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1 LUSOFONIA E AFRICANIDADE ALÉM DA CURVA: UMA LEITURA DO CONCEITO “LUSOFONIA” EM MOÇAMBIQUE PELA VISÃO DE MIA COUTO Marcela Coitinho de Aquino e Castro (UVA) [email protected] Silvana Moreli Vicente Dias (UVA) [email protected] RESUMO Em meio a discussões e tentativas de Portugal em propagar a ideia de lusofonia, em especial dentro do grupo de países que fazem parte da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), questiona-se a posição dos moçambicanos neste projeto. Com isso, revela-se de suma importância entender como a ex-colônia portuguesa se coloca frente a um projeto de aliança com sua ex-metrópole. Representando seu povo, Mia Couto, um dos mais conhecidos escritores de Moçambique, assume uma opinião singular sobre o projeto lusófono por meio de seus livros, entrevistas, palestras e contos. Por conseguinte, o objeto deste trabalho é analisar, através da literatura moçambicana, se o projeto de lusofonia é cabível ou não em Moçambique. Além da análise de entrevistas, palestras e artigos do escritor Mia Couto, suas obras literárias carregam a substância de seu ponto de vista, mediado pela representação ficcional. Para tal, o conto “No Rio, Além da Curva”, que faz parte do livro Estórias Abensonhadas (2016), foi escolhido para ser analisado por meio de uma perspectiva crítica pós-colonial. “No rio, além da curva” recupera as narrativas orais africanas, uma vez que mistura conteúdos reais e maravilhosos, lançando mão de termos próprios dos dialetos moçambicanos. Isto posto, observa-se uma resistência do autor em relação ao colonizador e à sua cultura. Palavras-chave: Contos. Lusofonia. Moçambique. Portugal; Mia Couto. 1. Considerações iniciais O Brasil, como parte dos países que possuem a língua portuguesa como língua nativa, é membro de uma comunidade de países que possuem, ou deveriam possuir, pensamentos comuns. Porém, com a pluralidade da história e cultura destes países, a criação de uma parceria forte entre os países de língua portuguesa ainda é um objetivo a ser alcançado.

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LUSOFONIA E AFRICANIDADE ALÉM DA CURVA: UMA LEITURA DO CONCEITO “LUSOFONIA” EM

MOÇAMBIQUE PELA VISÃO DE MIA COUTO

Marcela Coitinho de Aquino e Castro (UVA) [email protected]

Silvana Moreli Vicente Dias (UVA) [email protected]

RESUMO

Em meio a discussões e tentativas de Portugal em propagar a ideia de lusofonia, em especial dentro do grupo de países que fazem parte da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), questiona-se a posição dos moçambicanos neste projeto. Com isso, revela-se de suma importância entender como a ex-colônia portuguesa se coloca frente a um projeto de aliança com sua ex-metrópole. Representando seu povo, Mia Couto, um dos mais conhecidos escritores de Moçambique, assume uma opinião singular sobre o projeto lusófono por meio de seus livros, entrevistas, palestras e contos. Por conseguinte, o objeto deste trabalho é analisar, através da literatura moçambicana, se o projeto de lusofonia é cabível ou não em Moçambique. Além da análise de entrevistas, palestras e artigos do escritor Mia Couto, suas obras literárias carregam a substância de seu ponto de vista, mediado pela representação ficcional. Para tal, o conto “No Rio, Além da Curva”, que faz parte do livro Estórias Abensonhadas (2016), foi escolhido para ser analisado por meio de uma perspectiva crítica pós-colonial. “No rio, além da curva” recupera as narrativas orais africanas, uma vez que mistura conteúdos reais e maravilhosos, lançando mão de termos próprios dos dialetos moçambicanos. Isto posto, observa-se uma resistência do autor em relação ao colonizador e à sua cultura.

Palavras-chave: Contos. Lusofonia. Moçambique. Portugal; Mia Couto.

1. Considerações iniciais

O Brasil, como parte dos países que possuem a língua portuguesa como língua nativa, é membro de uma comunidade de países que possuem, ou deveriam possuir, pensamentos comuns. Porém, com a pluralidade da história e cultura destes países, a criação de uma parceria forte entre os países de língua portuguesa ainda é um objetivo a ser alcançado.

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O presente trabalho mostra-se especialmente relevante devido à posição que o Brasil ocupa de primeiro lugar de país com maior número de falantes nativos do português. Porém, sua produção científica sobre lusofonia é numericamente muito menor do que aquela de sua antiga metrópole europeia.

Este artigo procura refletir sobre posição de Moçambique em relação à defesa ou não da ideia de lusofonia, considerando suas especificidades históricas, sociais, políticas e culturais. Um dos escritores moçambicanos mais conhecidos nos países lusófonos e no mundo, com forte opinião política e cultural em defesa de Moçambique, é Mia Couto. O escritor, além de ser engajado na comunidade lusófona e global, escreve de forma sensível, conseguindo transportar os leitores para sua terra natal, de modo a se transmitirem sentidos complexos sobre o povo moçambicano.

Devido ao fato de Moçambique fazer parte da comunidade lusófona e da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa –, com evidentes aproximações culturais, Mia Couto se inspirou em muitos escritores brasileiros. Além disso, o estudo da questão de lusofonia vai além da curiosidade histórico-linguística ou histórico-cultural dos países que tiveram Portugal com metrópole no passado. A ideia de lusofonia é tema estudado com paixão e compaixão, pois os países de origem portuguesa muitas vezes se sentem ligados uns aos outros. E, de igual modo, são investidos por interesses políticos, estratégicos, econômicos, sociais e, sobretudo, interesses culturais. Porém, cabe a cada escritor decidir o que irá impulsionar seus estudos. O exposto trabalho foi guiado por compaixão por um povo com uma história e uma literatura admiráveis, além de curiosidade em aprender mais sobre a questão lusófona que atinge tanto Brasil quanto Moçambique, apesar de suas singularidades e diferenças.

O objetivo deste trabalho é explicitar a posição de Moçambique sobre projeto de Lusofonia de Portugal, pelos olhos do grande e renomado escritor moçambicano Mia Couto. Para tal, são estudados suas entrevistas e seus artigos, além de artigos e livros de diversos pesquisadores dedicados a temas como a literatura contemporânea moçambicana e a lusofonia no mundo. Ademais, o conto “No rio, além da curva”, de Mia Couto, será analisado a partir de temas como a lusofonia e a cultura nacional moçambicana.

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Com isso, aponta-se a hipótese de que há uma resistência cultural e um afastamento consciente por parte da nação de Moçambique em participar de projeto conduzido substancialmente por Portugal. Assim sendo, a criação de uma lusofonia presente e forte mundialmente, do ponto de vista do escritor e estudioso Mia Couto, deverá abrir novos caminhos, que deem conta da heterogeneidade das comunidades lusófonas espalhadas no globo.

2. Uma Breve História

Primeiramente, é essencial situar o cenário, a história de Moçambique e seu papel na comunidade dos países de língua portuguesa. Sobre o domínio português durante mais de cinco séculos, Moçambique sofreu enormes consequências da exploração de Portugal, perdendo sua identidade moçambicana e africana para uma cultura eurocêntrica. Porém, sua história não começa com a colonização e, sim, muito antes.

Segundo Carmen Lucia Secco (1994), as etnias africanas de origem bantu habitavam o continente até a islamização da costa oriental em meados do século VII. Visando impor o poder, o Ocidente caracterizava os árabes e os indianos como povos nómades, exóticos, desonestos, ladrões, traficantes de escravos, ouro e marfim.

Secco (1994) aponta que, na tentativa de eliminar os cultos e costumes árabes, a colonização lusitana separou os povos, segregando-os principalmente a partir da segunda metade do século XIX. Contudo, algumas ilhas foram esquecidas pela metrópole e guardam muitas de suas tradições, arquitetura e costumes do período pré-colonial.

Devido ao conceito de superioridade de outras culturas em relação aos países africanos colonizados, criou-se uma ideia generalizada sobre “ser africano”, como se cada país não tivesse suas particularidades. Entretanto:

A África não pode ser reduzida a uma entidade simples, fácil de entender. Nosso continente é feito de profunda diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos patrimônios do nosso continente. Quando mencionamos essas

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mestiçagens, falamos com algum receio, como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. (COUTO, 2005)

Somente em 1974 Moçambique conseguiu a independência de Portugal se tornando um país livre, mas, em 1977, já começaria a Guerra Civil que destruiria mais ainda o país. Este conflito sangrento, fruto da Guerra Fria, devastaria e aumentaria a pobreza no solo moçambicano. Ao mesmo tempo em que Moçambique enfrentava mais quase 20 anos de guerra, crescia em Portugal o projeto para unificar as ex-colônias portuguesas e suas metrópoles, mas agora voltando-se para uma unificação linguística, de todos os países falantes de língua portuguesa. Este projeto consubstancia-se no conceito de “lusofonia”.

3. Perspectivas da Lusofonia hoje

Como cita Faraco (2016), o termo “lusofonia” começou a circular em Portugal anos depois da descolonização. Fernando Pessoa, em 1999, acreditava que o português seria uma das três principais línguas do futuro, apesar de não chegar à importância do inglês. Para o escritor português, as línguas mais difundidas seriam: “O inglês (que já tem uma larga difusão), o espanhol e português [...] Será, portanto, numa dessas três línguas que o futuro do futuro assentará” (PESSOA, 1999, p. 149-50), diria.

Porém, o colonialismo português foi o último a se desmanchar, só ocorrendo em 1974/75, depois de 15 anos de guerras coloniais e de 20 anos da resistência Salazarista. Assim, só depois de sua reconstrução e integração à Comunidade Europeia – em meados de 1980 – é que, em Portugal, se começa a falar de lusofonia. Mas o que é lusofonia?

Como o presente trabalho pretende explicitar a visão de lusofonia da população de Moçambique através dos olhos do autor moçambicano Mia Couto, foi escolhido, como foco de definição do termo “lusofonia”, aquele que predomina no âmbito linguístico, apesar de não esquecer as questões políticas e econômicas também implicadas.

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Para Pires Laranjeiras (2002), o conceito de lusofonia é mais integrado à “comunidade linguística”, já que, para o autor, a lusofonia constitui a:

[...] prática e a teoria de se aceitar que os falantes e escreventes de língua portuguesa constituem uma comunidade linguística, nela reconhecendo, por via da língua, uma herança comum e um projeto cultural, político e económico que poderá também ser, cada vez mais, comum de oito 7 países independentes, mais comunidades de emigrantes espalhadas pelo mundo. (LARANJEIRA, 2002)

Para o escritor brasileiro Faraco (2012), lusofonia seria o projeto de reunir todos os países de língua portuguesa (mais a Galiza), sem esquecer-se das diversas diásporas de fala portuguesa, para a construção de “políticas linguísticas” que pretendem um progresso coletivo da língua, no interior do bloco dos países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – e também na esfera global.

De acordo com a concepção de Pires Laranjeira (2001), a língua portuguesa serviu “de língua de aculturação e de assimilação” e que, depois das independências, “passou a língua da unidade e coesão nacionais e da comunicação nacional (inter-regional) e internacional” (LARANJEIRA, 2001, p. 73).

Contudo, Mia Couto, em uma das intervenções públicas – especificamente, “Oração de Sapiência”, oferecida na Universidade de Faro, em 2001, publicada no livro E se Obama fosse africano? –, apenas 3% dos moçambicanos têm o português como língua materna (COUTO, 2009). Com números tão baixos em relação a Portugal e ao Brasil, como Moçambique seria inserido no âmbito da lusofonia? De modo periférico?

4. Mia Couto e o Projeto Lusófono

Mia Couto defende a ideia de que o governo moçambicano fez mais pela língua portuguesa nesse curto período de tempo pós-libertação que Portugal fez nos 500 anos de colonização. A diferença é que não o fez por causa da lusofonia e nem para demonstrar nada às outras nações.

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O interesse sempre foi nacional, pela “defesa da coesão interna, pela construção de sua própria interioridade” (COUTO, 2009, p. 96).

Em sua conversa na sessão “Camões dá o que falar”, apresentada pelo Jornal Camões,1 o autor de Estórias Abensonhadas explicita que a comunidade global e a comunidade dos países de CPLP precisam compreender que milhões de moçambicanos não falam português, e outros milhões falam como a segunda língua.

Para o escritor, falta sensibilidade para perceber que muitos moçambicanos amam a sua língua materna. Sabe-se que, em um cenário mundial, é difícil ver os fatos com sensibilidade, já que os representantes tendem a resolver politicamente ou administrativamente seus conflitos.

Para Mia Couto a questão principal é perceber que Moçambique “tem mais de 25 línguas diversas” e o Moçambique lusófono é apenas “uma dessas nações”. Assim, as outras línguas só não querem que o projeto de lusofonia as exclua, colocando-as em uma margem.

Por fim, entende-se que Mia Couto não é contrário ao projeto de lusofonia, mas, sim, é contrário a uma perspectiva homogênea e insensível à diversidade, como tem sido até o momento. Desta forma, o escritor deixa bem explícito como este deve se desenvolver para obter êxito tanto no solo português europeu, quanto no solo africano. Portanto:

Para que o projecto da lusofonia funcione em Moçambique, ele deve apoiar a defesa de outras culturas moçambicanas. Essas culturas e línguas de raiz bantu necessitam de sobreviver perante a hegemonia de uma certa uniformização. Mas essa sobrevivência não decorrerá do facto de realizarmos workshops e levantarmos bandeiras nostálgicas do passado e da tradição. Alguns idiomas de Moçambique extinguir-se-ão, e esse destino tiveram e continuam tendo milhares de outras línguas. Sobreviverão as línguas que estiverem na dinâmica da nossa própria modernidade, aquelas que souberem cruzar-se com o tempo, mestiçar-se com o português. E com o inglês. E com todas as línguas. Na medida em que estiver apta para esses namoros, a lusofonia será viável. Como no mundo biológico, ela será viável se for fértil. (COUTO, 2009, p. 96)

1 Disponível em: http://www.instituto-camoes.pt/images/pdf_encarte/encartejl253.pdf. Acesso

em: 20 set. 2019.

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Compreende-se então que um projeto lusófono não necessariamente precisa ser uma utopia, mas é preciso encaminhar alguns ajustes para que alcance todos os países. É importante perceber que, como Mia Couto demonstra em seus livros de contos e defende em suas entrevistas, para compreender Moçambique, situado na costa leste do continente africano, não se pode olhá-lo como uma perspectiva ocidental e globalizante.

O moçambicano e o africano possuem uma relação muito íntima com a natureza, as crenças, sua história antes da colonização e com o meio que vivem. Em outros países ocidentais, infelizmente, essa essência muitas vezes é perdida dando lugar a ideias capitalistas, modernas e globalizadas, sobretudo quando há excessiva urbanização.

Apresentados todos esses pressupostos, seguiremos com a análise do conto “No rio, além da curva”, de Mia Couto, que faz parte do livro Estórias Abensonhadas (1994).

5. Leitura Crítica do Conto “No rio, além da curva”, de Mia Couto

Em Estórias Abensonhadas, que teve sua primeira edição em 1994, o escritor retrata o reviver e a esperança do povo moçambicano, através de contos que ajudam a narrar “a reconstrução das vozes identitárias moçambicanas” e têm “reforçado o interesse na riqueza e importância das práticas sócias, culturais e linguísticas de Moçambique” (CALADO, 2009, p. 12). Assim, o conto “No Rio, Além da Curva” está inserido no contexto de resistência pós-independência.

De acordo com Bosi, a resistência pode ser “um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico.” (BOSI, 2002, p. 26). Parece ser esse o movimento que encontramos na escrita de Mia Couto, que une, de modo inextrincável, forma e conteúdo. Segundo Laranjeiras:

Nos contos (ou estórias, segundo a designação usada por Mia Couto e também pelo precursor angolano José Luandino Vieira, além do brasileiro Guimarães Rosa), o escritor dedicara-se sobretudo a efabular histórias ro-cambolescas, cómicas, satíricas ou piedosas, conforme se tratasse de episódios inusitados, críticas de costumes, recriminações sociais ou

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políticas, compaixões étnicas, etc. Os contos permitem a ligeireza da ação (o seu rápido desenvolvimento) ou simplesmente o esboço de um típico quadro societário. (LARANJEIRAS, 2001, p. 196)

O conto começa com uma citação em um jornal local sobre a invasão de um hipopótamo no Centro de Alfabetização e de Corte e Costura do bairro da Munhava. A notícia ainda abre a possibilidade de o animal ser um velho cidadão que vinha anunciar profecias, fazendo referência à valorização dos mitos africanos que são contados de geração a geração. Além disso, o narrador se manifesta na primeira pessoa do singular nos dois primeiros parágrafos, participando como um contador de histórias e, assim, valorizando a oralidade tão presente na cultura moçambicana. Após os dois primeiros parágrafos, o narrador se prende ao causo vivido pelo protagonista, adotando a terceira pessoa do singular.

O personagem principal do conto se chama Jordão Ninguém, que tem como significado do primeiro nome “aquele que desce”, fazendo alusão ao final da história. Porém, ele possui o sobrenome “Ninguém”, como um ser “qualquer”, sem identidade. Segundo Calado, “num longo período de conflitos e subordinação aos portugueses, os moçambicanos passaram por processos de aculturação e de escravização, que resultaram na perda, em parte, da sua identidade” (CALADO, 2009, p. 9). Dessa forma, Jordão presenta o moçambicano que foi reprimido e ofuscado, de tal forma que passou a não se reconhecer em sua própria terra.

O cidadão milícia Jordão Ninguém acorda assustado com os barulhos vindos da escola. Em seguida, puxa uma arma rumo ao local, pedindo reforços dos céus para os xicuembos, que são feiticeiros da cultura popular moçambicana que podem se transformar em animais sagrados e possuem o poder da profecia. A reza de Jordão Qualquer aos xicuembos demonstra sua crença e/ou convivência íntima com a cultura popular de Moçambique.

O miliciano, na mesma hora em que olha o gigante hipopótamo (que mais a frente o leitor verá ser, na verdade, uma hipopótama), vê lembranças de seu povo. Assim, narra-se:

Naqueles segundos de hesitação, o miliciano lembrou o antigamente. Os caçadores do mpfuvo, no cumprimento da tradição, não partiam para o rio sem a benção dos vapores mágicos. Marido e mulher se enfumavam daquele remédio para ganharem as boas sortes. Quando o caçador espetava a primeira azagaia na presa um mensageiro ia à aldeia avisar a

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esposa. A partir de então a mulher estava proibida de sair de casa. Acendia o lume a ficava a guardar a fogueirinha, sem comer e sem beber. Se ela desobedecesse, o seu marido sofreria as raivas do hipopótamo: a vítima virava caçador. Estar assim em clausura era coisa que também prendia a alma do bicho, impedindo o paquiderme de fugir de seu espaço fatal. O encerramento da mulher só terminava quando, vindas lá do rio, se escutavam a alegria da consumação da caça. Na povoação, todos se alegravam menos ele, Jordão Qualquer. As azagaias pareciam sempre ter ferido sua alma, lá na extensão do rio. (COUTO, 2012, p. 98-9)

A “hipopótama” avança para destruir, não por acaso, a máquina de costura na escola de Corte e Costura do local. Semelhante à tradição da caça, “a vítima virava caçador”, e a “hipopótama” tenta engolir uma instituição de afirmação doméstica de condição social feminina. Então, expressa raiva ao se deparar com as imposições dos colonizadores. A “hipopótama” representa literariamente a figura feminina moçambicana, que foi obrigada a se mecanizar e esquecer suas tradições e agora luta, resistindo às imposições do colonizador.

O impulso de Jordão Ninguém é atirar contra a “hipopótama”, matando-a. A ação impulsiva de matar o animal foi o auge para a busca contínua de Jordão Qualquer por sua identidade. Porém, essa se encontra perdida, mesmo após a independência política de Moçambique. Ora a ideologia dominante dos colonizadores ainda predomina, ora as tradições de seu povo prevalecem. Nesta cena, Jordão Qualquer se apropria do pensamento de colonizador matando um animal. Diante da confusão mental, Jordão se transporta para uma lembrança:

Jordão se lembrou como, em criança, ele se enternecia dos mpfuvos, seus desajeitosos modos: tanta nuca para nenhum pescoço! Tão gordos que pareciam aptos para toda a dança. Porque aqueles desastrados bichos, tão pouco terrestres, lhe eram afinal irmãos: ambos não tinham lugar entre a gente. Jordão sonhava com os animais, pareciam canoas viradas do avesso na lenta superfície do rio. E ele, no sonho, montava-lhes os dorsos e subia o rio, além da curva. Esse era o devaneio maior: descobrir o adiante da humana paisagem, encontrar o lugar para além de todos os lugares. (COUTO, 2012, p. 99-100)

Jordão Qualquer então faz uma prece ao xicuembo, arrependendo-se por ter matado a “hipopótama”, reconhecendo, por consequência, naquele animal, uma irmandade. Neste mesmo momento, o filhote deixado pelo animal aparece, conquistando a atenção de Jordão. O filhote o convida para o passeio além da curva do rio. O rio representa assim a

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trajetória de vida de todos os moçambicanos colonizados que seguem o fluxo da vida em busca do autoconhecimento. Desse modo:

Quando chegou ao rio, o hipopotaminho se empinou em enorme festa e se juntou à familiar manada. Enquanto contemplava a cena, Jordão começou a insuportar o peso da arma. O ombro lhe adoecia da tal carga. Em gesto brusco, como se despedisse de uma parte de si, lançou a espingarda no rio. Foi nesse momento que escutou a humana voz. Vinha de onde? Vinha do pequeno filhote que salvara:

– Sobe naquela canoa virada. Canoa? Aquele espesso volume acima da superfície? A voz repetia o

convite: – Vem. Eu te mostro o rio além da curva. Então, já tornado encantável, o desarmado Jordão subiu o dorso

húmido do sonho e extravagou-se pelo avesso da corrente. (COUTO, 2012, p.101).

Dessa maneira, ao escolher o caminho além da curva, Jordão Qualquer se reconhece no discurso contra hegemônico e parte, através do sonho, em busca de do autoconhecimento e do retorno às suas origens.

6. Considerações finais

Portanto, se pode notar um retorno às origens africanas no conto analisado acima. Mia Couto utiliza termos de línguas nativas de Moçambique para um encontro entre o passado africano e o presente de resistência e de tentativa de reencontrar a identidade moçambicana. O escritor consegue mesclar um cenário real com cenas imaginárias. Essa característica também remete à africanidade, já que os africanos possuem muitas histórias antigas de seus antepassados sobre mitos e deuses.

Também se deve perceber que, no conto Mia Couto, não há um português rebuscado, mas, sim, um português com traços moçambicanos, que valoriza a oralidade, marca muito importante na cultura moçambicana.

Além do mais, existe uma revolta contra a hegemonia de Portugal, de modo que os personagens do conto lutam para que se encontrem novamente. Para os moçambicanos, as consequências da colonização são encontradas muito fortemente até hoje, e todos os dias eles lutam para amenizá-las.

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Por fim, após todos esses argumentos tanto teórico-analíticos, conduzidos por parte dos escritores e pesquisadores, quanto de natureza artístico-literária, como percebemos pela leitura do conto “No rio, além da curva”, se conclui que, como o próprio escritor explicitou, Moçambique precisa de um projeto de lusofonia que se adapte a sua história e a sua identidade, com toda da complexidade.

Para que um projeto englobe diversos países, de diferentes características, culturas e identidades, é necessária uma flexibilidade. A fim de a lusofonia se encaminhe e colabore para o bem de todos os envolvidos, ela precisa envolver as nações em sua diversidade. Em um mundo globalizado, é um paradoxo pensar que um projeto global precise ser hegemônico; pelo contrário, pode e deve se constituir também como voz das nações periféricas e mais desfavorecidas no concerto das nações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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COUTO, M. Economia: a fronteira da cultura. Maputo: AMECON, 2003. Disponível em: http://www.macua.org/miacouto/Mia_Couto_Amecom 2003.html. Acesso em: ago. 2018.

______. Pensatempos: textos de opinião. 2. ed. Lisboa, Portugal: Editorial Caminho, 2005.

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______. Estória Abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

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FARACO, CA. Lusofonia: utopia ou quimera? Língua, história e política. In: LOBO, T.; CARNEIRO, Z.; SOLEDADE, J.; ALMEIDA, A.; RIBEIRO, S. (Orgs). Rosae: linguística histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador: EDUFBA, 2012.

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