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Freud

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  • Sigmund Freud

    Totem e tabuAlgumas concordncias entre

    a vida psquica dos homens primitivos e a dos neurticos

    Traduo depaulo csar de souza

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  • Copyright da traduo 2012 by Paulo Csar Lima de Souza

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    A presente edio tem supresses pontuais.

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    Penguin Group (usa) Inc. Used with permission.

    Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (usa) Inc.

    ttulo originalTotem und Tabu. ber einige bereinstimmungen

    im Seelenleben der Wilden und der Neurotiker. Publicado como livro em 1913.

    capa e projeto grfico penguin-companhiawarrakloureiro

    preparaoClia Euvaldo

    revisoHuendel Viana

    Adriana Cristina Bairrada

    [2013]Todos os direitos desta edio reservados

    editora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32

    04532002 So Paulo spTelefone: (11) 37073500 Fax: (11) 37073501

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    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)(Cmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

    Freud, Sigmund, 18561939.Totem e tabu: algumas concordncias entre a vida psquica

    dos homens primitivos e a dos neurticos / Sigmund Freud; traduo de Paulo Csar de Souza. 1a ed. So Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013.

    Ttulo original: Totem und Tabu. ber einige bereinstimmungen im Seelenleben der Wilden und der Neurotiker.

    isbn 978-85-63560-61-2

    1. Freud, Sigmund, 18561939. 2. Psicanlise. 3. Psicologia. 4. Psicoterapia. i. Ttulo

    13-00387 cdd-150.1954

    ndice para catlogo sistemtico:1. Sigmund, Freud: Obras completas: Psicologia analtica 150.1954

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  • Prefcio

    Os quatro ensaios seguintes originalmente publicados com um ttulo que agora o subttulo, nos dois primeiros volumes da revista Imago, por mim editada constituem minha primeira tentativa de aplicar perspectivas e resultados da psicanlise a problemas ainda no solucionados da psicologia dos povos. Eles oferecem um contraste metodolgico, por um lado, extensa obra de Wilhelm Wundt, que utiliza as hipteses e mtodos de trabalho da psicologia no analtica para o mesmo propsito, e, por outro lado, aos trabalhos da escola psicanaltica de Zurique, que buscam, inversamente, resolver problemas da psicologia individual com o auxlio de material etnopsicolgico [Jung]. De bom grado reconheo que de ambos os lados veio o estmulo imediato para meus prprios trabalhos.

    As deficincias desses ltimos me so familiares. No mencionarei aquelas relacionadas ao carter pioneiro de tais pesquisas. Outras, no entanto, exigem uma palavra introdutria. Os quatro ensaios aqui reunidos pedem o interesse de um crculo maior de leitores cultos e, no entanto, podem realmente ser entendidos e apreciados apenas pelos poucos aos quais a psicanlise no estranha em sua peculiaridade. Eles tambm querem fazer a intermediao entre etnlogos, linguistas, folcloristas etc., de um lado, e psicanalistas, de outro, mas no podem fornecer aos dois lados

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    aquilo que lhes falta: queles, uma satisfatria introduo nova tcnica psicanaltica; a estes, um domnio suficiente do material a ser trabalhado. Provavelmente tero de satisfazerse, pois, com atrair a ateno das duas partes e suscitar a expectativa de que uma cooperao mais frequente no deixaria de ser benfica para a pesquisa.

    Os dois temas principais que fornecem o ttulo deste pequeno livro, o totem e o tabu, no so nele tratados da mesma forma. A anlise do tabu aparece como tentativa segura e exaustiva de soluo do problema. A investigao sobre o totemismo limitase a declarar que isto o que a observao psicanaltica pode contribuir, no momento, para esclarecer a questo do totem. Tal diferena ligase ao fato de que o tabu ainda subsiste entre ns; embora considerado negativamente e dirigido a outros contedos, ele no outra coisa, em sua natureza psicolgica, seno o imperativo categrico de Kant, que tende a agir coercitivamente e rejeita qualquer motivao consciente. J o totemismo uma instituio socialreligiosa alheia sensibilidade atual, realmente h muito abandonada e substituda por novas formas, que deixou traos mnimos na religio, nos usos e costumes dos povos civilizados de hoje, e que teve de sofrer grandes transformaes mesmo nos povos que ainda a mantm. O avano tcnico e social da histria humana afetou muito menos o tabu do que o totem. Neste livro tentouse, ousadamente, descobrir o significado original do totemismo a partir de seus traos infantis, dos indcios que reafloram no desenvolvimento de nossas crianas. A estreita relao entre totem e tabu nos leva adiante na hiptese que sustentamos; e se, enfim, esta resulta bastante improvvel, esse carter no chega a representar objeo possibilidade de que ela se aproxime em alguma medida da realidade, de to difcil reconstruo.

    Roma, setembro de 1913.

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    IO horror ao incesto

    Conhecemos o homem prhistrico, nos estgios de desenvolvimento que percorreu, pelos monumentos e utenslios que nos deixou, pelas informaes sobre sua arte, sua religio e concepo de vida, que nos chegaram diretamente ou pela via da tradio, em lendas, mitos e fbulas, e pelos vestgios de sua mentalidade em nossos prprios usos e costumes. Alm de tudo, ele ainda , em certo sentido, nosso contemporneo; existem homens que acreditamos ainda estar bem prximos dos primitivos, bem mais prximos do que ns, nos quais vemos, portanto, seus representantes e descendentes diretos. Assim consideramos os que so chamados de selvagens e semisselvagens, cuja vida psquica tem especial interesse para ns, se nela pudermos reconhecer um estgio anterior e bem conservado de nossa prpria evoluo.

    Se esta premissa for correta, uma comparao entre a psicologia dos povos da natureza, tal como ensinada pela etnografia, e a psicologia dos neurticos, tal como foi revelada pela psicanlise, mostrar numerosas coincidncias e nos permitir ver sob nova luz fatos j conhecidos das duas disciplinas.

    Tanto por razes externas como internas, escolherei para essa comparao as tribos que foram descritas, pelos etngrafos, como as mais atrasadas e miserveis, as dos aborgenes do mais novo continente, a Austrlia, que tambm em sua fauna conservou muito de arcaico e j desaparecido em outras partes.

    Os aborgenes da Austrlia so vistos como uma raa particular, sem parentesco fsico nem lingustico com seus vizinhos mais prximos, os povos melansios, polinsios e malaios. Eles no constroem casas nem pa

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    lhoas permanentes, no trabalham o solo, no criam animais domsticos, exceto o co, e no conhecem nem mesmo a arte da cermica. Alimentamse quase exclusivamente da carne dos animais que abatem e das razes que desenterram. Eles desconhecem reis ou chefes, a assembleia dos homens maduros decide sobre as questes comuns. Traos de religio, na forma de adorao de seres superiores, dificilmente lhes podem ser atribudos. As tribos do interior do continente, que lidam com as mais duras condies de vida, em virtude da escassez de gua, parecem ser mais primitivas que as que moram na proximidade da costa.

    Certamente no esperaremos que esses pobres canibais nus observem uma moral como a nossa em sua vida sexual, que tenham imposto a seus instintos sexuais um alto grau de limitao. Sabemos, no entanto, que estabeleceram por meta, com enorme cuidado e penosa severidade, o impedimento de relaes sexuais incestuosas. De fato, toda a sua organizao social parece servir a tal propsito ou estar ligada sua realizao.

    No lugar das instituies sociais religiosas que no tm, achase entre os australianos o sistema do totemis-mo. Suas tribos dividemse em cls ou estirpes menores, cada qual nomeado segundo seu totem. Mas o que o totem? Via de regra um animal, comestvel, inofensivo ou perigoso, temido, e mais raramente uma planta ou fora da natureza (chuva, gua), que tem uma relao especial com todo o cl. O totem , em primeiro lugar, o ancestral comum do cl, mas tambm seu esprito protetor e auxiliar, que lhe envia orculos, e, mesmo quando perigoso para outros, conhece e poupa seus filhos. Os membros do cl, por sua vez, achamse na obrigao, sagrada e portadora de punio automtica, de no matar (destruir) seu totem e absterse de sua carne (ou dele usufruir de outro modo). O carter do totem no inerente a um s animal ou ser individual, mas a todos da espcie. De quando em

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    quando so celebradas festas, em que os membros do cl representam ou imitam, em danas cerimoniosas, os movimentos e as caractersticas de seu totem.

    O totem transmitido hereditariamente, por linha materna ou paterna. A primeira forma provavelmente a original em toda parte, apenas depois sendo substituda pela segunda. A relao com o totem o fundamento de todas as obrigaes sociais para um australiano; ela se sobrepe ao fato de pertencer a uma tribo, por um lado, e ao parentesco sanguneo, por outro lado [Frazer].

    Ele no se acha ligado a um solo ou lugar; seus membros moram separados uns dos outros e convivem pacificamente com os seguidores de outros totens.1

    1 Este resumo to sucinto do totemismo carece de algumas explicaes e reservas. A palavra totem foi tomada dos pelesvermelhas norteamericanos pelo ingls J. Long, na forma totam, em 1791. O objeto mesmo despertou gradualmente o interesse cientfico e deu origem a uma substancial literatura, na qual destaco, como obras principais, o livro em quatro volumes de J. G. Frazer, Totemism and exogamy, de 1910, e os livros e ensaios de Andrew Lang (The secret of the totem, de 1905). O mrito de haver percebido a importncia do totemismo para a prhistria da humanidade pertence ao escocs J. Ferguson McLennan (186970). Instituies totmicas foram ou so ainda hoje observadas tambm entre os ndios da Amrica do Norte, entre os povos da Oceania, na ndia Oriental e em boa parte da frica. Mas alguns traos e vestgios, que de outra forma seriam difceis de interpretar, levam a concluir que o totemismo tambm j existiu nos primeiros povos arianos e semitas da Europa e da sia, de modo que muitos pesquisadores se inclinam a nele enxergar uma fase necessria da evoluo humana, universalmente percorrida.

    Como chegaram os homens prhistricos a admitir um totem, ou seja, a tornar sua descendncia deste ou daquele animal o fundamento de suas obrigaes sociais e, como veremos, tambm de suas restries sexuais? Acerca disso h

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    Agora nos voltamos, enfim, para a caracterstica do sistema totmico que interessa tambm ao psicanalista. Em quase toda parte em que vigora o totem h tambm a lei de que membros do mesmo totem no podem ter relaes sexuais entre si, ou seja, tambm no podem se casar. a instituio da exogamia, ligada ao totem.

    Esta proibio, severamente mantida, bastante singular. Nada no conceito e nas caractersticas do totem, como at agora vimos, permite antecipla. No se compreende, ento, como foi includa no sistema do totemismo. Por isso no nos surpreendemos quando alguns pesquisadores supem que originalmente no comeo da histria e em seu verdadeiro sentido a exogamia nada tinha a ver com o totemismo, e foilhe agregada depois, sem vnculo mais

    vrias teorias, das quais o leitor alemo pode achar um sumrio na Vlkerpsychologie [Etnopsicologia], de W. Wundt (v. ii, Mythus und Religion), mas nenhum consenso entre elas. Pretendo fazer do problema do totemismo o objeto de um estudo especial, em que buscarei solucionlo com o auxlio da abordagem psicanaltica.

    No apenas a teoria do totemismo controversa, tambm os seus fatos mal podem ser enunciados em termos gerais, como tentei fazer acima. Quase no h afirmao a que no se tenha de acrescentar excees ou contradies. Mas no se deve esquecer que tambm os povos mais primitivos e conservadores so antigos, em determinado sentido, e tm um longo passado atrs de si, no qual seu elemento original sofreu bastante desenvolvimento e deformao. De modo que hoje em dia achamos o totemismo, nos povos que ainda o exibem, nas mais diversas fases de decadncia de fragmentao, de passagem para outras instituies religiosas e sociais, ou em configuraes estacionrias que podem se encontrar distantes de sua natureza original. Portanto, a dificuldade est em no ser fcil decidir o que, no presente estado de coisas, pode ser visto como retrato fiel do passado significativo ou como deformao secundria do mesmo.

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    profundo, quando limitaes ao casamento se revelaram necessrias. Como quer que seja, existe o lao entre totemismo e exogamia, e demonstra ser bastante firme.*

    Na exposio precedente quase no houve oportunidade de mostrarmos que a aplicao do ponto de vista psicanaltico pode levar a uma nova compreenso dos fatos da psicologia dos povos, pois o horror ao incesto, entre os selvagens, h muito foi percebido como tal e no requer maior interpretao. O que podemos acrescentar que ele constitui um trao peculiarmente infantil e uma notvel concordncia com a vida psquica dos neurticos. A psicanlise nos ensinou que a primeira escolha sexual do menino incestuosa, concerne aos objetos proibidos, me e irm, e tambm nos deu a conhecer as vias pelas quais ele se liberta, ao crescer, da atrao do incesto. J o neurtico representa para ns um qu de infantilismo psquico, ele no conseguiu libertarse das condies infantis da psicossexualidade ou reverteu a elas (inibio no desenvolvimento e regresso). Em sua vida psquica inconsciente, ento, as fixaes infantis incestuosas da libido tm ainda ou novamente um papel determinante. Por isso chegamos a ver a relao com os pais, dominada por anseios incestuosos, como o complexo nuclear da neurose. O descobrimento dessa importncia do incesto para a neurose depara naturalmente com a descrena geral das pessoas adultas e normais. A mesma rejeio encontram, por exemplo, os trabalhos de Otto Rank, que evidenciam cada vez mais como o tema do incesto est no mago do interesse dos escritores, fornecendo material poesia em incontveis variaes e distores. Somos levados a crer que tal rejeio , antes de tudo, um produto da

    * Aqui foram omitidas outras consideraes sobre tal proibio. [n.e.]

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    forte averso do homem a seus antigos desejos incestuosos, desde ento submetidos represso. Da no carecer de importncia, para ns, mostrar que os povos selvagens ainda veem como ameaadores, e merecedores de rigorosas medidas de defesa, os desejos incestuosos humanos fadados a se tornarem inconscientes.

    IIO tabu e a ambivalncia dos sentimentos

    1

    Tabu uma palavra polinsia cuja traduo nos apresenta dificuldades, pois j no possumos o conceito por ela designado. Entre os antigos romanos ele ainda era comum, o seu sacer era o mesmo que o tabu dos polinsios. Tambm o goV dos gregos e o kodausch dos hebreus devem ter significado o mesmo que os polinsios exprimem com tabu, e muitos povos da Amrica, frica (Madagascar), sia Central e do Norte, com denominaes anlogas.

    O significado de tabu se divide, para ns, em duas direes opostas. Por um lado quer dizer santo, consagrado; por outro, inquietante, perigoso, proibido, impuro. O contrrio de tabu, em polinsio, noa, ou seja, habitual, acessvel a todos. Assim, o tabu est ligado ideia de algo reservado, exprimese em proibies e restries, essencialmente. A nossa expresso temor sagrado corresponde frequentemente ao sentido de tabu.

    As restries do tabu so algo diverso das proibies religiosas ou morais. No procedem do mandamento de um deus, valem por si mesmas; distingueas das proibies morais o fato de no se inclurem num sistema que d por necessrias as privaes, de forma geral, e fundamenta esta necessidade. As proibies do tabu prescin

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    dem de qualquer fundamentao; tm origem desconhecida; para ns obscuras, parecem evidentes para aqueles sob o seu domnio.

    Wundt afirma que o tabu o mais antigo cdigo de leis no escritas da humanidade. Considerase geralmente que o tabu mais antigo que os deuses e remonta a pocas anteriores a qualquer religio.

    Como necessitamos de uma descrio imparcial do tabu, a fim de submetlo ao exame da psicanlise, transcrevo passagens do verbete Taboo, da Encyclopae dia Britannica, assinado pelo antroplogo Northcote W. Thomas.

    Propriamente falando, o tabu abrange apenas a) o carter sagrado (ou impuro) de pessoas ou coisas, b) o tipo de proibio que resulta desse carter, e c) a santidade (ou impureza) que resulta de uma violao da proibio. O contrrio de tabu, na Polinsia, noa e formas afins, que significam geral ou comum. []

    Num sentido mais amplo, vrias classes de tabu podem ser diferenciadas: 1. Tabu natural ou direto, resultado do mana (poder misterioso) inerente a uma coisa ou pessoa; 2. Comunicado ou indireto, igualmente resultado do mana, mas a) adquirido ou b) imposto por um sacerdote, chefe ou outro algum; 3. Interme dirio, em que ambos os fatores esto presen tes, co mo na apropriao de uma mulher pelo marido []. O termo tambm aplicado a outras restries ri tuais, mas no se deve chamar de tabu aquilo que melhor caracterizado como interdio religiosa.

    Os objetos de tabu so muitos: 1. Tabus diretos visam a) a proteo de pessoas importantes chefes, sacerdotes etc. contra qualquer dano; b) a salvaguarda dos fracos mulheres, crianas e pessoas comuns em geral em relao ao poderoso mana (influncia mgica) dos sacerdotes e chefes; c) a preveno contra os pe

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    rigos ligados manipulao ou contato com cadveres, ingesto de certos alimentos etc.; d) a garantia contra a interferncia em atos vitais importantes como nascimento, iniciao, casamento e atividade sexual etc.; e) a proteo de seres humanos contra a ira ou o poder de espritos e deuses; f) a proteo de crianas ainda no nascidas e de crianas pequenas, que tm um vnculo especialmente simptico com um ou ambos os genitores, quanto s consequncias de determinadas aes, em particular quanto transmisso de caractersticas supostamente derivadas de certos alimentos. 2. Tabus so impostos a fim de guardar de ladres a propriedade de um indivduo, seus campos, utenslios etc. [].

    O castigo para a violao de um tabu era originalmente deixado para uma instncia interior, de efeito automtico. O tabu ferido vinga a si mesmo. Mais tarde, quando surgiram ideias de deuses e espritos com os quais o tabu ficou associado, esperavase que a punio viesse automaticamente do poder divino. Em outros casos, provavelmente devido a uma ulterior evoluo do conceito, a prpria sociedade assumiu a punio dos infratores, cuja conduta ps em perigo os companheiros. Assim, os mais velhos sistemas penais da humanidade podem remontar ao tabu.

    A violao de um tabu torna tabu o prprio infrator. []. Alguns dos perigos trazidos pela violao podem ser conjurados por atos de penitncia e purificao.

    A fonte do tabu atribuda a um poder mgico especial que inerente s pessoas e espritos e pode ser transmitido por eles atravs de objetos inanimados.

    Pessoas ou coisas vistas como tabu podem ser comparadas a objetos carregados de eletricidade; so a sede de um poder tremendo, que transmissvel por contato e pode ser liberado com efeito destrutivo, se os organismos que

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    provocam sua descarga forem muito fracos para resistir a ele. O resultado da violao de um tabu depende, em parte, da fora da influncia mgica inerente ao objeto ou pessoa tabu e, em parte, da fora do mana contrria do violador do tabu. Assim, reis e chefes so possuidores de grande poder, e significa morte para seus sditos dirigirse a eles diretamente; mas um ministro ou outra pessoa de mana maior que o comum pode aproximarse deles impunemente, e tambm ser abordado sem risco por seus inferiores. [] Assim, tambm os tabus indiretos dependem, para sua fora, do mana daquele que os impe; se um chefe ou um sacerdote, eles so mais poderosos do que aqueles impostos por uma pessoa comum. []

    A transmissibilidade de um tabu , certamente, a caracterstica que deu ensejo a que se procurasse eliminlo com cerimnias de expiao.

    H tabus permanentes e temporrios. Sacerdotes e chefes so dos primeiros, assim como pessoas mortas e tudo a elas relacionado. Tabus temporrios ligamse a certos estados, como a menstruao e o parto, aos guerreiros antes e depois das expedies, s atividades de caa e pesca etc. Um tabu geral pode ser institudo sobre uma regio inteira, como uma interdio eclesistica, e durar anos e anos.

    Se avalio corretamente a impresso de meus leitores, creio poder afirmar que, aps toda essa comunicao sobre o tabu, eles no sabem exatamente o que entender por isso e onde abriglo em seu pensamento. Isto , sem dvida, consequncia da informao insuficiente que de mim receberam, e da ausncia de qualquer discusso sobre o nexo entre o tabu e a superstio, a crena nas almas e a religio. Por outro lado, receio que uma apresentao mais detalhada do que sabemos sobre o tabu tivesse um efeito ainda mais confuso, e posso garantir que a situao

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    realmente obscura. Tratase, ento, de toda uma srie de restries a que se submetem esses povos. Isso ou aquilo proibido, no sabemos por qu, e tambm no lhes ocorre fazer a pergunta; eles apenas as cumprem como algo bvio, e esto convencidos de que uma transgresso ser punida automaticamente, de forma severa. H relatos confiveis de que a inadvertida desobedincia a essa proibio foi realmente punida de forma automtica. O inocente infrator que comeu de um animal para ele proibido, por exemplo fica profundamente deprimido, aguarda sua morte e ento morre de fato. A maioria das proibies diz respeito capacidade de fruio, liberdade de movimento e comunicao. Em muitos casos parecem dotadas de sentido, indicam evidentemente certas abstinncias e renncias; em outros casos so de teor incompreensvel, contemplam detalhes sem valor, parecem de natureza inteiramente cerimonial. Por trs de todas essas proibies parece haver uma teoria, como se fossem necessrias porque certas coisas e pessoas detm uma fora perigosa que se transmite pelo contato com elas, quase como um contgio. Tambm a quantidade dessa perigosa caracterstica entra em considerao. Uma coisa ou pessoa tem mais dela do que outra, e o perigo varia conforme a diferena entre as cargas. O mais singular que quem chega a violar uma proibio dessas adquire ele mesmo a caracterstica do que proibido, como que assumindo toda a perigosa carga. Tal fora inerente a todos os que so algo especial, como reis, sacerdotes, recmnascidos, a todas as condies excepcionais, como os estados fsicos da menstruao, da puberdade, do nascimento, a tudo o que inquietante, como a doena e a morte, e ao que a eles se relaciona por fora de contgio ou difuso.

    Mas tabu igualmente tudo, tanto as pessoas como os lugares, objetos e estados passageiros, que so depositrios ou fonte dessa misteriosa caracterstica. Tambm se chama tabu a proibio que deriva dessa caracterstica;

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    denominado tabu, enfim, conforme seu sentido literal, algo simultaneamente sagrado, acima do habitual, e perigoso, impuro, inquietante.

    Nessa palavra e no sistema que ela designa se exprime algo da vida psquica, algo cujo entendimento ainda no est ao nosso alcance. Antes de tudo, parece difcil nos aproximarmos desse entendimento sem examinar a crena em espritos e demnios, peculiar a essas culturas to remotas.

    Mas por que devemos voltar nosso interesse para o enigma do tabu? Acho que no apenas porque todo problema psicolgico digno de uma tentativa de soluo, mas tambm por outros motivos. Suspeitamos que o tabu dos selvagens polinsios no se acha to longe de ns como pensvamos inicialmente, que as proibies morais e tradicionais a que obedecemos poderiam ser essencialmente aparentadas a esse tabu primitivo, e que o esclarecimento do tabu lanaria luz sobre a obscura origem de nosso prprio imperativo categrico.

    Portanto, com ateno plena de expectativa que veremos o que nos diz um estudioso como Wilhelm Wundt acerca do tabu, tanto mais porque ele promete remontar s razes ltimas da ideia de tabu.

    De acordo com Wundt, o conceito de tabu abrange todos os costumes em que se exprime o temor ante certos objetos ligados s ideias de culto ou ante as aes que a elas se referem.

    Numa outra passagem: Se entendemos por isso [por tabu], em correspondncia com o sentido geral da palavra, toda proibio, estabelecida nos usos e costumes ou em leis expressamente formuladas, de tocar num objeto, reivindiclo para uso prprio ou utilizar certas palavras proibidas [], ento no existe povo e estgio de cultura que tenha escapado aos danos do tabu.

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