92413076 Poder Sociabilidade e Simbolismo Em Norbert Elias
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Poder, sociabilidade e simbolismo em Norbert Elias
(Heloisa Pontes∗)
Autor de uma obra sensacional, Norbert Elias perseguiu, ao longo de sua vida, um
conjunto amplo e diversificado de objetos. Analisou a morte, a etiqueta, a corte, o duelo, o
nazismo, as lutas de poder na Alemanha, os conflitos de geração, a circulação de fofocas,
os processos de estigmatização, as relações tumultuadas e ambivalentes de Mozart com o
pai e com os aristocratas da corte. Concebendo a sociedade como uma rede de relações1,
Elias deu a esses objetos um tratamento inovador e uma complexidade analítica
desconcertante. Para tanto, lançou mão da perspectiva comparativa como forma de
circunscrever diferenças e destacar similitudes, esquadrinhou os nexos que entrelaçam as
dimensões micro e macro-sociológica, mostrou a importância da dimensão simbólica para
uma apreensão renovada dos processos sociais. A vista do contraste aguçava a sua
capacidade de pensar, levando-a demolir explicações essencialistas e dar um basta nos
discursos fundados numa presumida e invariável natureza humana. Empreendimento tanto
mais necessário quanto mais esses discursos mixurucas teimam em reaparecer com
roupagens eruditas para “chover no molhado” das explicações anêmicas sobre a crueldade
humana, como é o caso, por exemplo, do filme do dinamarquês Lars Von Trier, Dogville,
exibido no Brasil em 2004.
Nada mais distante da visada sociológica de Elias do que esse tipo de concepção do
poder e dos mecanismos simbólicos que envolvem o seu exercício, como tentarei mostrar a
seguir por meio de um rastreamento sumário de A Sociedade de corte e O processo
civilizador2, selecionados para a primeira parte da minha fala, em razão da afinidade eletiva
∗ Professora do Departamento de Antropologia da Unicamp, pesquisadora do Cnpq e do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp. 1 Tal concepção, como mostra Leopoldo Waizbort, revela a influência decisiva de Simmel na obra de Elias. Cf. Leopoldo Waizbort, “Elias e Simmel”, in: Waizbort (org.), Dossiê Norbert Elias, São Paulo, 1999, Edusp, pp.89-111. 2 Esses dois livros fazem parte de um projeto de pesquisa mais amplo iniciado por Elias no período em que trabalhava como assistente de Mannheim, na Universidade de Frankfurt, antes da ascensão de Hitler ao poder em 1933 e da mudança do autor para a Inglaterra, motivada pela perseguição aos judeus. Publicado em alemão em 1969, traduzido para o francês em 1974, para o inglês em 1983 e, para o português em 2001, A sociedade de corte resultou de um extenso estudo desenvolvido pelo autor nos anos de 1930 sobre a nobreza,
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direta que eles têm com o tema central desse Simpósio. Mas no lugar de restringir a
abordagem da correlação entre simbolismo, poder e sociabilidade à sua explicitação
evidente no universo da corte e de suas elites, quero encerrar a minha apresentação com um
comentário mais longo sobre outro livro genial de Elias, Os estabelecidos e os outsiders.
Escrito em conjunto com John Scotson, baseado em extensa pesquisa de campo, o livro
desarruma os esquemas mentais habitualmente utilizados para pensar o poder, ao trazer
para o centro da análise as dimensões simbólicas que enredam os grupos e os indivíduos
nas malhas mais ou menos densas da sociabilidade. Vamos por parte.
Em O processo civilizador, Elias mostra, de maneira irrefutável e intelectualmente
desafiante, a existência de uma conexão forte entre as alterações na estrutura social e as
mudanças no comportamento e nas emoções dos indivíduos - reveladas, por exemplo, pelo
avanço dos patamares de vergonha, repugnância, controle e, principalmente, autocontrole.
Daí a importância das fontes documentais utilizadas por ele: os manuais de boas maneiras -
uma fonte "menor" do ponto de vista literário, mas central para a apreensão dos processos
sociais envolvidos na criação e difusão de novos modelos de comportamento e novas
formas de expressão dos sentimentos.
Criados a princípio pelos membros das elites como forma de demarcar a sua
diferença social e sublinhar a altivez de seu universo de sociabilidade, tais modelos de
comportamento difundiram-se, paulatinamente, para segmentos cada vez mais amplos da
sociedade. Novas maneiras de se portar à mesa, de manejar o garfo, a faca, o guardanapo;
de lidar com as funções corporais, com os cheiros, a comida, a sexualidade, o escarro, o
banho, a sujeira; de se comportar em relação aos outros, os superiores, os inferiores, os
mais próximos; de se relacionar com pessoas do mesmo sexo e de sexo diferente, com
adultos, velhos e crianças; de expressar e controlar a agressividade, as emoções, os
a realeza e a sociedade de corte na França. Esse estudo quase monográfico constitui, por sua vez, a base de seu outro livro O Processo civilizador, publicado em alemão por uma editora suíça, em 1939, traduzido para o inglês em 1960, para o francês em 1973, foi editado aqui em 1990. Essa menção às datas de publicação é relevante para situar a produção de Elias. A sociedade de corte, “por sua redação, por suas referências, por sua informação, é um livro antigo”, como esclarece Roger Chartier, “que atingiu sua forma quase definitiva em 1933. Isso é importante para compreender em que universo intelectual foi concebido, o de uma sociologia dominada pela figura de Weber e de uma história que ainda é a do século XIX.”. Cf. Roger Chartier, “Prefácio – formação social e economia psíquica: a sociedade da corte no processo civilizador”, in: Norbert Elias, A sociedade de corte, tradução de Pedro Sussekind, Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p.11.
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sentimentos; sedimentam-se no decorrer dos séculos. Esses novos códigos de conduta,
como mostra Elias, enquanto expressão do comportamento civilizado, constituem-se em
meio ao controle das pulsões, à pacificação do espaço social.e ao processo crescente de
monopolização da violência por parte da realeza.
De início na corte e posteriormente em estratos cada vez mais amplos da sociedade,
“ergue-se entre um corpo e outro como que uma parede invisível de emoções, repelindo e
separando, parede que é freqüentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa
que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa, e que se manifesta como
embaraço à mera vista de muitas funções corporais de outrem, e não raro à sua mera
menção, ou como sentimento de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à
vista de outros” ·3 .
Mas antes desses patamares de vergonha e repugnância se transformarem em uma
segunda natureza e indício do comportamento civilizado, eles serviram, sobretudo, como
meio de sublinhar distâncias sociais e expressar os sentimentos das classes altas em relação
aos demais segmentos com que interagiam. Parte essencial da auto-estima desses grupos de
elite residia no fato de terem em volta de si pessoas que não eram iguais a eles e dos quais
se sentiam senhores.
Com a substituição gradual da nobreza feudal pela nobreza de corte, o espetáculo
dos trabalhadores em sua faina diária, passou a ser visto como algo “vulgar”, “comum”,
“embaraçoso”, a exigir espaços próprios e nitidamente separados para a sua execução.
Paralelamente a isto, assiste-se à criação de novas modalidades de controle, de regulação e
de comedimento, acionadas pelos membros da nobreza como resultado da situação inédita
de sua maior dependência em relação ao rei e a outros grupos de elite com os quais se
relacionam e se rivalizam. O nobre, nesse contexto, “não é mais um homem relativamente
livre, senhor de seu castelo, do castelo que é a sua pátria. Agora vive na corte. Serve ao
príncipe. Presta-lhe serviços à mesa. E na corte vive cercado de pessoas. Tem de
comportar-se em relação a cada uma delas em exata conformidade com a sua posição social
e a delas na vida. Precisa aprender a ajustar seus gestos exatamente às diferentes estações e
posições na corte, medir com perfeição a linguagem, e mesmo controlar exatamente os
3 Cf. Norbert Elias, O processo civilizador. Tradução de Ruy Jungmann, Rio de Janeiro, Zahar, 1990. p.82.
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movimentos dos olhos. É uma nova autodisciplina, uma reserva incomparavelmente mais
forte, que é imposta às pessoas pelo novo espaço social e os novos laços de
interdependência”4.
A sedimentação da vida na corte não altera, entretanto, os sentimentos e as
concepções que os grupos de elite têm em relação a outros grupos e pessoas estranhas a ela.
Pelo contrário, como mostra Elias, assiste-se a uma renovação em novas bases, do
sentimento mais geral de distância social que os separam dos ‘outros’. A vista do contraste
aguça-lhes, ainda mais, a alegria de viver.
O desconforto, para dizer o mínimo, que este sentimento nos provoca, hoje, resulta,
em grande parte, do fato de vivermos em uma formação social que, construindo o indivíduo
como valor supremo, sedimenta o seu imaginário sobre a crença da igualdade entre os
homens. Que as coisas não se passem assim ao nível de sua realidade concreta é um outro
problema. O que importa sublinhar é a quase impossibilidade que temos, atualmente, em
conceber formações sociais que se estruturam sobre práticas e mecanismos hieraquizantes.
Tratando a realidade social como resultado de uma dicotomia básica entre “opressores” e
“oprimidos” – versão moderna de “algozes” e “vítimas” – essa vertente da “história dos
vencidos” revela-se intelectualmente despreparada para entender não só o jogo complexo
de interdependência entre os grupos e as classes sociais, como os constrangimentos sociais
específicos que atravessam as elites e classes dirigentes.
Daí também um dos trunfos da análise de Elias. Contrapondo-se a esta visão
maniqueísta da realidade, o autor mune-se de ferramentas analíticas poderosas para mostrar
que “não se pode compreender verdadeiramente os constrangimentos sociais que
atravessam e recortam as camadas dominadas sem que se proceda, ao mesmo tempo, a uma
análise das camadas superires”5.
Sua investigação da sociedade de corte, por revelar os constrangimentos sociais a
que estavam expostos os grupos dominantes e seu representante mais poderoso, o rei
absolutista, deve ser tomada como um modelo de análise para o aprofundamento, cada vez
mais necessário, do estudo das elites, de seus mecanismos de sociabilidade e dos
4 Idem, p.212. 5 Esta e todas as demais citações de Elias sobre a sociedade de corte, foram traduzidas por mim da versão francesa, , La societé de Cour, Paris, Calmann-Lévy, 1974, p.304
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simbolismos de poder acionados por elas. Vejamos, então, como Elias esquadrinha essas
dimensões no livro A sociedade de corte.
Tendo como campo empírico de investigação, a corte de Luis XIV e como objeto
de análise um conjunto complexo de grupos interdependentes de elite (a nobreza de espada
e a nobreza de toga) que se rivalizam mutuamente, Elias apresenta uma radiografia densa
da posição sempre instável de cada um desses grupos, apreendida por meio de uma
perspectiva relacional. A corte, enquanto centro de sociabilidade do rei e da nobreza,
expressa uma tensão particular entre os grupos e as pessoas que devem ao rei sua garantia
social e a possibilidade de sua ascensão, e aqueles que disputam um título de nobreza
hereditária. É jogando com essa tensão que o rei governa e assegura o exercício de seu
poder. A dimensão estrutural desse campo social “se manifesta por meio do equilíbrio
instável” na corte real, com suas inúmeras camadas e grupos sociais em disputa
permanente, sem que nenhum disponha de uma “base suficientemente forte para estabelecer
sua dominação em face dos outros grupos sociais e em face do rei”6.
A nobreza do corte é, para Luis XIV, a sua sociedade. Ela lhe pertence, ao mesmo
tempo em que dela se distancia. Essa atitude ambivalente do rei diante da nobreza não é,
entretanto, a expressão de uma escolha arbitrária de um soberano isolado. Ao contrário,
resulta de razões históricas e estruturais. No curso dos séculos XVII e XVIII, a corte real,
em função do aumento contínuo do poder do rei e de seu prestígio social - assegurado pelo
monopólio fiscal, militar e pela etiqueta - tornar-se o verdadeiro centro do país e a única
garantia para a manutenção do valor e do prestígio social da nobreza que nela consegue se
integrar. Privada de uma parte de suas bases financeiras e das funções administrativas e
judiciárias, a chamada nobreza de espada tem necessidade do rei para se contrapor à
nobreza de toga, composta por aqueles segmentos burgueses que acederam à corte por meio
da compra de cargos públicos e pelo exercício das funções burocráticas. Estes, por sua vez,
também dependem do rei para lhes proteger contra as ameaças e a arrogância de uma
nobreza ainda fortemente arraigada na tradição cavalheiresca, de forma a impedir que ela
fosse por demais privilegiada.
6 Idem, p.189.
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O rei governa, seu governo é absoluto, porque tanto um como outros dos grupos
rivais, em disputa permanente, mas sem condições reais para o monopólio efetivo do poder
político, têm necessidade do rei. Nessa intrincada malha de poder, o rei, quando necessário
para a manutenção de sua posição, se utiliza de um grupo contra o outro. Em certas
circunstâncias, se apóia sobre os grupos burgueses encarregados das finanças e das funções
burocráticas, deixando de ser um primus inter pares da nobreza de corte ao se distanciar
dela; em outras, se apóia na nobreza para se afastar da burguesia. Protetor de cada um
contra a ameaça que representam os outros, o rei é, nesse contexto, o assegurador da paz
social.
Em comum, todos os grupos que se relacionam na corte – o rei inclusive – lutam
para a manutenção dos privilégios de sua existência social, vistos como valores em si. Os
conceitos de nação e de Estado inexistem na consciência desses grupos. A sorte das massas
situa-se para além de seus horizontes. A idéia de que se pode promover o desenvolvimento
do país e aumentar o nível de renda da população também lhes é estranha. Outra era a sua
racionalidade: aristocrática, entranhada no cálculo de oportunidades, tendo em vista a
aquisição ou o aumento de prestígio e de status social.
Tal racionalidade tem origem, segundo Elias, nas relações de interdependência das
elites do Antigo Regime. “Cada ação do rei – ação que se realiza talvez sob a forma de uma
decisão tomada em toda liberdade – estabelece, ao mesmo tempo, sua dependência em
relação aos grupos e pessoas com os quais se relaciona, na medida em que estes podem se
opor ao seu ato ou ao menos reagir a ele de uma maneira imprevisível” 7. Essa oposição,
ressalve-se, é limitada, pois todos dependem do rei para a sua sobrevivência social. A
vontade desses grupos de permanecerem como “grupos de elite, cujo desaparecimento
equivaleria a sua autodestruição, vai na mesma direção das ambições do rei”8. Uns e outros
se encontram, pois, irremediavelmente atados: o que implica reconhecer que a tendência
para sua auto-dominação e a dominação do rei são duas faces da mesma moeda.
A exploração sistemática desses antagonismos que envolvem os menores detalhes
da vida social dos membros da corte, assim como a produção ininterrupta de segmentações
entre eles, evidencia a dimensão estrutural do exercício do poder absolutista e do seu
7 Cf. Norbert Elias, La societé de Cour, p.152. 8 Idem, p.115.
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campo de dominação. Nele sobressai o cálculo aristocrático, acionado por essas elites com
o intuito deliberado de sublinhar a sua importância e diferenciação social. Por esta razão, a
busca de prestígio, correlata a um sistema de habitação, gastos e de consumo marcados pelo
“excesso” e pelo “luxo”, aparece como elemento decisivo na sociabilidade de seus
integrantes. Como mostra Elias, recorrendo a Weber, “o que nos aparece hoje como ‘luxo’
é na realidade uma necessidade dentro dessa sociedade extremamente hierarquizada”.
Constitui um dos “instrumentos indispensáveis de auto-afirmação social”9.
O desejo e a necessidade que os grupos de elite têm de se diferenciarem e de se
distinguirem entre si e em relação aos outros segmentos da sociedade, com os quais
procuram demarcar e sublinhar a sua distância social, encontram, segundo Elias, “sua
expressão verbal em palavras tais como ‘valor’, ‘consideração’, ‘distinção’, entre outras, de
forma que seu uso corrente é, ao mesmo tempo, um signo de pertencimento a um grupo
social e um apelo às obrigações que decorrem da adesão aos seus ideais sociais”10. Esta
dimensão discursiva ancora-se na materialidade da vida da corte, através de seu sistema de
gastos, de moradia, de consumo, da arte de se observarem, de controlarem os outros e a si
mesmos, da maneira particular como concebem e utilizam a etiqueta.
A auto-representação desta sociedade constrói-se a partir da etiqueta em ação:
“cada um se distinguindo do outro, todos em conjunto se distinguindo das pessoas
estranhas ao grupo, cada um e todos em conjunto se administrando a prova do valor
absoluto de sua existência. Cada um dependendo de cada um, todos dependendo do rei”11.
Eis aí, e de forma condensada, o paradoxo central da sociedade de corte: “a superioridade
social nela se afirma pela submissão política e simbólica. É apenas aceitando a sua
domesticação pelo soberano e sua sujeição às formalidades coercitivas da etiqueta de corte
que a aristocracia pode manter a distância que a separa de sua concorrente pela dominação:
a burguesia burocrata. A lógica da corte é, portanto, a de uma distinção pela
dependência”12.
9 Idem, p.35. 10 Idem. P.44. 11 Idem, p.98. 12 Cf. Roger Chartier, “Prefácio – formação social e economia psíquica: a sociedade da corte no processo civilizador”, op., cit., p.21.
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A força da análise empreendida por Elias, proporcional ao desvendamento da rede
de constrangimentos cruzados que ata e enreda a sociabilidade desses grupos de elite, faz
emergir “uma imagem palpitante, provocativa e tumultuada (da) dinâmica da vida social”13.
Isto se deve, de um lado, ao arsenal conceitual utilizado para circunscrever, em novas
chaves interpretativas, os nexos que articulam os domínios da econômica, da política, do
simbolismo, das pulsões individuais e coletivas, dos processos que perfazem a vida social.
Noções como a de formação social, figuração, interdependência e circulação de
constrangimentos são decisivas para o re-equacionamento sociológico da questão da
determinação. Aliado a isso, a perspectiva metodológica mais geral de Elias, central para
dar tônus à análise das evidências empíricas sob seu escrutínio.
Para apreender adequadamente a sociedade de corte é necessário, segundo Elias,
olhá-la a partir da nossa perspectiva (o que implica em falar dela na terceira pessoa) e, ao
mesmo tempo, a partir da sua perspectiva, como se estivéssemos escutando seus membros
falarem dela na primeira pessoa. Desse transe cruzado de vozes, surge a possibilidade de
assegurar aos homens e mulheres dessa e de outras formações sociais o seu “caráter
específico, único e diferenciado”14. Verdadeira lição de antropologia interpretativa, essa
máxima elisiana funciona como uma advertência para aqueles que, imbuídos da
racionalidade burguesa e apagados à idéia da cultura como razão prática, são incapazes de
se deixarem impregnar pelas lógicas simbólicas de formações sociais distintas das suas.
Impregnação tanto mais necessária quanto mais se avança na análise dos jogos de vida e
morte que conferem sentido à existência dos integrantes da sociedade de corte. Para tanto, é
necessário, como mostra Elias, que o pesquisador relativize suas noções do que sejam
“atitudes “racionais” ou “irracionais” em matéria de gostos, de consumo, de se comportar
frente aos outros, de habitar etc. Sem o que a compreensão da sociedade de corte está
fadada ao insucesso.
Para dar vigor a essa perspectiva metodológica, Elias se vale do enfoque e da
análise comparativa. Única maneira de determinar, por um lado, o que há de comum entre a
racionalidade aristocrática e a de outras sociedades, tradicionalmente estudadas pelos
13 Cf. Sérgio Miceli “Norbert Elias e a questão da determinação”, in: Leopoldo Waizbort (org.), Dossiê Norbert Elias, São Paulo, 1999, Edusp, p.118. 14 Cf. Norbert Elias, La societé de Cour, p.237.
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etnólogos, que praticam o ato de dar-receber-e-retribuir como parte de uma mesma e única
operação destinada à aquisição de prestígio e reconhecimento social. Por outro lado, só a
perspectiva comparativa permite definir, no plano conceitual, as similitudes e as diferenças
estruturais entre a sociedade de corte, com sua racionalidade aristocrática, e aquela que lhe
sucedeu no tempo, a sociedade industrial, criadora de uma racionalidade profissional de
tipo burguês.
O resultado da aplicação desse conjunto de preceitos metodológicos e de conceitos é
a compreensão alargada do universo de sociabilidade da corte e dos simbolismos de poder
que dão a essa formação social o seu caráter único e diferenciado, os quais são pinçados por
meio da análise da etiqueta, do luxo, do consumo suntuoso, do controle e autocontrole, dos
jogos de dissimulação e do sentimento condensado de superioridade social. Internalizado
sob a forma de uma segunda natureza, esse habitus aristocrático está na raiz de alguns
comportamentos que, à primeira vista, parecem bizarros. Se hoje parece improvável que as
mulheres de elite possam se despir na frente de seus empregados homens sem que isso lhes
cause embaraço, na corte, isso estava longe de ser um problema. Não porque as mulheres
daquele tempo fossem menos sujeitas aos sentimentos de vergonha e sim porque, sendo de
elites, sequer viam seus criados como homens. À estreita proximidade geográfica,
correspondia uma distância social colossal.
O “pulo do gato” de Elias reside justamente em testar a força explicativa do seu
modelo analítico, assentado na noção de figuração, em outros universos sociais à primeira
vista refratários a uma apreensão tão em filigrana dos simbolismos do poder - como é o
caso da corte. Refiro-me à análise sensacional que ele e John Scotson fizeram das relações,
da sociabilidade e dos mecanismos de poder acionados pelos habitantes de uma
comunidade industrial inglesa, ficticiamente denominada Winston Parva. Resultado de
aproximadamente três anos de pesquisa de campo, o livro apresenta uma etnografia densa
das relações de poder, na qual a “observação participante” se entrelaça com fontes diversas:
relatórios governamentais, documentos jurídicos, textos jornalísticos, entrevistas,
estatísticas oficiais. Um dos méritos substantivos desse estudo monográfico, como mostra
Federico Neiburg no texto de apresentação da edição brasileira, localiza-se “na
produtividade teórica desse ecletismo metodológico. O tratamento de fontes diversas
10
permite alcançar o conjunto de pontos de vista (e de posições sociais) que formam uma
figuração social, e compreender a natureza dos laços de interdependência que unem,
separam e hierarquizam indivíduos e grupos sociais”.15
Pois ainda que habitantes de Winston Parva compusessem uma comunidade
relativamente homogênea - se tomada pelos indicadores sociológicos habituais, como
renda, escolaridade, profissão, religião e nacionalidade - eles não se viam enquanto tais,
despendendo uma parte significativa de suas energias, pulsões e ambições na delimitação
de distinções. Iguais sob quaisquer critérios morfológicos, membros por inteiro da classe
operária inglesa, eles se viam e se pensavam como radicalmente distintos. Nesse erigir de
fronteiras simbólicas - pois é disso que se trata, uma vez que todos partilhavam condições
materiais análogas - o tempo converteu-se no suporte privilegiado para a demarcação das
diferenças que os separavam. De um lado, os moradores que, instalados na região há duas
ou três gerações, se viam e faziam de tudo para serem vistos como superiores. De outro, os
habitantes recém-chegados, outsiders em relação aos “estabelecidos” locais.
Para usar uma terminologia mais expressiva, de pronto reconhecimento em
português, o relacionamento dos grupos em pauta era do tipo “mocinhos e bandidos”16. E
isso tem conseqüências diretas no tipo de sociabilidade praticada por cada um deles.
Quanto mais os membros do grupo “estabelecido” se reconheciam como parte de um grupo
socialmente superior, maiores eram os constrangimentos que permeavam seu universo de
sociabilidade. Densa e intricada, se comparada à sociabilidade “frouxa” dos “outsiders”,
tais características longe de serem o resultado da pretensa superioridade de seus integrantes,
é o preço, digamos assim, que eles pagavam para permanecerem e se sentirem membros por
inteiro de uma “minoria dos melhores”. Como mostra Norbert Elias, “O orgulho por
encarnar o carisma do grupo e satisfação de pertencer a ele e de representar um grupo
poderoso – e, segundo a equação afetiva do indivíduo, singularmente valioso e
15 Cf. Federico Neiburg, “Apresentação à edição brasileira: a sociologia das relações de poder de Norbert Elias”, in: Norbert Elias e Jonh Scotson, Os estabelecidos e os outsiders, tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 2000, p.9. 16 Uso aqui o título da resenha que Sergio Miceli fez sobre esse livro. Cf. “Mocinhos e bandidos”, in : Jornal de Resenhas (suplemento do jornal Folha de S. Paulo) , n.64, pp.1-2, 8 de julho de 2000.
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humanamente superior – estão funcionalmente ligados à disposição dos membros de se
submeterem às obrigações que lhes são impostas pelo fato de pertencerem a esse grupo.”17
A adesão aos valores do grupo e o sentimento de serem pessoas melhores que seus
vizinhos cristalizam-se na fofoca auto celebrativa e na fofoca depreciativa dos outros. Uma
parte intensa da sociabilidade era posta a serviço da circulação dos mecanismos de boataria
e fofoca. Convertendo o tempo de residência no valor simbólico de máxima diferenciação,
os “estabelecidos” de extração operária transformaram-no nas “jóias de família”, num
processo que, fundado inteiramente no plano simbólico e acionada por meio da atribuição
de sentidos, deixa claro o quanto de arbitrário enlaça a vida social. Destituídos do capital
social e econômico dos grupos de elite, que usam o tempo para demarcar a sua diferença
em relação aos endinheirados de aquisição recente - os chamados de “novos ricos”- , os
“estabelecidos” de Winston Parva praticavam uma sociabilidade mais densa e, por tabela,
mais armada e auto-controlada que a de seus vizinhos, com os quais se relacionavam no
trabalho e na fábrica mas não no espaço do bairro. Estes, por sua vez, ao serem
sistematicamente destituídos das fontes e das chances de poder mobilizadas e
monopolizadas pelos “estabelecidos”, se viam aprisionados na estigmatização sofrida,
fechando-se sobre si mesmos para evitar que a imagem da “minoria dos piores” – os tais
dos jovens tidos como delinqüentes pelos “estabelecidos” – se estendesse sobre eles.
Para encerrar essa comunicação, importa sublinhar que o modelo analítico de Elias,
ao fazer de Winston Parva um paradigma empírico, mostra com força argumentativa
máxima que na apreensão dos processos sociais permeados por manifestações de poder e de
preconceito, o importante é não perder de vista a vinculação e o tipo de interdependência
que ata e enreda os grupos sociais. Nas palavras de Elias, “Quer os grupos a que se faz
referência ao falar de ‘relações raciais’ ou ‘preconceito racial’ difiram ou não quanto a sua
ascendência ‘racial’ e sua aparência, o aspecto saliente de sua relação é eles estarem ligados
de um modo que confere a uns recursos de poder muito maiores que os do outro e permite
que este grupo barre o acesso dos membros do outro ao centro dos recursos de poder e ao
contato mais estreito com seus próprios membros, com isso relegando-os a uma posição de
outsiders. Assim [...] a sociodinâmica da relação entre grupos interligados na condição de
17 Cf. Norbert Elias e Jonh Scotson, Os estabelecidos e os outsiders, op. cit, p.26.
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estabelecidos e outsiders é determinada por sua forma de vinculação e não por qualquer
característica que os grupos tenham, independentemente dela.”18
Nesse enredamento sustentado por formas de vinculação diversas, a sociabilidade
ocupa um lugar central. Por meio dela, os grupos marcam suas diferenças, expressam seu
capital simbólico, sinalizam suas chances de poder, conferem sentido aos seus integrantes.
Desse entrelaçamento entre simbolismo e sociabilidade, sobressai uma explicação vigorosa
da vida social avessa ao enquadramento simplista do poder como dispositivo específico
apenas dos grupos de elite.
18 Cf. Norbert Elias e John Scotson, Os estabelecidos e os outsiders , op. cit., p.32, grifos meus.