes do MST: Paulo Freire, um educador do povo; alm de diversas outras referncias de educadores do movimento ao educador, como se pode ver em CALDART, 2003: A fora do MST no est nos seus discursos, mas sim nas aes e na postura dos Sem Terra que as realizam. So as prticas e a conduta do coletivo que educam as pessoas que fazem parte do Movimento ou com ele convivem. por isto que no MST temos como referncia de educadores pessoas como Paulo Freire e Che Guevara. Eles no foram educadores apenas pelo que disseram ou escreveram; mas pelo testemunho de coerncia entre o que pensaram, disseram e efetivamente fizeram e foram, como pessoas e como militantes das causas do povo. Ser educador , pois, um modo de ser. Um jeito de estar com o povo que seja mensagem viva dos valores, das convices, dos sentimentos, da conscincia que nos move e que dizemos defender em nossa organizao. ter um compromisso integral, o que no fcil. Somente um coletivo pode nos ajudar no processo de crtica e autocrtica, nas chamadas e nos afetos que nos mostram quando estamos vacilando, e ao mesmo tempo nos acolhem para retomar o caminho (p. 8).]

Sua prxis poltica se representa, portanto, prxima muito mais das aes populares revolucionrias nacionais, isto , daquelas que no somente se comprometiam com o desenvolvimento da classe trabalhadora, mas tambm de um projeto de nao contrrio ao imperialismo (esta noo, perceba-se, est presente desde o comeo nas obras de Freire, e mantm-se mesmo no final de suas obras), num programa nacional, democrtico e popular (PAZELLO, 2013). Alm disso, outro aspecto fundamental sua noo de trabalho de base, na qual Freire nunca afirma com estas palavras, mas deixa bastante clara a necessidade da convivncia e comunho com o povo para pensar a superao da opresso capitalista, precisando superar o vanguardismo verboso, ou, ainda, qualquer populismo revolucionrio, que se exime de um programa efetivo de nao para adorar um povo abstrato e inexistente. Quem se compromete com o povo, ento, no somente se dispe a disputar espaos polticos, mas, principalmente, convive com sua gente e se transforma cotidianamente em busca da realizao de seu projeto. com isso, na busca pela concretizao da utopia, que se faz a poltica de Freire, na f nos homens e na criao de um mundo em que seja menos difcil amar (1972: 253).

Referncias bibliogrficas:CABRAL, Amilcar. Unity and struggle: speeches and writings. New York: Monthly Review, 1979.CALDART, Roseli. Movimento sem terra: lies de pedagogia. Currculo sem Fronteiras, v.3, n.1, pp. 50-59, Jan/Jun 2003.FREIRE, Paulo. Ao cultural para a liberdade. So Paulo: Paz e Terra, 1981._______. Cartas Guin-Bissau. So Paulo: Paz e Terra, 1978._______. Educao como prtica da liberdade. So Paulo: Paz e Terra, 1967._______. Extenso ou comunicao?. So Paulo: Paz e Terra, 1983._______. Pedagogia da esperana: um reencontro com a pedagogia do oprimido. So Paulo: Paz e Terra, 1992._______. Pedagogia da indignao. So Paulo: Paz e Terra, 2000._______. Pedagogia do oprimido. So Paulo: Paz e Terra, 1972.GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organizao da cultura. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1989._______. Cuadernos de la crcel. Tomo 5. Mxico, D.F.: Ediciones Era, 1999.PAZELLO, Ricardo Prestes. A questo nacional em Paulo Freire. Rev. Ed. Popular, Uberlndia, v. 12, n. 2, p. 10-19, jul./dez. 2013.TORRES, Carlos Alberto. A voz do bigrafo latinoamericano: uma biografia intelectual. Em: GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: uma biobibliografia. So Paulo: Editora Cortez, 1996, p. 117-143.TORRES, Rosa Maria. Educao popular: um encontro com Paulo Freire. So Paulo: Edies Loyola, 1987.WEFFORT, Francisco C. Educao e poltica: reflexes sobre uma pedagogia da Liberdade. Em: FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. So Paulo: Paz e Terra, 1967, p. 1-26.