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Rubem Alves ÍNDICE RUBEM ALVES 6 Livros que dão alegria ............................................................................................. 2 Vestibulares: Inúteis e Perniciosos.......................................................................... 4 Tempus fugit; Carpe Diem * .................................................................................... 6 Sobre Transar e Ensinar .......................................................................................... 9 São Luís do Maranhão ........................................................................................... 11 Sou Religioso .......................................................................................................... 13 Escola e Sofrimento ................................................................................................ 15 Pássaro Encantado ................................................................................................. 16 O Sol Ama a Lua ...................................................................................................... 17 O Sermão das Árvores ............................................................................................ 19 O Sapo ................................................................................................................... 21 Memórias ............................................................................................................... 22 "Bem-aventurados os que estão fartos porque eles terão fome de novo!" .................. 24 Escutatória, de novo... ............................................................................................ 26 Em defesa das árvores ............................................................................................ 28 Conchas ou Asas? .................................................................................................. 30 Asas para quem quer voar... ................................................................................... 32 As Razões do Amor ................................................................................................ 34 Aos Velhos... .......................................................................................................... 35 Aos apaixonados .................................................................................................... 37 "Antes que eles cresçam..." .................................................................................... 39 Coitado do corpo... ................................................................................................ 40 A aula e o Seminário ............................................................................................... 42 Entrevista: Uma Escola dos Sonhos .............................................................. 44 Revista Crescer: No Reino dos Porquês ......................................................... 49 As Várias Mortes ......................................................................................... 51 O Presépio .................................................................................................... 54 Os Pássaros e os Urubus 0 Uma Parábola Ecumênica .................................... 56 Receita Para Milagre ...................................................................................... 58 Sobre os Perigos da Leitura ........................................................................... 60 A Arte de Saber Ler ....................................................................................... 63 Como Ensinar o Prazer de Ler ......................................................................... 65 Interpretar é Compreender ............................................................................. 66 Bagunça ........................................................................................................ 68 Diploma não é Solução ................................................................................... 69 Site RA – 11/09/2004 .................................................................................... 70 Sobre Ciência e Sapiência .............................................................................. 72 Revista Nova Escola, maio/2002 .....................................................................73 Onde Mora o Amor .......................................................................................... 77 Veja Como Estão Agradecidas .......................................................................... 78 A Complicada Arte de Ver ................................................................................ 79 Nelson Freire .................................................................................................. 81 Daiane dos Santos ......................................................................................... 83 RA Entrevista Max Numa Cervejaria ............................................................... 85 RA Entrevista Nietzsche tocando Flauta .......................................................... 90 Baixou o Espírito do Drummond .....................................................................96 Nossas Verdades São Só Palpites .................................................................... 99 Silvana Poll

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Rubem Alves

ÍNDICE RUBEM ALVES 6

Livros que dão alegria ............................................................................................. 2Vestibulares: Inúteis e Perniciosos.......................................................................... 4Tempus fugit; Carpe Diem * .................................................................................... 6Sobre Transar e Ensinar .......................................................................................... 9São Luís do Maranhão ........................................................................................... 11Sou Religioso .......................................................................................................... 13Escola e Sofrimento ................................................................................................ 15Pássaro Encantado ................................................................................................. 16O Sol Ama a Lua ...................................................................................................... 17O Sermão das Árvores ............................................................................................ 19O Sapo ................................................................................................................... 21Memórias ............................................................................................................... 22"Bem-aventurados os que estão fartos porque eles terão fome de novo!" .................. 24Escutatória, de novo... ............................................................................................ 26Em defesa das árvores ............................................................................................ 28Conchas ou Asas? .................................................................................................. 30Asas para quem quer voar... ................................................................................... 32As Razões do Amor ................................................................................................ 34Aos Velhos... .......................................................................................................... 35Aos apaixonados .................................................................................................... 37"Antes que eles cresçam..." .................................................................................... 39Coitado do corpo... ................................................................................................ 40A aula e o Seminário ............................................................................................... 42

Entrevista: Uma Escola dos Sonhos .............................................................. 44Revista Crescer: No Reino dos Porquês ......................................................... 49As Várias Mortes ......................................................................................... 51O Presépio .................................................................................................... 54Os Pássaros e os Urubus 0 Uma Parábola Ecumênica .................................... 56Receita Para Milagre ...................................................................................... 58Sobre os Perigos da Leitura ........................................................................... 60A Arte de Saber Ler ....................................................................................... 63Como Ensinar o Prazer de Ler ......................................................................... 65Interpretar é Compreender ............................................................................. 66Bagunça ........................................................................................................ 68Diploma não é Solução ................................................................................... 69Site RA – 11/09/2004 .................................................................................... 70Sobre Ciência e Sapiência .............................................................................. 72Revista Nova Escola, maio/2002 .....................................................................73Onde Mora o Amor .......................................................................................... 77Veja Como Estão Agradecidas .......................................................................... 78A Complicada Arte de Ver ................................................................................ 79Nelson Freire .................................................................................................. 81Daiane dos Santos ......................................................................................... 83RA Entrevista Max Numa Cervejaria ............................................................... 85RA Entrevista Nietzsche tocando Flauta .......................................................... 90Baixou o Espírito do Drummond .....................................................................96Nossas Verdades São Só Palpites .................................................................... 99

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LIVROS QUE SÃO ALEGRIA

As Sagradas Escrituras são como uma mineração de diamantes: em meio à ganga sem valor encontram-se pedras preciosas, que são inesquecíveis. O calendário me fez voltar a um salmo que aprendi de cor quando era menino: "Nossos dias passam como um suspiro... Setenta anos é o tempo de nossa vida. E se alguns, por sua robustez, chegam aos oitenta, o melhor deles desses anos é canseira e enfado... Ensina-nos a contar os nossos dias para que venhamos a ter um coração sábio..." (Salmo 90.9-10 ).

Pois eu estou atentamente contando os meus dias. Não os que já se foram, mas aqueles que me restam, cujo número não sei. Em breve vou atingir o limite estabelecido pelo salmista: 70 anos! Nunca imaginei que esse dia iria chegar! O problema está no descompasso que existe entre a minha idade cronológica e a idade da minha alma - que está fora do tempo. Na alma, o tempo não passa. Sou ainda menino. Como Alberto Caeiro, "sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do Mundo." Há tanta coisa por se fazer! Ravel, antevendo o momento da sua partida, dizia: "Mas há tantas músicas a serem escritas!". Que pena que Ravel morreu. Se não tivesse morrido, ele teria tido tempo para escrever as músicas que se ouviam na sua alma.

A idade me coloca diante do abismo. Sei que ele está próximo e sinto calafrios. O bruxo D. Juan dizia que é essa condição - comum a todos os homens mas só percebida pelos enfermos de morte e os velhos - que nos faz viver verdadeiramente a vida. "Há uma estranha, devoradora felicidade quando agimos com a total convicção de que, qualquer que seja a coisa que estamos fazendo, esta pode muito bem ser a nossa última batalha sobre a terra!" (Essa crônica que estou escrevendo: será ela minha última batalha?)

Aprendi, na emocionante leitura de Shogun, que os antigos guerreiros japoneses, os samurais, quando o dever os compelia ao suicídio ritual chamado sepuku - ou harakiri - antes do último ato, escreviam seu último hai-kai. Um hai-kai é um poema minúsculo, menor não pode haver. Pequenos, mas de uma densidade absurda. Leminski os denominou de mínimos objetos poéticos de peso insuportável. De fato: um poema que se escreve antes de morrer tem de ter um peso insuportável, o peso de toda uma vida.

Não tenho planos de cometer sepuku. Desejo viver muitos anos mais, a despeito dos desencantos da velhice. A verdade é que a velhice tem também os seus encantos. São encantos crepusculares, mansos, belos, tristes e efêmeros... Mas o belo efêmero, até as crianças se encantam com ele! Tanto assim que gostam de soprar bolhas de sabão. Também quero soprar bolhas de sabão, escrever o meu hai-kai porque o tempo foge cada vez mais rápido. É comum que mães me peçam para autografar livros de estórias para seus filhos. Pergunto sempre sobre a idade, porque dedicatórias para crianças de 5 anos são diferentes de dedicatórias para adolescentes de 12. E elas me respondem: "6 aninhos..." Eu as corrijo: "Na infância o tempo é comprido. Meses levam anos para passar. Assim, crianças não têm 'aninhos'. Elas têm 'anões'. Já na velhice os anos passam em semanas. Por isso quem tem 'aninhos' são os velhos..."Meu hai-kai seria menor que um hai-kai. O que tenho a dizer se resume num único verso que o Chico compôs para sua filha: "Que seja da alegria sempre um aprendiz..." Descobri, na minha prática de terapeuta, que por detrás de todas as queixas daqueles que me procuravam em busca de alívio havia um único pedido: "Quero alegria!" Alegria é a oração universal de todos os seres. Há receitas para os prazeres. Mas não há receitas para a alegria. Assim, o que posso fazer é simplesmente falar aos meus amigos sobre coisas que me dão alegria na esperança de que, se dão alegria para mim, pode ser que dêem alegria para eles.Começo com os livros. Livros há muitos. Mas são poucos os que dão alegria. Desconfie dos devoradores de livros. Livros em excesso não fazem bem, da mesma forma como

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comida em excesso não faz bem. Schopenhauer disse conhecer muitos eruditos que leram até ficar estúpidos, acrescentando que nove décimos de toda literatura do seu tempo não tinha outra finalidade a não ser a de tirar alguns centavos do bolso do público. "É por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante porque a vida é curta e o tempo e a energia escassos."

Seguindo o conselho de Schopenhauer, faz alguns anos dei mais da metade da minha biblioteca. Percebi que não teria tempo de ler todos aqueles livros e que eram poucos os que me davam alegria. Fernando Pessoa e Nietzsche também encontravam sua alegria em poucos livros. Livros que dão prazer se parecem com anedotas. Uma anedota só tem graça na primeira vez que se ouve. Também os livros que dão prazer só dão prazer na primeira leitura. Lidos, podemos dá-los de presente. Mas a marca dos livros que dão alegria é que se parecem com poemas: voltamos sempre a eles, para lê-los de novo. Livros que dão prazer raspam a pele. Livros que dão alegria entram no sangue.

Como sou escritor, o que desejo é que os livros que escrevi dêem alegria. Quero que sejam lidos e degustados. Mas tenho de falar sobre outros livros que me fazem sorrir só de pensar neles. Livros de leitura fácil que dariam alegria a qualquer leitor. Cito, em primeiro lugar, Zorba, de Nikos Kazantsakis. Acho que gostaria de viver e morrer como Zorba. "Um homem como eu deveria viver 1.000 anos!" Essas foram suas últimas palavras.

De João Guimarães Rosa, Miguilim, um menininho que tinha olhos de crepúsculo: "O tempo não cabia. Toda manhã já era tarde. Todo dia tomava um golinho de velhice." Me vi Miguilim. Grande Sertão-Veredas, a Bíblia de João, como a Adélia o chama. Lá não tem antes nem depois. Qualquer página é inspirada. Fala o Riobaldo... De Albert Camus, Primeiros cadernos, pensamentos no momento do seu nascimento: "Deus precisa de almas agarradas ao mundo. O que lhe agrada é a nossa alegria.". História sem fim, de Michael Ende, estória da viagem do menino Bastian Baltazar Bux no Reino da Fantasia, viagem assombrosa pelo inconsciente sem que se use uma única palavra da psicanálise. Também do mesmo autor o livrinho O teatro de sombras de Ofélia.

Quando terminei de ler Amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, eu disse para mim mesmo, em meio ao riso e às lágrimas: "Se eu fosse Deus todo poderoso, nesse momento eu proclamaria: A obra da Criação está por fim terminada..." De Hermann Hesse, Sidarta, especialmente o diálogo com Vaseduva, o barqueiro: "O rio me ensinou a escutar", Vaseduva disse a Sidarta. "'O rio sabe todas as coisas. Dele pode-se aprender todas as coisas. As vozes de todas as criaturas vivas podem ser ouvidas na sua voz.' E assim eles se assentavam juntos, no tronco de árvores, ao cair da noite. Ouviam a água em silêncio, água que para eles não era só água, mas a voz da vida, a voz do Ser, da Transformação eterna..."

A poética do espaço e A poética do devaneio, de Bachelard: "Ergo suavemente um galho; o pássaro está ali chocando os ovos. Não levanta vôo. Somente estremece um pouco. Tremo por fazê-lo tremer. Tenho medo de que o pássaro que choca saiba que sou um homem, o ser que deixou de ter a confiança dos pássaros. Fico imóvel. Lentamente se acalmam o medo do pássaro e o meu medo de causar medo. Deixo o galho voltar ao seu lugar. Voltarei amanhã. Hoje trago comigo uma alegria: os pássaros fizeram um ninho no meu jardim...". De Jorge Amado, Quincas Berro-D'água, uma das estórias mais deliciosas que já li. De Bernardo Soares, o Livro do Desassossego, viagem pela subjetividade do autor, em minúcias e detalhes assombrosos. Se a arte, como ele diz, é comunicar aos outros nossa identidade íntima com eles mesmos, quem lê esse livro anda por dentro de si mesmo.

De Saramago, Memorial do convento, que é a história inventada da construção do convento de Mafra, em Portugal. Mas o que mais me comoveu não foi a construção do

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convento. Foi a subestória do Padre Voador, Bartolomeu de Gusmão, que queria construir uma passarola voadora e descobriu, com os alquimistas holandeses, que a única coisa que tinha poder para fazer o pesado voar era a vontade dos homens. Aí entra a Blimunda, vidente, que saiu pelos campos de batalha a engarrafar a vontade que saía pelas ventas dos moribundos, vontades essas que, engarrafadas e ajuntadas, fizeram voar a passarola... E, também de Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo: qualquer jeito de amar vale a pena! O Filho de Deus sabe disto! E de Nietzsche, Ecce Homo, onde se encontram as chaves para o labirinto da sua alma. Esses livros são meus companheiros de solidão. Quem os ler com alegria estará na minha confraria...

VESTIBULARES: Inúteis e perniciosos

Resumindo: os vestibulares são, em primeiro lugar, inúteis. Um leitor, assustado com minha sugestão insólita de que os vestibulares sejam substituídos por um sorteio, enviou-me um e-mail em que me acusava de estar trocando um critério baseado na competência -critério racional, portanto- por um critério baseado na sorte, coisa irracional. Mas eu pergunto a você que conseguiu sobreviver à câmara de torturas: o vestibular os tornou competentes em quê?Competência tem a ver com a capacidade de resolver problemas reais, situações tais como elas aparecem na vida. Em que o preparo para os vestibulares o tornou competente? Eu me arrisco a dizer que a única competência que o preparo para os vestibulares desenvolve é... a efêmera capacidade de passar nos vestibulares...

Efêmera, que dura apenas um dia. Tanto esforço, tanto sofrimento, para nada. Pois, como já demonstramos, essa capacidade logo desaparece no buraco negro do esquecimento. A memória é uma função da vida, do corpo. E o corpo não é bobo. Aquilo que não é instrumental para a vida é logo esquecido.

Pense na memória como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão é uma bacia cheia de furos. A gente põe o macarrão na água fervente para amolecer. Amolecido o macarrão, é preciso livrar-se da água. Jogam-se, então, macarrão e água no escorredor de macarrão. A água escorre pelos buracos, e o macarrão fica. A memória é assim: ela se livra do que não tem serventia por meio do esquecimento. E o que é que tem serventia? Duas coisas, apenas. Primeiro, coisas que são úteis, conhecimentos-ferramentas, conhecimentos que nos ajudam a entender e a fazer coisas.

(Note, por favor, que a utilidade é variável. Para os esquimós, é conhecimento instrumental a arte de fazer iglus. Mas esse conhecimento é inútil para beduínos no deserto. Para eles, o instrumental é fazer tendas. Conhecimentos que são úteis para as crianças das praias de Alagoas são totalmente inúteis para as crianças que vivem nas montanhas de Minas. Daí o absurdo dos programas que ensinam as mesmas ferramentas, como os nossos.)

A outra coisa que tem serventia são os prazeres. Prazeres não são ferramentas. Não têm uma função prática. Mas dão alegria. Dão sentido à vida. O corpo não se esquece dos prazeres. Educar, assim, tem a ver com as duas caixas que o corpo carrega: a caixa das ferramentas e a caixa dos brinquedos. Na caixa das ferramentas, estão os conhecimentos que são meios para viver. Na caixa dos brinquedos, os conhecimentos que nos dão razões para viver.

E eu pergunto: que ferramentas o preparo para os vestibulares lhe deu? Que prazeres? Ao final, o escorredor de macarrão fica vazio -não havia macarrão, só havia água.

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Mas, além de serem inúteis, os vestibulares são perniciosos, por deformar a nossa capacidade de pensar. Eu lhe pergunto: o que é mais importante: saber as respostas ou saber fazer as perguntas? Se você me disser que o mais importante é saber as respostas, eu lhe digo: você já está obsoleto ou está a caminho da obsolescência. Porque uma das características do nosso momento histórico é o caráter efêmero das respostas. Quem sabe as respostas logo fica sabendo nada.

Pensar não é saber as respostas. Pensar é saber fazer perguntas. Sobre esse assunto, aconselho a leitura do prefácio à "Crítica da Razão Pura", de Kant, em que ele diz precisamente isso -que o conhecimento se inicia com as perguntas que fazemos à natureza. Mas essas perguntas surgem quando nós, contemplando a natureza, nos sentimos provocados por seus assombros.

O início do pensamento se encontra nos olhos que têm a capacidade de se assombrarem com o que vêem. Mas é precisamente isso, os olhos assombrados, que o preparo para os vestibulares destrói. Vestibulares são cega-olhos...

Schopenhauer tem um curto e delicioso texto sobre livros e leitura em que ele diz o seguinte: "Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos o seu processo mental". Segue-se que "aquele que lê muito ou quase o dia inteiro (...) perde paulatinamente a capacidade de pensar por conta própria" -o que é o caso de muito eruditos, que "leram até ficar estúpidos".

Coisa semelhante acontece com aqueles que se preparam para os vestibulares: de tanto serem treinados para dar as respostas certas, acabam por perder a capacidade de fazer perguntas, a essência do pensamento inteligente. O preparo para os vestibulares, assim, é um processo estupidificador, um mecanismo pernicioso para a inteligência. Acrescente-se a isso o fato de que, devido à fúria da competição, os candidatos, no seu preparo, são forçados a abandonar tudo aquilo que tem a ver com a "caixa dos brinquedos", o que provoca um embrutecimento da sua sensibilidade.

O maior benefício da abolição dos vestibulares seria este: as escolas estariam finalmente livres dessa guilhotina horrenda no horizonte e poderiam se dedicar à tarefa de educar, de desenvolver a arte de pensar, que nada tem a ver com o preparo para os vestibulares.

Rubem Alves, 69, é psicanalista e educador. Sobre suas idéias sobre os exames vestibulares, recomenda o livro que escreveu para crianças "No País dos Dedos Gordos" (Edições Loyola).

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Tempus fugit; Carpe diem *

"O tempo passa,/ Não nos diz nada./ Envelhecemos./ Saibamos, quase maliciosos,/ Sentir-nos ir,/ Tendo as crianças/ Por nossas mestras/ E os olhos cheios/ De natureza..." Alberto Caeiro

Kierkegaard diz, em suas meditações por nome Pureza de coração, que "a pessoa que fala sobre a vida humana, que muda com o decorrer dos anos, deve ter o cuidado de declarar a sua própria idade aos seus ouvintes". Trata-se de um conselho estranho para aqueles que vêem a vida com os olhos da ciência, porque, para eles, os olhos permanecem os mesmos, não são afetados pela passagem do tempo. Um bom par de óculos pode resolver o problema da visão diminuída.

Kierkegaard sabia o que os oftalmologistas não sabem: com a idade, os olhos não ficam mais fracos. Eles ficam diferentes. Sob a luz do sol a pino eles vêem coisas luminosas. Sob a luz do crepúsculo eles começam a ver as criaturas delicadas que não suportam luz em excesso. O amor prefere a luz das velas. Gaston Bachelard, em seu lindo livro A chama de uma vela, diz que "parece existir em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis. As fantasias da pequena luz nos levam de volta ao reduto da familiaridade..."

"Assim estão os meus olhos, assim estou eu, pois sou a luz que meus olhos emitem". Não foi isso que Jesus disse (Mateus 6.22)? Penso que ele aprovaria se me ouvisse dizendo: "Os olhos são as lâmpadas do corpo. Se teus olhos forem crepusculares, crepuscular também será o teu corpo..." Quando se vive sob a luz da manhã, ainda há muito tempo pela frente, e se pensa que a vida começará a ser vivida depois de havermos colocado a casa em ordem. Há tanta coisa para ser feita! Felizmente sabemos que as nossas mãos transformarão o mundo! Marx nos ensinou que é isso o que importa. E a boca se enche de palavras de ordem e de imperativos éticos e políticos. Ser cristão é fazer! Quando se vive sob a luz crepuscular - a hora do Angelus -, sabe-se que o trabalho ficou inacabado, o trabalho fica sempre inacabado, o tempo se encarrega de desfazer o que fizemos, as mãos ficam diferentes, deixam de lado as ferramentas, retorna-se ao lar, corpo e alma "voltam ao reduto da familiaridade". Ao meio-dia se fazem trabalho e política. Ao crepúsculo se faz poesia. Ao crepúsculo se sabe que não seremos salvos pelas obras. Ao crepúsculo se retorna à verdade evangélica e protestante que afirma que somente a Palavra nos salvará. Ao crepúsculo comemos palavras: é a hora sacramental, a hora da poesia. Ao crepúsculo se sabe que o que importa e "ser", simplesmente "ser"... Não, o interesse pelos sofrimentos dos homens não foi perdido. É que na hora crepuscular se compreende que "mundos melhores não são feitos; eles simplesmente nascem" (e.e. Cummings). Há uma revolução que se faz com poesia e alegria. É Neruda que o diz: a Reforma Protestante foi feita com música, cantando. Caminhando e cantando...

O ser diante da chama da vela: só olhos, só fantasia; ou diante de uma sonata de Beethoven (Ah! Lenin dizia que poderia ficar ouvindo a Appassionata o dia inteiro, e se alegrava de que aos homens esse poder tivesse sido dado de produzir a beleza, e ficava com vontade de sair à rua e começar a abraçar as pessoas - o que é muito perigoso para quem está vivendo sob as ilusões do meio-dia...); ou como diante de um poema de Alberto Caeiro: "Sejamos simples e calmos,/ Como os regatos e as árvores,/ E Deus amar-nos-á fazendo de nós/ Belos como as árvores e os regatos/ E dar-nos-á verdor na sua primavera/ E um rio aonde ir ter quando acabemos..."

Os deuses do meio-dia não são os mesmos do crepúsculo. Interessante notar que o dia bíblico começa com o crepúsculo, quando o sol se põe... Talvez essa seja a maneira certa

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(já que Deus faz tudo ao contrário): tomar como início aquilo que nossa vã sabedoria sempre achou que fosse o fim. Começar do fim... Aliás, é este o conselho que o matemático polonês Polya dá àqueles que querem aprender a resolver problemas de matemática: "Comece sempre pelo fim!" Se ainda tivéssemos Pitágoras por nosso mestre, diríamos que o que é verdade para a matemática tem de ser verdade também para a alma. Começar pelo fim! Ver a vida inteira sob a luz crepuscular! Ao meio-dia o céu é um imenso mar azul. O tempo está parado, imobilizado. Ao crepúsculo tudo se altera: o mar imóvel se transforma em rio, as águas correm cada vez mais rápidas, as cores se sucedem, o azul passando ao amarelo, ao rosa, ao vermelho, ao roxo, para, finalmente, mergulhar na noite. "Especialmente na medida em que se vai ficando mais velho", diz Alan Watts em seu livro sobre o taoísmo, "vai-se tornando óbvio que as coisas não têm substância, pois o tempo passa cada vez mais rapidamente, de forma que nos tornamos conscientes da liquidez dos sólidos; as pessoas e as coisas se transformam em reflexos e rugas na superfície da água".

Kierkegaard estava certo. É preciso dizer a idade. Os olhos crepusculares não são olhos que vêem menos: são olhos que vêem diferente. Eles vêem sob a perspectiva da morte. Pois é ela, a morte, que se nos aparece ao crepúsculo. É só ela que nos permite ver o crepúsculo. "As nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se põe/ ganham suas cores solenes de um olho/ que tem atentamente vigiado a mortalidade dos homens..." Estes são versos de William Wordsworth. Não, não são as cores lá fora que são belas e tristes. São as cores crepusculares que moram dentro do olhar...

Talvez você tenha-se assustado, quando me referi à morte. É compreensível. A vida inteira ouvimos falar mal dela. E as religiões até fazem tudo para matar a morte, para que não haja crepúsculos no mundo, para que o sol esteja permanentemente a pino. "Mas ao matar a morte a religião nos tira a vida", diz Octávio Paz. "A eternidade despovoa o instante. Porque a vida e a morte são inseparáveis. Tirando-nos o morrer a religião nos tira a vida. Em nome da vida eterna a religião afirma a morte desta vida". O crepúsculo é belo por causa do rio, o fluir do tempo que faz as cores mudarem... Ouço, de Holst, o poema sinfônico Os Planetas. Neste momento, é Vênus: o que traz a alegria. Também a sua beleza depende do tempo que passa - os acordes se vão para dar lugar aos que vêm, até que chegarão ao fim e eu direi: "Que lindo! Pena que acabou!" A vida e a beleza só existem por causa da morte, que torna possível que elas dancem. D. Juan, o bruxo do livro de Castarïeda, Viagem a Ixtlan, chama a Morte de "conselheira". Ela nos torna mais sábios. Não é por acaso que a sabedoria está associada à velhice. Hegel dizia que a coruja de Minerva só abre suas asas no crepúsculo. E Roland Barthes, ao ficar velho (mas era bem mais moço do que eu), afirmava que naquele momento ele se entregava ao esquecimento de tudo o que aprendera a fim de poder chegar à sabedoria.

Que sabedoria nos ensina a morte? É simples. Ela só diz duas coisas. Primeiro, nos aponta o crepúsculo, a chama da vela, o rio, e nos diz: Tempus Fugit - o tempo passa e não há forma de segurá-lo. E, logo a seguir, conclui: Carpe Diem - colha o dia como quem colhe um fruto delicioso, pois esse fruto é a dádiva de Deus. Os poetas e artistas têm sabido sempre disso. Porque a arte é isso, pegar o eterno que cintila por um instante no rio do tempo. Como está escrito neste lindo poema de Paul Bouget que Debussy musicou e a Barbra Streisand gravou no maravilhoso CD Classical Barbra: "Quando, ao sol que se põe,/ os rios ficam cor rosa,/ e um leve tremor percorre/ os campos de trigo,/ parece das coisas surgir uma súplica de felicidade/ que sobe até o coração perturbado./ Uma súplica de beber o encanto de se estar no mundo/ enquanto se é jovem e a noite é bela./ Pois nós nos vamos,/ como se vai esta onda:/ Ela, para o mar,/ nós para a sepultura..." Num dos cadernos de Camus encontra-se o seguinte parágrafo: "Os pássaros, durante o dia, voam em todas as direções. Ao cair da noite, entretanto, dir-se-ia que eles voam para um mesmo lugar. Assim, talvez, ao cair da noite da vida..." Eu me sinto assim: ao chegar

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o crepúsculo, as muitas palavras que escrevi em todas as direções, reduzem-se a algo extremamente simples. Aconteceu assim também com Jorge Luis Borges, já bem mais velho do que eu.

"Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito. Relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério. Seria até menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos sopa. Teria mais problemas reais e menos problemas imaginários. Eu fui uma destas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida. Claro que tive momentos de alegria mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque, se não o sabem, disso é feita a vida, só de momentos. Não percam o agora. Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas. Se voltasse a viver, viajaria mais leve. Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente. Mas, já viram, tenho oitenta e cinco anos, e sei que estou morrendo..." (Jorge Luis Borges) Ricardo Reis disse a mesma coisa num poema mais curto: "Dia em que não gozaste não foi teu:/ Foi só durares nele. Quanto vivas/ Sem que o gozes, não vives./ Não pesa que amas, bebas ou sorrias:/ Basta o reflexo do sol ido na água/ De um charco, se te é grato./ Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas/ Seu prazer posto, nenhum dia nega/ A natural ventura". Beber o encanto de estar no mundo! Não importa que ele nos venha em pequenos fragmentos de alegria, de riso, de compaixão, de amizade, de silêncio, arroz e feijão, o abraço de amor, a poesia, as coisas do dia-a-dia. Se você não sabe sobre que estou falando, por favor, leia a poesia de Adélia Prado. São sacramentos, fragmentos de uma felicidade que nos toca de leve, para logo se ir. A felicidade é assim, não é coisa grande que vem para ficar. Sabe disso Guimarães Rosa, que dizia que ela só acontece em raros momentos de distração. Mas é justo assim que Deus vem, quando estamos distraídos, eternidade num grão de areia, reflexo do sol ido na água de um charco. Tudo é um grande brinquedo. Brinquedo: coisa mais alegre e efêmera haverá? E é isso que nos ensina a morte, que a vida é brinquedo, não pode ser levada a sério - o que nos torna humildes e livres das alucinações de importância e de poder. Desenhos de conchas na areia, como aquele imenso cavalo-marinho de caracóis que a menina, do filme O Piano, fez na praia, enquanto sua mãe tocava... Coisas que uma criança faz na praia, casas, castelos, túneis, caminhos...

"E assim, num dia de tempo calmo,/ embora estando em ilha distante,/ contemplamos o mar imortal/ que nos trouxe até aqui,/ e vemos na praia as crianças brincando/ e ouvimos as fortes águas eternamente/ rolando..." (e.e. Cummings, citando W. Wordsworth) Logo a maré, durante a noite, apagará tudo, e pela manhã a praia estará maravilhosamente lisa, todas as cicatrizes saradas, como se nada tivesse acontecido. Haverá metáfora mais bela para o perdão? E o brinquedo poderá começar de novo. Aquilo que foi amado deve ser repetido. Por isso afirmamos: "Creio na ressurreição do corpo": o que foi, voltará.

"O que aconteceu acontecerá de novo,/ o que já foi feito será feito de novo,/ nada de novo há debaixo do sol" (Eclesiastes 1.9) Tempus Fugit.

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"Vai, portanto, come a tua comida e alegra-te com ela,/ bebe o teu vinho com um coração feliz./ Veste-te sempre de branco/ e que não falte óleo perfumado nos teus cabelos./ Goza a vida com quem amas todos os dias da tua vida.../ Pois Deus já aceitou o que fizeste..."(Eclesiastes 9.7) * O tempo foge; Curta o dia

SOBRE TRANSAR E ENSINAR

Nietzsche diz que para se aprender a pensar é preciso aprender a dançar. O pensamento são as idéias dançando. Há danças dos tipos mais variados, desde a marcha militar até o balê. A analogia é um passo da dança do pensamento. Pela analogia o pensamento pula de uma coisa que ele conhece para uma coisa que ele não conhece. Aquilo que desconheço é "como" isso que conheço. "Como" não é a mesma coisa que "igual". Na anologia eu não afirmo que aquilo é "igual" a isso. Digo que é "como". É só parecido. A analogia não dá conhecimento preciso sobre o desconhecido - mas o torna familiar. Quando se conhece mesmo, de verdade, não é preciso fazer uso de analogias. Se conheço uma maçã eu digo "maçã" e pronto.

Não vou dizer que ela é "como" uma pera redonda vermelha. Imagine agora o que deve ter acontecido com os brancos quando eles pela primeira vez se encontraram com os esquimós. Os esquimós não conheciam frutas. Lá é tudo gelo. Conversar sobre peixes era fácil. Os esquimós eram especialistas em peixes. Mas, e se um branco resolvesse contar a estória da Branca de Neve - aquele pedaço onde a madrasta envenenou a maçã? O que é maçã? Acho que se fosse comigo eu diria que maçã é algo que, por fora, é como o coração de uma foca, vermelho, e por dentro é como a neve fresca. Mas eu não teria como falar-lhes do cheiro e do gosto.

As analogias, assim, não nos dão conhecimento exato. Elas nos introduzem no campo da familiaridade. Por isso os cientistas que acham que ciência é conhecimento exato desprezam o uso das analogias. Mas o fato é que há uma infinidade de experiências que não podem ser comunicadas de forma científica - aquelas que não podem ser medidas e submetidas à estatística. Como comunicar, por meio de palavras precisas, o cheiro da maçã, a ternura de um olhar, a tristeza de um crepúsculo, o medo de morrer, o mistério da floresta, o fascínio do mar? As coisas impossíveis de serem comunicadas diretamente só podem ser comunicadas por meio das analogias. E é aí que surge a poesia, a linguagem das coisas que não podem ser ditas diretamente.

As coisas do amor podem ser ditas de forma científica, sem o uso de analogias? Master & Johnson, um famoso casal de sexólogos, tentaram dizer na linguagem científica, sem analogias, o que acontecia quando um homem e uma mulher faziam amor. Para isso ligaram aos corpos de um homem e de uma mulher transando todos os tipos de fios e aparelhos elétricos, para que assim, por meio de medições, o ato do amor pudesse ser conhecido de forma precisa. Posso imaginar a reação dos cientistas diante dos gráficos, mesmo aqueles que nunca tinham transado. Sorridentes e extasiados, ele diziam: "Finalmente sabemos com precisão o que é fazer amor. Já não mais necessitamos das analogias dos poetas..."

As coisas da educação podem ser ditas de forma científica, sem o uso de analogias? A mesma doidice de Master & Johnson se apossou de certos pedagogos que, envergonhados pela imprecisa e inferior linguagem poético-analógica de alguns educadores - como é o caso absurdo de Roland Barthes, que se referia à educação como "maternagem", analogia

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romântica que liga o educador à mãe! - tratam de definir a educação como um saber científico e preciso.

Não é o meu caso. Não acredito que o amor possa ser dito com os gráficos científicos de Master & Johnson. Não acredito que o ato de educar possa ser dito na precisa linguagem das "ciências da educação".

Conheço melhor o amor e a educação através das analogias poéticas.

As Sagradas Escrituras, que nada sabiam de ciência do amor e da ciência da educação, fazem uso de uma analogia insólita que liga a experiência fundamental da educação, o ato de conhecer, ao ato de fazer amor. Diz ela: "E Adão conheceu a sua mulher, e ela concebeu e pariu um filho..."

Uma feminista protestaria logo: "Analogia machista. No texto o homem é o sujeito do conhecimento. É ele que conhece. A mulher é objeto do conhecimento, passiva. Assim, o ato de conhecer fica sendo um ato masculino."

Parece machista mas não é. De fato, a analogia diz que o ato de conhecer é masculino. Mas "masculino" não quer dizer " de homem". O "masculino" é uma função que pode ser executada tanto por homens quanto por mulheres. Como também há funções femininas que podem ser executadas tanto por mulheres quanto por homens. As feministas vivem dizendo que minha escritura é feminina, o que simplesmente me dá alegria. Mas o texto bíblico sugere uma outra coisa: conhecer é função masculina; conceber e parir são funções femininas. Brincando com a analogia: será que o ato de conhecer é análogo ao pênis e os atos de conceber e parir são análogos ao útero?

Essa analogia, então, nos introduz na familiaridade do mundo em que conhecer e fazer amor se misturam. Se Nietzsche disse que para pensar é preciso saber dançar, digo eu que para ensinar é preciso saber fazer amor. Fazer amor é como conhecer; conhecer é como fazer amor. Assim dizem as Escrituras Sagradas. Assim diz a psicanálise.

Aristóteles, na primeira frase com que abre sua metafísica, diz o seguinte: "Todos os homens têm, naturalmente, um impulso para adquirir conhecimento." Entre as crianças, acho que a primeira manifestação desse impulso se encontra no dedinho que quer enfiar em todo buraco que vê: buraco de tomada elétrica, buraco de gargalo de garrafa, buraco de nariz.

O ato de enfiar o dedo é mais que expressão do desejo de conhecer. É gostoso enfiar o dedo. Todo mundo sabe da função erótica do dedo. Existe uma analogia entre dedo e pênis. Até as crianças já fazem aquele gesto obsceno. O dedo é um dos nossos orgãos sexuais.

Quando eu era menino, sem nada saber sobre sexo, gostava de descascar as mexiricas para, depois, enfiar o dedo no buraco fechado e apertado do meio dos gomos. Era delicioso, meu dedo enfiado e apertado, no obscuro buraco da mexirica. Um menininho foi humilhado por duas menininhas. Quando elas o viram com o pintinho de fora fazendo xixi, cairam na risada: " É igual a um pepininho!" Ao que ele retrucou:

"E vocês, que o que têm são dois gominhos de mexirica!" Bom observador, o menino; sua imaginação já conhecia através das analogias. O que prova que as ligações que fiz entre o ato de enfiar o dedo na mexirica e o ato de fazer amor não foram arbitrárias.

É claro que nenhum pedagogo científico levará a sério o que acabo de dizer. Dirá que sou um brincalhão irresponsável. Desconhece o ditado: " Ridendo dicere severum!" : rindo,

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Rubem Alves

dizer as coisas sérias. Sou absolutamente sério nas minhas brincadeiras literárias. As analogias nos introduzem no parentesco das coisas que compõem o mundo. Quem só sabe a coisa, como deseja a ciência, sabe muito pouco. As coisas exibem a sua nudez quando refletidas em outras. O uso da analogia não indica pobreza de conhecimento, como quer a ciência. Indica exuberância, excesso, transbordamento: as coisas, sozinhas, não se dizem. É preciso que outras coisas as digam. Pois eu estou dizendo que o ato de educar se revela no ato de fazer amor. Quem aprende dos amantes fica um melhor educador. Os alunos conhecerão, concebrão e parirão...

SÃO LUIS DO MARANHÃO

A Adélia Prado definiu a poesia como uma perturbação da visão. Disse ela: "Deus de vez em quando me castiga. Me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Mas o certo não é ver pedra quando pedra é o que há? Se olho para uma pedra e vejo outra coisa é porque meus olhos estão perturbados. Pois é isso mesmo que a poesia faz: a gente olha para a pedra e vê uma outra coisa que não está lá. Isso que a gente vê na pedra e não está na pedra, está dentro da gente, na alma. Para os poetas o mundo é um espelho de mil faces em que a alma se contempla. Daí a felicidade narcísica da poesia... A poesia é uma alteração da percepção visual. Chego a temer que, algum dia, ela venha a ser classificada como droga alucinógena...

Mas há coisas no mundo que, quando olho para elas, só vejo elas mesmas. É o caso das casas novas, tão modernas, tão certinhas. Olho para elas e o que vejo? Vejo casas novas, tão modernas, tão certinhas... Com as casas velhas é diferente. Basta que eu veja uma delas para que meus olhos fiquem perturbados e eu comece a ver coisas. Casas velhas me poetizam.

Amo as casas velhas mais que as novas. As casas velhas são moradas de memórias e saudades. Mas, o que mora nas casas novas? Nada. São vazias. Meu amor pelas casas velhas se deve, talvez, ao fato de que passei parte da minha infância no sobrado colonial do meu avô. Velho, muito velho, estava cheio de quartos proibidos e espaços misteriosos. Nele moravam ainda recordações de escravos e senzalas. A nega Iaiá, escrava forra que cuidou da minha mãe, lhe contava histórias de Angola que depois minha mãe me contou. E não faltavam os jasmins, a flor do imperador, os cravos, a malva, a hortelã.... Não sei quantos anos terão sido necessários para construí-lo, com suas paredes de pedra de um metro de largura e seus vidros coloridos importados da Europa. Contava histórias do sobrado de meu avô para minha analista e ela me dizia, espantada: "Mas doutor, isso é muito mais fascinante que Cem Anos de Solidão".

O sobrado do meu avô não existe mais. Queimou numa imensa fogueira. Em poucas horas todo o mistério foi reduzido a cinzas. Construir demora. Destruir é rápido. Por vários dias os gigantescos barrotes de pau bálsamo continuaram a queimar, exalando seu cheiro delicioso de nunca-mais. Mas não foi acidente. Um homem, que alugava uma loja no térreo, o incendiou. Lucílio, era o seu nome. Não satisfeito, continuou a incendiar outras casas antigas. Descoberto e preso justificou os seus atos: "Detesto casas velhas. Gosto de casas novas, modernas. O que eu desejava era criar condições para a modernização da cidade".

Ele foi bem sucedido. A cidade se modernizou. No lugar onde estava o sobrado hoje se encontra o Banco do Brasil. Só que, quando olho para o prédio do banco eu só vejo o prédio do banco. Sob um certo ângulo, seu Lucílio estava certo: as coisas velhas

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Rubem Alves

atravancam o progresso. Seu Lucílio tinha uma fina percepção das implicações do progresso: "Queimar o velho para dar lugar ao novo". O progresso e a riqueza são incendiários.

Assim tem acontecido. Foram-se as florestas de pinheiros araucária. Pinheiro cortado vale mais que pinheiro em pé. Foi-se a Mata Atlântica. Vão-se as matas, avançam os desertos. E os rios e riachos cristalinos? O Tietê, caldo grosso de veneno. Nas suas águas nada vive. Esgoto fedido. Fugiram os peixes. Os que não conseguiram fugir - de vez em quando aparecem boiando nos rios, cobertos de moscas. E também as praias estão indo, transformadas em cimento e barulho. Meditando sobre a filosofia do seu Lucílio compreendi o que aconteceu com os espaços antigos do Brasil, as praças, casas, quintais, ruas, chafarizes... Foi assim: as cidades que, de repente, foram invadidas pela euforia do dinheiro e do progresso destruíram seus inúteis espaços antigos. Por que preservar casas velhas inúteis e feias se é possível construir casas novas, úteis e modernas em seu lugar? Já nas cidades que ficaram à margem da riqueza e do progresso (que tristeza!) os lugares antigos sobreviveram, arruinados. O antigo sobreviveu por causa da pobreza...

Foi-se o sobrado mas permanecem os cenários antigos na alma. O Vinícius disse que a alma dele era um círio que ardia numa catedral em ruínas. Eu digo que a minha alma é um manacá perfumado num jardim abandonado. Lembrei-me de um texto de Guimarães Rosa sobre os jardins abandonados, em que ele se refere ao "jasmim do imperador - de todos o mais querido". E me lembrei também de um hai-kai de Bashô: "Na velha casa que abandonei as cerejeiras florescem..."

Vez por outra, diante das casas antigas e seus jardins, eu me reencontro de novo comigo mesmo como fui, menino. Foi o que me aconteceu quando visitei, faz poucos dias, São Luís do Maranhão. São Luís: para mim, até aquele momento, nada mais que um nome vazio, uma bolinha no mapa. O nome não me fazia pensar em nada. Aí eu cheguei lá, comecei a perambular pelas ruas do seu centro antigo, e uma alegria começou a tomar conta de mim. O menino que mora em mim, aquele que brincava no sobrado do meu avô, acordou do seu sono. A poesia se virou os meus olhos. Começaram a brincar. Olhavam para as casas e não viam as casas. Viam o sobrado do meu avô. Senti-me voltando para casa. Eliot disse que "ao final de nossas longas explorações chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez". Estaria eu voltando? Retornando ao lugar de onde parti? Será que eu, adulto, sou um estranho, exilado, no mundo da modernidade e das casas novas?

O sobrado do meu avô, as casas antigas de São Luís - tão distantes no espaço e no tempo! E, no entanto, habitantes de um mesmo tempo, de um mesmo mundo. As casas antigas de São Luís e o sobrado antigo do meu avô não são casas desse mundo, são casas de um mundo que não existe mais, que existe só na saudade onde moram os sonhos. Mas, como a alma é feita de saudade, esse mundo que não existe do lado de fora continua a existir do lado de dentro. E lá estava eu, menino, andando pelas ruas antigas. Dantes tristes de abandono e pobreza agora estavam lá, as casas, diante de mim, alegrinhas e coloridas, exibindo os seus encantos.

Não eram peças de um museu. Estavam vivas. Faziam parte do cotidiano das pessoas que enchiam as suas ruas. Lindo, pela simplicidade e harmonia de suas linhas, o "Teatro". A meninada adolescente o enchia, para o grande circo do Bumba-meu-boi. Me lembrei do Teatro Municipal de Campinas, coitado. Não teve tanta sorte. Não foi protegido pela pobreza. Foi destruído pela modernidade, sem ter tempo de gritar. O povo, acho que estava distraído... Foi destruído por homens empreendedores e amantes da modernidade, feito o sobrado do meu avô.

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Rubem Alves

Fiquei grato pela pobreza. Foi por causa dela que o passado sobreviveu, lá em São Luís. "Creio na ressurreição dos mortos": assisti o passado morto sendo trazido de volta à vida. O dinheiro, entregue à sua própria fome, é monstro que devora tudo, praga de gafanhotos. Mas quando domado pelos desejos de beleza, ele pode fazer maravilhas. Esse era o sonho dos pensadores utópicos do século 19, que contemplavam a marcha devastadora da riqueza. Sonhavam com uma economia em que o dinheiro seria como aqueles gênios da garrafa, poderosos mas sem vontade própria, obedientes às ordens do coração.

As velhas casas de São Luís me deram olhos de poeta. Quem sabe chegará um dia em que os administradores pedirão conselho aos poetas. Parece que isso aconteceu lá em São Luís do Maranhão...

SOU RELIGIOSO

Eu sou muito religioso. Por isso trato cuidadosamente de evitar igrejas e cerimônias religiosas: para que meus sentimentos religiosos não sejam perturbados. Minhas experiências passadas com igrejas não têm sido boas. Sempre que vou a igrejas ou participo de cerimônias religiosas minha alma fica irritada. Os porta-vozes de Deus sempre falam demais. Parecem gostar do som da sua voz. Gostaria de uma igreja onde não houvesse sermões: só silêncio, música e poesia. Houve exceções de que não me esqueço. Uma missa na catedral de Cuernavaca, México. Se houve homilia eu nem me lembro. Lembro-me da dança todo mundo dançando, ao ritmo da música dos mariachis. Foi alegria pura. Lembro-me também de uma semana que passei num mosteiro da Suíça onde se cultivava o silêncio. Três vezes ao dia, às seis da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde havia uma meia hora litúrgica onde nada era dito. Apenas o silêncio, as velas, a contemplação dos ícones de Cristo. Foi beleza. Deve ter havido outras ocasiões. Mas não estou me lembrando delas no momento.Quando me perguntam eu deveria dizer que não sou religioso. Dizendo-me religioso os outros logo pensam que sou adepto de alguma religião. Eles imaginam que as religiões e as igrejas são semelhantes aos supermercados, lugares onde a gente vai se abastecer de mercadorias sagradas. Para eles, ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas ou pertencer a religiões seria o mesmo que dizer que me abasteço de verduras, frutas, legumes, carnes, leite, cereais sem fazer compras.Daí não entenderem que eu possa ter sentimentos religiosos sem freqüentar igrejas. De fato, eu não pertenço a grupo religioso algum. Meus sentimentos nada têm a ver com igrejas e rituais religiosos. Talvez eu devesse simplesmente dizer que sou místico sem religião. Se os religiosos disserem que isso não é possível, que é preciso ter uma religião, eu lhes direi que não há indicações de que Deus tenha concordado em se tornar numa mercadoria a ser distribuída com exclusividade pelos seus supermercados religiosos. Deus é livre como o Vento pelo menos foi isso que Jesus disse. Claro que há religiões que dizem que o Vento só pode ser obtido engarrafado. Elas se acreditam como distribuidoras de Vento engarrafado. Uma religião que afirme que o sagrado é um monopólio seu está dizendo que ela conseguiu engarrafar o Vento, que ela conseguiu por o Vento sob seu controle. E isso é idolatria. Os teólogos medievais sabiam que o finito não pode conter o infinito.A minha experiência com o sagrado vem sempre fora de lugares religiosos, diante do mistério da noite estrelada, de uma teia de aranha, de uma árvore florida, da ternura do amor, do riso de uma criança, da frescura dos riachos, da graça do vôo dos urubus, da alegria do cachorro que me recebe. Essas coisas que me dão alegria e que, por isso

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Rubem Alves

mesmo, são para mim sagradas, eu nunca as encontrei nas igrejas. Sagrado, para mim, é aquilo que meu coração deseja que seja eterno. O sagrado é a realização do amor. Meu misticismo, assim, nada me diz sobre seres de um outro mundo. Ele não me informa sobre deuses, céus, infernos, pecados, demônios e anjos. Meu misticismo não aumenta o meu conhecimento sobre o universo. Meu misticismo não é um substituto para a ciência. Meu misticismo, também, não me dá conselhos morais. Não ordena que eu seja bom. Não me manda ajudar os pobres. Não me manda lutar pela justiça. Não é preciso ser místico para ser bom, para amar os pobres, para lutar pela justiça. Acho vergonhoso ser bom, amar os pobres e lutar pela justiça porque Jesus manda. Então é porque ele manda? Se não mandasse a gente não faria? Se Deus não mandasse e não ameaçasse não seríamos bons? Se assim é, então somos bons, amamos os pobres e lutamos pela justiça porque temos medo. Mas tudo o que brota do medo é o oposto do sagrado. O amor lança fora o medo. Meu misticismo nem me dá conhecimentos de um outro mundo e nem me dá ordens morais. Ele é um sentimento ou como se fosse uma música que ouço dentro de mim. Schleiermacher, um teólogo romântico do fim do século 18, dizia que o sentimento religioso é o sentimento de "dependência absoluta" diante do universo. Eu não existo em mim mesmo. Eu existo somente em relação a uma coisa enorme, gigantesca, fantástica, coisa que não compreendo, mas que me envolve, na qual eu nasço e para a qual voltarei um dia. Sou uma nota numa sinfonia com milhares de notas, uma folha num jequitibá com milhares de folhas, uma única gota num mar com gotas sem fim. De um lado eu me descubro infinitamente pequeno. De outro lado eu me descubro imensamente grande: estou ligado tudo. Sou tão grande quanto o universo, que se transforma então no meu grande corpo. Alguns dão o nome de Deus a esse Grande Corpo no qual todas as coisas existem. Gosto dessa idéia. Aconteceu faz muito tempo, quando ouvir o rádio exigia paciência e atenção. Havia a barulheira constante da eletricidade estática que era ouvida ora como pipocas estourando numa panela, ora como uma série de intermináveis assobios. Eu me lembro. Era noite. Já estava na cama. Luz apagada. Gostava de dormir com música. Rádio Ministério da Educação: havia sempre músicas do meu gosto. De repente, no meio dos estouros e assobios da estática, uma música linda que mal se podia ouvir. Mas, em meio aos ruídos sem sentido da estática, o meu ouvido percebia a beleza que mal se ouvia, perdida no meio da estática.Aí eu pensei que o sentimento religioso é assim mesmo: em meio à barulheira da vida, a gente ouve uma melodia. Há um lindo texto de Nietzsche em que ele descreve precisamente essa experiência ele fala de uma melodia de beleza indescritível que repentinamente começou a ouvir dentro da sua alma, beleza tão grande que ele começou a chorar. Nietzsche era uma dessas pessoas possuídas por um profundo sentimento místico e que, precisamente por causa dele, tinha de ficar longe de todas as religiões. As igrejas o horrorizavam.Dizia que elas mais se pareciam com sepulcros de Deus. E tinha horror das músicas que ali se cantavam, que ele comparava ao coro de rãs dentro de um charco... Sim. Sou religioso. O universo é o meu templo. O ruído dos regatos, o barulho do vento nas folhas dos eucaliptos, o perfume do jasmim, as cores do crepúsculo, as experiências de arte e de brinquedo são, todos, para mim, sacramentos fugazes experiências do sagrado. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas sempre que tenho uma efêmera experiência de beleza e da amor é como se eu tivesse visto, num breve segundo, uma cintilação do sagrado.

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Rubem Alves

ESCOLA E SOFRIMENTO

Estou com medo de que as crianças me chamem de mentiroso. Pois eu disse que o negócio dos professores é ensinar felicidade. Acontece que eu não conheço nenhuma criança que concorde com isto. Se elas estivessem aprendido as lições da política, me acusariam de porta voz da classe dominante. Pois, como todos sabem, mas ninguém tem coragem de dizer, toda escola tem uma classe dominante e uma classe dominada: a primeira, formada por professores e administradores, e que detém o monopólio do saber, e a segunda, formada pelos alunos, que detêm o monopólio da ignorância, e que deve submeter o seu comportamento e o seu pensamento aos seus superiores, se desejam passar de ano.Basta contemplar os olhos amedrontados das crianças e os seus rostos cheios de ansiedade para compreender que a escola lhes traz sofrimento. O meu palpite é que, se fizer uma pesquisa entre as crianças e os adolescentes sobre as suas experiências de alegria na escola, eles terão muito que falar sobre a amizade e o companheirismo entre eles, mas pouquíssimas serão as referências à alegria de estudar, compreender e aprender.A classe dominante argumentará que o testemunho dos alunos não deve ser levado em consideração. Eles não sabem, ainda... Quem sabe são os professores e os administradores.Acontece que as crianças não estão sozinhas neste julgamento. Eu mesmo só me lembro com alegria de dois professores dos meus tempos de grupo, ginásio e científico.A primeira, uma gorda e maternal senhora, a professora do curso de admissão, tratava-nos a todos como filhos. Com ela era como se fôssemos uma grande família. O outro, professor de Literatura, foi a primeira pessoa a me introduzir nas delícias da leitura. Ele falava sobre os grandes clássicos com tal amor que deles nunca pude me esquecer. Quanto aos outros, a minha impressão era a de que nos consideravam como inimigos a serem confundidos e torturados por um saber cujas finalidade e utilidade nunca se deram ao trabalho de nos explicar. Compreende-se, portanto, que entre as nossas maiores alegrias estava a notícia de que o professor estava doente e não podia dar a aula. E até mesmo uma dor de barriga ou um resfriado era motivo de alegria, quando a doença nos dava uma desculpa aceitável para não ir à escola. Não me espanto, portanto, que tenha aprendido tão pouco na escola. O que aprendi foi fora dela e contra ela.Jorge Luís Borges passou por experiência semelhante.Declarou que estudou a vida inteira, menos nos anos em que esteve na escola. Era, de fato, difícil amar as disciplinas representadas por rostos e vozes que não queriam ser amados.Esta situação, ao que parece, tem sido a norma, tanto que é assim que aparece freqüentemente relatada em literatura. Romain Rollnad conta a experiência de um aluno:"...afinal de contas, não entender nada já é um hábito. Três quartas partes do que se diz e do que me fazem escrever na escola: a gramática, ciências, a moral e mais um terço das palavras que leio, que me ditam, que eu mesmo emprego - eu não sei o que elas querem dizer. Já observei que as minhas redações as que eu menos compreendo são as levam mais chances de ser classificadas em primeiro lugar". Mas nem precisaríamos ler R. Rollandd: bastaria ler os textos que os nossos filhos têm de ler aprender. Concordo com Paul Goodmann na sua afirmação de que a maioria dos estudantes nos colégios e universidades não desejam estar lá. Estão lá porque são obrigados.Os métodos clássicos de tortura escolar como a palmatória e a vara foram abolidos. Mas poderá haver sofrimento maior para uma criança ou um adolescente que ser forçado a mover-se numa floresta de informações que ele não consegue compreender, e que nenhuma relação parecem ter com sua vida?Compreende-se que, com o passar do tempo a inteligência se encolha por medo e horror diante dos desafios intelectuais, e que o aluno passe a se considerar como um burro. Quando a verdade é outra: a sua inteligência foi intimidada pelos professores e, por isto, ficou paralisada.

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Rubem Alves

Os técnicos em educação desenvolveram métodos de avaliar a aprendizagem e, a partir dos seus resultados, classificam os alunos. Mas ninguém jamais pensou em avaliar a alegria dos estudantes - mesmo porque não há métodos objetivos para tal. Porque a alegria é uma condição interior, uma experiência de riqueza e de liberdade de pensamentos e sentimentos. A educação, fascinada pelo conhecimento do mundo, esqueceu-se de que sua vocação é despertar o potencial único que jaz adormecido em cada estudante. Daí o paradoxo com que sempre nos defrontamos: quanto maior o conhecimento, menor a sabedoria. T.S. Eliot fazia esta terrível pergunta, que deveria ser todos os professores: "Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?"Vai aqui este pedido aos professores, pedido de alguém que sofre ao ver o rosto aflito das crianças, dos adolescentes: lembrem-se de que vocês são pastores da alegria, e que a sua responsabilidade primeira é definida por um rosto que lhes faz um pedido: "Por favor, me ajude a ser feliz..."

PÁSSARO ENCANTADO

Era uma vez uma menina que tinha como seu melhor amigo, um Pássaro Encantado. Ele era encantado por duas razões. Primeiro porque ele não vivia em gaiolas. Vivia solto. Vinha quando queria. Vinha porque amava. Segundo, porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado. Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, e ele contou estórias de montanhas cobertas de neve. Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol. Era grande a felicidade quando estavam juntos. Mas sempre chegava o momento quando o pássaro dizia: "Tenho de partir." A menina chorava e implorava: "Por favor não vá fico tão triste. Terei saudades e vou chorar..."

"Eu também terei saudades", dizia o pássaro. "Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo: eu só sou encantado por causa da saudade que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for não haverá saudade. E eu deixarei de ser o Pássaro Encantado e você deixará de me amar."

E partia. A menina sozinha, chorava. E foi numa noite de saudade que ela teve a idéia: "Se o Pássaro não puder partir, ele ficará. Se ele ficar, seremos felizes para sempre. E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola."

Assim aconteceu. A menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda.

Quando o pássaro voltou eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu. A menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou. Quando o pássaro acordou ele deu um grito de dor.

"Ah! Menina...que é isso que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias. Sem a saudade o amor irá embora..."

A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por acostumar.

Mas não foi isso que aconteceu. Caíram suas plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar. Também a menina se entristeceu.

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Rubem Alves

Não era aquele o pássaro que ela amava. E de noite chorava pensando naquilo que havia feito com seu amigo...

Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. "Pode ir, Pássaro", ela disse." Volte quando você quiser..."

"Obrigado, menina", disse o Pássaro. "Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe: ficarei encantado de novo, quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você!

O SOL AMA A LUA

"Sim, a luz de um olhar, para onde vai ela quando a morte coloca o seu dedo frio sobre os olhos de um morto?" Assim perguntava Bachelard, pensando sobre a sua própria morte que se aproximava. Com a morte seus olhos se apagariam: cessaria a luz; ele não mais veria esse mundo maravilhoso que tanto amava. No entanto, os momentos que antecedem o toque do dedo frio da Morte sobre os olhos são marcados por uma assobrosa luminosidade. Dizia Fernando Pessoa: "Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer". Lúcido, inundado de luz. A proximidade da morte ilumina a vida. Aqueles que contemplam a Morte nos olhos vêem melhor, porque ela tem o poder de apagar do cenário tudo aquilo que não é essencial, as trivialidades e banalidades que são a substância do nosso cotidiano insensato. Os olhos do vivos tocados pela morte são puros. Eles só vêem aquilo que o amor tornou eterno. * * *O Hélio morreu. Morreu jovem, 63 anos. Inesperadamente. Vitimado por aquilo a que ele deu o nome de "meu fatal lado esquerdo". Falou assim de brincadeira. Seu lado esquerdo sempre o metia em complicações: é o lado do coração, da paixão. Também é o lado da política. Ele não imaginava que sua brincadeira fosse profecia. Foi no seu fatal lado esquerdo que a Morte o golpeou. No dia 23 de março de 1988. Na 3ª feira próxima passada completaram-se 11 anos.

O Hélio e a Lya se encontraram num congresso de escritores. Ele, 60 anos. Ela, 47. Ficaram perdidamente apaixonados. Resolveram assumir a loucura do amor. Ela deixou tudo, marido e filhos para viver com ele. Foram três curtos anos de amor. Depois da morte do Hélio, Lya escreveu uma série de poemas. Lúcidos. Poemas de quem experimentou o que existe de mais pungente na Morte: não a própria morte, mas a morte de quem mais se ama.

"Deus/ ( ou foi a Morte?)/ golpeou com sua pesada foice / o coração do meu amado / ( não se vê a ferida, mas rasgou o meu também)./ Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto o meu nome no quarto de hospital, / e partiu./ Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis, / ficamos sós: a Morte ( ou foi Deus?)/ o meu amado e eu. / Enterrei o rosto na curva do seu ombro / como sempre fazia, / disse as palavras de amor que costumávamos trocar. / O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido / e o meu, varados por essa dourada foice./ Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste que não estancará jamais."

"O meu amado tinha coisas de menino: / dormia abraçado a mim feito criança, / gostava de doce e de ganhar camisas novas de presente. / Usava a água-de-colônia que lhe dei, e

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Rubem Alves

ria: ' Pareço uma Paulina Bonaparte.' Olhava-me tão agradecido ao menor cuidado / como limpar seus óculos ou trazer-lhe água, que era como se nunca tivesse tido infância./ O meu amado tinha coisa de menino: / mas seus olhos eram sábios / de entenderem quase toda a miséria deste mundo."

"Passeávamos pelo Jardim Botânico... / Da última vez, paramos abraçados / diante das vitórias-régias em flor. / Trocamos confidências de nossos corações atormentados, dissemos ternuras./ De repente pus-me a chorar no ombro dele.../ Chorava sem saber por quê. / Hoje compreendo: / na sombra, a Morte erguia o seu braço, / mas nós não sabíamos ainda."

"O meu amado tinha indignações enormes./ Andava de um lado para o outro em minha frente: / não se conformava com os conformados, os corruptos, / os medíocres e os vendidos deste mundo./(...) Passava as mãos pelo cabelo grisalho e ardia como um jovem de dezoito anos na sua ira:/ 'Tenho vocação é de terrorista.' /( Eu escutava, com medo de que ele saltasse da varanda / levado pelo vendaval de seu furor de justo.)/ Depois ele fechava as portas de vidro sobre a noite quente,/ me pegava pela mão, dizia: 'Vamos dormir.' / E então era todo mel e ternura."

"O meu amado tinha tantas manias: / perdia canetas, lápis, chaves. / Houve um livro que comprou três vezes em um mês: depois encontramos todos e mais um sob velhos jornais.(...) Não conseguia sentar-se mais que meia hora para escrever: / vinha ao meu escritório, usava de pretextos para me distrair, / dava um beijo, fazia confidências, comentava assuntos do dia.(... )Certa vez discutimos, e ele deixou sobre minha máquina de escrever um bilhetinho: / 'Hélio Pellegrino ama Lya Luft.' / Nunca tivemos mais que vinte anos."

"O meu amado tinha a fadiga de muitos séculos./ Deitava-se no sofá, cabeça no meu colo: ' Com você encontrei a paz.'/ Mas estava cansado. Tinha saudade de mais paz do que lhe poderia dar todo o meu amor sem limites. Dizia: / 'Hoje estou triste como o diabo, sem motivo.'/ O motivo era ser esta vida um exílio / e sua alma uma chama / que só se aplacaria em Deus. / Para isso foi preciso que partisse."

"O meu amado era mineiro: mas dos visionários. / Levava-me à sua terra, onde, ébrios de tanta luz e tanto céu, / percorríamos a sua juventude: eu integrada nessa vida inteira. (...) O meu amado era de Minas: capaz de morrer sem abdicar do sonho."

"Quando meu amado morreu / abriu-se em meu peito esse buraco: / através dele arrancaram-me o coração / e colocaram o estranho maquinismo / que me mantém viva, cheio de lâminas e pontas. / A cada pulsação ele corta / e me impele a viver."

"O meu amado morreu: preciso viver sua morte até o fim./ Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e banalidade. / Talvez tenha morrido na medida certa / para nada se desgastar. / Dele me vem a dor, mas também a ternura, / a claridade que me permite ver em todos os rostos o seu rosto / em todos os vultos o seu vulto / e ouvir em todos os silêncios / o seu inesperado riso de criança."

Resolvi transcrever esses poemas pensando naqueles cujos olhos ainda não foram iluminados pela Morte, na esperança de que os seus olhos se abrissem. O cansaço e a banalidade que destroem qualquer amor: somente a visão da Morte impede que eles cheguem. É preciso atenção: "na sombra do jardim a Morte ergue o seu braço, e nós não sabemos ainda."

Sabe, Lya? Todo mundo desejaria viver um grande amor. Pensei, então, que o curto eterno amor entre você e o Hélio deveria ser uma metáfora de um grande amor universal

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que, como você mesma disse, deixa sempre uma coisa faltando. Pois "a vida é um exílio e a alma é uma chama que só se aplaca em Deus." É o máximo a que podemos aspirar.

E então, lendo o bilhetinho que o Hélio deixou sobre sua máquina de escrever depois de uma briga, Hélio e Lya se transformaram. Hélio é sol. E Lya, basta mudar o "y" para "u" para ficar "lua": "O Sol ama a Lua". Essa é uma verdade universal, o desejo de todos os amantes. Eternamente.

O SERMÃO DAS ÁRVORES

Relata-se que São Francisco - a quem muito amo - pregava aos peixes e às aves. Se a lenda é verdadeira imagino que os peixes e as aves, ouvindo a pregação do santo, riam e sorriam discretamente para não ofendê-lo. E isso porque não se pode pregar a seres perfeitos. Prega-se a seres imperfeitos para que eles se tornem perfeitos. Acontece que peixes e aves são perfeitos, são felizes naquilo que são. Peixes não querem ser aves. Aves não querem ser peixes. Mangueira não pensam jabuticabas. Jabuticabeiras não pensam mangas. Fico pasmo, olhando uma jabuticabeira florida no Dali. Pobrezinha, teve galhos cortados, ficou espremida entre paredes. Mas ela tudo ignora. Está coberta de flores brancas. É como se tivesse caído neve. As flores têm aquele delicioso perfume de infância e pés descalços. As abelhas, atraídas pelo perfume, vêm e zumbem, zumbem...Assim é: cada bicho, cada planta, está contente com o que é. São felizes no que são. Feuerbach, filósofo-poeta sensível, observou sobre a desconhecida psicologia das plantas: " Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade de julgar, cada planta diria que a sua flor é a mais bonita". Esse não é o nosso caso. Somos os únicos seres que não estão contentes com o que são. Queremos ser diferentes. Por isso estamos infelizes e doentes. "Ah, como os mais simples dos homens / São doentes e confusos e estúpidos / Ao pé da clara simplicidade/ E saúde em existir / Das árvores e das plantas!", dizia Alberto Caeiro. Assim, o certo não é nós. Confusos e estúpidos, pregarmos às criaturas. O certo é elas, felizes, preguem a nós. As criaturas falam. O salmista olhava para os céus e percebia que pelos espaços vazios se ouvia a pregação sem linguagem e sem fala das estrelas ( Salmo 19). Olhava, fechava a boca e escutava. Mas nós, cuja loucura está em nos considerarmos superiores, achamos que podemos pregar e ensinar. Parte da nossa estupidez é a incontinência verbal, a constante ejaculação de palavras - quando a verdadeira sabedoria seria fazer silêncio, parar os pensamentos, para ouvir a pregação das estrelas, dos peixes, das aves, das plantas. Jesus dizia aos perturbados pelas ansiedades da vida que eles deviam olhar para as flores a fim de aprender delas tranquilidade. O salmista ( salmo 1) pregava aos homens falando de um ideal de vida em que somos como "a árvore plantada junto a ribeiros de águas". Regatos e árvores nos ensinam sabedoria. Por isso, continua em mim suspeita de que as árvores são uma forma mais evoluida de vida que a nossa. Me contestarão dizendo que somos superiores porque pensamos e as árvores não. Pergunto se a capacidade de pensar é sinal de superioridade. O pensamento não surge, precisamente, da nossa doença? Ou como sintoma dela ou como tentativa de cura? Caeiro dizia que "pensar é estar doente dos olhos". Pensamos porque não estamos felizes com o que somos. Quando estou feliz meus olhos vêem a árvore e descansam nela. Não penso outras coisas. Eu e a árvore somos um. Quando estou doente meus olhos vêem a árvore mas não descansam nela. Penso. Eu corpo, no pensamento, vai para um outro lugar. Pensamos porque não estamos felizes onde estamos. Daí a nossa agitação, tão bem descrita numa palavra inglesa que não pode ser traduzida: "restlessness": o estado em que estamos permanentemente sem descanso. Inclusive eu, que penso esses pensamentos: penso para ver se descubro uma forma de ficar simples e calmo como as

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árvores. Gosto de caminhar. Caminho olhando para cima e para os lados. Acho estranhas as pessoas que caminham olhando para o chão. Compreendo. Para elas não faz diferença. O pensamento delas não está colado ao corpo. Se estivesse, elas estariam olhando para os lados e para cima, colado às árvores, aos pássaros, ao céu. Infelizes, o pensamento caminha por outros lugares. Por isso é indiferente que olhem para o chão ou para as árvores. Olho para cima e para os lados para ver as árvores. Tento ouvir a sua silenciosa pregação. Se pregam, é porque pensam. Mas seus pensamentos são diferentes dos nossos. Elas pensam da mesma forma como produzem brotos e flores. Não pensam pensamentos da cabeça, como nós. As árvores não têm cabeça. Não precisam ter cabeça. Elas pensam com o corpo: raízes, tronco, galhos, folhas, flores, frutos. Pensam sempre os pensamentos que devem ser pensados, isto é, pensamentos que têm a ver com a vida. Agora, depois da chuva, as tipuanas e outras árvores estão cobertas de brotos novos. Os brotos novos são seus pensamentos alegres, pensamentos que as árvores devem ter, quando a primavera se aproxima. Os ipês têm outros pensamentos. Eles não são iguais às tipuanas. Estão floridos. Faz duas semanas, eram os ipês amarelos. Agora, os ipês rosa e brancos. Floriram não por felicidade mas por medo, Floriram por causa da seca. Floriram por medo de morrer e trataram de ejacular sementes para que, no evento de sua morte, suas sementes estivessem espalhadas pelo mundo. Os ciprestes italianos têm fantasias teológicas: afinam-se e querem tocar os céus. Os "chapeu-de-sol" - que alguns chamam de amendoeiras, ao contrário, são serem desse mundo. Estendem seus galhos na horizontal. Os paus ferro, livres de cascas velhas enrugadas, exibem uma pela lisa e branca onde pessoas malvadas gravam, a canivete, seus nomes. Passo nelas a minha mão porque é gostoso sentir sua lisura. As árvores jovens têm a sua beleza. Mas, sendo jovens, não têm estórias para contar. Não se pode assentar à sua sombra, suas copas oferecem pouco lugar para os pássaros e seus galhos não são fortes bastante para que neles se amarrem balanços. "Olhe estas velhas árvores, / mais belas do que as árvores novas, mais amigas ./ Tanto mais belas quanto mais antigas..." - dizia Bilac. As árvores são amigas. Estão sempre fielmente no mesmo lugar, à espera. E são comparecermos, elas continuarão lá, do mesmo jeito. Sem nada dizer. Às vezes me pergunto se elas, nas noites de tempestade, não sentem medo. Basta olhar para elas com a cabeça livre de pensamentos: nossas tempestades deixam de amedrontar. As árvores sabem que a única razão da sua vida é viver. Vivem para viver. Viver é bom. Raízes mergulhadas na terra, não fazem planos de viagem. Estão felizes onde estão. Enfrentam seca e chuva, noite e dia, chuva e calor, com silenciosa tranquilidade, sem acusar, sem lamentar. E morrem também tranquilas, sem medo. Ah! Como as pessoas seriam mais belas e felizes se fossem como as árvores. É possível que os estoicos e Spinoza tenham se tornado filósofos tomando lições com as árvores. Olhando para as árvores, tive por um momento a idéia de que Deus é uma árvore à cuja sombra nós, crianças, brincamos e descansamos. Pura generosidade sem memória. Acho que o verdadeiro, sobre São Francisco, não é que ele tenha pregado aos peixes e pássaros. A verdade é que ele ouviu o sermão das árvores. Por isso ficou tão manso, tão tranquilo. Ele tinha a beleza das árvores. Estava reconciliado com a vida. Então os pássaros fizeram ninhos nos seus galhos e os peixes comeram dos seus frutos que caiam na água... "Sejamos simples e calmos / Como os regatos e as árvores, / E Deus amar-nos-á fazendo de nós / Belos como as árvores e os regatos, / E dar-nos-á verdor na sua primavera, / E um rio aonde ir ter quando acabemos!... (Alberto Caeiro).

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O SAPO

Era uma vez um lindo príncipe por quem todas as moças se apaixonavam. Por ele também se apaixonou uma bruxa horrenda que o pediu em casamento. O príncipe nem ligou e a bruxa ficou muito brava."Se não casar comigo não vai se casar com ninguém mais!" Olhou fundo nos olhos dele e disse: "Você vai virar um sapo!"Ao ouvir esta palavra o príncipe sentiu uma estremeção. Teve medo. Acreditou. E ele virou aquilo que a palavra de feitiço tinha dito. Sapo. Virou um sapo.Bastou que virasse sapo para que se esquecesse de que era príncipe. Viu-se refletido no espelho real e se espantou: "Sou um sapo. Que é que estou fazendo no palácio do príncipe? Casa de sapo é charco". E com essas palavras pôs-se a pular na direção do charco. Sentiu-se feliz ao ver lama. Pulou e mergulhou. Finalmente de novo em casa.Como era sapo, entrou na escola de sapos para aprender as coisas próprias de sapo. Aprendeu a coaxar com voz grossa. Aprendeu a jogar a língua pra fora para apanhar moscas distraídas. Aprendeu a gostar do lodo. Aprendeu que as sapas eram as mais lindas criaturas do universo. Foi aluno bom e aplicado. Memória excelente. Não se esquecia de nada. Daí suas notas boas. Até foi o primeiro colocado nos exames finais, o que provocou a admiração de todos os outros sapos, seus colegas, aparecendo até nos jornais. Quanto mais aprendia as coisas de sapo mais sapo ficava. E quanto mais aprendia a ser sapo, mais se esquecia de que um dia fora príncipe. A aprendizagem é assim: para se aprender de um lado há de se esquecer do outro. Toda aprendizagem produz o esquecimento.

O príncipe ficou enfeitiçado. Mas feitiço - assim nos ensinaram na escola - é coisa que não existe. Só acontece nas estórias de carochinha.Engano. Feitiço acontece sim. A estória diz a verdade.Feitiço o que é? Feitiço é quando uma palavra entra no corpo e transforma. O príncipe ficou possuído pela palavra que a bruxa falou. Seu corpo ficou igual à palavra.A estória do príncipe que virou sapo é a nossa própria estória. Desde que nascemos, continuamente, palavras nos vão sendo ditas. Elas entram no nosso corpo, e ele vai se transformando. Virando uma outra coisa, diferente da que era. Educação é isso: o processo pelo qual os nossos corpos vão ficando iguais às palavras que nos ensinam. Eu não sou eu: eu sou as palavras que os outros plantaram em mim. Como o disse Fernando Pessoa: "Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim". Meu corpo é resultado de um enorme feitiço. E os feiticeiros foram muitos: pais, mães, professores, padres, pastores, gurus, líderes, políticos, livros, tv. Meu corpo é um corpo enfeitiçado: porque o meu corpo aprendeu as palavras que lhe foram ditas, ele se esqueceu de outras que, agora permanecem mal... ditas...A psicanálise acredita nisso. Ela vê cada corpo como um sapo dentro do qual está um príncipe esquecido. Seu não é ensinar nada. Seu objetivo é o contrário: des-ensinar ao sapo sua realidade sapal. Fazê-lo esquecer-se do que aprendeu, para que ele possa lembrar-se do que esqueceu. Quebrar o feitiço. Coisa que até mesmo certos filósofos (poucos) percebem. A maioria se dedica ao refinamento da realidade sapal. Também os sapos se dedicam à filosofia... Mas Wittgenstein, filósofo para ninguém botar defeito, definia a filosofia como uma "luta contra o feitiço" que certas palavras exercem sobre nós. Acho que ele acreditava nas estórias de carochinha....Tudo isso apenas como introdução à enigmática observação com que Barthes encerra sua descrição das metamorfoses do educador. Confissão sobre o lugar onde havia chegado, no momento de velhice. "Há uma idade em que se ensina aquilo que se sabe. Vem, em seguida, uma outra, quando se ensina aquilo que não se sabe. Vem agora, talvez, a idade de uma outra experiência: aquela de desaprender. Deixo-me, então, ser possuído pela força de toda vida viva: o esquecimento..."Esquecer para lembrar. A psicanálise nenhum interesse tem por aquilo que se sabe. O sabido, lembrado, aprendido, é a realidade sapal, o feitiço que precisa ser quebrado. Imagino que o sapo, vez por outra, se esquecia da letra do coaxar, e no vazio do esquecimento, surgia uma canção. "Desafinou!" berrava os maestros. "Esqueceu-se da lição", repreendiam os professores. Mas uma jovem que se assentava à beira da lagoa juntava-se a ele, num dueto... E o sapo, assentado na lama, desconfiava...

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Rubem Alves

"Procuro despir-me do que aprendi", dizia Alberto Caeiro. "Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me, e ser eu..."Assim se comportavam os mestres Zen, que nada tinham para ensinar. Apenas ficavam à espreita, esperando o momento de desarticular o aprendido para, através de suas rachaduras, fazer emergir o esquecido. É preciso esquecer para se lembrar. A sabedoria mora no esquecimento.Acho que o sapo, tão bom aluno, tão bem educado, passava por períodos de depressão. Uma tristeza inexplicável, pois a vida era tão boa, tudo tão certo: a água da lagoa, as moscas distraídas, a sinfonia unânime da saparia, todos de acordo... O sapo não entendia. Não sabia que sua tristeza nada mais era que uma indefinível saudade de uma beleza que esquecera. Procurava que procurava, no meio dos sapos, a cura para sua dor. Inutilmente. Ela estava em outro lugar.Mas um dia veio o beijo de amor - e ele se lembrou. O feitiço foi quebrado.Uma bela imagem para um mestre! Uma bela imagem para educador: fazer esquecer para fazer lembrar!

MEMÓRIAS

Hoje, quando escrevo, é o dia 21 de abril, dia da morte de Tiradentes. Deveria estar comovido. Näo estou. O patriotismo näo é uma de minhas virtudes. As informaçöes históricas sobre o assunto ficam como um livro empoeirado numa prateleira escura da memória. Meu pensador, se tentar pensá-las, se transformará numa pedra pesada. Mas há um Tiradentes que me excita, Tiradentes feminino, a Tiradentes, cidadezinha histórica de Minas, as ruas calçadas de pedras, as casinhas pintadas de cores variadas, os pomares com jabuticabeiras e pés de romä, o frango ao molho pardo com angú e pimenta, sopa rala de fubá com ora-pro-nobis, a cadeia com suas grades grossas e sem esperança, as igrejas pintadas de branco, os cheiros velhos e os perfumes atemporais dos jasmins e manacás, o córrego que corre debaixo da ponte: dizem que um alferes apelidado Tiradentes andou por alí. E entäo eu me comovo, porque os fantasmas que moram naquele espaço tranquilo väo me contando estórias. Imagino se os românticos inconfidentes teriam se reunido ali nalgum lugar para conspirar enquanto comiam päo de queijo e bebiam café.

21 de abril é, também, aniversário do meu pai. Se fosse vivo estaria completando 102 anos. A casa onde nasci ainda existe, em Boa Esperança. Foi construida por meu pai. Fui visitá-la - täo conservada, como se fosse nova. Entrei no quarto onde nasci, e fiquei imaginando a cena de eu nascendo para o mundo... Meu pai foi um homem muito rico. Meus três irmäos mais velhos nasceram nos tempos da riqueza. Tiveram brinquedos, velocípedes, bicicletas. A casa onde nasci era dos tempos da riqueza. Mas logo me mudei para casa pobre. Nascido nos tempos de pobreza, näo tive nem velocípede e nem bicicleta. Até hoje näo sei andar de bicicleta. Tenho muita inveja de quem sabe. Me dizem que é muito fácil. Para quem sabe, tudo é fácil.

Eu e os meus irmäos näo brigamos pela herança. Näo se briga pelo que näo existe. Do meu pai recebi um peso de vidro de papel. Verde claro, ficava sobre a sua mesa. Tudo o que é de vidro me fascina. Numa outra encadernaçäo vou me dedicar ao artesanato de vidros. Farei vitrais, como o Tiffany. Acho, inclusive, que Deus é um fazedor de vitrais: vai fazendo beleza com os cacos coloridos que o sofrimento arranca do nosso corpo. As lágrimas se transformam em contas de vidro. Difícil resistir à tentaçäo de comprar pesos de vidro. Tenho vários. Alguns säo obras de arte. ( Quando você visitar Poços de Caldas visite a fábrica de cristais Cádoro. Alí você vai encontrar a arte de Murano. Bons para presentes, bonitos sem ser caros ). Gosto deles mas näo me importo se quebram. Posso comprar outros. Mas o peso de vidro que herdei do meu pai, se ele se quebrar vou ficar muito triste. Será como se um elo que me liga ao meu pai tiver sido partido. Meu pai pegou no peso de vidro. Eu também. Assim nos tocamos.

Meu pai foi um homem fascinante. Se alimentava de sonhos. Por isso estava sempre voando - nunca punha os pés no chäo. O que me deixava profundamente irritado, desde menino. Sonhar é

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Rubem Alves

bom, mas é feito empinar pipa. A pipa só voa alto se estiver amarrada ao chäo, por uma linha. Pipa que näo estiver amarrada näo voa mais alto; cai, soluçando. O pai queria voar alto sem estar amarrado ao chäo. Quando algo näo coincidia com os seus sonhos ele simplesmente fazia de conta que aquilo näo existia. O resultado foi triste.

Mas enquanto o triste näo chegou meu pai foi espalhando alegria por onde ia. Ele näo suportava a idéia de que alguém näo estivesse alegre. E para espalhar alegria ele desenvolveu uma arte refinada de contar casos. Ele sempre nos dava uma grande alegria de palavras. Se os caminhos dele tivessem sido outros, ele poderia ter sido escritor, talvez poeta. O escritor é o único que pode empinar pipa sem que ela esteja amarrada ao chäo. Escritor, se näo fosse escritor, seria sonhador-voador como meu pai. O escritor, escrevendo, transforma seus sonhos num objeto: o texto. E o texto entra na circulaçäo da vida. Acho que o prazer de escrever foi uma das heranças que recebi do meu pai, junto com o peso de vidro.

Psicanalistas ortodoxos acham que o consultório deve se parecer com uma sala de cirurgia, assético, para näo contaminar a imaginaçäo do cliente. Eu acho o contrário. Quero mesmo é provocar a imaginaçäo dele, arrancá-la da toca onde se escondeu, como tatú. Havia uma vela sobre a mesinha de centro do meu consultório. Gosto de velas, por seu valor metafórico e suas potências oníricas. Meu paciente foi logo picado por ela. Lembrou-se que velas säo para serem usadas quando falta eletricidade. Lembrou-se mais que na sua cidade a eletricidade sumia com frequência. Era aquela escuridäo. A escuridäo deixa as pessoas infelizes. Näo ele. Quando faltava a luz, seu pai acendia uma vela e os três, pai, mäe e filho jogavam cartas. A vela, na sua imaginaçäo poética, estava ligada a um momento de intimidade e tranquilidade familiar. Sob a luz da vela os três estavam juntos.

Do meu pai tenho memórias parecidas. Depois da falência virou viajante. Ganhava a vida vendendo coisas. Os trens da Rede Mineira Viaçäo eram a sua casa. Assim, entre sacolejos e apitos roucos, foi viajando por Minas. Ele voltava no trem das 8 da noite. Nossa casa ficava bem diante dos trilhos. A gente ficava esperando o apito, na curva da linha, depois das paineiras, lá vinha o trem cuspindo vias-láteas de faiscas vermelhas pela chaminé. Nós na frente da casa, agitando os braços, meu pai meio corpo para fora da janela do trem, sorridente. A gente corria para a estaçäo, para vir com ele. Minha mäe fazia arroz, molho de tomate e cebola, ovos fritos. E eu tinha permissäo para comer junto com o meu pai, muito embora tivesse jantado às 5. Era uma felicidade mergulhar o päo na gema mole do ovo.

Meu pai foi muito rico, frequentava o Rio de Janeiro, hotéis e restaurantes caros onde se falava francês ( Ele me ensinou: +poisson sans boisson c'est poison+...). Mas as coisas da riqueza nunca entraram na alma dele. As coisas que lhe davam felicidade eram coisas simples, ver as galinhas subindo no poleiro, ao entardecer. A chuva caindo lá fora, de noite, e o barulho da goteira na lata. Assentar-se à porta da rua, numa cadeira de vime, depois da janta e jogar conversa fora, enquanto fumava cachimbo. Ler. Éramos pobres e ele ficou sócio de um Clube do Livro. Foi graças a esse Clube do Livro que eu adquiri o gosto pela leitura. Eu, menino de 8 anos, lia porque näo havia outra coisa para fazer.

Nunca levou a sério as coisas da religiäo. Padres e pastores, ele os mantinha distantes por meio de uma cortez cerimônia. Contava que um homem, lá em Boa Esperança, usava dizer: +Se Deus ficar com muito enjoamento ele vai acabar sozinho naquele ceuizinho dele...+ Também näo precisava. Amava os bichos, as árvores, os peixes, as pessoas.

O fim da vida foi triste. Um acidente vascular cerebral operou estranhas transformaçöes na cabeça dele. Um dia, eu me lembro, por volta das 2 da tarde, ele se pôs a mexer no guarda-roupas. +-Que é que o senhor está procurando, pai?+, eu perguntei. Ele respondeu: +-Um terno preto. Você näo está ouvindo o repicar fúnebre dos sinos?+ Só que näo havia sinos repicando. Os sinos que repicavam eram os sinos que havia dentro da alma dele. A alma é um campanário.

Todo mundo pergunta sobre o sentido da +terceira margem do rio+, no conto do Guimaräes Rosa. Se quiserem a resposta, perguntem ao meu pai. Ele sabia.

Mas o dia 21 de abril é também aniversário da morte de Abelardo, o famoso filósofo medieval, mais famoso e amado por sua paixäo que por sua filosofia. Apaixonou-se por Heloisa, sua aluna, com quem teve um filho, e por cuja causa foi castrado pelo tio dela, o que fez com que ambos entrassem

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Rubem Alves

para mosteiros onde passaram o resto de suas vidas amando a fantasia do amor que näo puderam viver. Estäo enterrados em Paris. Uma árvore faz sombra para o seu túmulo. Entre os objetos oníricos que compöem o meu consultório estäo dois ramos dessa árvore.

"BEM-AVENTURADOS OS QUE ESTÃO FARTOS PORQUE ELES TERÃO FOME DE NOVO!"

Duas tristezas. A primeira é não ter fome quando a comida está servida na mesa. O nome dessa tristeza é depressão. A segunda é ter fome quando não há comida na mesa. Isso não é depressão. É tristeza mesmo. Entre essas duas tristezas, a vida acontece. O encontro entre fome e comida tem o nome de alegria. A fome é mágica. Ela tem o poder de dar sabor a qualquer comida. "A melhor comida é angu com fome", diz ao ditado popular. Um amigo meu, o aviãozinho em que ele viajava caiu nas matas da serra do mar. Ele e o companheiro ficaram perdidos por dois dias, sem comer. Quando encontraram uma tapera de gente paupérrima, a mulher lhes fez, para comer, a única coisa que tinha: fubá mexido e cozido com água, angu. Quando o angu ficou pronto, ele nem esperou pela colher: atacou o angu com as mãos. Nunca mais comeu coisa tão gostosa... A vida começa com a fome. Para o nenezinho recém-nascido, que nada sabe, o mundo - mundo é tudo o que está fora do seu corpinho - é comida. O seio da mãe é o resumo do mundo. Quando a fome chega ele chora. O choro é a forma que o corpo tem de dizer que ele, corpo, não se basta: falta algo. Essa é a primeira lição de filosofia. Somos, fundamentalmente, não "pensamento", como pensava Descartes, mas fome. "Tenho fome, portanto sou". Daí a afirmação de Feuerbach, filósofo que pensava com o corpo e não com a cabeça: " O homem é aquilo que ele come". A vida começa na boca. A vida começa no seio. A boca sugando o seio: essa é a primeira lição de erótica. Essa é a primeira maneira de fazer amor. Disse-me um pediatra que os gemidos que faz a criancinha ao mamar são idênticos aos gemidos dos amantes abraçados fazendo amor. A vida é uma transformação da boca. Na criancinha, os sentidos estão adormecidos. eles estavam adormecidos, como a Bela. Acordados, todos eles vão se transformando em boca. Olho vira boca, ouvido vira boca, nariz vira boca, pele vira boca. Todos têm fome do mundo. Todos querem comer o mundo. Sobre isso os médicos, que se dizem conhecedores do corpo, nada sabem. Pensam que é só a boca que come. Os poetas sabem mais. Dizia Neruda: " Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos, de lutas. Comeria toda a terra. Beberia todo o mar." A vida é uma transformação do seio. Na boca do nenezinho o seio só jorra leite. Mas, à medida que ele vai crescendo, o seio vai se transformando. Dele outras coisas começam a jorrar. Os gregos diziam que do seio jorram estrelas: a Via Látea nasceu de um esguicho de leite que saiu do seio de uma deusa. Mas do seio esguicham outras coisas: jardins, mares, rios, montanhas, nuvens, músicas, perfumes, toques, risos, rostos... Se Deus não ficar bravo comigo proponho um acréscimo às palavras de Jesus, no "Sermão da Montanha", uma outra bem-aventurança. É sabido que Jesus disse: "Bem-aventurados os que têm fome porque serão fartos." Eu acrescentaria: "Bem-aventurados os que estão fartos porque eles terão fome de novo!" Pois poderá haver desgraça maior que deixar de ter fome? Estar farto, não ter mais fome é o tédio, o enfado, a impotência. Quem não tem fome está condenado a não ter alegria. Todas essas coisas sobre a fome, eu as disse a propósito de um casal de amigos. Estão completando 50 anos de casados. Sobre eles já falei. O Jether é aquele que não teve coragem de comprar um blazer vermelho. Eu o vi comendo o blazer com os olhos. Era muito bonito. Mas algo o proibiu. Dieta. Naquele tempo ele era um adulto sério. Ficou com medo de que os outros achassem que um blazer vermelho era pimenta demais na comida de alguém da terceira idade. Quem faz 50 anos de casado não pode ser muito jovem. Mas os dois, Jether e Lucília, são o casal mais jovem que conheço. Vão pela vida afora como crianças numa loja de brinquedos: tudo os encanta, tudo provoca risos, tudo é motivo de brincadeira. Eles

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Rubem Alves

são jovens porque os dois foram abençoados por minha bem-aventurança: eles têm uma fome insaciável. A fome é o segredo da juventude. Há muitos que completam 50 anos de casados por inércia. Perderam a fome, deixaram de ser crianças, ficaram velhos mesmo, e foram ficando rancorosos, amargos, ranzinzas, rabugentos, intolerantes, reclamões. Gostam mesmo é de falar sobre doença, tendo prazer especial em mútuas alfinetadas. De noite eles se assentam para ver televisão e não têm sobre que conversar. Aí, quando completam 50 anos de casados, fazem festa. Celebram o quê? O Jether e a Lucília completam 50 anos de casados como dois namorados. "Namorados", na minha definição, são os amantes que ainda não ficaram sérios, que continuam crianças. Vou contar uma molecagem do Jether, torcedor do Botafogo, como eu. Molecagem que teve a Lucília como cúmplice. Um filho deles, esposa e dois netos, meninos de 9 e 7 anos, foram morar na Inglaterra. A Lucília, cheia de saudades, ia visitá-los. Era o tempo de Copa do Mundo. Saiu a lista dos jogadores convocados para a seleção, página inteira do jornal. Na coluna esquerda, as fotos dos jogadores, uma debaixo da outra. Ao lado de cada foto, um comentário técnico sobre o craque. O Jether teve uma idéia marota, brincadeira com os netos. Cortou a foto de um jogador. No seu lugar colou sua própria foto, devidamente encolhida. A seguir, o comentário, algo mais ou menos assim: "Jether Pereira Ramalho, grande revelação do Botafogo. Dono de uma técnica impecável e de uma experiência única, vai ser o cérebro da seleção brasileira" : tudo em letras idênticas às do jornal. A seguir fez uma cópia xerox e pediu que a esposa levasse a dita folha para os netos. Foi o que ela fez, sem nenhum comentário. Os garotos ficaram excitadíssimos com as notícias sobre a Copa do Mundo. Começaram a ler até que chegaram à notícia insólita: "Nossa! O vovô! O vovô foi convocado para a seleção!" A avó engoliu o riso, se conteve. Mas aí um deles notou algo estranho: " Uê! Por que é que o vovô está de gravata e paletó?..." Jether e Lucília não perdem cinema. Vêm todos os filmes bons que há para ver, especialmente os de arte. Foram eles que me aconselharam a ver "A lanterna vermelha". Foram eles que pela primeira vez me contaram sobre "A Festa de Babette". Não perdem concerto de música clássica, especialmente piano. E nem show de música popular. Adoram comer e beber. Lucília é uma maravilhosa Babette cujos olhos brilham ao ver um doce. Não perdem chances de viajar: a vida é curta, "tempus fugit", "carpe diem". Já viraram o mundo de cabeça para baixo, sem nunca perder tempo com compras em shopping-centers para exibir para os invejosos. Faz pouco tempo foram visitar os campos da tulipas na Holanda e as geleiras no sul do Chile onde tomaram uisque de 12 anos com gelo de geleira de 30.000 anos. Além disso, o Jether é companheiro de banhos de cachoeira e mergulhos em lagos de água gelada. E, ao mesmo tempo, estão comprometidos de corpo e alma com as lutas por um mundo melhor. Partilhamos de uma mesma tradição, que amamos. Somos protestantes. Mas é dessa tradição que nos vem um arrependimento comum. Não por pecados que tenhamos cometido. Mas por pecados que deveríamos ter cometido. Em tempos passados aprendemos na igreja (nisso católicos e protestantes são iguais) que Deus fez a fome, Deus fez a comida, e Deus deu a proibição. Segundo a teologia clássica, Deus gosta mesmo é de jejum e de fazer a gente sofrer. Se não fosse assim, não teria feito nem a fome e nem a comida. Felizmente acordamos a tempo do nosso erro: Deus é a grande Babette universal. Quer mesmo é ver o sorriso de criança da gente diante do grande banquete que é o mundo. Temos só tristeza pelo tempo perdido. E juramos não mais perder tempo. Comeremos de tudo o que é bom e bonito com fome insaciável. E agora eu rezo por vocês a reza da Adélia Prado: " Não quero faca nem queijo. Quero é fome!" Comer é bom, quando não se está sozinho. Felizes são vocês que sempre comeram juntos. Que a fome seja sua eterna companheira, até o fim. Para que vocês continuem crianças. Amém. `...eles têm uma fome insaciável. A fome é o segredo da juventude.' `Temos só tristeza pelo tempo perdido. E juramos não mais perder tempo.'

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Rubem Alves

ESCUTATÓRIA, DE NOVO...

O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: "Se eu fosse você..." A gente ama näo é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na näo escuta que ele termina.

Näo aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atençäo. Todos reunidos alegremente no restaurante: pai, mäe, filhos, falatório alegre. Na cabeceira, a avó, com sua cabeça branca. Silenciosa. Como se näo existisse. Näo falava por näo ter o que dizer. Falava por näo ter quem quisesse ouvir. O silêncio dos velhos. No tempo de Freud as pessoas procuravam os terapeutas para se curarem da dor das repressöes sexuais. Aprendi que hoje as pessoas procuram os terapeutas por causa da dor de näo haver quem as escute. Näo pedem para serem curadas de alguma doença. Pedem para serem escutadas. Querem a cura para a dor da solidäo.

Acho bonito o Taoismo, filosofia oriental. Para saber como ele é basta ler os poemas de Alberto Caeiro. O Taoismo é um jeito de olhar para o mundo. Säo muitos os jeitos de olhar para o mundo. Cada jeito, cada mundo. O Taoismo diz que o mundo é feito de encaixes. Tudo vem aos pares. O que näo tem par näo existe. Tudo é macho e fêmea: Iang, In. Quando as duas partes do par se encaixam faz "clac" û e a felicidade acontece.

Para haver encaixe é preciso que cada parte seja incompleta. Se as partes fossem completas os encaixes näo seriam possíveis e nem necessários. Como num quebra-cabeças. Cada peça tem de ter um buraco. Esse buraco é para nele se encaixar um "pleno" da outra peça.. Se tal buraco näo existir, o encaixe näo pode acontecer. O quebra-cabeças fica frouxo, solto, desmancha. Mas näo acredite nessa palavra "pleno", que usei. Usei por falta de outra. "Pleno" sugere algo completo, em que nada falta. Mas a verdade é outra. Todo "pleno" é um buraco visto pelo avesso. Quando o buraco e o pleno se juntam acontece o encaixe. ( Quem já montou quebra-cabeças sabe do prazer quase erótico que se sente ao fazer uma peça se encaixar na outra. Como se fosse uma metáfora sexual. Confirmaçäo do Taoismo.) . Viver é montar um quebra-cabeças. Viver é procurar encaixes.

Acho que os taoistas aprenderam isso observando a boca de um nenezinho sugando o seio da mäe. A boca é um vazio. Sem nada saber ela já sabe sobre os encaixes. Suga o vazio. Seus movimentos ritmicos säo a primeira forma de oraçäo, sem palavras. Oraçäo é o vazio que espera. A boca vazia ora pelo "pleno" que a satisfará: o seio da mäe. Mas o "pleno" do seio da mäe é também oraçäo: quer uma boca que o sugue. Quando boca e seio se encontram o encaixe acontece. É a felicidade. O vazio de um é o pleno do outro. O vazio de um é a felicidade do outro.

Assim é o amor. A tristeza amorosa é o vazio desejando o pleno. Sócrates inventou um mito para explicar o amor. Disse que Eros nasceu do casamento entre "Pobreza" e a "Plenitude". O amor é um buraco na alma. Quem ama é pobre. Falta alguma coisa. Peça desencaixada do quebra-cabeças. O sentimento amoroso é a nostalgia pelo pedaço que me falta, "pedaço arrancado de mim." Assim säo o masculino e o feminino.

O masculino é o pleno que ora pelo vazio que o abraçará. O feminino é o vazio que ora pelo pleno que nele se encaixará. Quando os amantes se abraçam e as peças se interpenetram, os corpos se encaixam, como no quebra-cabeças. Todo ato de amor é uma realizaçäo efêmera de uma unidade original perdida.

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Rubem Alves

Assim säo o Iang e o In, o pleno e o vazio, seio e boca, o masculino e o feminino, a fala e a escuta.

A fala é masculina: o pleno, semen, semente, penetraçäo ("fodere", em latim, quer dizer cavar), ejaculaçäo. Segundo o Aurélio, essa palavra, ejaculaçäo, que é usada normalmente para designar o jato de esperma, significa também "proferir, dizer em voz alta". Ejacular esperma e falar säo a mesma coisa.

O ouvir é feminino. O pênis ereto é uma pobreza. É uma súplica, uma oraçäo por uma vagina que o acolha. A semente, para germinar, precisa de um buraco na terra que a acolha. A fala é pobre, falta. Procura o vazio do ouvido. A ejaculaçäo da fala, masculina, acontece num momento. Mas a germinaçäo da escuta, feminina demanda tempo e silêncio.

Para ouvir näo basta ter ouvidos. É preciso parar de ter boca. Sábia, a expressäo: "Sou todo ouvidos". Todo ouvidos; deixei de ter boca. Minha funçäo falante, masculina, foi desligada.. Näo digo nada. Nem para mim mesmo. Se eu dissesse algo para mim mesmo enquanto você fala seria como se eu começasse a assobiar no meio do concerto. Faço, para ouvir você, o mesmo silêncio que faço para ouvir música.

Vou agora lhe revelar o segredo da escuta. Quando era iniciante na arte da psicanálise tratava de prestar a maior atençäo naquilo que o cliente me estava dizendo. Levou tempo para que eu percebesse quem quem presta muita atençäo no que é dito näo consegue escutar o essencial. O essencial se encontra fora das palavras. Fernando Pessoa, essa distraçäo dos deuses, sabia disso e escreveu. Está num poema que ele dirigiu a um poeta. O poeta é um falador. Constroi objetos com palavras. A esse poeta, cujo negócio é falar, ele diz: "Cessa o teu canto. / "Cessa, porque enquanto / o ouvi, ouvia / uma outra voz / como que vindo nos interstícios / do brando encanto/ com que o teu canto/ vinha até nós./ Ouvi-te e ouvi-a / No mesmo tempo / E diferentes / Juntas a cantar. / E a melodia / Que näo havia / Se agora a lembro, / Faz-me chorar."

Preste atençäo no que está escrito. Fernando Pessoa diz que a fala tem duas partes. A primeira säo as palavras que säo ditas: a letra. A segunda é uma melodia que se faz ouvir nos interstícios da fala: a música. A letra é coisa do consciente, cerebral. A música é coisa do corpo, inconsciente. Aquilo a que a psicanálise dá o nome de inconsciente é a música do corpo. Quem diz a letra näo percebe que está cantando.

Tem havido tentativas de produzir uma fala que seja só letra, sem a música. A ciência e a filosofia têm se esforçado por esse ideal û uma fala da qual o corpo do que fala esteja ausente. Fala sem alma, só informaçäo. A voz metálica, monótona, indiferente, de robô, dos serviços de alto-falantes dos aeroportos, é uma expressäo sensível desse ideal desumano. Você poderia imaginar um diálogo de amor com esta fala? Näo existe voz humana que näo tenha música.

Aí Fernando Pessoa diz que a letra näo tem importância. Näo é nela que se encontra aquilo que importa escutar. Pede até ao poeta que pare de falar porque a fala dele atrapalha ouvir a melodia... Esse é o absurdo segredo da escuta: é preciso näo escutar o que se diz para se poder ouvir o que ficou näo dito, a música. É na música que mora a verdade daquele que fala.

Assim, se você quiser ouvir bem, näo preste muita atençäo na letra. Esqueça as liçöes da hermenêutica, a ciência da interpretaçäo dos sentidos. Aprenda a sentir a música. Todos os tipos de música, do tam-tam dos tambores a Boulez. Porque o que os compositores fizeram foi só fazer tocar em instrumentos aquilo que era tocado pelo corpo.

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Rubem Alves

Parafraseando Uexküll: "Todo corpo é uma melodia que se toca." Seria bom se, nos cursos de psicologia, se lesse menos livros e se ouvisse mais música.

EM DEFESA DAS ÁRVORES

Estava eu na sala de espera do meu médico trabalhando absorto no meu laptop para matar o tempo, os "oclinhos" de ver perto na frente dos olhos, ao longe tudo era um borrão quando, de repente, um borrão alto se colocou à minha frente, baixei os "oclinhos" para ver à distância: era um homem que conheci menino, de precoce vocação científica, posto que menino ainda, se comprazia em experimentos incendiários com gases mal cheirosos. Depois dos cumprimentos de praxe e sem mais delongas ele disse: "Rubem, escreva uma crônica em defesa das árvores." Havia indignação em sua voz e ele relatou:

"Havia, no terreno do meu vizinho, um ipê maravilhoso, árvore muito velha, tronco grosso, que anualmente produzia uma floração cor-de-rosa, para espanto e felicidade de todos. Pois, sem maiores avisos, o tal vizinho cortou o ipê. Fiquei indignado e fui saber das razões do assassinato. Que mal lhe teria feita aquela árvore mansa? E ele me explicou que as raízes do velho ipê estavam rachando o seu muro de tijolos e argamassa. Um ipê que leva cinqüenta anos para crescer cortado por causa de um muro que se constrói num dia! Aí lhe perguntei: "Por que não me falou? Eu teria pago a reconstrução do seu muro..."

E concluiu: "Você escreve uma crônica?" Tive uma reação desanimada. Lembrei-me das palavras tristes do Vinícius no seu poema "O Haver", em que fala da "sua inútil poesia". Sinto assim, de vez em quando, que aquilo que escrevo é inútil. Os que têm poder nem lêem e se lêem não levam a sério. As razões que movem a política são as razões dos machados e das serras; não são as razões da beleza. Escrever, para quê? Para sensibilizar o vizinho que gosta mais de um muro que de um ipê? O que eu escrevesse só encontraria eco naqueles que amam mais os ipês que os muros. Mas, nesse caso minha escritura seria desnecessária. E para os que amam mais os muros que os ipês ela seria inútil. Aí me lembrei de um poema de Chuang-Tzu, escrito séculos antes de Cristo: "Eu sei que não terei sucesso. Tentar forçar os resultados somente aumentaria a confusão. Não será melhor desistir e parar de me esforçar? Mas, se eu não me esforçar, quem o fará?" As palavras do sábio foram uma repreensão ao meu desânimo. Comecei a pensar. Lembrei-me de fato semelhante acontecido na minha rua. Havia um ipê amarelo que florescia no mês de julho. O chão ficava dourado com suas flores. Mas a dona da casa em frente ao ipê e a sua incansável vassoura deram o nome de "sujeira" ao dourado das flores caídas.

E, um belo dia, a árvore amanheceu com um anel cortado na sua casca. As veias pelas quais sua seiva circulava haviam sido seccionadas durante a noite. O ipê morreu. A vassoura triunfou. Há pessoas cujas idéias nascem da vassoura. Visitando um amigo que mora num condomínio rico de Campinas alegrei-me vendo que ele era todo arborizado com magnólias. As flores das magnólias são quase insignificantes. Mas o perfume é maravilhoso. Quem respira o perfume de uma magnólia tem a alma tocada pelo divino. Aí o meu amigo apontou para uma casa do outro lado da rua. Lá não havia magnólias. E explicou: "A dona da casa disse que dava muito trabalho varrer as folhas que caíam no chão." Agora mesmo, a um quarteirão de onde escrevo, havia três daquelas árvores que se chamam "Chapéu de Sol", de folhas largas e sombra generosa. Pois a dona da casa mandou cortar todos os galhos das três, ficando só os toquinhos. Ficaram parecidas com cabides de pendurar chapéu. Mas as árvores não guardam rancor. Trataram de continuar a viver - e nos toquinhos surgiram brotos verdes, como um gesto de perdão. Percebendo que as árvores insistiam em viver, ela mandou que todos os brotos fossem arrancados.

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Rubem Alves

Quando as serras da CPFL mutilaram as velhas paineiras da Orosimbo Maia, que todos amavam, houve uma onda de indignação que ocupou as manchetes do Correio Popular.

Pois um leitor escreveu aborrecido porque o jornal perdia tanto tempo com uma coisa sem importância como árvores. O prazer em cortar árvores, me parece, está ligado à volúpia do poder. Quem corta, tortura ou mata experimenta o prazer de exercer poder sobre o mais fraco. Mas acho que o prazer em cortar árvores está ligado a uma coisa mais sinistra. Suspeito que estejamos vivendo um momento de metamorfose da nossa condição humana. Até agora temos sido habitantes do mundo da vida. Nosso habitat é constituído por florestas, animais, rios e mares. Somos seres biológicos, corpos. Mas agora estamos mudando de casa. Estamos trocando nossa casa biológica por uma outra casa eletrônica.

Faz tempo fiz a travessia dos lagos andinos - cenários maravilhosos, entre lagos, vulcões e florestas - passando por Bariloche e terminando em Buenos Aires. Em Bariloche fiquei conhecendo um casal que fazia o mesmo percurso com dois filhos adolescentes. Fui reencontrá-los numa das ruas centrais de Buenos Aires. "Graças a Deus estamos aqui!", me disse o marido. "Já não aguentávamos mais: só lagos, montanhas e árvores. Aqui, felizmente, temos os videogames." Virei Hulk na mesma hora e lhe disse: "Tomaram a excursão errada. Seu destino era Las Vegas!" Mas eles nada mais fizeram que expressar de forma grosseira o que já ficou normal. Nenhum adolescente troca um vídeo game por jardinagem. Nos filmes de ficção científica do tipo "Guerra nas Estrelas" que emocionam milhões não há árvores: somente máquinas com inteligência eletrônica. Nossas inteligências estão cada vez mais ligadas aos vídeos e computadores e cada vez mais distantes da natureza. Há crianças que nunca viram uma galinha de verdade, nunca sentiram o cheiro de um pinheiro, nunca ouviram o canto do pintassilgo e não têm prazer em brincar com terra. Pensam que terra é sujeira. Não sabem que terra é vida. As nossas escolas - seria bom se elas ensinassem as crianças a amar as árvores. Chamar pelo nome e amar as paineiras, as sibipirunas, as magnólias, os pinheiros, as magueiras, as pitangueiras, os jequitibás, os ipês, as quaresmeiras... Aprendi na escola que os homens são uma forma de vida mais evoluída que as árvores. Estou brincando com a possibilidade do contrário: que as árvores sejam mais evoluídas que nós. Se assim não fosse por que haveriam as Escrituras Sagradas de comparar o homem feliz com uma árvore plantada junto a ribeiros de águas? Com o que concorda Alberto Caeiro: "Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos..." Deus nos amará quando formos como as árvores!

Ninguém vai para o inferno. Os que não amam as árvores também vão para o céu. Mas, como todos sabem, o céu é o lugar onde se encontram as coisas que amamos. O lugar onde se encontram as coisas que não amamos é o inferno. Assim, para os que não amam as árvores, um lugar com bosques, florestas, flores e riachos seria o inferno. Eles não irão para o inferno de árvores. Irão para o seu céu sem árvores, pois é isso que eles amam.

Morarão numa cidade planejada pelo Niemeyer onde tudo será feito de concreto segundo formas geométricas perfeitas, em nada semelhantes às coisas vivas. Os prédios do Congresso Nacional, em Brasília, são uma metade de esfera voltada para cima e uma metade de esfera voltada para baixo, sem janelas. Na cidade planejada pelo Niemeyer as árvores não sujarão as calçadas com suas folhas e flores. As árvores serão de concreto, semelhantes aos cogumelos: uma esfera cortada pelo meio equilibrando-se sobre um cilindro. O bom disso é que não haverá despesas com jardineiros. E as donas de casa não precisarão varrer a calçada.

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Rubem Alves

CONCHAS OU ASAS?

O conhecimento pode dar prazer. O conhecimento pode dar sofrimento.Quando o conhecimento dá prazer a gente quer conhecer cada vez mais. Quando o conhecimento dá sofrimento a gente quer conhecer cada vez menos.

No início da sua Metafísica Aristóteles afirma que "todos os homens têm, naturalmente, um impulso para adquirir conhecimento." Isso é absolutamente verdadeiro em relaçao ao conhecimento que dá prazer. O prazer que Walt Whitman sentiu ao entrar para a escola foi tão grande que ele lhe deu a forma de um poema: "Ao começar meus estudos / me agradou tanto o passo inicial, / a simples conscientização dos fatos,/ as formas, o poder de movimento, o mais pequeno inseto ou animal, / os sentidos, o dom de ver, o amor / - o passo inicial, torno a dizer, / me assustou tanto, / e me agradou tanto, / que não foi fácil para mim passar / e não fácil seguir adiante, /pois eu teria querido ficar ali / flananado o tempo todo, / cantando aquilo / em cânticos extasiados."

O conhecimento prazeroso é aquele que nos abre as janelas do mundo. Como se a gente estivesse viajando, e fosse vendo árvores, riachos, campos, vacas, cavalos, pássaros, casas, caminhos, nuvens... Conhecimento prazeroso é aquele que coloca diante de nós os cenários do mundo, que vão dos ovos num ninho de beija-flor até galáxias a milhões de anos luz de distância. Diante dos cenários que o conhecimento nos abre os olhos e a alma ficam abobalhados de assombro. Como os de Walt Whitman menino.

Muitos séculos depois de Aristóteles, no final do século XVIII, o filósofo Emanuel Kant escreveu um pequeno opúsculo com o título O que é o Iluminismo? em que ele faz uma exortação que Aristóteles não entenderia. Ele diz: "Sapere Aude"- ouse saber! Mas como? Ninguém vai dizer "ouse olhar no microscópio!", "ouse olhar no telescópio!" Olhar no microscópio e olhar no telescópio são atos curiosos que atendem à nossa inclinação natural. Acontece que Kant tinha consciência de um tipo de conhecimento diferente daquele a que se referia Aristóteles. Ele sabia que há um conhecimento que não é natural por exigir a virtude moral da ousadia. A ousadia .é uma atitude de contrariar aquilo que é natural. Ousadia implica coragem, fazer o proibido, enfrentar o perigo, aceitar um desafio. Dá medo entrar numa floresta desconhecida. Dá medo escalar uma montanha perigosa. O impulso natural é recuar. Mas Kant diz: "Ouse conhecer! O que separa esses dois tipos de conhecimento?

O conhecimento a que se referia Aristóteles é o conhecimento das coisas que estão separadas do meu corpo. Conhecimento que mora na cabeça. Albert Camus, no seu livro O mito de Sísifo, observa que Galileu, que possuia um conhecimento astronômico da mais alta importância, quando se viu ameaçado pela Inquisição ( as igrejas cristãs sempre tiveram medo daqueles que conheciam o que elas não conheciam), negou o seu conhecimento, voltou atrás, desdisse.

Covardia? Camus diz que Galileu fez muito bem. Se o sol gira em torno da terra ou a terra gira em torno do sol é matéria de profunda indiferença. Aquele conhecimento não valia a fogueira. A vida vale mais No entanto, ele continua, há pessoas que são capazes de morrer e matar pelas idéias mais doidas. Por que? Porque essas idéias lhes dão razões para viver.

Idéias que dão razões para viver são aquelas idéias que fazem parte do meu corpo. Eu sei que uma idéia faz parte do meu corpo quando eu fico feliz ao vê-la confirmada por outra pessoa . É bom ouvir alguém dizer: "'E isso mesmo. Estou de acordo!" Quando duas

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pessoas confirmam uma mesma idéia - elas conhecem o mundo do mesmo jeito - estabelece-se entre elas um pacto; tornam-se uma comunidade; são irmãs. É assim que se formam as comunidades religiosas, as confrarias, alguns partidos políticos do tipo do PT, as torcidas de futebol, os grupos de adolescentes. Mas sei também que uma idéia é parte do meu corpo quando eu fico infeliz ao vê-la contestada. Meu corpo treme. Fico com raiva.

Recuso-me a examinar logicamente o argumento daquele que a contesta. Preparo-me para a batalha. Se eu me preparo para sair, certo de que o céu está coberto de estrelas, e um amigo me informa que estou enganado porque começou a chover, eu posso ficar triste com o fato, mas não vou brigar para provar que o céu está estrelado. Vou simplesmente à janela para confirmar o dito. Se for verdade, levo o guarda-chuvas. Mas se alguém disser que é um bom negócio derrubar as florestas para ganhar dinheiro, eu vou ficar muito bravo. Pode até ser que seja bom negócio. Se não fosse, as madeireiras não cortariam árvores.

Há pessoas cujos corpos são feitos de cifrões. Seu corpo treme de felicidade ao ver a dança ascendente dos lucros. Acontece que os cifrões não circulam no meu sangue. Mas o meu corpo é feito com árvores e riachos. São as árvores e os riachos que me dão felicidade. Sabem o que eu faço quando a televisão mostra cenas de queimadas e devastações de florestas? Eu desligo a televisão. Sei que é verdade, mas eu não quero saber. Recuso-me Contesto Aristóteles.. Quero ignorar os fatos para que as árvores continuem de pé. É necessário, então, enunciar o contrário do dito pelo filósofo grego, e que é dito pela psicanálise: "todos os homens têm, naturalmente, um impulso para evitar o conhecimento."

Esse estranho comportamento se deve ao fato de que nossos corpos não são feitos só de carne e sangue; eles são feitos de palavras. Os moluscos têm corpos moles. Falta-lhes um esqueleto. Como proteção, eles produzem conchas duras dentro das quais se fecham. Somos como os moluscos. Frágeis diante de um mundo imenso e assustador. Tratamos, então, de nos defender: construímos conchas duras de palavras. Conhecimento sobre o mundo? Tudo bem. Tudo é permitido. Nada assusta. Mas aí daquele que tocar numa das palavras que fazem parte da minha concha. Nossa concha é sagrada. Na verdade, aquele mundo a que damos o nome de sagrado, é feito com as partes da nossa concha de palavras. Aí daquele que tentar negar, contestar, destruir uma dessas palavras! O corpo inteiro se mobiliza para a batalha . Ou para a retirada... Retirada é também uma tática de guerra. Tapar os olhos, entupir o ouvidos, recusar-se a pensar.

Pensar é muito perigoso. As Sagradas Escrituras relatam um sonho em que aparecia uma estátua enorme, de ferro, com pés de barro. Basta um pé de barro para que a estátua caia. O perigo do pensamento está em que ele venha a revelar que nossa estátua de ferro tem pés de barro: nossa concha é feita de gelatina. Se isso acontecer já não mais conseguiremos dormir em paz.

Compreende-se, portanto, que contrariamente ao que disse Aristóteles, a nossa tendência natural seja a de evitar conhecimento. Os homens, naturalmente, esforçam-se por não conhecer.

O corpo é sagrado. E sagradas são todas as coisas que estão vitalmente ligadas a ele. Pensar uma palavra sagrada é correr o risco de trincar a concha dura que protege o nosso corpo mole. Coisas sagradas que não devem ser pensadas são ídolos. Ídolos não são para ser pensados. Ídolos são para ser adorados e usados. Compreende-se, portanto, a tendência das pessoas religiosas de se recusarem a pensar sobre suas idéias. Suas idéias religiosas - e portanto os seus deuses - ficam fora do exercício do pensamento.

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Rubem Alves

Mas eu não posso respeitar deuses que me proibam o exercício do pensamento. Um deus que não sobrevive ao exercício da inteligência não pode ser deus. É um ídolo de pés de barro. Mas eu amaria e respeitaria um Deus que não temesse o pensamento e que me dissesse, como desafio: "Ouse pensar!" Eu amaria e respeitaria um Deus que desafiasse os homens a abandonar suas conchas para se tornarem seres alados!

ASAS PARA QUEM QUER VOAR...

Eu me lembro, tinha uns seis anos, minha mãe me pôs para dormir, não consegui, um fantasma futuro me dava muito medo e ansiedade, pensava que chegaria um dia em que eu cresceria, meu pai e minha mãe morreriam, eu ficaria sozinho no mundo, sem ninguém para cuidar de mim, eu teria de tomar conta da minha vida, teria de trabalhar para ganhar dinheiro, mas o que é que eu poderia fazer? Comecei a chorar. Minha mãe me ouviu. Contei-lhe minha aflição. Mas as mães e os pais jamais imaginam o tamanho da aflição das crianças. Estava escuro. Não vi o seu rosto. Mas sei que ela sorriu ao ouvir meu sofrimento. Os sofrimentos das crianças são sempre bobos para os grandes. E aí, do fundo da minha aflição, imaginei duas alternativas. "Já sei!", eu disse. "Poderei ganhar a vida rachando lenha ou mexendo com meus papéis..." Quem rachava lenha para nós era o seu Zé, trabalhava o dia inteiro, suando com seu machado, e ao final do dia ganhava uma pratinha de dois mil réis. Quem mexia com papéis era meu pai, viajante, que estava sempre às voltas com pedidos que ele dactilografava (era assim que ele falava, "daquitilografar") em sua Smith-corona portátil. Assim eu vislumbrava o meu futuro, ou como rachador de lenha ou como viajante. Cresci. Nos mudamos para o Rio de Janeiro. Aí meus horizontes se expandiram. Havia outras possibilidades. Poderia fazer concurso para o Banco do Brasil, ser engenheiro ou ser médico: contar dinheiro, fazer casas e pontes, dar receitas. Essas eram as possibilidades. Meu pai me empurrava para a engenharia, que ele achava a coisa mais importante do mundo. E assim fui, achando que seria engenheiro. Depois mudei de idéia. Resolvi ser pianista. Estudei muito, não deu certo, eu não tinha talento. Os Norman Vincent Peale e Lair Ribeiro são enganadores: não é verdade que "querer é poder". Por mais que a tartaruga reze, Deus não vai lhe dar asas para ela voar como urubu. Resolvi então ser médico. Até que teria conseguido. Eu era bom no cursinho. Mas aí mudei de idéia de novo. E assim eu fui pela vida, estourando que nem pipoca, a cada estouro eu ficava diferente. O que nunca me passou pela cabeça é que algum dia eu seria escritor. Menino, eu gostava de ler. Adolescente, só lia gibis e X-9, revista policial que era o terror da minha mãe. Eu comprava escondido e escondia a revista debaixo do travesseiro. Nunca me preparei para ser escritor. Tanto que minha formação acadêmica sobre o assunto é fraquíssima. Quase nada sei sobre as ciências da escrita. Não me perguntem sobre dígrafos, análise sintática e escolas literárias. Nunca me interessei. Achava tudo isso perda de tempo. Sério mesmo era construir pontes e fazer cirurgias. Na verdade, eu achava aqueles que se dedicavam à literatura uns vadios. Me tirem do pau-de-arara: eu confesso meu pecado, sou ignorante. Eu só sei escrever, sem saber as explicações científicas da minha escrita. Virei escritor num estouro de pipoca. Independentemente de vontade, planos e preparo. Pura graça. Não me perguntem como escrevo. Diotima, sacerdotiza que deu aulas de sabedoria a Sócrates, disse que todos nós estamos grávidos de beleza. A beleza está dentro da gente, querendo sair. E, de repente, chega a hora do parto e ela nasce. Assim aconteceu comigo, do jeito mesmo como acontece com a pipoca. Os teólogos medievais se referiam a uma "igreja invisível". Por oposição à igreja visível, que é essa que a gente vê com com bispos, romarias, pregações e dogmas sobre céu e inferno. "Igreja invisível" é o conjunto de pessoas, por esse mundo afora, gente que a gente nunca viu nem verá que, sem que a gente saiba, se comove com

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as mesmas coisas que a gente. Quem se alegra com a mesma coisa que me trás alegria é meu irmão. Quem chora pela mesma coisa que me faz chorar é meu irmão. Quem acha bonita a mesma música que eu acho é meu irmão. Há um verso de Fernando Pessoa que diz assim: "... E a melodia que não havia, se agora a lembro, faz-me chorar." Pois essa "igreja invisível" (que nada tem a ver com igrejas, bispos e dogmas) é um coral que canta uma melodia inaudível que enche o universo. Especialmente em momentos de grande solidão a gente a ouve - e isso nos dá grande alegria e nos faz chorar: não estamos sós. Pois é isso que tenho experimentado através da escritura. Na ciência, para se saber se a palavra é verdadeira, é preciso que haja pesquisas e provas. As evidências se encontram fora das palavras. As palavras, sozinhas, não valem nada. Na literatura é o contrário. A literatura são as palavras que fazem amor com a gente. Cada palavra é uma extensão da mão, um prolongamento dos dedos. A palavra nos toca, o corpo e a alma reverberam. É a reverberação do corpo e da alma que atestam a verdade da palavra. Literatura é um jeito de fazer amor à distância. Por isso vivo repetindo àqueles que gostam das coisas que escrevo: "Vocês gostam do que escrevo não porque eu escreva coisas que vocês não sabem. Vocês gostam do que escrevo porque o que escrevo faz reverberar a beleza que estava dormindo em vocês." Palavra do Bernardo Soares: a arte é a comunicação às pessoas da nossa identidade íntima com elas. As crianças cantam uma canção, dão-se as mãos e brincam de roda. Um mesmo texto compartilhado é assim: através do espaço invisível damos as mãos com pessoas que não conhecemos e brincamos de roda. Somos iguais. Não estamos sozinhos. É a experiência de comunhão. Parte da alegria de quem escreve é receber o eco das reverberações: cartas. Cartas são documentos pessoais, confidências. Mas eu quero compartilhar com vocês trechos de uma carta que recebi faz duas semanas. Afinal de contas, pertencemos à uma mesma confraria, uma mesma "igreja invisível"... De uma jovem de 18 anos. Depois de um parágrafo introdutório, ela escreve "Nasci normal... Mas a partir dos 12 anos começou a se desenvolver em mim uma doença hereditária, chama-se Miopatia, distrofia muscular (D.M.C.). Essa doença aos poucos, progressivamente, vai atrofiando os nervos das pernas e dos braços e, por causa dessa doença minha coluna foi afetada, hoje eu mal consigo me locomover. Os médicos disseram que essa doença não tem cura. Cada dia que passa me sinto mais fraca e não vejo saída. Sou tão capaz mentalmente, mas meu corpo não me acompanha. ( ...) Eu não vejo mais razão para continuar nesse mundo. E eu tomei a decisão de me suicidar, já tinha tudo planejado, mas o seu livro me fez refletir e fui adiando.." "Tornamo-nos eternamente responsáveis pela pessoa que cativamos" - palavras do Pequeno Princípe. Eu e a jovem nos demos as mãos através do espaço vazio invisível. Fiquei me sentindo responsável por ela, que nunca vi mas que já é parte de mim. Pensei, então, que se ela tivesse acesso à Internet, ela poderia viajar pelo mundo sem sair de casa: visitar museus, bibliotecas, lugares distantes e, sobretudo, poderia se comunicar - especialmente com aqueles que têm a mesma doença que ela. Sua vida se tornaria mais bonita. E ela poderia "fazer amor" com outras pessoas e outros lugares, através da distância. Pensei se ela teria recursos. Não me atrevi a perguntar. Mas ela mesma me revelou, numa carta posterior, que mora numa escola de 1º grau da qual sua mãe é caseira. Pensei então que há muitas pessoas e empresas que trabalham sempre com computadores do último modelo, e que vão encostando os outros, que ficam inúteis e sem valor. Por meio dessa crônica estou fazendo um pedido à minha "igreja invisível". Se alguém tiver um computador em bom estado e encostado, bem que poderia trazê-lo de volta à vida, dando-o a essa jovem, como um órgão novo para que sua mente possa viajar pelo mundo! Sendo esse o seu caso, é só se comunicar comigo, e-mail [email protected] . "Quem se alegra com a mesma coisa que me trás alegria é meu irmão. Quem chora pela mesma coisa que me faz chorar é meu irmão" "Parte da alegria de quem escreve é receber o eco das reverberações: cartas".

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AS RAZÕES DO AMOR

Os místicos e os apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa : "A rosa não tem "porquês". Ela floresce porque floresce." Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema As Sem-Razões do Amor. É possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o vento.

"Eu te amo porque te amo..." - sem razões... "Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo." Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fosse assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra. "Amor é estado de graça e com amor não se paga." Nada mais falso do que o ditado popular que afirma que "amor com amor se paga". O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada me deves. Como a rosa que floresce porque floresce, eu te amo porque te amo.

"Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários... Amor não se troca... Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo..." Drummond tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não estar apaixonado (o que é uma pena...), suspeito que o coração tenha regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse que "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha conhecimento, e se perguntava: "Como decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco." O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá?

Ao apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor - frágil bolha de sabão - não contente com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Kierkegaard comentava o absurdo de se pedir aos amantes explicações para o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor - sem explicar. E eles falarão por dias, sem parar... Mas - eu já disse - não estou apaixonado. Olho para o amor com olhos de suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao contrário do Drummond, as cem razões do amor...

Vou a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais escrita. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais fazer: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?" Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo quando te amo?" Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras de Hermann Hesse, "o que amamos é sempre um símbolo". Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra.

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Variações sobre a impossível pergunta:

"Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no seu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios... Como Narciso, fico diante dele... No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura... Por isto te amo, pelos peixes encantados..."(Cecília Meireles)

Mas eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam. Escondem-se. Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos.

Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de os possuir.

Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, sem razões, desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a Virgem Bendita. Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como desceu poderá de novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E minha busca recomeçará de novo..."

Esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber que o rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. "O amor começa por uma metáfora", diz Milan Kundera. "Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética."

Temos agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce, vive e morre pelo poder - delicado - da imagem poética que o amante pensou ver no rosto da amada... (Crônica publicada no "Correio Popular", Campinas, em 14/05/92)

AOS VELHOS...

O tempo se mede com batidas. Pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode ser medido com as batidas do coração. Os gregos, mais sensíveis do que nós, tinham duas palavras diferentes para indicar esses dois tempos. Ao tempo que se mede com as batidas do relógio - embora eles não tivessem relógios como os nossos - eles davam o nome de "chronos". Daí a palavra "cronômetro". O pêndulo do relógio oscila numa absoluta indiferença à vida. Com suas batidas vai dividindo o tempo em pedaços iguais: horas, minutos, segundos. A cada quarto de hora soa o mesmo carrilhão, indiferente à vida e à morte, ao riso e ao choro. Agora os cronômetros partem o tempo em fatias ainda menores, que o corpo é incapaz de perceber. Centésimos de segundo: que posso sentir num centésimo de segundo? Que posso viver num centésimo de segundo? Diz Ricardo Reis, no seu poema "Mestre, são plácidas..." (que todo dia rezo): "Não há tristezas nem alegrias na nossa vida..." Estranho, que ele diga isso. Mas diz certo: o tempo do relógio é indiferente às tristezas e alegrias. Há, entretanto, o tempo que se mede com as batidas do coração.

Ao coração falta a precisão dos cronômetros. Suas batidas dançam ao ritmo da vida - e da morte. Por vezes tranqüilo, de repente se agita, tocado pelo medo ou pelo amor. Dá saltos. Tropeça. Trina. Retorna à rotina. A esse tempo de vida os gregos davam o nome de "kairós" - para o qual não temos correspondente: nossa civilização tem palavras para dizer o tempo dos relógios: a ciência. Mas perdeu as palavras para dizer o tempo do coração. "Chronos" é um tempo sem surpresas: a próxima música do carrilhão do relógio de parede acontecerá no exato segundo previsto. "Kairós", ao contrário, vive de surpresas.

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Nunca se sabe quando sua música vai soar. Foi o aniversário da Mariana, minha neta. O relógio me diz, com precisão, o número de segundos decorridos desde o seu nascimento.

Mas o meu coração nada sabe sobre esses números. E, se souber, os números não me dirão nada. Quando eu me lembro, é como se tivesse acabado de acontecer. Disso sabia o Riobaldo, herói do Grande Sertão - Veredas, jagunço. Sabia, sem saber, que "chronos" não se mistura com "kairós": "A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.

Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data." O Sérgio, meu filho, pai da Mariana, me contou que olhando para uma fotografia dela, quase mocinha, de repente compreendeu que estava ficando velho. Claro que ele sabe da idade dele. É só fazer as contas. Quem sabe somar e multiplicar tem a chave para entender as medições de "chronos". Além disso, havia o espelho: na sua imagem refletida estão as marcas da passagem do tempo, inclusive o cabelo, já branco, antes da hora. Mas o coração dele ainda não havia percebido. Coração não entende "chronos". Coração entende vida. Foi o fotografia da filha, menina que já tem nove anos, que de repente lhe produziu "satori": o terceiro olho dele se abriu, ele ficou iluminado: viu-se velho. Sentiu que o tempo passara pelo seu próprio corpo, deixando-o marcado. E chorou. Riobaldo de novo: " Toda saudade é uma espécie de velhice". Velhice não se mede pelos números do "chronos"; ela se mede por saudade. Saudade é o corpo brigando com o "chronos". De novo o mesmo poema do Ricardo Reis: ele fala do "... deus atroz que os próprios filhos devora sempre". "Chronos" é o deus terrível que vai comendo a gente e as coisas que a gente ama. A saudade cresce no corpo no lugar onde "chronos" mordeu. É um testemunho da nossa condição de mutilados - um tipo de prótese que dói. "Kairós" mede a vida pelas pulsações do amor. O amor não suporta perder o que se amou: a filha nenezinho, no colo, no meu colo, nenezinho e colo que o tempo levou - mas eu gostaria que não tivessem sido levados! Estão na fotografia, essa invenção que se inventou para enganar o "chronos", pelo congelamento do instante. "Chronos" me diz que eu nada possuo. Nem mesmo o meu corpo. Se não possuo o meu próprio corpo - o espelho e a fotografia confirmam - como posso pretender possuir coisas com esse corpo que não possuo? Heráclito foi um filósofo grego que se deixou fascinar pelo tempo. Ele era fascinado pelo rio. Contemplava o rio e via que tudo é rio. Como Vaseduva, o barqueiro que ensinou Sidarta. Percebeu que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio; na segunda vez as águas serão outras, o primeiro rio já não existirá. Tudo é água que flui: as montanhas, as casas, as pedras, as árvores, os animais, os filhos, o corpo... Assim é tudo, assim é a vida: tempo que flui sem parar. Daquilo que ele supostamente escreveu, restam apenas fragmentos enigmáticos. Dentre eles, um me encanta: "Tempo é criança brincando, jogando." Tempo é criança? O que o filósofo queria dizer exatamente eu não sei. Mas eu sei que as crianças odeiam "chronos", odeiam as ordens que vêm dos relógios.

O relógio é o tempo do dever: corpo engaiolado. Mas as crianças só reconhecem, como marcadores do seu tempo, os seus próprios corpos. As crianças não usam relógios para marcar tempo; usam relógios como brinquedos. Brinquedo é o tempo do prazer: corpo com asas. Que maravilhosa transformação: usar a máquina medidora do tempo para subverter o tempo. Criança é "kairós" brincando com o "chronos", como se ele fosse bolhas de sabão... O ano chega ao fim. Ficou velho. "Chronos" faz as somas e me diz que eu também fiquei mais velho. Faço as subtrações e percebo de que me resta cada vez menos tempo.. Fico triste: saudade antes da hora. A Raquel, quando tinha três anos, me acordou para saber se quando eu morresse eu iria ficar triste! Lembro-me do verso da

Cecília, para a avó: " Tu eras uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se..." Aí "kairós" vem em meu socorro, para espantar a tristeza. Me diz que o

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tempo é uma criança. Me convida a brincar com "chronos". Brinquedo é tempo sem passado, tempo sem futuro, presente puro - a eternidade num momento. "Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure": Vinícius escreveu esse verso para a namorada. Mas é verdadeiro para toda a vida. Afinal de contas, a vida tem de ser uma namorada. O amor vale pelo momento. Não se mede pelo número das batidas do relógio. Não se mede pelo número de anos vividos. Cada momento de brinquedo é uma eternidade completa. Nesse 31 de dezembro, quando "Chronos", deus atroz, escancarar a sua bocarra para me devorar, dizendo que estou velho, eu me rirei dele: virarei criança, começarei a brincar e ele fugirá com o rabo no meio das pernas...

AOS APAIXONADOS

Dedico esta crônica aos apaixonados, mesmo sabendo que servirá para nada. É inútil falar aos apaixonados. Os apaixonados só ouvem poemas e canções. A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria, pelo fato mesmo de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão. Todo apaixonado é tolo.

Pode ser que ele escute a fala da razão. Escuta mas não acredita. Diz ele: "O meu caso é diferente!" Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados.

Começo minha inútil meditação com um verso terrível de T. S. Eliot. Ele está rezando. Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar com a loucura da paixão. Ele reza assim: "... e livra-me da dor da paixão não satisfeita, e da dor muito maior da paixão satisfeita."

Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói. Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita. A paixão é um desejo de posse que, para existir, não pode se realizar.

Como a fome: depois do almoço a fome acaba...

Paixão é fome. Ela só floresce na ausência do objeto amado. Mais precisamente, ela vive da ausência do objeto amado. Não se trata de ausência física, o objeto amado distante, longe. A dor da ausência física tem o nome de saudade. Saudade tem cura. A saudade é curada quando o objeto volta. A dor da paixão é diferente. Não tem cura. A saudade do objeto amado, mesmo quando ele está presente, é o perfume característico da paixão.

Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu: "Por que tenho saudade/ de você, no retrato, ainda que o mais recente?/ E por que um simples retrato,/ mais que você, me comove, se você mesma está presente?" Que coisa mais esquisita! Como pode ser isso? Como se pode sentir saudade de algo que está presente? A resposta é simples: a gente sente saudades de uma pessoa presente quando ela está se despedindo. Cecília Meireles, desenhando sua avô morta, a quem ela muito amava, disse: "Tu eras uma ausência que se demorava; uma despedida pronta a cumprir-se." Dirão: "É natural, um dia ele possuirá o objeto da sua paixão." Mas a "dor muito maior" da paixão satisfeita não tem mais esperanças. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido.

Escrevi uma estória sobre isso. A Menina era apaixonada pelo Pássaro Encantado. Mas ela sofria porque o Pássaro era livre. O Pássaro Encantado era sempre uma ausência que

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se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se. O Pássaro lhe disse que era preciso que fosse assim, para que eles continuassem apaixonados. Ele sabia que a paixão são ama pássaros em vôo. Mas a Menina não acreditou. Prendeu-o numa gaiola.

Gaiola? Há as feitas com ferro e cadeados. Mas as mais sutis são feitas com desejos.

Esquisito o que vou dizer: a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos. "Romeu e Julieta", "Abelardo e Heloísa", "O paciente inglês", "As pontes de Madison", "Amor nos tempo do cólera", "A menina e o pássaro encantado". As estórias que amamos revelam a forma do nosso desejo. Delas, escolhemos uma. É a nossa gaiola.

Gaiola na mão, saímos pela vida à procura do nosso Pássaro. Quando imaginamos havê-lo encontrado - que felicidade! Ficará feliz em nossa gaiola. Será o amante da nossa estória de amor: eu pra você, você pra mim... Nós o colocamos lá dentro e pedimos que nos cante canções de amor.

Acontece que o Pássaro também tinha a sua estória. E era outra. Todo Pássaro deseja voar. Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores e o seu canto se transforma em choro. E, de repente, ele se transforma. Não mais ele possuirá o objeto da sua paixão. Mas a "dor muito maior" da paixão satisfeita não tem mais esperanças. O objeto se desfez. Ela vive na tristeza do objeto perdido.

Contada assim, a estória parece ter um vilão e uma vítima. A verdade é que os dois são vilões, os dois são vítimas. O desejo da gente é sempre engaiolar o outro e levá-lo pelos caminhos que são nossos. Isso vale para tudo: marido-mulher, pai-filha, mãe-filho, patrão-empregado, professor-aluno... Não admira que Sartre tenha dito que "o inferno é o outro".

Não haverá uma saída. Lembro-me de um pequeno poema de Pearls sugere a possibilidade de uma relação sem gaiolas:

"Eu sou eu.Você é você.Eu não estou nesse mundo para atender às suas expectativasE você não está nesse mundo para atender às minhas expectativas. Eu faço a minha coisa.Você faz a sua.E quando nos encontramosÉ muito bom."

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"ANTES QUE ELES CRESÇAM..."

Escrevo para confessar um pecado: eu tive inveja. Inveja, todo mundo sabe que é coisa feia. Inveja é quando a gente fica triste vendo que uma outra pessoa tem uma coisa boa que gostaríamos de ter mas não temos. A inveja verde - a mais terrível de todas - mistura a tristeza com raiva e ficaria feliz se a outra pessoa perdesse aquilo de bom que ela tem. A inveja que tive não foi verde. Se começou verde, ficou logo cor de abóbora. Essa inveja me acomete quando leio certos autores: Bachelard, Octavio Paz, Manoel de Barros... Pois desta vez foi lendo uma crônica do Affonso Romano de Sant'Anna. Uma amiga, a Débora, a encontrou na Internet, fez uma cópia e me enviou. Comecei a ler e, à medida que lia, a maldita inveja ia me coçando. Que texto mais lindo! Ele disse tudo o que eu gostaria de ter dito mas nunca consegui! Eu gostaria de ter escrito o que ele escreveu - mas quem escreveu foi ele, e não eu. E aí aconteceu o que acontece sempre quando leio Bachelard,

Octavio Paz, Manoel de Barros: a tristeza de não escrever tão bem quanto eles foi se transformando em alegria, comecei a rir, fui inundado de felicidade, agradecido de que haja no mundo pessoas que têm a alma parecida com a minha. Lembrei-me do dito pelo Bernardo Soares: "arte é comunicar aos outros a nossa identidade íntima com eles."

Minha alegria ante a beleza e a verdade do texto me garantia: eu e o Affonso Romano de Sant'Anna somos iguais. Desejei, então, que outros sentissem o mesmo que senti. Como eu não posso escrever nada melhor do que ele escreveu, resta-me apenas repetir o que ele disse. Telefonei à Débora pedindo as referências bibliográficas. Ela não tinha porque o texto estava na Internet. Assim, publico sem licença do autor. Sei que ele compreenderá e me perdoará. Publico, dedicando-a aos meus filhos, às minhas netas, aos pais apressados e desatentos (um dia eles se arrependerão de sua pressa e desatenção). Mas eles se redimirão quando se tornarem avôs...

"Há um período em que os pais vão ficando órfãos de seus próprios filhos. É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados.

Crescem sem pedir licença à vida. Crescem com uma estridência alegre e, às vezes com alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias, de igual maneira, crescem de repente. Um dia sentam-se perto de você no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura. Onde é que andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços e o primeiro uniforme do maternal? A criança está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça! Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão nossos filhos com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da moda nos ombros. Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados. Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias, e da ditadura das horas. E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com nossos acertos e erros. Principalmente com os erros que esperamos que não repitam. Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos. Não mais os pegaremos nas portas das discotecas e das festas. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judô. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvirmos sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, posters, agendas coloridas e discos

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ensurdecedores. Não os levamos suficientemente ao Playcenter, ao shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas que gostaríamos de ter comprado. Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto. No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscina e amiguinhos. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim. Depois chegou o tempo em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma a os primeiros namorados. Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes". Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito (nessa hora, se a gente tinha desaprendido, reaprende a rezar) para que eles acertem nas escolhas em busca de felicidade. E que a conquistem do modo mais completo possível. O jeito é esperar: qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto. Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam."

COITADO DO CORPO...

Conheci um professor de educação física que defendia a tese de que atletismo faz mal à saude. E argumentava: "Você conhece algum atleta longevo? Quem vive muito são aquelas velhinhas sedentárias que tomam chá com bolo no fim da tarde..." Quando ele me disse isso pela primeira vez lembrei-me logo de minha mãe. Antigamente a medicina tinha idéias científicas diferentes. Ah! Como as opiniões da ciência são volúveis! Pois o que os cientistas diziam naqueles tempos é que é preciso economizar energia. Baseavam-se em evidentes analogias tiradas das máquinas (hoje os cientistas continuam a usar o modelo da máquina para entender o corpo humano).

Primeiro a analogia do desgaste: carro que anda demais fica velho logo. Funde o motor.

Ninguém quer comprar carro que já virou o velocímetro. Quem se movimenta demais logo gasta as juntas e músculos. O melhor é ficar na rede. E há a analogia do combustível: se o carro rodar muito o combustível acaba. Mas se ficar na garagem o combustível não acaba. Vida é combustível. Tem limite. Quem vive muito intensamente corre o risco de morrer mais cedo. O melhor é ficar paradão. Meu tio, que era médico, sentenciava:

"Nunca fique em pé quando puder ficar sentado; nunca fique sentado quando puder ficar deitado." Minha mãe seguiu rigorosamente o conselho do irmão. Morreu aos 93 anos.

Essa memórias me vieram quando li a notícia de que Florence Griffith Joyner havia sido fulminada por um infarto. Corpo fantástico, só músculos, a mulher mais rápida do mundo, detinha há dez anos os recordes mundiais dos 100 e dos 200 metros. Deveria ter 140 de colesterol, coração com músculos de ferro - impossível que fosse morta por um infarto. Mas foi.

O sentido original da palavra ôstressõ pertence à física, no campo da mecânica aplicada. O seu objetivo é determinar a resistência de um material - o que é de fundamental importância na construção de pontes, edifícios, aviões. Para se determinar a resistência de um material é preciso submetê-lo a ôstressõ isto é, a forças, até o ponto dele se partir.

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Tomo um tijolo, coloco-o numa prensa e submeto-o a pressões. O ponto em que ele se partir será o seu limite. Tomo um fio de náilon e vou aumentando o peso que ele tem de suportar. O momento em que ele se partir será o seu limite.

O atletismo é a aplicação, sobre o corpo humano, das técnicas de ôstressõ para se determinar a resistência dos materiais. O treino do atleta tem por objetivo aumentar a sua resistência. A competição por por objetivo determinar o ponto além do qual ele não consegue ir. Há os testes de força e compressão (os halterofilistas), de elasticidade (saltos de todos os tipos), de velocidade, de resistência (por quanto tempo o corpo aguenta?). Os recordes estabelecem a performance máxima do corpo submetido à stress máximo. A competição é essencial ao atletismo porque é só através dela que se podem fazer comparações. Comparo vários materiais para determinar sua resistência a um tipo de stress. Comparo vários atletas por meio da competição para ver qual deles tem o melhor desempenho quando submetido ao stress máximo. O corpo da Florence Griffith Joyner não aguentou. Arrebentou como um fio arrebenta se seu limite é ultrapassado. Se o atletismo é isso a tese do professor de educação física a que me referi acima está plenamente justificada.

O que move o atleta não é o prazer da atividade, em si mesmo. Se assim fosse, ele ficaria feliz em correr, nadar, saltar, sem precisar de comparar-se com outros. Mas depois de correr ele consulta o seu relógio. Está comparando o seu desempenho em relação aos outros. Quando a gente se envolve numa atividade por prazer a gente está brincando. Não olha para o relógio. É o caso das crianças correndo - como potrinhos. Ou na água: como golfinhos. O espaço, representado pela grama, pela água, pelo vazio, é o seu companheiro de brincadeira. A atividade lúdica produz um corpo feliz.

A competição, representada no seu ponto máximo pelas Olimpíadas, é o oposto do brinquedo. Porque ela só acontece quando o corpo é levado ao limite do stress. E o corpo, mais sábio que os atletas, não gosta disso. Ele sabe que é perigoso chegar aos limites. O corpo não gosta de competições e Olimpíadas. Competições e Olimpíadas são situações a que o corpo é submetido ao máximo stress. Ou seja, situação de máximo sofrimento do corpo. O corpo vai contra a vontade. Basta observar a máscara de dor no rosto dos que competem. A competição é uma violência a que o corpo é submetido. A imagem mais terrível que tenho dessa violência é a daquela corredora suíça, ao final de uma maratona, algumas olimpíadas atrás. Chegando ao estádio o corpo dela não aguentou. Os ácidos e a cansaço o transformaram numa massa amorfa assombrosamente feia. Ele não queria continuar; desejava parar, cair. Mas isso lhe era proibido: uma ordem interna lhe dizia: obedeça, continue até o fim. O público parou, perplexo. E ninguém podia ajudá-la. Se alguém o fizesse ela seria desclassificada. O comentarista, comovido, louvava o extraordinário espírito olímpico daquela mulher. Ele não compreendia o horror. De fato, o final do espírito olímpico é o corpo levado aos limites últimos de stress. Aos limites do sofrimento. Como o corpo escultural de Florence Griffith Joyner. Haverá coisa mais anti-corpo, mais anti-vida? A competição não é motivada por amor ao corpo e ao seu prazer.

Na competição o espaço não é companheiro de brincadeira, é inimigo a ser derrotado. O prazer de quem compete não se encontra na relação corpo-espaço, mas no resultado: quem teve a melhor performance. O objetivo da competição é a comparação. E a comparação é o início da inveja e da infelicidade humana.

O atletismo não é uma atividade natural. Animais não competem. Nenhum tem interesse em saber qual é o melhor. Eles não se comparam. Animais correm por prazer: cães e cavalos correm e pulam por prazer. Mas quando não estão brincando, isto é, quando não estão envolvidos no prazer da atividade, eles não fazem esforços desnecessários. Os movimentos dos animais são determinados por um estrito senso de economia. Só existe

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uma situação quando competem: onça e veado, gavião e coelho - quem perde ou morre ou fica com fome. O que não é o caso das pistas de atletismo.

E me intrigam as razões por que, nas competições, são apenas os músculos que são testados. O corpo não é formado apenas por músculos. O curioso é que quando se fala em "educação física" a imagem que aparece é a de um atleta com short, camiseta e tênis, pronto para alguma atividade que envolva o uso dos músculos. Mas os olhos, os ouvidos, a boca, o nariz, a pele são também parte do físico. Podem também ficar atrofiados como ficam atrofiados os músculos. O corpo atrofiado pela inércia e pelo acúmulo de gordura pode terminar em obesidade, diabetes, colesterol alto e infarto. Mas um corpo de sentidos atrofiados termina numa doença terrível chamada "tédio". Imagino uma faculdade de educação física que tenha também cursos do tipo "Curso de cheiração avançada I", "Curso de cheiração avançada II, "Curso de observação de cores", "Curso de audição de ruídos da natureza"...

A AULA E O SEMINÁRIO

Dizem os professores universitários que somente são dignas de reconhecimento acadêmico as idéias que têm pedigree reconhecido, isto é, aquelas que têm uma teoria como mãe e um método como pai. Se essa ascendência não for demonstrada a dita idéia não tem permissão para entrar na festa, qual seja, a tese, pois idéia sem pai e sem mãe, vinda não se sabe de onde, sem documentação, é certamente plebéia bastarda. Esse rigor protocolar retira logo minhas idéias do círculo da dignidade acadêmica, posto que elas sempre me aparecem repentinamente, sem teoria e sem método, sem que eu as tivesse procurado e sem que eu possa explicar a sua origem. E são sempre aparições felizes que me fazem rir. É o caso dessa idéia que me apareceu hoje pela manhã, quando caminhava.

Ela pulou na minha frente e me disse: "Tanto se escreveu sobre o ensinar e o aprender.

No entanto, está tudo resumido no duplo sentido da palavra comer". Ditas estas palavras ela sumiu e eu fiquei decifrando o enigma do duplo sentido da palavra comer e sua relação com a educação.

O primeiro sentido é o óbvio. Refere-se às funções gastronômicas. As funções gastronômicas exigem dois tipos de agentes. Numa ponta estão os cozinheiros. Na outra estão os que comem o que os cozinheiros prepararam. No dia a dia é a comidinha caseira, arroz, feijão, picadinho de carne, angu, linguiça, salada de alface com tomate, giló, bife, ovo frito, molho de cebola, batata frita, sopa de fubá, sopa de mandioquinha, canja - receitas simples, antigas, que fazem o cotidiano das pessoas. As pessoas se assentam à mesa - crianças, jovens, adultos, velhos - e comem. Comem e gostam. Assim é entre nós. Se vivêssemos na Finlândia as comidas seriam outras. E é fácil aprender: basta ficar observando a cozinheira cozinhando. Faz hoje como sempre se fez. Não é novidade. É comida velha, testada, aprovada.

E é isso mesmo que devem fazer os professores. Uma aula é um prato de saberes/sabores que ele serve. E os alunos devem comer. E tem muita comida gostosa. Mas, infelizmente, eles são como cozinheiros do exército: são obrigados a cozinhar o que o general manda. É o general que determina o menu que, nas escolas, se chama currículo. O currículo é o conjunto de pratos que os alunos devem comer e digerir. Os cozinheiros/professores, se pudessem, fariam outros pratos. Mas é preciso cumprir o programa e eles são obrigados a servir muitos pratos indigestos e sem sabor, com dígrafos, encontros consonantais, fases

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de mitose, logarítmos, causas de guerras esquecidas... Esses pratos só são comidos sob ameaça mas os alunos, logo que têm liberdade para comer "a la carte" jamais os pedem e os esquecem para sempre. Mas é verdade também que há professores mágicos que são capazes de fazer suflês saborosos até com giló. Mas estes casos são raros porque, para se fazer isso, é preciso que o professor tenha dó dos alunos.

Isso é a aula. A aula clássica é assim. Deve ser assim. É preciso que os alunos comam o que todos comem: matemática, geografia, história, física, química, filosofia. O professor prepara a sua aula. Diante dos alunos ele vai traçando os mapas dos mundos que eles não conhecem ainda mas devem conhecer. Se a aula for boa os alunos irão comer e beber as suas palavras. O mundo ficará luminoso. Já dei muita aula assim e disto me orgulho. Uma aula bem dada é como a execução de uma sonata. Já vi professores serem aplaudidos pelos alunos ao final da aula. O segundo sentido da palavra comer é sexual. Comer é transar. Não sei a origem deste sentido Sei que, no mundo dos animais, comer e transar frequentemente se confundem. Aranhas e louva-deus ( como é mesmo o plural desta palavra?) fêmeas devoram seus parceiros ao final da cópula. É bem possível que, na lingua de tais bichos, se diga "vou comer o meu marido atual" ( só existe o marido atual, porque os outros já foram devorados) como expressão sinônima de transar.

O comer gastronômico dá prazer e engorda as pessoas. Quem engorda fica igual, só que maior, mais pesado. Vai assimilando aquilo que outros prepararam. Quem sabe o que ouviu nas aulas, sabe o pensamento dos outros, só sabe aquilo que os outros sabem. O comer sexual é diferente. Transar dá prazer e engravida. Gravidez é uma transformação qualitativa. O sêmen é ejaculado. Milhares de sementes de vida são lançadas. Onde ele cair algo novo, que nunca aconteceu antes, diferente, vai germinar e nascer. Comida que não estava prevista em nenhum menu.

A palavra "seminário" vem de semen. Seminário não é aula. Seminário não é transmissão de saberes de outros. É transa, para que haja gravidezes e idéias novas nasçam, idéias que nem mesmo o professor jamais pensou. Num seminário o professor é também um aprendiz. Na aula o aluno recebe um saber do outro. O objetivo do seminário é diferente: que todos, juntos, por meio desta orgia espermática, fiquem grávidos e comecem a parir.

Aula: um sabe e os outros não sabem. Seminário: cada um conhece um pouquinho e desconhece muito. O professor não dá respostas. Ele não sabe as respostas. Ele é um dos que procuram. Qualquer participante pode definir a pergunta inicial, provocação de pensamento. O que dá vida a um seminário é o não saber, a procura, os enigmas. Na aula a inteligência é um estômago que rumina e digere. Também isso é preciso. Mas no seminário a inteligência é útero. As sementes são jogadas lá dentro para que ela fique grávida - algo nunca pensado deve crescer e ser parido. O objetivo não é chegar a resultados. É desenvolver a capacidade de pensar e descobrir coisas novas.

Esse, eu penso, é o objetivo supremo da educação. É muito mais importante que as atividades de pesquisa. O objetivo da pesquisa é produzir conhecimento novo. Mas um seminário tem por objetivo desenvolver a capacidade de pensar, que é de onde o conhecimento novo pode surgir.

É profundamente lamentável e equivocado que os professores das nossas universidades sejam avaliados pela sua produtividade medida em número de artigos publicados em revistas internacionais. Ensinar a pensar é mais importante que pesquisar. É do desenvolvimento da capacidade de pensar que se forma um povo. Povo que não sabe pensar fica à mercê das mentiras.

Aulas e seminários: os dois jeitos. A aula acontece entre desiguais: o professor, que já foi e conhece, e os alunos, que não foram e ainda não conhecem. Dependendo da aula, pode

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até ser que eles se decidam a ir. O seminário acontece entre iguais: todos já foram, têm um saber incompleto, e desse saber surgem perguntas. O seminário é como juntar as peças de um quebra-cabeças: cada um tem um pedacinho. Qualquer um do grupo pode fazer a pergunta inicial. O professor funciona apenas como juiz da partida.

Mas ai, pobres seminários, pobres alunos! Alguns professores, combinando preguiça e malandragem, descobriram um jeito de não dar as aulas responsáveis que deveriam dar. Dizem que dão seminários: o que eles fazem pertence a um estágio superior ao das aulas! Valendo-se do fato de que, num seminário, o professor não dá a aula, distribuem textos pelos alunos, e eles, os alunos, que ainda não foram, que nada sabem sobre o assunto, ficam encarregados de "dar o seminário" ( que absurdo!). Já vi alunos desesperados, lendo textos complicados que não entendem - o professor não deu a aula, explicando - e com a obrigação de ensinar aos outros aquilo que eles mesmos não sabem. Há muitas formas de corrupção. Corrupção política, corrupção financeira, corrupção religiosa: o rosário é longo. Sugiro que se catalogue mais esta: a dos professores que, para não ter o trabalho de dar as aulas que deviam, montam as farsas dos seminários. Sugiro que os alunos denunciem esta malandragem!

ENTREVISTA: UMA ESCOLA DOS SONHOS

“Utopias, direis, não é possível tê-las, mas que triste seriam as noites sem a luz suave das estrelas”. Esse verso de Mário Quintana é o resumo mais simples do pensamento do psicanalista e escritor Rubem Alves sobre a escola dos sonhos, a escola ideal. Ele, que lançou, no último mês, o livro “Fomos Maus Alunos” (Editora Papiros) juntamente com o jornalista Gilberto Dimenstein, acredita que os sonhos são como estrelas, que servem para dar uma direção, mas não para se tornarem uma realidade.

Saber 2003 - O que é a Escola dos sonhos? Ela pode ser concretizada? O que falta para isso?

Rubem Alves - Nós não podemos realizar os sonhos, nunca realizamos os sonhos, porque não é realmente possível. Entretanto, os sonhos são como estrelas: é preciso que tenhamos uma estrela, que é essa escola dos sonhos, não para ser realizada, mas para dar uma direção. Caminhamos naquela direção, sem nunca chegar lá. Então, é esse o sentido de se ter o sonho de uma escola diferente.

Saber 2003 - Como propor atividades desafiadoras tendo em vista o programa a ser cumprido para cada série em cada ano?

Rubem Alves - A Educação tem dois objetivos: o primeiro é dar ferramentas para vivermos, como aprender a caçar, fazer flecha, calçar sapato, usar o garfo, andar de bicicleta, somar, diminuir. São, enfim, saberes que precisamos para sobreviver. O segundo diz respeito a aquelas coisas que não servem para nada, mas que nos dão prazer. São elas cantar, ler poesia, ouvir música, olhar o pôr do sol, apreciar a natureza. Então, a Educação é diferente em cada ambiente, porque os desafios de vida, em cada ambiente, são diferentes. Não adianta você ensinar aos meninos da costa de Alagoas a fazerem iglus, porque lá eles não tem gelo e eles não precisam fazer iglus. E não adianta você ensinar aos esquimós a arte de navegar em jangada, porque os esquimós moram no gelo e não tem jeito de navegar em jangada. A idéia de ter um programa geral é uma estupidez, porque as crianças e os seres humanos, em cada situação, têm desafios

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diferentes.

Saber 2003 - No seu ponto de vista a avaliação que está sendo feita dos educandos é correta? Ela é necessária? O aluno precisa ser avaliado?

Rubem Alves - O aluno precisa ser avaliado, mas isso depende de como é feito. Vou usar o exemplo do piano, porque já pensei em ser pianista. Quando você está tocando com o professor, o tempo todo ele está avaliando. Ele interrompe e diz ‘nessa passagem você tocou errado, estava muito martelada. Volta e toca direito”. O que ele faz com isso? Ele está me propondo uma correção. Então, a função pedagógica da avaliação é permitir que o aluno corrija o jeito de pensar dele. Porém, nessas avaliações que os educadores fazem agora, não se corrige o pensamento. Perdeu-se a noção de que o objetivo da avaliação é ajudar o aluno a corrigir o curso do pensamento dele para que, assim, ele possa pensar de maneira eficaz e prática.

Saber 2003 - O Sr. disse que “é um equivoco pensar que, com panelas novas e caras, o mau cozinheiro fará comida boa. Educação não se faz com dinheiro. Educação se faz com inteligência”. Como isso se aplica às escolas brasileiras?

Rubem Alves - Isso tem a ver com a mania das pessoas de ficarem achando que é preciso comprar mais artefatos, mais material escolar, pensando que com esses materiais modernos vai ter uma melhora na educação. O bom educador não precisa de material escolar. Se ele tiver olho e imaginação tudo será possível. Eu não sei matemática, não sou professor de matemática, mas posso dar uma aula de matemática para alguns alunos no meu jardim. Eu pegaria uma folha de samambaia e diria: ‘Desenha uma folha de samambaia’. Quer ver uma coisa gozada? Arrancaria todas as folhas de um lado e levaria para um espelho. Ué, a folha de samambaia ficaria inteira de novo. Isso daqui tem um nome: simetria. Simetria quer dizer que essas duas coisas são iguais. ‘As mãos são simétricas, está vendo?’. Então, a criança começaria a perceber que todas aquelas formas têm uma forma única. O que eu estaria ensinando para a criança? Estaria ensinando a criança a pensar abstratamente. Isso não está em nenhum livro e não precisa de material algum, só precisa de uma coisa: olho e imaginação.

Saber 2003 - Quem deve mudar: a escola ou o professor?

Rubem Alves - Uma vez eu escrevi um artigo que fazia a seguinte pergunta: o que vem primeiro, o jardim ou o jardineiro? A resposta é, sem dúvida, o jardineiro, porque é da cabeça dele que surge o jardim. Se você tiver um jardineiro sem jardim, mais cedo ou mais tarde vai surgir um jardim. Porém, se você tiver um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde esse jardim desaparecerá. A mesma coisa com a escola. No início é preciso sonhar. Precisamos de professores sonhadores e são eles que imaginarão um jeito mais inteligente de educar as crianças e os adolescentes. A minha convicção é a seguinte: tudo começa da mudança do coração e do pensamento dos professores. Somente assim iniciaremos uma mudança nos educadores.

Saber 2003 - Como o professor de uma escola pública pode driblar o programa oficial?

Rubem Alves – Ele não pode ficar esperando as coisas acontecerem. Tem que usar uma tática de subversão, talvez de um tipo de guerrilha. Tenho a impressão que um dos problemas com os professores das escolas públicas é que eles estão muito desanimados e porque estão desanimados, não têm imaginação para pensar coisas diferentes. O professor não é obrigado a usar a aula inteira para dar aquele determinado material. Ele é livre dentro do espaço dele, pode inventar outras coisas. Então, é preciso dizer que uma das tarefas do professor é ser subversivo do sistema, caso contrário vai morrer de tédio.

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Saber 2003 - Como desenvolver competências na escola atual, tendo em vista as características da Escola Brasileira?

Rubem Alves – Primeiramente, o que significa a palavra competência? Competência significa você ser capaz de realizar uma tarefa. Competência é uma capacidade de realizar alguma coisa, mas uma das características de nossas escolas é que elas não têm nada a ver com o fazer. Então, se a escola não tem a ver com o fazer, não tem jeito de desenvolver as competências. Por exemplo, se eu quiser ser pianista, então, eu quero desenvolver a competência. Aí eu sento no piano, seis horas por dia e trabalho para desenvolver a competência. A competência só é desenvolvida se eu desejar, não adianta dizer: “Agora você vai ser competente em Matemática”, se você não tiver o fascínio pela Matemática. Então, a primeira coisa para se desenvolver a competência é você fazer a pergunta: competência para quê? Assim, temos que ter uma escola que seja diversificada para permitir que os alunos desenvolvam diferentes competências. É possível fazer isso. Por exemplo, essa Escola da Ponte, do José Pacheco, o que acontece lá é o seguinte: o ensino é dado em torno do interesse dos alunos. Lá, a função do professor não é dar matéria, mas, sim, ajudar os alunos a descobrir onde estão os saberes necessários para ele desenvolver uma determinada competência. Isso mostra que uma coisa importante, hoje, não é saber as coisas, mas saber descobrir as coisas. Essa é a grande coisa, porque na velocidade com que os saberes são modificados, você não pode ficar estagnado em um antigo saber.

Saber 2003 - Quais as alternativas que a escola tem para se libertar do sistema educacional vigente, tendo em vista o apego excessivo dos vestibulares e das expectativas dos pais?

Rubem Alves - Eu escrevi, há um dois meses, um artigo sobre o vestibular. O artigo foi assim: se eu fizer vestibular, eu não passo; se os Reitores das Universidades fizerem o vestibular, eles não passam; se os professores fizerem, eles não passam; se os professores de cursinho fizerem, eles não passam, cada um só vai passar na sua disciplina; se os professores que preparam as questões fizerem, eles não passam, porque para ele vale o que vale para o professor de cursinho. Então, se eu não passo, professor não passa, reitor não passa, professor de cursinho não passa, por que os adolescentes têm que passar? Não tem a menor razão. Então, depois, mandei um artigo dizendo um erro meu grave, uma indelicadeza que eu cometi. Citei todo esse pessoal e esqueci de falar sobre duas pessoas muito importantes: o Sr. Ministro da Educação, Cristovam Buarque, e o Secretário Estadual de Educação, Gabriel Chalita. Desta forma, restauro a inteligência deles, porque, se eles passassem, seria um sinal de que eles eram débeis mentais. Sim, porque pessoas de memória perfeita são sempre débeis mentais. O vestibular é a maior praga na Universidade. Não me pergunte como é que será feita a seleção, porque eu não sei. Aliás, creio que os pais são os maiores inimigos da educação, porque eles não estão preocupados com a educação dos filhos. Eles estão interessados que as escolas preparem os filhos para o vestibular e não há nada mais vazio de inteligência do que o vestibular. Assim, os pais começam a pressionar as escolas para que elas prepararem para o vestibular, mas educação não é isso. Educação é gostar da leitura, é gostar da Literatura, gostar de arte, conhecer, mas isso não cai no vestibular. Creio que a reforma da educação depende basicamente de uma coisa: é preciso mudar os sentimentos e os pensamentos dos professores.

Saber 2003 - E os alunos? Será que eles não querem ficar limitados somente a isso?Limitados só a prestar o vestibular ou só a decorar?

Rubem Alves - Tem razão. Os alunos ficaram tão obcecados pela idéia do vestibular que essa é a única coisa que interessa para eles. Assim, eles já não irão mais perder tempo aprendendo sobre música clássica, porque isso não cai no vestibular. Eles ficam

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centralizados porque sabem que precisam passar no vestibular. Então, a opção do aluno vai ser essa: se tirar o vestibular, ele estará livre para explorar o que quiser. Se ele acabar com o vestibular, vai introduzir uma dimensão de criatividade, de liberdade, de exploração na Educação e as pessoas vão estar mais bonitas e mais inteligentes.

Saber 2003 - Como a Educação Infantil tem preparado as crianças para o amanhã? O brincar e as fases tem sido respeitadas?

Rubem Alves - Não acredito que a função da educação seja preparar para o amanhã. A minha vida só acontece no presente e a educação tem que, assim, ser uma experiência. O prazer de aprender não surge porque essa coisa do aprender servirá para daqui a cinco anos. Deve-se ter prazer, interesse e desafio para as coisas que estão acontecendo agora. Se essas coisas me desafiarem, então, automaticamente, quando vier o futuro, eu já terei competências. Você tem que pensar que a educação é uma experiência de prazer aqui e agora, mesmo porque, você não sabe se o aluno vai estar vivo até o final do ano. Cada dia é importante.

Saber 2003 - Em relação a questão da aprendizagem da leitura e da escrita, o que o Sr. considera imprenscindível? Como desenvolver habilidades de leitura e escrita envolvendo o gosto pela literatura? A escola ainda trabalha muito didaticamente?

Rubem Alves - Isso é a coisa mais fácil do mundo. Uma das experiências mais felizes que tive na escola foi a aula de leitura. A leitura era feita pela professora. Ela leu Monteiro Lobato inteiro, leu tanta coisa da Literatura e a coisa mais maravilhosa é que não tinha teste de compreensão, nem provas sobre aquelas aulas. Aquilo era pura vagabundagem, era puro deleite. Desse modo, o que acontece, quando você vê uma pessoa linda daquele jeito? Você fica com inveja dela; começa a querer ter aquela habilidade para você poder entrar nas delícias da leitura. Portanto, a primeira coisa para se desenvolver o gosto pela leitura é você ler com as crianças, sem pedir teste de compreensão, simplesmente ler. A partir daí, então, elas começarão a ficar interessadas. A leitura tem que ser uma experiência de vagabundagem, não pode ser submetida a provas, pois se você a submeter a provas você já a estragou. Na hora em que o aluno descobrir o prazer, pode largar a mão que ele vai ler para o resto da vida e não vai mais querer parar.

Saber 2003 - Qual o papel da Tradição, historicamente falando, no processo ou na mudança do perfil do educador. Ou na renovação do perfil do educador para o Século XXI?

Rubem Alves - Os homens sobrevivem inventando soluções para os problemas. Inventa um jeito de fazer fogo, inventa um jeito de fazer potes de barro. Descobrimos essas coisas e isso vai se tornando uma tradição. Assim, a tradição é aquilo que vai ser transmitido, que eu vou transmitir. Entretanto, a tradição pode ser uma pedra ou pode ser uma asa. A tradição é pedra, quando a gente acha que a tradição está dada, que é isso que deve ser para o resto da nossa vida. Ela torna as pessoas fixadas, fechadas e elas não aprendem coisas novas. Porém, a tradição pode ser asa na medida que poupa o trabalho de reinventar, dando os meios de caminhar para frente, servindo, muitas vezes de trampolim.

Saber 2003 - No Brasil, existem experiências similares à Escola da Ponte? O que impede o surgimento?

Rubem Alves - Quando escrevi crônicas sobre a Escola da Ponte, recebi muitos e-mails de escolas daqui dizendo que faziam coisas parecidas. Há muitas escolas fazendo coisas

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parecidas e muito interessantes aqui, no Brasil. O triste é que, aqui, não se sabe sobre elas, não se divulga. Por exemplo, quando eu estive em Tocantins, visitei uma cidade na qual os professores e as crianças estavam preocupados com os velhinhos analfabetos. Então, eles, as crianças, os velhinhos e os professores desenvolveram um programa que consistia em um troca: os velhinhos contariam histórias de antigamente e ensinariam os brinquedos de suas infâncias. As crianças, por sua vez, ensinariam os velhinhos a navegar na internet e a mexer no computador. Aqueles idosos de mão dura, jamais iriam aprender a escrever, mas eles descobriram que, no computador, bastava apertar uma tecla para a letra aparecer. Eles ficaram encantados e estão sendo alfabetizados, depois de velhos, pelos computadores. Onde está isso? Em que programa oficial? Não foi programa nenhum. Foram os professores que falaram para as crianças. São coisas extremamente simples, que não custam nenhum tostão furado. O problema da educação não é falta de verba; é falta de imaginação.

Saber 2003 - A experiência da Escola da Ponte está provocando mudanças na Escola Portuguesa?

Rubem Alves - A história da Escola da Ponte é muito interessante. José Pacheco era diretor de uma escola absolutamente miserável que não tinha nada: não tinha privada, as crianças tinham que fazer as necessidades do lado de fora, com as meninas fazendo, era uma coisa absolutamente horrorosa. Quando uma coisa é absolutamente horrorosa, todas as idéias são permitidas. Se fosse uma escola mais ou menos, eles teriam tentado reformar a escola. Assim, as idéias da Escola da Ponte não surtiram como resultado de uma teoria, mas como resposta aos desafios cotidianos. Entretanto, a escola passou a se desviar completamente dos padrões nacionais. Tornou-se uma escola diferente, sendo a partir daí, perseguida e pressionada a mudar. Mas ela não mudou, principalmente porque os pais se juntaram com a escola e fizeram a escola ser tolerada. Hoje, a Escola da Ponte tornou-se uma coisa tão importante, que é considerada modelo para a Educação Portuguesa. Só para se ter uma idéia, quando o meu livro sobre a Escola da Ponte foi lançado em Portugal, na última capa tinha uma mensagem do Presidente da República. Então, como essa escola conseguiu ser uma espécie de modelo e nas escolas tradicionais.

Saber 2003 - O Sr. é um grande escritor. No que a escola colaborou para isso?

Rubem Alves - Nada, mesmo porque, eu nunca na minha vida pensei em ser escritor. Nunca me preparei para ser escritor, não estudei Literatura. Aconteceu de repente, sem que eu soubesse como e a coisa começou a surgir dentro de mim.

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NO REINO DOS PORQUÊS

Educador defende a curiosidade da criança como o melhor currículo de ensino para se praticar em casa e na escola Rubem Alves diz que nunca educou os filhos, apenas viveu com eles aproveitando momentos como os das fotos. À esquerda, a filha Raquel, hoje arquiteta, tinha 3 anos. Na cena da direita, lembranças dos filhos Marcos, de azul, e Sérgio, que se tornaram um biólogo e o outro médico.

Mal o filho nasce e os pais já começam a se preocupar com seu futuro. Querem o melhor para ele em tudo: brinquedos, escola, professores, amizades. A melhor educação possível para que a criança se torne um adulto bem preparado para a vida. E onde está essa boa educação? "Na própria criança, na sua imensa curiosidade, no grande laboratório que é sua vida dentro de casa", diz o mineiro de Boa Esperança, Rubem Alves, 69 anos, pai de três filhos, pedagogo, doutor em filosofia, psicanalista, autor de livros infantis e de educação. Nesta entrevista a CRESCER, Rubem comenta idéias que estão em seu último livro, Conversas sobre Educação (Verus Editora, 2003). Mostra como os pais podem ser grandes mestres para seus filhos, sem se preocupar com teorias ou métodos pedagógicos.

"Eles só precisam participar do mundo da criança, se interessar e responder às suas perguntas. Nessa convivência, sem hora para aprender, sem respostas certas, notas ou provas, está o melhor currículo da educação", resume Rubem.Você critica a escola porque diz que ela se dedica ao ensino das respostas certas e isso é fatal para a curiosidade das crianças, justamente o que as motiva a aprender. Como os pais podem aproveitar melhor essa curiosidade dos filhos?

Educar é provocar perguntas. São elas que desafiam a inteligência. Por 70 mil anos, antes de haver escolas, os pais ensinaram de forma competente seus filhos. E qual era o "programa"? A vida. Não havia prova nem notas. As situações vividas provocavam o aprendizado de forma natural. Agora, com a correria da vida moderna, os pais "terceirizaram" a educação.

Contrataram as escolas para educar. Uma das minhas pacientes me dizia outro dia: "Eu não tenho tempo para educar a minha filha". E eu respondi: "Eu nunca eduquei os meus filhos". "Mas como?", ela perguntou admirada. "Eu só vivi com eles", respondi. Porque é nessa convivência que a criança faz perguntas e aprende o que interessa. Só a casa já é um imenso laboratório para ela.

De que forma?

Eu escrevi um artigo com o título Casas Que Emburrecem. A casa que emburrece é aquela toda certinha, em que tudo está no lugar, não tem fechadura para consertar e a criança não tem permissão para fazer suas explorações. Mas a casa que provoca a

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inteligência é cheia de tranqueiras, livros, revistas, ferramentas, jogos, quebra-cabeças, livros de arte, objetos inúteis que provocam a curiosidade da criança. Casa que é laboratório, em que a criança vai aprender sobre química na cozinha, por exemplo. Elas adoram cozinhar porque gostam de brincar com o fogo, e assim conhecem os alimentos e suas propriedades, podem viajar pelo mundo da culinária chinesa, italiana, francesa, pernambucana. Numa casa se estuda história, pois cada objeto tem uma história.

Estuda-se biologia, porque a vida se encontra em todos os lugares, até nos fungos.

Mas tudo isso não exige mais tempo com os filhos?

Não é uma questão de tempo, mas de interesse. Os pais abandonaram o mundo das crianças. Perderam a capacidade de fazer perguntas, deixaram de se fascinar pelo que vêem. Chegam do trabalho cansados, vão assistir à TV e os filhos vão dormir e acabou. E com isso eles perdem os filhos. Num domingo, eu fui a um parque e vi uma cena que me deixou triste. Era um pai com uma filha. Ela estava no balanço e o pai a empurrava automaticamente com a mão esquerda e com a mão direita segurava o jornal que lia.

Pensei: esse pobre diabo ainda vai se arrepender amargamente por ter considerado o jornal mais importante do que a filha. Um dia esse balanço vai estar vazio... São oportunidades como essa que os pais não devem deixar escapar. Nesses momentos é que podem surgir aquelas perguntas de criança: Por que a borboleta voa? Por que o céu é azul e não vermelho? Por que a água fervente amolece a cenoura e endurece o ovo? São coisas interessantes não só para a criança, para os adultos também.

Os pais têm que entrar na brincadeira?

A questão toda é que os pais deixaram de ser crianças. O que faz a criança não é tanto a brincadeira, é a curiosidade. Nietzsche, meu filósofo preferido, dizia que o mais alto grau de maturidade que um adulto pode atingir é quando ele recupera a seriedade que tinha ao brincar na infância. A brincadeira da criança é muito séria, assim como suas perguntas. E, se os pais não sabem resolvê-las, é uma maravilha dizerem: "Meu filho, não sabemos, mas vamos investigar". Assim a criança vai aprender que os pais não sabem tudo, mas que vão tratar de saber: "Nossa, mas como é que você faz essa pergunta? Que fantástico! Vamos tentar descobrir". Aí os pais vão ensinar para o filho a delícia que é pesquisar. Procurar nos livros, navegar na Internet para satisfazer uma curiosidade. Hoje os saberes se modificam rapidamente e o principal é saber pesquisar. Mas, para que tudo isso seja divertido, é absolutamente essencial que os pais se interessem pelas perguntas de seus filhos e que as crianças percebam que eles não são detentores da verdade. Assim podem ser amigos, compartilhar as descobertas.

Esse aprendizado não pode gerar conflitos com o que a criança aprende na escola?

O conflito faz parte do aprendizado. Vou dar um exemplo. Minha filha estava no primário - eu ainda falo primário, mas agora é ensino fundamental. Ela tinha dificuldades com um problema de matemática. Fui tentar ajudá-la e comecei a fazer um raciocínio diferente.

Ela disse: "Não, papai, tem que ser do jeito da professora". Eu argumentei que há muitos caminhos para se chegar a um determinado lugar, mas ela insistia no caminho da professora. Estabeleceu-se um conflito. Não consegui ensinar a matemática. A professora triunfou, mas até hoje minha filha é ruim de matemática.

O que você aprendeu com essa experiência?

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É o que estou sempre tentando transmitir aos pais e professores: que o aprendizado se revela na capacidade que tenho de fazer alguma coisa e não repetir respostas. Aprendi a fazer uma moqueca quando faço uma moqueca, aprendi a ler quando consigo ler. É uma competência ligada a uma necessidade da vida. Agora, esse saber que é pedido no vestibular não dá competência alguma.

Mas é o que ensina a escola...

Nesse assunto, já disse e vou repetir: Os pais, hipnotizados pelo vestibular, tornaram-se os maiores inimigos da educação. Só querem que os filhos passem no vestibular. Não querem saber o que aprendem. Pode imaginar um adolescente que vive em uma zona de violência tendo que aprender quais são as enzimas que entram na digestão? O que ele faz com isso? Perde o interesse em aprender e quer simplesmente o diploma. Outro dia eu via umas tirinhas do Calvin. O pai o repreendia por causa de suas notas baixas. "Você precisa estudar!", diz o pai. E Calvin: "Eu não quero estudar". "Mas você gosta tanto de ler sobre dinossauros", observa o pai. "É, eu gosto", diz Calvin. "E por que você não gosta de ler na escola?", pergunta o pai. "Porque lá não tem livro sobre dinossauro". É tão óbvio.

Na escola não tem as coisas que interessam as crianças.

Por que a educação ficou assim?

Porque os adultos abandonaram o mundo das crianças. Aí tudo fica chato e elas começam a perder a curiosidade que motiva a aprender, o encantamento natural que têm com todas as coisas. Com a concha vazia do caramujo, a teia de aranha, o arco-íris.

Dessas experiências da vida vem a curiosidade e o aprendizado. E ser curioso não tem fim. É uma coceira que dá na cabeça e faz a gente viajar em todas as direções.

Como saber se o filho está numa boa escola?

Para mim, só existe um critério: se a criança sente alegria em ir à escola, se sente saudade de lá. Porque aprender é muito divertido e é só com prazer que se aprende.

Aprendizagem sofrida é logo esquecida. Revista Crescer, set/2003

AS VÁRIAS MORTES

Nos velhos livros de contabilidade havia uma coluna com o título "Haver" escrito em caracteres góticos. O "Haver" é aquilo que resta depois de pagas as pendências listadas na coluna "Deve". Vinícius de Moraes deu o título de "Haver", título de contabilidade, a um dos seus poemas mais comoventes. Ele já deveria estar velho quando o escreveu. Seu poema é um balanço poético da sua vida, quando o seu fim já se anuncia. Ele o escreve diante da morte. São várias estrofes que se iniciam, todos elas, com a palavra "Resta". "Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura..." "Resta esse antigo respeito pela noite..." "Resta esse coração queimando como um sírio numa catedral em ruínas..." Até que, na última estrofe, ele escreve: "Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio pelo momento a vir quando, emocionada, ela virá me abrir a porta como uma velha amante sem saber que é a minha mais nova namorada..." Morte, velha amante...Sim, ele já havia dormido abraçado com ela muitas noites, tantas noites quantos foram os poemas que escreveu. Pois é nesse abraço que se geram os poemas. Os poetas

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Rubem Alves

são aqueles que fazem amor com a morte, mesmo quando não o confessam. E fazem amor com a morte porque amam a vida desesperadamente... Os poetas fazem amor com a morte para transformá-la em namorada...

Fazer amor com a morte... Não é ruim, não é depressivo. A morte não é o que dizem dela. O Vinícius sabia disso. Fui à procura de testemunhos nos meus arquivos. Encontrei logo Albert Camus, escritor irmão que muito amo: "Aumentar a felicidade de uma vida de homem é aumentar o trágico do seu testemunho. A obra de arte verdadeiramente trágica deve ser a do homem feliz: porque esta obra de arte será toda inspirada pela morte".

Depois, Hermann Hesse: " Após cada morte a vida se torna, para nós, mais delicada e preciosa." Veio a seguir a sabedoria de D. Juan, o bruxo: " "Há uma estranha, devoradora felicidade quando agimos com a total convicção de que, qualquer que seja a coisa que estamos fazendo, esta pode muito bem ser a nossa última batalha sobre a terra. A morte é a nossa eterna companheira. Ela está sempre à nossa esquerda, ao alcance do nosso braço. A coisa a fazer, quando você se sente impaciente, é voltar-se para a sua esquerda e pedir que a sua morte o aconselhe. E uma imensa quantidade de mesquinhez desaparece se a sua morte lhe faz um gesto, ou se você a vislumbra, ou se você simplesmente tem o sentimento de que a sua companheira está ali, olhando para você. A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir, como sempre acontece, que tudo está errado e que você está ao ponto de ser aniquilado, volte-se para a sua morte e pergunte-lhe se assim é. Sua morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa, a não ser o seu toque. Sua morte lhe dirá: "Ainda não o toquei."

A morte tem sido minha companheira desde os dias da minha infância. Não, não estou me referindo a velórios e funerais. Refiro-me à sua presença nos meus pensamentos. A morte me fez meditar sobre a vida. Dias atrás ela me pôs a pensar de novo. Veio-me uma idéia nova. Pensei que não está certo falar sobre a morte como se ela fosse a mesma, o tempo todo. Isso é uma ilusão da biologia: a morte como a cessação dos processos vitais.

A verdade é que as mortes são muitas, cada uma delas com um rosto diferente. Por isso não é certo falar sobre a morte no singular, como se fosse apenas uma. No meio desses pensamentos várias mortes começaram a desfilar na minha imaginação, cada uma com um rosto diferente.

A primeira delas tinha no colo uma criancinha e cantava baixinho uma canção de ninar para fazer o nenezinho dormir. Seu rosto era suave e terno como o rosto de uma mãe. Ela era a "Mãe que faz dormir..."

A segunda tinha o rosto forte e puro de um anjo e trazia nas mãos uma grande chave para abrir as portas dos calabouços de dor onde muitos se encontram presos. Ela era o "Anjo Libertador".

Mas a terceira tinha um rosto cruel, não tinha olhos e trazia nas mãos um alfange. Foi essa morte horrenda que o pintor medieval Brueghel pintou na sua tela "O triunfo da morte". Ela era a "Morte Assassina", que mata antes da hora.

Dizem as Escrituras Sagradas que para tudo há um tempo certo: há tempo de nascer e há tempo de morrer. Qual é o tempo de morrer? Pergunte ao dia. O dia sabe que é preciso morrer. Um dia em que o sol pairasse imóvel no centro do céu seria insuportável. Muitos anos atrás, eu era bem jovem ainda, estudava nos Estados Unidos e um amigo querido era um japonês, Kunio Goto. Um dia - era inverno, estávamos atravessando uma rua coberta de neve - eu lhe falei sobre o meu medo de morrer. Ele sorriu um sorriso nipônico e disse: "Você já pensou no terrível que seria se não morrêssemos? Se estivéssemos condenados a viver sempre?" Compreendi.

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O dia deve terminar para ser bom. E o crepúsculo é o dia se realizando, o dia morrendo. E está bem que seja assim. Se não houvesse crepúsculo não haveria também poetas. Os poetas são seres crepusculares. Crepúsculo, "esse odor da tarde, quando começa o cansaço dos homens. Quando os pássaros têm uma voz mais longa, já de despedida.

Declina o sol - esta é a notícia que a terra sente, na floresta e no arroio. Docemente perdem as flores sua esperança, o perfume, a memória. Todos os dias assim, neste caminho de auroras e crepúsculos. E então odor da terra é uma exalação de saudade, um suspiro de consolos, também, e o orvalho que as plantas formam com seus íntimos sumos, de silenciosa confidência, parece igual à lágrima, e cada folha, nas árvores, é um outro rosto humano." Cecília Meireles, que escreveu esse poema, era um ser crepuscular. Parece que ela está falando sobre o crepúsculo. Mas será mesmo? Esse crepúsculo, quando as flores perdem a sua esperança, o perfume, a memória... Estranhas flores essas que têm esperança e memória! As flores estão cansadas. Querem dormir, sem futuro e sem passado. Não, a Cecília não falava sobre o crepúsculo. Falava sobre si mesma. O orvalho é lágrima. E as folhas, nas árvores, são rostos humanos.

O poeta William Wordsworth sabia o segredo da beleza do crepúsculo: "As nuvens que se ajuntam em volta do sol que se põe ganham suas cores solenes de um olho que atentamente contempla a mortalidade do homem." É esse olho que contempla a morte atentamente que pinta as nuvens com suas cores.

Gustavo Corção, o primeiro escritor católico que li com admiração e prazer quando era ainda adolescente, fez uso de uma outra metáfora inesquecível. No seu livro Lições de abismo ele conta a estória de um homem de cinqüenta anos que descobre que vai morrer dentro de seis meses. A morte o transforma em poeta. Percebe então que a vida é como uma sonata. Tão curta, não mais que vinte minutos. Mas nesses vinte minutos toda a beleza que era para ser dita é dita. Segue-se o silêncio. Qualquer coisa que se lhe acrescente a estragará. Quem ouve sabe que o fim está chegando! Que pena! Tão linda!

Mas não é possível impedir que o fim chegue. A sonata só é bela se tiver um fim. O que é perfeito deseja morrer.

A "Morte mãe que faz dormir" está à nossa espera, ao final da sonata. Não, ela não nos mata. Ela nos acolhe. Nos pega no colo. Como a Pietá. É a morte amiga. Não se deve lutar contra ela. O que se deve fazer é ajudá-la a cantar a canção de ninar. Todo gesto médico heróico seria profanação. Do médico só se espera uma presença silenciosa.

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O PRESÉPIO

Menino, lá em Minas, havia uma coisa, uma única coisa que eu invejava nos católicos: no Natal, eles armavam presépios e nós, protestantes, tínhamos árvores de Natal. Mas as árvores, por bonitas que fossem, não me comoviam como o presépio: uma cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha. A contemplação de uma criancinha amansa o universo. Os católicos mais humildes tinham alegria em fazer os seus presépios. As pobres salas de visita se transformavam num lugar sagrado. As casas ficavam abertas para quem quisesse se juntar aos reis, pastores e bichos. E nós, meninos, pés descalços – os sapatos só eram usados em ocasiões especiais – peregrinávamos de casa em casa, para ver a mesma cena repetida.

Nós, meninos, com inveja, tratávamos de fazer os nossos próprios presépios. Os preparativos começavam bem antes do Natal. Enchíamos latas vazias de goiabada com areia, e nelas semeávamos alpiste ou arroz. Logo os brotos verdes começavam a aparecer. O cenário do nascimento do Menino Jesus tinha de ser verdejante. Sobre os brotos verdes espalhávamos bichinhos de celulóide. Naquele tempo ainda não havia plástico. Tigres, leões, bois, vacas, macacos, elefantes, girafas. Sem saber, estávamos representando o sonho do profeta que anunciava um dia em que os leões haveriam de comer capim junto com os bois e as crianças haveriam de brincar com as serpentes venenosas. A estrebaria, nós mesmos a fazíamos com bambus. E as figuras que faltavam nós as completávamos artesanalmente com bonequinhos de argila. Tinha também de haver um laguinho onde nadavam patos e cisnes. Não importava que os patos fossem maiores que os elefantes. No mundo mágico tudo é possível. Era uma cena “naif”, primitiva, indiferente às regras da perspectiva. Um presépio verdadeiro tem de ser infantil. E as figuras mais desproporcionais nessa cena tranqüila éramos nós mesmos. Porque, se construímos o presépio, era porque nós mesmos gostaríamos de estar dentro dele. Éramos adoradores do Menino, juntamente com os bichos, as estrelas, os reis e os pastores – não importando que estivéssemos de pés descalços e roupa suja.

Eu sempre me perguntei sobre as razões por que essa cena, em toda a sua irrealidade onírica, mexe tanto e tão fundo comigo. Não sinto alegria ao contemplar a cena. Sinto uma tranqüila beleza triste. Gosto dela. É uma ausência aconchegante. O Drummond escreveu um poema chamado Ausência. Não sei a própósito de quê – se era por causa de um amor perdido, de uma pessoa querida que estava longe – a saudade doía. E ele escreveu, para se explicar e consolar: “Por muito tempo achei que a ausência é falta./ E lastimava, ignorante, a falta./ Hoje não a lastimo./ Não há falta na ausência./ A ausência é um estar em mim./ E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,/ que rio e danço e invento exlamações alegres,/ porque a ausência, essa ausência assimilada,/ ninguém a rouba mais de mim.”

É isso: a cena – presente diante dos meus olhos – faz acordar uma ausência na minha alma. Daí a minha tristeza mansa. O presépio me faz lembrar algo que tive e perdi. Essa ausência tem o nome de “saudade”. Eu não tenho saudade. É a saudade que me tem. Mora, dentro de mim, a “ausência” de um presépio. Saudade é sentimento de quem ama e perdeu o objeto do amor. Quem não amou e não perdeu o objeto do amor não sente saudade. Pode ficar alegrinho. As muitas celebrações alegres – não revelarão elas que os celebrantes não sofrem de saudade? Celebram, talvez, porque na sua alma não mora a “ausência” de um presépio. Mas o que eu quero, mesmo, é fazer como o Drummond: aconchegar minha saudade nos meus braços. Porque saudade é um estar em mim. Assim, por favor, não tentem me consolar.

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Rubem Alves

Vou transcrever um texto de Octávio Paz. É um dos meus textos favoritos. Por isso quero pedir que você o leia bem devagar. Contemple as vacas do presépio que ruminam sem pressa. Leia bovinamente, como quem rumina...

“Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, onde nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados... Adivinhamos que somos de um outro mundo.”

Octávio Paz está descrevendo uma experiência mística: quando, de repente, as coisas banais do cotidiano se abrem como portas, e somos levados a um outro mundo. Pode ser um perfume indefinível, pode ser uma fotografia que já vimos vezes sem conta, pode ser uma música vinda de longe... De repente experimentamos “êxtase” – estamos fora de nós mesmos, encantados - somos transportados para um mundo que nem sabemos direito o que seja. Já estivemos lá. Não mais estamos. E vem a nostalgia. Quereríamos voltar. A alma sempre deseja voltar. O mundo das novidades é o mundo do seu exílio.

O presépio faz isso comigo. Aconteceu de verdade? Foi desse jeito mesmo? As crianças sabem que isso é irrelevante. Elas ouvem a estória e são transportadas para ela. Pedem que a mesma estória seja repetida, do mesmo jeito. Não querem explicações. Não querem interpretações. A beleza da estória lhes basta. A beleza da estória é alimento para a sua alma. Os teólogos – que fiquem longe do presépio. Suas palavras atrapalham.

A cena do presépio exige a repetição. Há de ser as mesmas bolachas de mel, os mesmos bolos perfumados, as mesmas músicas... Comidas diferentes e músicas novas não têm nada a ver. São profanações. Não pertencem ao presépio. Houve um tempo em que eu tocava piano. Abandonei porque eu não tinha talento. Mas ainda me sobra uma técnica de principiante. Fui ao teclado e brinquei com os hinos antigos. Alguns deles soam como caixinhas de música, a serem cantados baixinho, como se para fazer uma criancinha dormir. “Pequena vila de Belém/ repousa em teu dormir/ enquanto os astros lá no céu estão a refulgir...”. A maravilhosa melodia tradicional Greensleeves, que aparece na letra “Quem é o infante que no regaço da mãe, tranqüilo dormita?” Depois, o mais querido: “Noite de paz, noite de amor! Tudo dorme em derredor...” E a berceuse “Sem lar e sem berço, deitado em capim...” E há os hinos triunfantes que exigem os sons triunfantes do órgão que enchem o universo: Adeste Fideles, “Surgem anjos proclamando...”

A cena do paraíso é também uma cena maravilhosa e inspirou muitos artistas plásticos. Mas ela não me comove como a cena do presépio. Talvez porque no Paraíso não houvesse crianças. Não existe nada mais comovente que uma criança adormecida. Quem contempla uma criança adormecida tem de ficar bom, tem de ficar manso. Uma criança adormecida não pede festas: pede silêncio e tranqüilidade.

O presépio nos faz querer “voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Estamos encantados. Adivinhamos que somos de um outro mundo.” Dentro de nós existe um presépio. Na mangedoura, dorme uma criança. O nome dessa criança é o nosso nome. Dorme em nós o “Menino-Deus” (Caderno C, Campinas, 21/12/2003).

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OS PÁSSAROS E OS URUBUS- Uma parábola ecumênica -

Muitos e muitos milênios atrás, Deus Todo Poderoso cansou-se da vida que estava levando nos céus. Era muito monótono. As mesmas coisas de sempre. Lá todos andavam de maneira solene, falando baixo e curvando-se em reverências e mesuras. Os coros dos anjos que jamais desafinavam só cantavam Te Deums e Requiems. Eram magníficos. Mas mesmo o bonito, se repetido sempre, fica monótono que, como o nome indica, mono + tono, é “samba de uma nota só”... Deus pensou que seria muito aborrecido passar o resto da eternidade nessa monotonia. Isso sem levar em consideração que eternidade não tem resto. Porque resto é uma coisa que acaba. E a eternidade não acaba. O que está para trás é do mesmo tamanho do que está para frente que, por sua vez, é do mesmo tamanho que a eternidade inteira, para confusão dos matemáticos. Aí, de repente, Deus foi possuído pelo espírito de um menino brincalhão. Resolveu mudar tudo. Como vocês sabem muito bem, Deus jamais faz o pior. Tudo o que ele faz é melhor. Assim, o que ele fez era muito melhor do que os céus que já existiam e eram sua morada. Sua primeira providência foi fazer uma faxina geral. Jogou nos porões inferiores do universo uns livros enormes de contabilidade que, segundo se dizia, seriam usados em acertos futuros. E pôs fogo. A fogueira dos ditos livros está queimando até hoje e pode ser vista diariamente ( menos nos dias de chuva ) redonda e vermelha, atravessando o firmamento. É o sol.

“Ninguém tem crédito, ninguém tem débito” : é isso que está escrito na entrada desse lugar, muito embora o famoso poeta Dante Alliguieri, tivesse dito equivocadamente que o que estava escrito era “Deixai toda esperança vós que entrais”. Pobre Dante! Era míope e não via bem...

De fato, prá que livro de contabilidade onde se anotam débitos e créditos se criança não faz contabilidade? Criança esquece fácil. Criança gosta é de brinquedo. Assim Deus sonhou com uma brinquedoteca imensa e disse: “Haja brinquedos!” E foi assim que o universo veio a existir. O universo é a brinquedoteca de Deus.

O que Deus fez foi colocar um pedacinho dele mesmo ( ou será “dela mesma”? ) em cada coisa que criou. Deus se pôs nas flores, no arco-iris, nas nuvens, nos regatos, nos peixes, nas árvores, nas frutas, no vento, nos perfumes, nos insetos, nas estrelas, só um pedacinho. Sabe aqueles vitrais maravilhosos das catedrais, feitos com milhares de pedacinhos de vidro colorido? Nenhum pedacinho, isoladamente, diz a beleza do todo. É preciso que todos os pedacinhos estejam juntos, nenhum é mais importante que o outro.

E Deus criou os pássaros, deliciosos brinquedos de asas. Símbolos da liberdade, eles voam. Símbolos da beleza, eles são de muitas cores e muitos cantos. Símbolos da paz de espírito, eles não têm ansiedades. Jesus até disse que deveríamos ser como eles...

Há pássaro de todo jeito: “amarelos canarinhos, com sete cores as saíras, pequeninas corruiras, escandalosos bem-te-vis, delicados colibris, pintassilgos e andorinhas, tico-ticos e rolinhas, pica-paus e cardeais, pássaros pretos e pardais, negros jacus e urubus.... “

Todos lindos. Lindos por serem diferentes. Nas cores e nos cantos. Se fossem todos iguais seria um tédio? Todos amarelos? Todos verdes? Todos brancos? Pois Deus, que é uno e múltiplo como o vitral da catedral, Deus que ama as diferenças, criou pássaros de todas as cores para que eles, na sua diferença de cores e de cantos, formassem um vitral vivo em que a sua beleza aparecesse. Aconteceu, entretanto, que uma raposa trocista, ao passear pela mata, viu um pássaro negro assentado sobre um galho e resolveu provocar a sua vaidade.

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- “Bom dia senhor Urubu. Que lindas são as suas penas, tão negras! Confesso não haver visto outro pássaro que pudesse se comparar ao senhor em beleza. Se a beleza do seu canto se compara à beleza de suas penas o senhor é a Fênix dessas florestas, a revelação plena da beleza divina. Imagino que Deus diz aos seus ouvidos coisas que ele não diz aos ouvidos dos outros pássaros! Se Deus desejar falar aos mortais em linguagem de pássaro, estou certo de que o senhor será o seu porta-voz!”

O Urubu ficou encantado ao ouvir as palavras da raposa. E acreditou. Os vaidosos sempre acreditam nas palavras dos aduladores.

“- É isso mesmo”, o Urubu falou consigo mesmo. “Cada pássaro tem um pedacinho de Deus. Só um pedacinho. Mas eu, Urubu, tenho a plenitude da beleza divina. Assim sendo, por que perder o meu tempo ouvindo o canto do sabiá, o canto do pintassilgo, o canto do canário?... O canto deles é uma nota solta. O meu canto é a sinfonia inteira! E é até perigoso que eles fiquem por aí, cantando livres pelas matas e jardins. Porque pode ser que um ouvinte tolo fique gostando do seu canto e assim, por amor à beleza pequena de uma nota, perca a beleza plena da sinfonia. É preciso que se saiba que o canto de todos os pássaros conduz ao meu canto! Para a glória de Deus!

E foi assim que os Urubus começaram uma operação de guerra contra os outros pássaros, sob a alegação de que o seu canto desviava os demais bichos do pleno conhecimento da beleza divina. Espalhou-se pela floresta a palavra de ordem: “Todos os pássaros devem cessar o seu canto. Todos os pássaros devem cantar como os urubus. Fora do canto dos Urubus não há salvação!”A passarinhada morreu de rir. Sabiás, pintassilgos e canários comentavam: “ Os Urubus devem ter enlouquecido...” E nem ligaram. Continuaram a cantar como Deus havia ordenado que cantassem.

Os Urubus, enfurecidos com a arrogância e presunção dos pássaros que não reconheciam a sua superioridade, reuniram-se em concílio e tomaram uma decisão: “Se não cantam como nós, porta-vozes Deus, cantam contra nós, cantam contra Deus. E quem canta contra Deus não tem o direito de cantar”.

Mas que passarinho pode parar de cantar o seu canto? O pedacinho de Deus que mora em cada um não descansa. Quer cantar! E eles continuaram a cantar.Os Urubus se puseram a campo em defesa da beleza divina e de sua própria beleza.

Começaram a perseguir os pássaros que se atreviam a cantar o canto que Deus lhes ensinara. Era a única forma de faze-los calar. Alguns pássaros se calaram por medo de serem expulsos da floresta a bicadas. Foram então colocados num regime chamado de “silêncio obsequioso” pelos urubus. Ninguém entendeu o que “silencio obsequioso’ queria dizer. Mas ninguém discutiu. Com Urubu não se discute. Silêncio, os pássaros sabiam o que era. Mas “obsequioso” eles não entendiam. Segundo o dicionário “obséquio” quer dizer “benefício”, “benevolência”. Que benefício ou benevolência existe em obrigar um pássaro a cessar o canto que Deus lhe deu? Ou será que o tal “obsequioso” vem de “obséquias”, que quer dizer “funeral”? É possível. O fato é que muitos dos que insistiram em cantar o seu próprio canto foram entregues à raposa que, como se sabe, adora a carne tenra das aves...

O resultado foi que os pássaros de muitas cores e de muitos cantos fugiram daquela floresta sinistra. Foram em busca de outras florestas onde não houvesse Urubus e onde pudessem cantar todos os seus cantos, ao mesmo tempo, e diferentes, para que assim se ouvisse a Grande Sinfonia.

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Quanto aos Urubus, ficaram sozinhos na sua floresta. Os bichos que moravam lá se mudaram, porque não agüentavam mais ouvir todo dia o mesmo canto monótono, sempre igual. sem variações, sem contraponto, sem improvisações. Quanto a Deus não é preciso dizer que floresta Ele ou Ela passou a freqüentar...* * *

Essa estória é um dos meus cantos, pássaro que sou, evadido das florestas religiosas. Ela me apareceu quando lia o livro Diário de uma mulher católica a caminho da descrença, escrito por Laura Ferreira dos Santos, uma brilhante intelectual portuguesa ( escreveu também um maravilhoso livro sobre Nietzsche e educação ). Visceralmente católica, católica de coração, vive um dilaceramento intelectual e afetivo ao pensar sobre a sua Igreja. À página 51 ela comenta a encíclica Dominus Iesus, que liquida qualquer possibilidade de diálogo ecumênico. Cito: “E para a Congregação da Fé, não há dúvida de que a Igreja Católica é superior a todas as outras igrejas, que o “seu” cristianismo tem o copyright da autenticidade, pois “ a Igreja de Cristo, não obstante as divisões dos cristãos, continua a existir plenamente só na Igreja Católica. Existe uma só “subsistência” da verdadeira Igreja, ao passo que fora da sua composição visível existem apenas “elementa Ecclesiae” ( elementos da Igreja ) que (...) tendem e conduzem para a Igreja Católica.”

Assim, não existe razão ou possibilidade de diálogo entre diferentes expressões do Cristianismo. Porque o diálogo só existe se eu admito não ser dono da verdade toda, que o meu interlocutor sabe alguma coisa que eu não sei. Como contei na estória dos pássaros e dos urubus... (Caderno C, Campinas, 07/12/2003)

RECEITA PARA MILAGRE

Tenho a impressão de já haver dito. Não tem importância. Direi de novo. A vida não é feita com novidades. É feita com repetições. Como na música. Há aquele tema, refrão que se repete, se repete, se repete – e a gente quer sempre ouvir de novo.

É sobre religião. Já me perguntaram por que escrevo tanto sobre religião. Há duas razões. Primeiro, porque a alma humana me fascina. Ela é um cenário fantástico, com abismos escuros cobertos de neblina, cavernas infernais onde habitam demônios, ao lado de picos altíssimos contra o céu azul, onde crescem flores coloridas e pássaros cantam nas árvores cheias de frutos. Paraíso e inferno num mesmo corpo... Esses cenários fantásticos pertencem ao mundo da religião. E como minha vocação é a de andarilho, eu gosto de caminhar pelas trilhas da alma. A outra razão é que tenho também a vocação de conversador. Gosto de conversar com as pessoas simples, sem diploma. De preferência na cozinha. Conversar é jogar peteca com palavras. Acontece que as pessoas comuns jogam muito essa peteca chamada religião. Aí eu entro no jogo... Se eu quiser me comunicar com os russos será inútil que eu lhes leia um poema em português. Minhas palavras lhes serão, para usar a imagem do apóstolo Paulo, “como o bronze que soa ou o címbalo que tine” - sons sem sentido. Para conversar é preciso falar a linguagem daquele com quem converso. Isso tem a ver com minha vocação de educador e comunicador. Eu quero entender as pessoas. Eu quero que elas me entendam. Gosto de falar a linguagem da religião por ser esse um jogo de petecas que jogo bem, modéstia à parte...

Então, se já disse: repito. Há dois tipos de religião. Um deles é a religião que oferece fórmulas para manipular o sagrado. Manipular o sagrado! Esse é o mais antigo e o mais profundo sonho da alma humana. Atrelar os deuses aos nossos arados! Engaiolar o

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Pássaro Encantado e levá-lo por onde eu for! Engarrafar o Vento! Por sela e freio em Pégasso, o cavalo voador, e cavalgá-lo! O homem que fizesse isso já não seria homem! Seria um deus... E como a Serpente, aquela do Paraíso, psicóloga conhecedora dos desejos do coração humano, sabia desse desejo, foi bem nesse lugar ela tentou: “... e sereis como os deuses!”

Poder é bom. Sem poder a gente morre. Saúde é poder. A doença, ao contrário, é um declínio de poder. Fraqueza. Fraqueza e morte andam próximas. Já imaginaram a euforia do homem quando ele conseguiu domar o fogo? Que extraordinários poderes novos o fogo lhe deu! A luz, na noite escura; o calor, na noite fria; o fogão e a culinária; o poder para derreter os metais, na fundição; o poder para endurecer o barro, na cerâmica... Sem o fogo não haveria civilização. Se a tecnologia nos dá poderes extraordinários, que poderes muito mais extraordinários nos serão dados se conseguirmos manipular o sagrado para os nossos propósitos, da mesma forma como manipulamos o fogo! Pois Deus não é fogo? Afinal de contas os deuses são onipotentes, podem todas as coisas!

E é isso que esse tipo de religião promete: atrelar os deuses aos nossos desejos, para que eles façam a nossa vontade. A oração do Pai Nosso dessa religião é meio diferente, embora ninguém reconheça. Ela reza: “Seja feita a minha vontade...” Pois, não é para isso que os deuses existem? Para fazer a nossa vontade? De que me valeria um deus que não faz o que desejo? Não seria melhor procurar um outro? Não é por isso que as pessoas trocam de religião? Bem dizia Dostoiévski que o que os homens desejam não é Deus, é o milagre. Milagre é quando do meu desejo se realiza! A jovem linda dá o seu carinho a um homem repulsivo. Por amor? Não. Ela o beija porque ele é rico e pode fazer as suas vontades. Não é o seu amor que ela busca. Ela busca o seu dinheiro. Assim os homens buscam a Deus não por amá-lo mas pelo milagre que ele pode operar. A prostituição acontece também no mundo das religiões. Do jeito preciso como aconteceu com o homem que achou a lâmpada mágica onde mora um gênio. É só esfregar a lâmpada para que ele apareça e pergunte: “Mestre, qual é o teu desejo para que eu o realize?” Na estória do gênio o truque é simples: basta esfregar a garrafa. Nessas religiões o “esfregar da garrafa” assume uma variedade de formas diferentes, dependendo da barraca, na feira das religiões, em que se vendem e se compram as arapucas para se prender o sagrado: fórmulas mágicas, gestos, rezas, amuletos, livros santos ( dizem que são poderosos como proteção para os relâmpagos, em dias de tempestade), colares ( pendurados nos carros evitam acidentes), promessas ( os deuses vendem os seus serviços por favores), peregrinações a lugares santos (pois lá o poder do sagrado está mais próximo), exorcismos, copos de água à frente dos aparelhos de TV, além dos despachantes sagrados de vários tipos, sendo que um deles promete rapidez, milagres para o dia de hoje. Alega-se, inclusive, que um adesivo num carro, dizendo ser ele propriedade exclusiva de Jesus, afugenta os ladrões. Um ladrão religioso jamais se arriscaria a roubar um carro de Jesus. O castigo seria certo ... Boas relações com Deus são garantias de sucesso. Só é pobre quem quer. Coitados dos profetas! Certamente não tinham boas relações com Deus. Não tiveram sucesso. Não souberam manipular o sagrado para que ele realizasse os seus desejos!

Esse tipo de religião é o que é mais procurado porque o que mais desejamos é a realização dos nossos desejos – mesmo que sejam desejos tolos, embora nunca reconheçamos que nossos desejos podem ser tolos.... O seu nome próprio seria magia. Porque magia são as técnicas de que se lança mão para manipular o sagrado para a realização dos nossos desejos. Os profetas do Antigo Testamento o chamavam de idolatria. O idólatra é a pessoa que pensa que o sagrado está preso num objeto, qualquer objeto, um santinho, um templo, uma relíquia, um livro, uma fórmula, uma comida, uma bebida, um rito. Estando preso, o sagrado está sob o seu controle: Deus está engaiolado. É possível levá-lo para onde quero. Posso usá-lo para fazer a minha vontade. Mas um Deus engaiolado deixou de ser um Deus!

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O outro tipo de religião? Pena. O espaço chegou ao fim. Conversaremos depois... Ao final da rua Joana de Gusmão, entre o restaurante Rã-chu e a floricultura Floríssima, havia uma pequena praça com árvores altas, completamente abandonada. A “Floríssima” a adotou e a transformou num lindo jardim! Se empresas e moradores se dispusessem a “adotar” praças e ruas a cidade ficaria muito mais bonita!Hans e Tomiko ( foi a Tomiko que me fez comprar o blazer vermelho...) se mudaram de São Paulo para Caldas, município onde está Pocinhos, lugar de águas termais curativas. Estão felizes, no processo de criar um centro cultural para a população local. Confessaram-me: Há uma coisa de que têm muita saudade: a Rádio Cultura de São Paulo. Música boa o dia inteiro. Variada. Acorda-se pela manhã, liga-se o rádio e pronto! Nunca vivi em São Paulo. Mas tive experiência semelhante em New York. Era uma delícia. A música faz bem à alma. Tranquiliza. Põe as ondas Alfa em funcionamento. Já sugeri a vários prefeitos, por meio dessa coluna, que conseguissem uma torre de retransmissão da Rádio Cultura. Nunca obtive resposta. Nem sei se isso é possível. Gostaria que alguém entendido me esclarecesse. E gostaria que aqueles que aprovam a idéia escrevessem para o jornal. (Caderno C, 30/11/2003)

SOBRE OS PERIGOS DA LEITURA

Nos tempos em que eu era professor da Unicamp, fui designado presidente da comissão encarregada da seleção dos candidatos ao doutoramento, o que é um sofrimento.Dizer "esse entra, esse não entra" é uma responsabilidade dolorida da qual não se sai sem sentimentos de culpa. Como, em 20 minutos de conversa, decidir sobre a vida de uma pessoa amedrontada? Mas não havia alternativas. Essa era a regra.

Os candidatos amontoavam-se no corredor recordando o que haviam lido da imensa lista de livros cuja leitura era exigida. Aí tive uma idéia que julguei brilhante. Combinei com os meus colegas que faríamos a todos os candidatos uma única pergunta, a mesma pergunta. Assim, quando o candidato entrava trêmulo e se esforçando por parecer confiante, eu lhe fazia a pergunta, a mais deliciosa de todas: "Fale-nos sobre aquilo que você gostaria de falar!".

Pois é claro! Não nos interessávamos por aquilo que ele havia memorizado dos livros. Muitos idiotas têm boa memória. Interessávamo-nos por aquilo que ele pensava. O candidato poderia falar sobre o que quisesse, desde que fosse aquilo sobre o que gostaria de falar. Procurávamos as idéias que corriam no seu sangue!

A reação dos candidatos, no entanto, não foi a esperada. Aconteceu o oposto: pânico. Foi como se esse campo, aquilo sobre que eles gostariam de falar, lhes fosse totalmente desconhecido, um vazio imenso. Papaguear os pensamentos dos outros, tudo bem. Para isso, eles haviam sido treinados durante toda a sua carreira escolar, a partir da infância. Mas falar sobre os próprios pensamentos —ah, isso não lhes tinha sido ensinado!

Na verdade, nunca lhes havia passado pela cabeça que alguém pudesse se interessar por aquilo que estavam pensando. Nunca lhes havia passado pela cabeça que os seus pensamentos pudessem ser importantes.

Uma candidata teve um surto e começou a papaguear compulsivamente a teoria de um autor marxista. Acho que ela pensou que aquela pergunta não era para valer. Não era possível que estivéssemos falando a sério. Deveria ser uma dessas "pegadinhas" sádicas cujo objetivo é confundir o candidato. Por vias das dúvidas, ela optou pelo caminho tradicional e tratou de demonstrar que havia lido a bibliografia. Aí eu a interrompi e lhe

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disse: "Eu já li esse livro. Eu sei o que está escrito nele. E você está repetindo direitinho. Mas nós não queremos ouvir o que já sabemos. Queremos ouvir o que não sabemos. Queremos que você nos conte o que você está pensando, os pensamentos que a ocupam...". Ela não conseguiu. O excesso de leitura a havia feito esquecer e desaprender a arte de pensar.

Parece que esse processo de destruição do pensamento individual é consequência natural das nossas práticas educativas. Quanto mais se é obrigado a ler, menos se pensa. Schopenhauer tomou consciência disso e o disse de maneira muito simples em alguns textos sobre livros e leitura.

O que se toma por óbvio e evidente é que o pensamento está diretamente ligado ao número de livros lidos. Tanto assim que se criaram técnicas de leitura dinâmica que permitem ler "Grande Sertão: Veredas" em pouco mais de três horas. Ler dinamicamente, como se sabe, é essencial para se preparar para o vestibular e para fazer os clássicos "fichamentos" exigidos pelos professores. Schopenhauer pensa o contrário: "É por isso que, no que se refere a nossas leituras, a arte de não ler é sumamente importante".

Isso contraria tudo o que se tem como verdadeiro, e é preciso seguir o seu pensamento. Diz ele: "Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: só repetimos o seu processo mental". Quanto a isso, não há dúvidas: se pensamos os nossos pensamentos enquanto lemos, na verdade não lemos. Nossa atenção não está no texto. Ele continua: "Durante a leitura, nossa cabeça é apenas o campo de batalha de pensamentos alheios. Quando esses, finalmente, se retiram, o que resta? Daí se segue que aquele que lê muito e quase o dia inteiro perde, paulatinamente, a capacidade de pensar por conta própria. Esse, no entanto, é o caso de muitos eruditos: leram até ficar estúpidos. Porque a leitura contínua, retomada a todo instante, paralisa o espírito ainda mais que um trabalho manual contínuo".

Nietzsche pensava o mesmo e chegou a afirmar que, nos seus dias, os eruditos só faziam uma coisa: passar as páginas dos livros. E com isso haviam perdido a capacidade de pensar por si mesmos. "Se não estão virando as páginas de um livro, eles não conseguem pensar. Sempre que se dizem pensando, eles estão, na realidade, simplesmente respondendo a um estímulo —o pensamento que leram... Na verdade eles não pensam; eles reagem. (...) Vi isso com meus próprios olhos: pessoas bem-dotadas que, aos 30 anos, haviam se arruinado de tanto ler. De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo, ler um livro é simplesmente algo depravado..."

E, no entanto, eu me daria por feliz se as nossas escolas ensinassem uma única coisa: o prazer de ler! Sobre isso falaremos...

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SOB O FEITIÇO DOS LIVROS

Nietzsche estava certo: "De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo - ler um livro é simplesmente algo depravado". É o que sinto ao andar pelas manhãs pelos maravilhosos caminhos da fazenda Santa Elisa, do Instituto Agronômico de Campinas. Procuro esquecer-me de tudo que li nos livros. É preciso que a cabeça esteja vazia de pensamentos para que os olhos possam ver. Aprendi isso lendo Alberto Caeiro, especialista inigualável na difícil arte de ver. Dizia ele que "pensar é estar doente dos olhos".

Mas meus esforços são frustrados. As coisas que vejo são como o beijo do príncipe: elas vão acordando os poemas que aprendi de cor e que agora estão adormecidos na minha memória. Assim, ao não pensar da visão, une-se o não-pensar da poesia. E penso que o meu mundo seria muito pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei. Pois, se não sabem, somente as coisas amadas são guardadas na memória poética, lugar da beleza.

"Aquilo que a memória amou fica eterno", tal como o disse a Adélia Prado, amiga querida. Os livros que amo não me deixam. Caminham comigo. Há os livros que moram na cabeça e vão se desgastando com o tempo. Esses, eu deixo em casa. Mas há os livros que moram no corpo. Esses são eternamente jovens. Como no amor, uma vez não chega. De novo, de novo, de novo...

Um amigo me telefonou. Tinha uma casa em Cabo Frio. Convidou-me. Gostei. Mas meu sorriso entortou quando disse: "Vão também cinco adolescentes...". Adolescentes podem ser uma alegria. Mas podem ser também uma perturbação para o espírito. Assim, resolvi tomar minhas providências. Comprei uma arma de amansar adolescentes. Um livro. Uma versão condensada da "Odisséia", de Homero, as fantásticas viagens de Ulisses de volta à casa, por mares traiçoeiros...

Primeiro dia: praia; almoço; sono. Lá pelas cinco, os dorminhocos acordaram, sem ter o que fazer. E antes que tivessem idéias próprias eu tomei a iniciativa. Com voz autoritária, dirigi-me a eles, ainda sob o efeito do torpor: "Ei, vocês... Venham cá na sala. Quero lhes mostrar uma coisa". Não consultei as bases. Teria sido terrível. Uma decisão democrática das bases optaria por ligar a televisão. Claro. Como poderiam decidir por uma coisa que ignoravam? Peguei o livro e comecei a leitura. Ao espanto inicial seguiu-se silêncio e atenção. Vi, pelos seus olhos, que já estavam sob o domínio do encantamento. Daí para frente foi uma coisa só. Não me deixavam. Por onde quer que eu fosse, lá vinham eles com a "Odisséia" na mão, pedindo que eu lesse mais. Nem na praia me deram descanso.

Essa experiência me fez pensar que deve haver algo errado na afirmação que sempre se repete de que os adolescentes não gostam da leitura. Sei que, como regra, não gostam de ler. O que não é a mesma coisa que não gostar da leitura. Lembro-me da escola primária que frequentei. Havia uma aula de leitura. Era a aula que mais amávamos. A professora lia para que nós ouvíssemos. Leu todo o Monteiro Lobato. E leu aqueles livros que se liam naqueles tempos: "Heidi", "Poliana", "A Ilha do Tesouro".

Quando a aula terminava, era a tristeza. Mas o bom mesmo é que não havia provas ou avaliações. Era prazer puro. E estava certo. Porque esse é o objetivo da literatura: prazer. O que os exames vestibulares tentam fazer é transformar a literatura em informações que podem ser armazenadas na cabeça. Mas o lugar da literatura não é a cabeça: é o coração. A literatura é feita com as palavras que desejam morar no corpo. Somente assim ela provoca as transformações alquímicas que deseja realizar. Se não concordam, que leiam João Guimarães Rosa, que dizia que literatura é feitiçaria que se faz com o sangue do coração humano.

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Quando minha filha estava sendo introduzida na literatura, o professor lhe deu como dever de casa ler e fichar um livro chatíssimo. Sofrimento dos adolescentes, sofrimento para os pais. A pura visão do livro provocava uma preguiça imensa, aquela preguiça que Roland Barthes declarou ser essencial à experiência escolar.

Escrevi uma carta delicada ao professor, lembrando-lhe que Jorge Luis Borges havia declarado que não havia razão para ler um livro que não dá prazer quando há milhares de livros que dão prazer. Sugeri-lhe começar por algo mais próximo da condição emotiva dos jovens. Ele me respondeu com o discurso de esquerda, que sempre teve medo do prazer: "O meu objetivo é produzir a consciência crítica...".

Quando eu li isso, percebi que não havia esperança. O professor não sabia o essencial. Não sabia que literatura não é para produzir consciência crítica. O escritor não escreve com intenções didático-pedagógicas. Ele escreve para produzir prazer. Para fazer amor. Escrever e ler são formas de fazer amor. É por isso que os amores pobres em literatura ou são de vida curta, ou são de vida longa e tediosa... Parodiando as palavras de Jesus, "nem só de beijos e transas viverá o amor, mas de toda palavra que sai das mãos dos escritores...". Aprendiz, 27/01/2004

A ARTE DE SABER LER

Ela me olhou e disse: "Encontrei um lindo poema de Fernando Pessoa". Fiquei contente, porque gosto muito de Fernando Pessoa. Aí ela disse o primeiro verso. Fiquei mais contente ainda, porque era um poema que eu conhecia. Ato contínuo, ela abriu o livro e começou a ler. Epa! Senti-me mal. As palavras estavam certas. Mas ela tropeçava, parava onde não devia, não tinha ritmo nem música. Não, aquilo não era Fernando Pessoa, embora as palavras fossem suas.

Senti o mesmo que já sentira em audições de alunos principiantes que, via de regra, são um sofrimento para os que ouvem, o maior desejo sendo que a música chegue ao fim e que a aflição termine. Percebi, então, que a arte de ler é exatamente igual à arte de tocar piano ou qualquer outro instrumento.

Como é que se aprende a gostar de piano? O gostar começa pelo ouvir. É preciso ouvir o piano bem tocado. Há dois tipos de pianistas. Alguns, raros, como Nelson Freire, já nascem com o piano dentro deles. Eles e o piano são uma coisa só. O piano é uma extensão dos seus corpos.

Outros, aos quais dou o nome de "pianeiros", são como eu, que me esforcei sem sucesso para ser pianista (consolo-me pensando que o mesmo aconteceu com Friedrich Nietzsche. Atreveu-se até mesmo a enviar algumas de suas composições ao famoso pianista Hans von Büllow, que as devolveu com o conselho de que ele deveria se dedicar à filosofia).

Diferentemente dos pianistas, que nascem com o piano dentro do corpo, os "pianeiros" têm o piano do lado de fora. Esforçam-se por pôr o piano do lado de dentro, mas é inútil. As notas se aprendem, mas isso não é o bastante. Os dedos esbarram, erram, tropeçam, e aquilo que deveria ser uma experiência de prazer se transforma numa experiência de sofrimento não só para quem ouve mas também para quem toca.

Um pianista, quando toca, não pensa nas notas. A partitura já está dentro dele. Ele se

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encontra num estado de "possessão". Nem pensa na técnica. A técnica ficou para trás, é um problema resolvido. Ele simplesmente "surfa" sobre as teclas seguindo o movimento das ondas. Pois é precisamente assim que se aprende o gosto pela leitura: ouvindo-se o artista —o que lê— interpretar o texto.

Não estou usando a palavra "interpretar" no sentido comum de dizer o que o autor queria dizer, mas não conseguiu, coisa que se tenta fazer nas aulas de literatura (o que é que o autor queria dizer? Ele queria dizer o que disse. Se quisesse dizer uma outra coisa, ele teria escrito essa outra coisa). Estou usando "interpretar" no sentido artístico, teatral. O "intérprete" é o possuído. É ele que faz viver —seja a partitura musical silenciosa, seja o texto teatral ou poético, silencioso na imobilidade da escrita.

Disse William Shakespeare no segundo ato de Hamlet: "Não é incrível que um ator, por uma simples ficção, um sonho apaixonado, amolde tanto a sua alma à imaginação que todo se lhe transfigura o semblante, por completo o rosto lhe empalideça, lágrimas vertam dos seus olhos, suas palavras tremam, e inteiro o seu organismo se acomode a essa mesma ficção?". Tenho a impressão de que, se os jovens não gostam de ler, é porque não tiveram a experiência de ouvir a leitura feita por um possuído.

Uma lembrança feliz que tenho do meu irmão Murilo, já encantado, era que ele lia para mim, menino, livros de aventura: "Náufragos de Bornéo", com um enorme gorila na capa, "Prisioneiros dos Pampas", com dois homens lutando à faca na capa. Isso aconteceu há 63 anos, e não esqueci. Ainda posso ouvir a sua voz possuída pela emoção. É a experiência de ouvir que nos faz querer dominar a técnica da leitura para poder penetrar na emoção do texto.

Há de se dominar a técnica da leitura da mesma forma que se domina a técnica do piano. Acontece que o domínio da técnica é cansativo e freqüentemente aborrecido.

Antigamente, o aprendiz de piano tinha de gastar horas nos monótonos exercícios de mecanismo do Hannon. Mas mesmo os grandes pianistas que já dominaram a essência da técnica têm de gastar tempo e atenção debulhando as passagens complicadas que não podem ser pensadas ao ser tocadas. Todo pianista tem de dominar os estudos de Chopin, de dificuldades técnicas transcendentais, maravilhosos.

Mas só têm paciência para suportar o aborrecimento da técnica aqueles que foram fascinados pela beleza da música. Estuda-se a técnica por amor à interpretação, que é o evento orgiástico de possessão.

Por isso eu tenho sugerido a escolas e prefeituras que promovam "concertos de leitura" para seduzir os ouvintes à beleza da leitura. Não custam nada. Uma única coisa é necessária: o artista, o intérprete...

Um concerto de leitura poderia se organizar assim: primeira parte, poemas da Adélia Prado (é impossível não gostar dela...); segunda parte, "O Afogado Mais Lindo do Mundo", conto de Gabriel García Márquez; terceira parte, haicais de Bashô. Acho que todo mundo gostaria e sairia decidido a dominar a arte da leitura. 17/02/2004

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COMO ENSINAR O PRAZER DE LER

Não se pode ensinar as delícias do amor com aulas de anatomia e fisiologia dos órgãos sexuais. Se assim fosse, o livro "Cântico dos Cânticos", que está na Bíblia, nunca teria sido escrito. Não se pode ensinar o prazer da leitura com aulas sobre as ciências da linguagem. O conhecimento da gramática e das ciências da interpretação não faz poetas. Noel Rosa sabia disso e cantou: "Samba não se aprende no colégio...".

Tomei o livro de poemas de Robert Frost e li um dos seus mais famosos poemas. "Os bosques são belos, sombrios, fundos. Mas há muitas milhas a andar e muitas promessas a guardar antes de poder dormir. Sim, antes de poder dormir."

Li vagarosamente. Porque cada poema tem um andamento que lhe é próprio. Como na música. Se o primeiro movimento da "Sonata ao Luar", de Beethoven, que todos já ouviram e desejam ouvir de novo, "adagio sostenuto", fosse tocado —exatamente as mesmas notas!— como "presto", rapidamente a sua beleza se iria. Ficaria ridículo. Porque o "presto" é incompatível com aquilo que o primeiro movimento está dizendo. O tempo de uma peça musical pertence à sua própria essência.

Já sugeri que os escritores deveriam imitar os compositores, que, como medida protetora da beleza, colocam, ao início de uma peça, uma informação sobre o tempo em que ela deve ser tocada: grave, andante, "vivace", "maestoso", alegro. Cada texto literário tem também o seu próprio tempo.

Há textos que devem ser lidos ao ritmo de uma criança pulando corda e dando risadas. Como o poema "Leilão de Jardim", de Cecília Meireles: "Quem me compra um jardim com flores? Borboletas de muitas cores, lavadeiras e passarinhos, ovos verdes e azuis nos ninhos?". O poema inteiro é marcado por essa alegria infantil, saltitante. Quando se passa para a sua "Elegia", escrita para a sua avó morta, o clima é outro. Há uma tristeza profunda. Há de se ler lentamente, com sofrimento: "Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos. Tive medo de a enxugar: para não saberes que tinha caído". Li vagarosamente. O poema pede para ser lido vagarosamente. Terminada a leitura, não me atrevi a dizer nada. É preciso que haja silêncio. A música só existe sobre um fundo de silêncio. É no silêncio que a beleza coloca os seus ovos. É no silêncio que as palavras são chocadas. É no silêncio que se ouve aquela outra voz mencionada por Fernando Pessoa, voz habitante dos interstícios das palavras do poeta.

(Por isso fico profundamente irritado quando alguém fala enquanto a música é tocada. É como se estivesse a ver uma partida de futebol enquanto faz amor...)

Passados alguns momentos de silêncio (como o silêncio que existe entre os dois movimentos de uma sonata), pus-me a ler o mesmo poema de novo, com a mesma música. E aí, então, no silêncio que se seguiu à segunda leitura, ouvi um soluço no fundo da sala. Uma jovem chorava. Jamais me passaria pela cabeça que ela estivesse chorando por causa do poema. Embora ele me comova muito, minha comoção nunca chegou ao choro. Pensei que se tratasse de um sofrimento de sua vida privada. Diante de um soluço, tudo pára. Agora, o que importava não era o poema, era aquele soluço.

"O que aconteceu?", perguntei. "Não sei, professor. Esse poema me deu uma tristeza imensa." Eu quis entender: "Mas o que, no poema, lhe deu tristeza?". "Não sei, professor. Só sei que esse poema me faz chorar..." Lembrei-me de Fernando Pessoa: "E a melodia que não havia, se agora a lembro, faz-me chorar". Grande mistério, esse: o que não há e que provoca o choro.

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Como disse Paul Valéry, vivemos pelo poder das coisas que não existem. Por isso, os deuses são tão poderosos... (Essa jovem, que assim me marcou de forma inesquecível, pouco tempo depois morreu num desastre de carro. Espero que ela, no outro mundo, tenha visitado os bosques "belos, sombrios e fundos" de Robert Frost.)

Houve beleza e mistério porque eu não me meti a interpretar o poema. E, no entanto, a interpretação de textos parece ser uma das obsessões dos programas escolares. Se o meu propósito fosse interpretar o poema de Frost, para aproveitar o tempo, eu o teria lido um pouco mais depressa, teria desprezado o silêncio e não teria repetido a leitura.

Essas coisas nada têm a ver com a interpretação. A interpretação acontece a partir daquilo que está escrito —se devagar ou depressa, não importa. Minha primeira pergunta teria sido: "O que é que Robert Frost queria dizer?".

Toda interpretação começa com essa pergunta. É a pergunta que surge numa zona de obscuridade: há sombras no texto. O intérprete é um ser luminoso. Não suporta sombras. Ele traz suas lanternas, suas idéias claras e distintas, e trata de iluminar os bosques sombrios... Não percebe que, ao tentar iluminar os bosques, dele fogem as criaturas encantadas que habitam as sombras. Esquecem-se do que disse Gaston Bachelard: "Parece que existem em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxuleante...". O inconsciente é um bosque sombrio... (Continuamos a conversa mês que vem...) Folha Sinapse, 30/03/2004

INTERPRETAR É COMPREENDER

"Hoje vamos interpretar um poema", disse a professora de literatura. "Trata-se de um poema mínimo da extraordinária poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen", continuou. "O seu título é 'Intacta Memória'. Por favor, prestem atenção." E com essas palavras começou a leitura."Intacta memória —se eu chamasseUma por uma as coisas que adoreiTalvez que a minha vida regressasseVencida pelo amor com que a sonhei."

Ela tira os olhos do livro e fala: "O que é que o autor queria dizer ao escrever esse poema?". Essa pergunta é muito importante. Ela é o início do processo de interpretação.

Na vida estamos envolvidos o tempo todo em interpretar. Um amigo diz uma coisa que a gente não entende. A gente diz logo: "O que é que você quer dizer com isso?". Aí ele diz de uma outra forma, e a gente entende. E a interpretação, todo mundo sabe disso, é aquilo que se deve fazer com os textos que se lê. Para que sejam compreendidos. Razão por que os materiais escolares estão cheios de testes de compreensão. Interpretar é compreender.É claro que a interpretação só se aplica a textos obscuros. Se o meu amigo tivesse dito o que queria dizer de forma clara, eu não lhe teria feito a pergunta. Interpretar é acender luzes na escuridão. Lembra-se do poema de Robert Frost, que diz: "Os bosques são belos, sombrios, fundos..."? Acesas as luzes da interpretação na escuridão dos bosques, suas sombras desaparecem. Tudo fica claro.

"O que é que o autor queria dizer?" Note: o autor queria dizer algo. Queria dizer, mas não disse. Por que será que ele não disse o que queria dizer? Só existe uma resposta: "Por

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incompetência lingüística". Ele queria dizer algo, mas o que saiu foi apenas um gaguejo, uma coisa que ele não queria dizer...

A interpretação, assim, se revela necessária para salvar o texto da incompetência lingüística do autor... Os poetas são incompetentes verbais. Felizmente, com o uso dos recursos das ciências da linguagem, salvamos o autor de sua confusão e o fazemos dizer o que ele realmente queria dizer. Mas, se o texto interpretado é aquilo que o autor queria dizer, por que não ficar com a interpretação e jogar o texto fora?

É claro que tudo o que eu disse é uma brincadeira verdadeira. É preciso compreender que o escritor nunca quer dizer alguma coisa. Ele simplesmente diz. O que está escrito é o que ele queria dizer. Se me perguntam "O que é que você queria dizer?", eu respondo: "Eu queria dizer o que disse. Se eu quisesse dizer outra coisa, eu teria dito outra coisa, e não aquilo que eu disse".

Estremeço quando me ameaçam com interpretações de textos meus. Escrevi uma estória com o título "O Gambá Que Não Sabia Sorrir". É a estória de um gambazinho chamado Cheiroso, que ficava pendurado pelo rabo no galho de uma árvore. Uma escola me convidou para assistir à interpretação do texto que seria feita pelas crianças. Fui com alegria. Iniciada a interpretação, eu fiquei pasmo! A interpretação começava com o gambá. O que é que o Rubem Alves queria dizer com o gambá? Foram ao dicionário e lá encontraram: "Gambá: nome de animais marsupiais do gênero Didelphis, de hábitos noturnos, que vivem em árvores e são fedorentos. São onívoros, tendo predileção por ovos e galinhas". Seguiam descrições científicas de todos os bichos que apareciam na estória. Fiquei a pensar: "O que é que fizeram com o meu gambá? Meu gambazinho não é um marsupial fedorento".

Octavio Paz diz que a resposta a um texto nunca deve ser uma interpretação. Deve ser um outro texto. Assim, quando um professor lê um poema para os seus alunos, deve fazer-lhes uma provocação: "O que é que esse poema lhes sugere? O que é que vocês vêem? Que imagens? Que associações?". Assim o aluno, em vez de se entregar à duvidosa tarefa de descobrir o que o autor queria dizer, entrega-se à criativa tarefa de produzir o seu próprio texto literário.

Mas há um tipo de interpretação que eu amo. É aquela que se inspira na interpretação musical. O pianista interpreta uma peça. Isso não quer dizer que ele esteja tentando dizer o que o compositor queria dizer. Ao contrário. Possuído pela partitura, ele a torna viva, transforma-a em objeto musical, tal como ele a vive na sua possessão. Os poemas assim podem ser interpretados, transformados em gestos, em dança, em teatro, em pintura. O meu amigo Laerte Asnis transformou a minha estória "A Pipa e a Flor" num maravilhoso espetáculo teatral. Pela arte do intérprete —o Laerte, palhaço—, o texto que estava preso ao livro fica livre, ganha vida, movimento, música, humor. Com isso, a estória se apossa daqueles que assistem ao espetáculo. E o extraordinário é que todos entendem, crianças e adultos. Eu chorei na primeira vez que o vi.

O que é que a Sophia de Mello Breyner Andresen queria dizer com o seu poema? Não sei. Só sei que o seu poema faz amor comigo.

Rubem Alves, 70, é educador e escritor, autor de "Quando Eu Era Menino" (Papirus), "Lições de Feitiçaria" (Loyola), "Pai Nosso" (Paulus) e "Ao Professor com Meu Carinho" (Verus), entre outros. Atualmente, dedica-se às releituras de "Zorba, o Grego", de Nikos Kazantzakis, "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez, e "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa. F Sinapse, 27/04/2004

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Rubem Alves

BAGUNÇA

Você me pergunta sobre o que fazer para curar-se de uma terrível doença chamada bagunça. A bagunça cria situações terríveis: livros perdidos, objetos desaparecidos, cartas não respondidas, aniversários e casamentos esquecidos, contas não pagas. Quando a bagunça só machuca a gente, o sofrimento é suportável. É só a gente que sofre as consequências. Mas quando tem a ver com compromissos não atendidos, paira sempre a certeza, na cabeça de quem foi vítima, de que foi falta de atenção, grosseria. Eu poderia lhe indicar uma lista de livros com conselhos práticos do tipo " cada coisa em seu lugar, um lugar para cada coisa"; anote tudo numa agenda, etc. Mas eu lhe asseguro: esses conselhos são inúteis. Acho mesmo que bagunça é doença incurável.Minha mãe fracassou como educadora. Ou eu fracassei como aprendiz. Enquanto eu morava na casa dela, ela lutou. Argumentou. Ficou brava. Inutilmente. Vez por outra eu me enchia de vergonha e de boas intenções e dizia: "Vou por tudo em ordem". As boas intenções duravam por poucos dias. Logo eu me via de novo afogado – isso mesmo, afogado; o bagunçado vive afogado por sua própria bagunça - esforçando-me por me manter à tona da confusão das minhas coisas. Recebi, faz tempo, um presente de uma mulher que desconheço. Veio embrulhado em papel bonito. Abri. Era um quadrinho bordado a ponto de cruz. Está pendurado à minha frente: "Deus abençoe esta bagunça". Ela nunca havia entrado no meu escritório – mas é claro que ela suspeitava...Bagunça de idéias não é coisa má. O inconsciente é uma bagunça infernal, idéias e imagens dançando o tempo todo numa orgia de desordem incontrolável. É dessa bagunça que nasce a literatura. Quem lê nem imagina! Vê as idéias organizadas, bonitinhas, uma atrás da outra. Não tem a mínima idéia do caos de onde nasceram. Para meu consolo Nietzsche dizia que o segredo da criatividade é ser rico em contradições. Os textos sagrados dizem que no princípio era o caos; foi do caos que nasceu a beleza. Com Deus, tudo bem, porque ele não se esquece de nada. Mas o problema é com a gente. Esquecemos – e com o esquecimento ferimos sem querer pessoas que amamos. A psicanálise tem a mania de explicar todo esquecimento como ato de uma vontade inconsciente. A gente esquece porque, no fundo, "quis" esquecer. Quando o paciente se esquece da sessão de análise ou se esquece do que ia dizer, o psicanalista diz logo: "Aha! Se você esqueceu e porque queria esquecer!" Discordo. Nem tudo pode ser explicado psicanaliticamente. Como se sabe Freud era um fumador inveterado de charutos. Sandor Ferenczi, seu discípulo e colega, ficava incomodado com o hábito fedorento do mestre, e se punha a fazer interpretações psicanalíticas orais-fálicas do charuto, ao que Freud respondia: "Sandor, por vezes um charuto é só um charuto..."Por vezes o esquecimento não esconde nem desatenção e nem grosseria: é apenas um resultado dessa doença que se chama bagunça. Comigo mesmo acaba de acontecer uma coisa muito ruim. A "Escola de Educação Básica e Educação Profissional "N. S. das Dores"", de Artur Nogueira, preparou um espetáculo de ginástica e dança sobre um livro meu, o "Navegando". Enviaram-me convite para estar presente. Eu tinha de estar presente. Coloquei o convite da escola na pilha sempre crescente de cartas que se encontra à esquerda da minha escrivaninha. Pensei: vou fazer as coisas urgentes que tenho de fazer imediatamente, e logo responderei. Afinal de contas, havia tempo bastante. Ao mesmo tempo, eu estava comprimido no preparo de falas que deveria dar em Portugal. Enquanto isso, a pilha continuava a crescer. E o convite ficou submerso. E eu me esqueci. Não respondi. Não compareci. Não pude sentir alegria. Não pude agradecer. A escola tem todo o direito de pensar que foi desatenção. Um convite como aquele não pode ser esquecido. Mas eu me esqueci. Me esqueci por causa dessa doença incurável chamada bagunça. Estou, então, publicamente, pedindo perdão por um ato que não pode ser perdoado: o esquecimento de um convite de amor.

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Rubem Alves

E vem você, me pedindo conselhos sobre como curar a sua bagunça. Depois que eu curar a minha lhe passarei a receita. Mas, para dizer a verdade, acho que essa doença não tem cura...

DIPLOMA NÃO É SOLUÇÃO

Vou confessar um pecado: às vezes, faço maldades. Mas não faço por mal. Faço o que faziam os mestres zen com seus "koans". "Koans" eram rasteiras que os mestres passavam no pensamento dos discípulos. Eles sabiam que só se aprende o novo quando as certezas velhas caem. E acontece que eu gosto de passar rasteiras em certezas de jovens e de velhos...

Pois o que eu faço é o seguinte. Lá estão os jovens nos semáforos, de cabeças raspadas e caras pintadas, na maior alegria, celebrando o fato de haverem passado no vestibular. Estão pedindo dinheiro para a festa! Eu paro o carro, abro a janela e na maior seriedade digo: "Não vou dar dinheiro. Mas vou dar um conselho. Sou professor emérito da Unicamp. O conselho é este: salvem-se enquanto é tempo!". Aí o sinal fica verde e eu continuo.

"Mas que desmancha-prazeres você é!", vocês me dirão. É verdade. Desmancha-prazeres. Prazeres inocentes baseados no engano. Porque aquela alegria toda se deve precisamente a isto: eles estão enganados.

Estão alegres porque acreditam que a universidade é a chave do mundo. Acabaram de chegar ao último patamar. As celebrações têm o mesmo sentido que os eventos iniciáticos —nas culturas ditas primitivas, as provas a que têm de se submeter os jovens que passaram pela puberdade. Passadas as provas e os seus sofrimentos, os jovens deixaram de ser crianças. Agora são adultos, com todos os seus direitos e deveres. Podem assentar-se na roda dos homens. Assim como os nossos jovens agora podem dizer: "Deixei o cursinho. Estou na universidade".

Houve um tempo em que as celebrações eram justas. Isso foi há muito tempo, quando eu era jovem. Naqueles tempos, um diploma universitário era garantia de trabalho. Os pais se davam como prontos para morrer quando uma destas coisas acontecia: 1) a filha se casava. Isso garantia o seu sustento pelo resto da vida; 2) a filha tirava o diploma de normalista. Isso garantiria o seu sustento caso não casasse; 3) o filho entrava para o Banco do Brasil; 4) o filho tirava diploma.

O diploma era mais que garantia de emprego. Era um atestado de nobreza. Quem tirava diploma não precisava trabalhar com as mãos, como os mecânicos, pedreiros e carpinteiros, que tinham mãos rudes e sujas.

Para provar para todo mundo que não trabalhavam com as mãos, os diplomados tratavam de pôr no dedo um anel com pedra colorida. Havia pedras para todas as profissões: médicos, advogados, músicos, engenheiros. Até os bispos tinham suas pedras.

(Ah! Ia me esquecendo: os pais também se davam como prontos para morrer quando o filho entrava para o seminário para ser padre —aos 45 anos seria bispo— ou para o exército para ser oficial —aos 45 anos seria general.)

Silvana Poll 6

Rubem Alves

Essa ilusão continua a morar na cabeça dos pais e é introduzida na cabeça dos filhos desde pequenos. Profissão honrosa é profissão que tem diploma universitário. Profissão rendosa é a que tem diploma universitário. Cria-se, então, a fantasia de que as únicas opções de profissão são aquelas oferecidas pelas universidades.

Quando se pergunta a um jovem "O que é que você vai fazer?", o sentido dessa pergunta é "Quando você for preencher os formulários do vestibular, qual das opções oferecidas você vai escolher?". E as opções não oferecidas? Haverá alternativas de trabalho que não se encontram nos formulários de vestibular?

Como todos os pais querem que seus filhos entrem na universidade e (quase) todos os jovens querem entrar na universidade, configura-se um mercado imenso, mas imenso mesmo, de pessoas desejosas de diplomas e prontas a pagar o preço. Enquanto houver jovens que não passam nos vestibulares das universidades do Estado, haverá mercado para a criação de universidades particulares. É um bom negócio.

Alegria na entrada. Tristeza ao sair. Forma-se, então, a multidão de jovens com diploma na mão, mas que não conseguem arranjar emprego. Por uma razão aritmética: o número de diplomados é muitas vezes maior que o número de empregos.

Já sugeri que os jovens que entram na universidade deveriam aprender, junto com o curso "nobre" que freqüentam, um ofício: marceneiro, mecânico, cozinheiro, jardineiro, técnico de computador, eletricista, encanador, descupinizador, motorista de trator... O rol de ofícios possíveis é imenso. Pena que, nas escolas, as crianças e os jovens não sejam informados sobre essas alternativas, por vezes mais felizes e mais rendosas.

Tive um amigo professor que foi guindado, contra a sua vontade, à posição de reitor de um grande colégio americano no interior de Minas. Ele odiava essa posição porque era obrigado a fazer discursos. E ele tremia de medo de fazer discursos. Um dia ele desapareceu sem explicações. Voltou com a família para o seu país, os Estados Unidos. Tempos depois, encontrei um amigo comum e perguntei: "Como vai o Fulano?". Respondeu-me: "Felicíssimo. É motorista de um caminhão gigantesco que cruza o país!". 25/05/2004 - Folha Sinapse

11 de Setembro de 2004

Queridos amigos: Bem-vindos à minha casa. No próximo dia 15 eu estarei “desfazendo” 71 anos de vida. Nunca imaginei que viveria tanto! Lembro-me de quando meu pai completou 60 anos. Eu, jovem, olhava para ele com compaixão pensando: “ O fim está próximo...” Mas eu, aos 71 anos, ainda me sinto meio como um adolescente. Gosto de viver. Não tenho medo de morrer. Tenho é tristeza. Lembro-me de uma velhinha, lá em Minas. Já havia ultrapassado os 90. Estava cega, na cama. Sua filha lhe lia a Bíblia – coisa que ela muito amava. Mas, de repente, ela fez um gesto, interrompeu a leitura e disse: “Filha, sei que a hora está chegando. Que pena! A vida é tão boa!” Não quero presentes. Tenho muito mais do que necessito. Estou fazendo um esforço para me livrar das coisas que tenho. Se vocês quiserem me dar um presente, dêem uma contribuição a alguma instituição que se dedica às crianças. Ou plantem uma árvore. Ou leiam um poema. Os pássaros já me deram o melhor presente. Veja esse texto de Bachelard: “ Ergo suavemente um galho; um pássaro está ali chocando os ovos. Não levanta vôo. Somente estremece um pouco. Tremo por fazê-lo tremer. Tenho medo que o pássaro que choca saiba que sou um homem, o ser que deixou de ter a confiança dos pássaros. Fico imóvel Lentamente se acalma – imagino eu! – o medo do pássaro e o meu medo de causar medo.

Silvana Poll 7

Rubem Alves

Respiro melhor. Deixo o galho voltar ao seu lugar. Voltarei amanhã. Hoje, trago comigo uma alegria: os pássaros fizeram um ninho no meu jardim.” O mesmo aconteceu comigo. Um casal de sabiás fez um ninho num vaso de avenca à entrada do meu escritório. Fico comovido vendo os olhos da fêmea assentada sobre seus filhotes. Nasceram três. E só a mãe chegar para que eles abram seus bicos e gritem pedindo comida. Nada sabem sobre a vida. Mas já sabem que é preciso comer. Olhai as aves dos céus... Vai, como presente de aniversário, esse poeminha do Alberto Caeiro: “ Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e dar-nos-á verdor na sua primavera, e um rio aonde ir ter quando acabemos...” Se me enviarem e-mails eu ficarei feliz. Mas não prometo responder. Não dou conta. A vida é curta. A arte é longa. Um abraço do Rubem Alves Estou com o corpo cheio de pequenas feridinhas, pontos vermelhos. Nada grave. Marcas de micuins. Micuins são carrapatos tão pequenos que são praticamente invisíveis. Numa caminhada pelos campos de Pocinhos devo ter esbarrado num cacho dos ditos. Eles se espalham invisivelmente e a gente só os vai sentir depois de eles estarem agarrados na pele. Coceira. Olhando para as feridinhas pensei que foi isso que aconteceu com o Busch. Ele não sabia que o deserto era um ninho de micuins. Agora ele e os Estados Unidos estão sofrendo dessa coceira que não tem fim. A propósito dos sabiás lembrei-me do que Manoel de Barros escreveu sobre eles: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir os seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá. Quem acumular muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam. ( Manoel de Barros, Livro sobre nada ) Para celebrar o aniversário do Bairro Escola Aprendiz ( link), a pedido do Gilberto Dimenstein eu escrevi, com a ajuda de um punhado de conspiradores, o livro Aprendiz de Mim – Um bairro que virou escola. Vão transcritas a última capa do livro, escrita pelo Gilberto, e a primeira orelha, escrita por mim. Esse projeto bagunça as idéias tradicionais do que é uma escola. Ao invés de uma escola em um lugar limitado de um bairro, é o bairro inteiro que vai se transformando em escola. Deveria ser lido por educadores, alunos e pais. ( Transcrever a última capa e a primeira orelha). ( Papirus Editora ) Os três reis: Acaba de sair essa estória, com lindas ilustrações das bordadeiras Antônia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Martha e Sávia, sobre desenhos de Demóstenes. Sei que você já deve ter visto muitos bordados. Esqueça os bordados que você já viu. Os bordados dessas mulheres, mãe e filhas, são diferentes de tudo o que eu vi em minha vida. Já ilustraram livros do Ziraldo, do Carlos Brandão, do Manoel de Barros e meus. E agora, de novo! Livro pra crianças, livro pra adultos. Edições Loyola. (Site R Alves)

Silvana Poll 7

Rubem Alves

SOBRE CIÊNCIA E SAPIÊNCIA

Muitas pessoas não gostam do que escrevo. Dizem que o que eu faço não é ciência, é literatura. É verdade. Faz tempo que me mudei da caixa de ferramentas para a caixa de brinquedos. O que me aborrece é que esses que não gostam do que escrevo pensam que somente a ciência tem dignidade acadêmica. Houve mesmo o caso de uma candidata a mestrado que teve seu projeto recusado por me citar demais e por propor um assunto que não era científico. Psicóloga e pedagoga, ela sabia por experiência própria do poder do olhar.Há tantos olhares diferentes! Há olhar de desprezo, de admiração, de ternura, de ódio, de vergonha, de alegria... A mãe encosta o filhinho na parede e, a um metro de distância, lhe estende os braços e diz sorrindo: "Vem". Encorajada pelo olhar, a criança, que ainda não sabe andar, dá seus primeiros passos. Há olhares que dão coragem. E há olhares que destroem. Por exemplo, aquele olhar terrível da professora que encara a criança de um certo jeito, sem nada dizer. Mas a criança entende o que o seu olhar está dizendo: "Como você é burra...".

Há olhares que emburrecem. Voltando à metáfora do pênis, há olhares que o tornam impotente, tanto no sentido literal como no sentido metafórico. Acho que era isso que a Adélia Prado tinha em mente quando escreveu maliciosamente: "E o meu lábio zombeteiro faz a lança dele refluir".

O olhar é real. É real porque produz efeitos reais. O olho é também real. Sobre ele, pode-se ter conhecimento científico. Há uma ciência dos olhos. Há uma especialidade médica que se dedica a eles: a oftalmologia. Mas, por mais que procuremos nos tratados de oftalmologia referências ao olhar, não encontraremos nada. O olhar não é objeto de conhecimento científico. Nem tudo o que é real pode ser pescado com as redes metodológicas da ciência. Há objetos que escapam pelos buracos de suas malhas.

Será possível fazer uma ciência dos olhares? Tratá-los estatisticamente? Não tem jeito. Aí a proposta de uma tese sobre o olhar foi rejeitada sob a justa alegação de que não era científica. E não era mesmo. Mas o fato é que os olhares são reais! O estudo dos olhos é tarefa da ciência. E por isso eu sou agradecido. Neste momento, estou usando óculos para escrever. Sem eles, eu só veria borrões. Mas eu me dedico ao olhar, para que meus olhos sejam sábios. O olhar é uma música que os olhos tocam. Coisa de poeta...

São os poetas que falam sobre os olhares. (Eu escrevi "São os poetas que sabem sobre os olhares", mas logo corrigi. Todo mundo sabe sobre os olhares. Todo mundo observa atentamente os olhares, porque são eles, e não os globos oculares, que sinalizam a vida e, especialmente, o amor. Mas só os poetas sabem falar sobre eles.) Escrevo para mudar olhares. Isso não é ciência. É arte.

Há olhos perfeitos que são armas mortíferas. Jesus se referiu a esses olhos e sugeriu que deveriam ser arrancados. Os olhos, eles mesmos, são estúpidos. Eles não têm o poder para discriminar as coisas dignas de serem vistas das coisas não-dignas de serem vistas. Para eles, tanto faz ver um programa idiota de televisão ou uma tela de Johannes Vermeer. A capacidade de discriminar não pertence aos olhos. Pertence ao olhar. Mas isso exige uma luz interior.

Se os olhos não serviram como metáforas, falarei sobre pianos. Mais precisamente, sobre os pianos Steinway, os mais perfeitos, que estão nas grandes salas de concerto do mundo. Os pianos Steinway são produzidos de forma absolutamente rigorosa e científica. Tudo neles tem de ter a medida exata. Todos têm de ser absolutamente iguais, para que o

Silvana Poll 7

Rubem Alves

pianista não estranhe. Mas um piano, em si mesmo, é estúpido. Falta-lhes o poder de discriminação. Os pianos obedecem tanto ao toque de um macaco, de um louco ou do Nelson Freire. Os pianos não são fins em si mesmos. São ferramentas. São construídos para tornar possível a beleza da música.

Mas a beleza não é um objeto de conhecimento científico. Ninguém pode ser convencido a gostar de Bach por meio de raciocínios científicos. E não me consta que algum dos especialistas em construção de pianos da fábrica Steinway jamais tenha dado um concerto. Ciência eles têm. Mas falta-lhes a arte. Para que o piano produza beleza, há os pianistas. Mas os pianistas nada sabem sobre a ciência da construção dos pianos. O que eles sabem é tocar piano, coisa que não é científica... Os fabricantes de piano moram na caixa de ferramentas. Os pianistas, na caixa de brinquedos.

A diferença está entre "ciência" e "sapiência". Os teólogos medievais diziam que a ciência era uma serva da teologia. Parodiando, eu digo que a ciência é uma serva da sapiência. A ciência é fogo que aumenta o poder dos homens sobre o mundo. A sapiência usa o fogo da ciência para transformar o mundo em comida, objeto de deleite. Sábio é aquele que degusta. Mas, se o cozinheiro só conhecer os saberes que moram na caixa de ferramentas, é possível que o excesso de fogo queime a comida e, eventualmente, o próprio cozinheiro... Folha Sinapse, 28/09/2004

REVISTA NOVA ESCOLA – MAIO/2002

"Ensinar é uma tarefa mágica, capaz de mudar a cabeça das pessoas, bem diferente de apenas dar aula"

No escritório onde Rubem Alves trabalha como psicanalista e escreve seus livros e crônicas existem duas tabuletas de madeira penduradas nas portas. Na primeira lê-se a inscrição latina Tempus Fugit (o tempo passa). Formado em Filosofia pela Universidade de Princeton (EUA) e professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o inquieto autor e conferencista leva a sério a mensagem. A segunda inscrição, porém, revela outra faceta: Carpe Diem (aproveite o dia). Com efeito, apenas uma pessoa sem pressa, atenta aos detalhes, pode assombrar-se com uma casca vazia de caramujo e produzir textos que mesclam sabedoria, irreverência e lirismo. Quem já leu suas bem-traçadas linhas, em livros, crônicas (publicadas nos jornais Folha de S.Paulo e Correio Popular) ou palestras sente-se estranhamente sacudido. Como se fosse necessário e possível aproveitar melhor o tempo e o dia. Fiel às duas tabuletas, Rubem Alves recebeu o editor especial Ricardo Prado em Campinas para falar sobre a perda de tempo nos programas curriculares escolares e sobre como transformar pequenos assombros em aulas produtivas.

NOVA ESCOLA> Nós vivemos uma época de muita violência, com atentados e guerra lá fora e assassinatos e seqüestros aqui no país. Como o professor pode trabalhar essa questão?

Silvana Poll 7

Rubem Alves

Rubem Alves< Nossos professores são de matérias e a violência não faz parte de nenhum currículo; então, ele diz: "Isso não está no programa e nós precisamos cumpri-lo". Essa é uma das aberrações do nosso sistema educacional. Tudo vai depender da sensibilidade do profissional, de sua capacidade de pensar outras coisas que não sejam os conteúdos. Se ele for extremamente competente só na sua disciplina, será incapaz de responder às questões provocadas pela onda de violência. A grande pergunta é a seguinte: nós estamos formando educadores com competência para lidar com situações não previstas? Conhecer o programa é fácil; complicado é conhecer a vida.

NE> O senhor acha que os programas são muito limitadores?

Alves< Sim. Se alguém que leciona Matemática dissesse que sua cabeça só sabe pensar números estaria fazendo uma declaração de incompetência humana para viver. A Matemática é apenas uma pequena ferramenta para lidar com certos problemas. Sou a favor de acabar com os programas. Estou voltando de Alagoas, onde fiquei observando uns meninos lidando com pescadores. Andando pela praia comecei a pensar o currículo que eu montaria para estudar com aqueles garotos a estrutura das pedras, das conchas, as águas-vivas, os peixes, as redes, os barcos, o vento, a meteorologia. Se você chega lá e diz "hoje vamos estudar análise sintática", não tem nada a ver com a vida deles, eles não vão se interessar. Por esse mesmo motivo, sou contra laboratórios dentro de escolas. Na verdade, eles são uma boa maneira de enganar os pais, que ficam impressionados com os aparelhos, as luzes etc. Mas contam uma mentira, porque ciência não se faz dentro de um quartinho; se faz em todas as situações da vida, com cérebro e olho. Aquele monte de instrumentos e frascos só tem a função de melhorar o olho, mais nada! É preciso que os aprendizados estejam ligados às situações vividas, caso contrário tudo é esquecido.

"Nosso sistema de educação dá a faca e o queijo, mas não desperta a fome nas crianças"

NE> Os pais colocariam seus filhos num colégio com um modelo de ensino baseado em situações vividas, como o senhor defende?

Alves< Os pais, muitas vezes, são os piores inimigos da educação. A maioria não está interessada no aprendizado dos filhos. Só querem que eles passem no vestibular. Eu até compreendo, porque eles são movidos pela ilusão de que entrando na universidade seus filhos terão um diploma e isso vai garantir uma sobrevivência econômica digna — o que, aliás, não é verdade. O Ministério da Educação registra o aumento de matrículas nas universidades. Por quê? Porque educação é um negócio muito bom, todo mundo quer ter educação, ganhar dinheiro. Só que não há emprego para todo esse pessoal que está se formando. Veja o caso dos médicos aqui na região de Campinas, onde existem cursos na PUC Campinas, Unicamp, Universidade de Bragança e Jundiaí. Por ano, elas devem colocar no mercado uns 400 médicos — e eles não encontrarão trabalho.

NE> Voltando à questão da aprendizagem, como nós descartamos aquilo que é inútil?

Alves< Eu costumo brincar que o corpo é muito mais inteligente que a cabeça

Silvana Poll 7

Rubem Alves

e ele carrega duas caixas. Uma é a "caixa de ferramentas", com tudo de que precisamos para resolver questões práticas. Só carregamos as ferramentas necessárias para as situações que estamos vivendo. Por exemplo, é idiotice um sujeito levar um furador de gelo para o deserto. Então, o corpo seleciona o que é realmente útil. Na segunda caixa estão os brinquedos, tudo aquilo que, não sendo útil, nos dá prazer e alegria: música, poesia, literatura, pintura, culinária, a capacidade de contemplar a natureza, de identificar a beleza nos jardins. Essas coisas não servem para nada, mas compõem a felicidade humana. Quem não as tem é uma pessoa bruta, estúpida, sem sensibilidade. Tudo o que não é ferramenta nem brinquedo é esquecido. Isso faz parte da sabedoria do corpo.

NE> Nossos professores trabalham mais com a "caixa de ferramentas"?

Alves< Eles nem sequer fazem a seleção correta das ferramentas. Como a gente aprende a lidar com elas? Eu aprendi a manejar um canivete porque vi meu pai descascando uma laranja e tive inveja daquilo. Ele então me ensinou a fazer o mesmo. Quando você busca ferramentas como resposta para problemas vitais, elas são maravilhosas e necessárias — e você percebe que não pode viver sem elas. Na escola, porém, o aluno entra numa oficina e dizem para ele: "Vamos aprender o que é martelo, serrote e prego". As ferramentas são apresentadas de maneira abstrata e divorciada da vida e isso é chato.

NE> Se a "caixa de ferramentas" é mal trabalhada, que dizer da "caixa de brinquedos"? Ela poderia trazer mais alegria à aprendizagem?

Alves< Na realidade, nossa educação dá atenção praticamente zero à "caixa de brinquedos". Mas note que a alegria não está só nela. É uma delícia saber usar uma ferramenta. Quando a gente era pequeno achava maravilhoso bater um prego na madeira. Usar o martelo com competência dava alegria. Um cozinheiro quando corta uma cebola chora, mas se sente feliz porque está usando com competência uma ferramenta. Nietzsche dizia que todos nós temos desejo de poder e isso não significa querer ser um general ou o presidente da República. Ele está dizendo que o homem quer ter habilidades para controlar a vida. E quanto mais você domina o poder, mais pode viver. As ferramentas dão esse poder e, sendo assim, são fonte de alegria. Mas eu preciso desejar fazer a coisa. Se for obrigado, não terei prazer.

NE> Essa alegria nascida da manipulação do conhecimento pode ser também física ou é apenas intelectual?

Alves< O filósofo francês Gaston Bachelard tem um texto que diz que somos uma civilização ocular. Trabalhamos e conhecemos com os olhos, não com as mãos. Às vezes eu brinco que os pensamentos começam com as mãos, estão ligados àquilo que a gente faz. As escolas, porém, estão concentradas apenas em atividades cerebrais. Falam em construtivismo, mas não o praticam. Aliás, todo mundo acha que isso é uma novidade, mas o Giambattista Vico, um filósofo do século 16, já falava que só podemos conhecer aquilo que construímos, com as mãos ou com a cabeça. Se a questão é essa, eu devo construir não só intelectualmente mas também de forma prática. É isso que desenvolve o prazer de fazer as coisas.

"A escola insiste em estragar a leitura. Ela deve ser uma coisa solta, vagabunda, sem relatórios"

Silvana Poll 7

Rubem Alves

NE> Uma boa aula começaria, então, com um enigma?

Alves< Antes de mais nada é preciso seduzir. Eu posso iniciar uma aula mostrando uma casca vazia de caramujo. Normalmente ninguém presta atenção nela, mas é um assombro de engenharia. Minha função é fazer com que os alunos notem isso. Os gregos diziam que o pensamento começa quando a gente fica meio abobalhado diante de um objeto. Eles tinham até uma palavra para isso — thaumazein. Nesse sentido, a resposta é sim, pois aquele objeto representa um enigma. Você tem a mesma sensação de quando está diante de um mágico, ele faz uma coisa absurda e você quer saber como ele conseguiu aquilo. Com as coisas da vida é o mesmo. Ficamos curiosos para entender a geometria de um ovo ou como a aranha faz a teia. Estou me lembrando da Adélia Prado, que diz assim: "Não quero faca nem queijo, eu quero fome". É isso: a educação começa com a fome. Acontece que nossas escolas dão a faca e o queijo, mas não dão a fome para as crianças.

NE> O hábito da leitura é um "estimulante de apetite"?

Alves< Eu digo que a educação teria completado sua missão se conseguisse despertar o prazer de ler. Por que os alunos não gostam de leitura? Primeiro porque a escola faz questão de estragá-la. E a leitura deve ser uma coisa solta, vagabunda, sem ter de fazer relatório. Ler um texto só para responder a um questionário de compreensão é horrível, estraga tudo. Eu tenho aconselhado as prefeituras e as instituições a desenvolver concertos de leitura, como existem os de piano. Para um concerto, todos têm de saber o texto praticamente de cabeça e para isso têm de ensaiar. Lendo, aprendem a gostar.

NE> Certa vez o senhor fez uma metáfora entre culinária e texto, mostrando que tem gente que presta mais atenção no prato lascado do que no sabor da comida. Isso vale para os professores?

Alves< Essa coisa que eu contei do sujeito que prestava atenção na lasca do prato e não no sabor da comida é verdade. Tem uma pessoa aqui em Campinas cujo esporte preferido é escrever longas cartas para os cronistas de jornal corrigindo os erros de português. Para mim, a questão da grafia certa ou errada é acidental. Penso como o Patativa do Assaré, que diz: "Eu acho melhor falar errado dizendo a coisa certa do que falar certo dizendo a coisa errada". A grande preocupação de quem educa deve ser o aluno, não a disciplina. E ele deve estar atento não às palavras, mas ao movimento do pensamento da criança. Mas esse negócio de prestar atenção no vôo do pensamento me leva a outra questão. Nossas autoridades educacionais acham que vão melhorar a qualidade do ensino com cursos de capacitação que, sistematicamente, dão mais conhecimento para os professores. O que é preciso mudar é a cabeça deles. Nietzsche, meu filósofo favorito, dizia que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. Ou seja, o educador é parte de uma tarefa mágica, capaz de encantar crianças e adolescentes, o que é bem diferente de simplesmente dar aula. Dar aula é só dar alguma coisa. Ensinar é muito mais fascinante.

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Rubem Alves

ONDE MORA O AMOR

“Amor é a coisa mais alegre. / Amor é a coisa mais triste./ Por causa dele falo palavras como lanças. / Amor é a coisa mais alegre. / Amor é a coisa mais triste./ Amor é coisa que mais quero. / Por causa dele podem entalhar-me,/ sou de pedra sabão. / Alegre ou triste, / amor é a coisa que mais quero.” (Adélia Prado)

Concordo. Que coisa melhor poderá haver?

Mas o danado – coisa estranha – é como o vento. Uma hora vem, outra hora vai, e não há artes no mundo que o possam agarrar. Como dizia o Fernando Pessoa: “Leve, leve, muito leve, / um vento muito leve passa, / e vai-se, sempre muito leve...”

Onde é que mora para que possamos buscá-lo? Sei que mora em algum lugar, mas lá não se pode chegar...Até se pode, mas o jeito ficou desacreditado. E quase ninguém (acho que só os poetas) o procuram lá. Amor mora no país das palavras. Palavras – não são elas “pontes e arco-íris que se estendem sobre coisas eternamente separadas?” Melhor que uma ponte de palavras, arco-íris onde nunca se chega, é um anel da H. Stern. Di-amante. Dizem que são eternos. Por isso mesmo, coitados, não combinam com o amor, que “não é eterno. posto que é chama”. O que é eterno é como o vento. Diamantes ao contrário, são bons para cortar vidro, duros, impenetráveis. Valem pelo que custam.

Mas amor não custa nada. Quem pensa que o amor custa e compra anel da H. Stern é porque ou não o tem ou não entende o que ele é. Diamante no dedo, anel, está garantido, só se investe tanto dinheiro no que se ama, bom investimento, como casa e automóvel.

No dedo, para não sair nunca mais. Mas o amor não é assim. Vai e vem. E é por isso que dói tanto. Quando vem é a coisa mais alegre. Quando vai é a coisa mais triste. Pôr-de-sol. Mais se parece com uma gota de chuva numa folha de couve, o raio de sol se decompondo nas sete cores do arco-íris. Mas, tente pegá-la...Tente colocá-la no anel. No anel só ficam coisas duras e mortas. Quem pega perde. Vento engarrafado não serve para empinar pipas e nem faz o cabelo voar...Gota de chuva brilhando em folha de couve a gente só pode olhar e se extasiar. Alguns pensam que o casamento faz o milagre, que é capaz de por a gota de chuva no anel. Que ele consegue engaiolar o vento. E até inventaram esta palavra terrível que vamos repetindo sem nos lembrar do que significa: conjugal, com-jugo, sob a mesma canga, como parelha de bois amarrados...Tanta festa com vídeo, todos iguais, diferença só na cor das roupas, a noiva está linda (todas), salgadinhos e champanhe, discurso de padre que ninguém ouve, os fotógrafos, irreverentes, atrapalhando tudo, o importante é mostrar o álbum colorido, depois. Mas toda a mágica não adianta. A gota de chuva ri, o vento dança... O amor mora num outro lugar: as palavras. Por isso que o Milan Kundera diz que começamos a amar uma mulher no momento em que ligamos seu rosto a uma metáfora poética. Amamos uma pessoa pela poesia que vemos escrita no seu corpo. Bem diz a Adélia Prado que “erótica é a alma”. Estranho isso, porque se pensa que o amor mora é no corpo e até se dá o nome de “fazer amor” ã união de dois corpos. Mas o corpo é como a flauta, o órgão, o violão, o violino – coisa que só fica bonita quando dele sai música. Amamos um corpo pela música que nos faz ouvir. Conheço muito piano fechado, desafinado, importado, que ninguém sabe tocar, mas que dá um toque de elegância ao ambiente. Quem tem um piano deve ser sensível. E, no entanto, não se sabe distinguir um acorde maior de um menor.

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Rubem Alves

Amamos uma pessoa pelas palavras que a ouvimos dizer, por vezes em silêncio. Mesmo quando se está “fazendo amor” – muito bom, prazer enorme no corpo. Até os bichos sabem disso e ficam alucinados quando o corpo berra. Mas logo se esquecem depois do prazer. Certo: às vezes também nós somos bichos. Mas o prazer (curto) se transforma em alegria quando além do prazer que o corpo sente, a alma ouve as palavras que moram dentro dos olhos: “Como é bom que você existe. O universo inteiro fica luminoso, por sua causa. Vou chorar quando você se for. Terei saudades. Ficarei com um pedaço arrancado de mim. Será triste. Tristeza que não abandonarei por nada, pois ela marca a sua presença, que se foi.”. Não, não é o prazer que se sente no corpo, é a alegria que se sente na alma. A gente se sente bonito. O outro é um espelho onde nos contemplamos, e nos seus olhos a nossa imagem se transfigura, e é como se fôssemos deuses. Não há prazer no corpo que resista a um espelho mau. Mas, aí, sem que se saiba por que, a gota de chuva cai, o vento se vai, e ficamos de mãos vazias. E só nos resta esperar. Como esperamos que o ipê floresça de novo. As flores desapareceram, mas voltarão. Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. De alguma forma, a gota de chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressurreição. Na dialética do amor, a própria dialética do divino. Quem não pode suportar a dor da separação não está preparado para o amor. Porque o amor é algo que não se tem nunca. É evento de Graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta a alegria volta com ele. E sentimos que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro.

“VEJA COMO ESTÃO AGRADECIDAS...” Quando chovia depois de muito sol quente, meu pai gostava de ficar na janela da casa velha, lá em Minas, vendo as plantas no quintal, cada uma delas fazendo os gestos que sabia. Os tomateiros, hortelãs e manjericão, exalando seus perfumes. As folhas de couve e espinafre, brincando de juntar gotas d’água, grandes e brilhantes. As árvores e arbustos executando seus passos de dança, balançando as folhas, sob os pingos que caíam... Ele olhava, sorria, baforava o seu cachimbo e dizia: “Veja como estão agradecidas...” Como se cada ervilha se parecesse conosco e tivesse, secretamente, alegria de viver. Daí sua gratidão perfumada, brincalhona, dançarina, sob a chuva...Ele via nos movimentos das plantas no quintal, gestos litúrgicos, celebrações do puro prazer de se estar vivo. Sei que parece estranho. Nossos olhos foram desencantados, faz muito. Aquele poder mágico/ poético descrito por Blake, de ver o infinito num grão de areia, já não sabemos o que é. . As plantas de quintal deixaram de ser companheiras nossas, e as conhecemos apenas como coisas semi-mortas, cortadas, silenciosas, nos balcões de feira, nos sacos de plástico. Mas eu não consegui esquecer: continuo a viver no mundo mágico da minha infância. As plantas são as minhas irmãs e companheiras e amam a doçura da vida tanto quanto nós. Não sei se isso é verdade. Mas sei que é belo...E também a vida fica mais bonita; pensar que não estamos sozinhos, que não somos os únicos seres que importam,

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que este mundo maravilhoso em que vivemos é misterioso, todas as coisas vivas ligadas umas às outras, partes de um mesmo corpo... O meu corpo não termina na minha pele. Ele se estende pelo espaço sem fim. Lembro-me de Jorge Luís Borges dizendo que “vamos andando solidamente e de repente vemos um pôr-de-sol, e estamos perdidos de novo”. É porque o pôr-de-sol não é apenas uma coisa que aconteça lá fora. Ele é metáfora poética que mora em mim. E quando as suas cores vão se metamorfoseando pelo amarelo, o abóbora, o vermelho, o marrom, o roxo, até perderem-se na noite, é dentro de nós que isso acontece. Daí a tristeza. Tudo o que vemos são pedaços arrancados do nosso corpo. O ar, a água, a comida são extensões de nós mesmos. Mas isso não chega. Não basta viver. É preciso que haja beleza. Uma gota de orvalho não me faz viver ou morrer. Mas sua magia me enche de gratidão, e penso que valeu a pena o universo ter sido criado por causa daquele milagre fugaz. Olho os céus estrelados. Lá está Sirius, a estrela mais brilhante. Sua luz não me faz viver ou morrer. Afinal, ela está tão longe...Mas, ela desperta no meu corpo, pensamento sobre eternidades que já passaram, e sobre o tempo em que eu terei passado, e ela continuará a brilhar. Como é belo este mundo! Dizem que os poemas sagrados que o Criador, depois de terminada a sua obra, parou e, com os olhos extasiados, disse: “Que lindo...” É por isso que, às vezes, eu sinto uma terrível tristeza, uma vontade de não partir. Queria ser como a Fênix, ressurgir sempre das cinzas. Que não me consolem com promessas de imortalidade da alma. Sou um ser deste mundo. Meu corpo precisa dos cheiros, das cores, dos gostos, dos sons, das carícias...Poderia por acaso haver um caqui espiritual, ou um mar que não fosse água? Lembro-me de Cecília Meirelles: “Pergunto se este mundo existe, e se, depois que se navega, a algum lugar se chega...O que será, talvez, mais triste. Nem barca, nem gaivota: somente sobre-humanas companhias....” Não, não quero partir. Meu corpo pertence a este mundo. E é este o único sentido que encontro nesta linha metafórica da Páscoa, quando a vida volta da morte, teimosamente para o corpo. Não sei se é verdade. Mas o poema é belo e diz a verdade do meu desejo. Quero eternamente ressurgir para o encanto simples do mundo e poder continuar a repetir, para as plantas que brincam sob a chuva: “Veja como estão agradecidas...” Extraído do livro Tempus Fugit.

A COMPLICADA ARTE DE VER

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu

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olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as

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crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"... Folha sinapse, 26/10/2004

NELSON FREIRE

O poeta Manoel de Barros escreveu: "O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito". Escreveu bem. O normal da natureza é produzir coisas parecidas, diferentes umas das outras, mas não muito. Por vezes, entretanto, a sua mesmice engripa e aí surgem coisas assombrosas e inexplicáveis, como é o caso dos artistas. Não concordo com o Manoel de Barros. Minha explicação é outra. Acho que é coisa dos deuses... Mais parecidos com os deuses gregos que moravam no Olimpo que com o sizudo Deus cristão, vez por outra eles exageram no vinho, ficam bêbedos e nesse estado descem à terra e fazem amor com as mulheres. É assim que nascem espantos como Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, Monet, Mozart e Nelson Freire.

Para falar sobre o Nelson Freire é preciso voltar a uma pequena cidade do sul de Minas, Boa Esperança. Murilo Mendes, mineiro de Juiz de Fora, descreveu a sua cidade como a cidade dos pianos. Isso tanto é verdade que meus avós enviaram minha mãe adolescente para lá para se aperfeiçoar no dito instrumento. Sendo a cidade de muitos pianos seria de se esperar que muitos pianistas nascessem lá. Mas isso não aconteceu. Aconteceu com Boa Esperança, cidade onde nasci, desconhecida que ficou famosa por causa de uma canção que o Lamartine Babo escreveu para se curar de uma paixão que morreu antes de nascer: Serra da Boa Esperança. Boa Esperança não era cidade dos pianos. Pianos, lá, eram coisa rara.

Já contei o que aconteceu com o piano que minha mãe ganhou do meu avô, como presente de casamento. Importado da Europa, ele lá chegou nem sei por que meios, causando alvoroço na cidade. Contratou-se um marceneiro para proceder ao desencaixotamento do mesmo, sob os olhos dos curiosos que se ajuntaram à frente da casa. O marceneiro, imagino que ele teria ouvido que pianistas usam casacas quando vão tocar piano. Ele não deixou por menos. Compareceu vestido de fraque... Isso tudo para mostrar que pianos não eram o forte de Boa Esperança, embora houvesse alguns onde as mocinhas tocavam valsas românticas.

Mas os deuses, bêbados, perderam a noção dos lugares exatos, e o fato é que lá nasceu um menininho, filho temporão do farmacêutico José Freire e de da. Augusta, Nelson. Eles tinham um piano. Minha mãe, pianista, dava aulas para a Nelma, filha adolescente do casal. Pois aconteceu que, um dia, da. Augusta estava na cozinha e ouvia a Nelma tocar um exercício provavelmente do Czerny, errando sempre numa passagem mais complicada. Veio um silêncio. Da.Augusta pensou: a Nelma desanimou. Mas, de repente, o espanto: a Nelma tocou a passagem sem tropeçar! Da. Augusta foi à sala para

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parabenizá-la. Mas a Nelma não estava na sala. Quem estava ao piano era o Nelson, com 3 anos de idade.

Aos 4 anos ele deu o seu primeiro concerto. O maestro Fernandez, de Varginha, seu primeiro professor, ao cabo de seis meses disse que não tinha nada mais a ensinar ao menino. A família se mudou para o Rio, para que o Nelson pudesse estudar piano. Minha família também se mudara para o Rio, por outras razões. E eu queria ser pianista (pobre de mim, que não fora concebido por deuses bêbedos!). Tinha quinze anos. Estudava piano quatro horas por dia. Já fazia uns meses que eu estava tentando dominar a sonata Patética, de Beethoven. Eram três da tarde. Eu estava estudando piano. Toca a campainha. Eram Da. Augusta e um pirralho de sete anos, o Nelson. Entram. O Nelson não deu bola para ninguém. Viu a partitura aberta, assentou-se ao piano e tocou a sonata. Aí eu compreendi que os deuses são injustos! Bem que tem aquele salmo que diz: "Inútil te será levantar de madrugada e trabalhar o dia todo porque Deus, àqueles que ama, ele dá enquanto estão dormindo."

Tem o ditado que diz: "Deus ajuda a quem cedo madruga". Mentira. O ditado certo é: "Os que são amados por Deus não precisam madrugar." Concluí que Deus não me amava. Ele amava o Nelson. Inútil me seria madrugar e estudar o dia todo. Eu nunca seria um pianista. (Descobri depois que Deus me amava de outro jeito. Me ensinou a compor música com palavras...).

A vida de pessoas como o Nelson se recobre de mitos e lendas. Nunca se sabe ao certo... Pois vou contar esse incidente que deve ser verdadeiro. O Nelson, meninote, terminara um recital no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O público, de pé, aplaudia furiosamente. Em meio a todo aquele entusiasmo havia um senhor indiferente, que não batia palmas. Só olhava. O vizinho ficou indignado. "Mas o senhor não se entusiasma com esse menino?" Ao que ele respondeu: "Sou o pai dele..."

Ele era bem jovem ainda e já merecia uma página inteira da revista "TIME", nos Estados Unidos. O Nelson estava em Nova Iorque e iria tocar o concerto n. 1 de Brahms, com orquestra. No dia seguinte um outro pianista iria tocar o concerto n. 2, também de Brahms. São duas peças dificílimas. Pois o pianista do concerto n. 2 ficou doente. Em desespero o regente telefonou para o Nelson. Será que ele poderia substituir o outro pianista, com aviso de 24 horas? Ele tocou os dois concertos. Para quem não faz idéia, é como correr duas maratonas uma imediatamente depois da outra.

O Nelson faz coisas que outros pianistas não têm coragem de fazer. Um critico confessou que sentia grande ansiedade ao ouvi-lo interpretando os scherzos de Chopin. Ele ficava pensando: "Ele não vai conseguir, ele não vai conseguir!". E arrematou: "Mas ele consegue sempre..."

Ouvir o Nelson é, um primeiro lugar, uma experiência estética, de beleza. Depois, é uma experiência de assombro. Fico a pensar: Como é isso? Donde vem isso? Vale para ele o dito de Guimarães Rosa: "O que vou saber sem saber eu já sabia". O Nelson já nasceu sabendo. Os professores, na tradição de Sócrates, nada lhe ensinaram. Só foram parteiras que ajudaram a vir à luz o piano que já existia dentro dele. Ele e o piano são a mesma coisa. Eles fazem amor, brincam um com o outro, sem precisar se esforçar... Os pianos sorriem de felicidade quando ele se aproxima. Os estudos op. 25 de Chopin, o prelúdio de Bach-Siloti, a Totentanz de Liszt, o Carnaval de Schumann: a música flui tão fácil quanto a respiração.

Não funcionaria com violino, com violoncelo. Com violino ou violoncelo é provável que o Nelson fosse tão medíocre quanto eu, ao piano... Outros nasceram com violinos e

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violoncelos dentro deles. Para esses o piano não funcionaria. Que mistério é esse? Será que os pianos, violinos e violoncelos são seres que existem num outro mundo e que descem à terra dentro dos corpos de anjos escolhidos? Os artistas serão anjos que Deus, com dó da gente, nos envia para que experimentemos a alegria da beleza perfeita? Tenho, como um troféu, um CD com suas gravações de Schumann, que ele me enviou com uma dedicatória.

Mas estou triste. Ele deu um recital com a Martha Argerich, dois pianos, na Sala São Paulo, dias 20 e 21. Corri para comprar um ingresso. Mas já estava tudo vendido. Bobeei. O que vou fazer para consolar-me da minha frustração? Vou ficar sozinho, no meu apartamento, ouvindo sua gravação da sonata n. 3 de Chopin e dos estudos opus 25... Que bom que haja CDs!

PS: . O Nelson me enviou um bilhete de presente!. Você poderá comprar um DVD sobre o Nelson Freire na FNAC. Na verdade, dois DVDs que incluem a íntegra do concerto n. 2 de Rachmaninoff.. Acaba de sair o meu livro Os três reis, com ilustrações das bordadeiras de Brasília. Está muito bonito. . Estará brevemente nas livrarias meu novo livro Caindo na Real - Cinderela e Chapeuzinho Vermelho para o tempo atual. Pela Papirus. www.aprendiz.com.br

DAIANE DOS SANTOS

“Moça com brinco de pérolas” é um filme que está passando no cine Jaraguá. É sobre uma tela do pintor holandês Vermeer, do século XVII. Não tem mistério, mortes, suspense, ação rápida. Tudo é devagar. A vida é devagar. Depressa, só a morte. É uma aprendizagem de ver. Trata-se de uma estória provocada pela visão dessa tela singela, o rosto de uma jovem com um brinco de pérolas. Como disse Bachelard “o que se vê não pode se comparar ao que se imagina.” Vale, numa tela, a imaginação que ela provoca. Por isso muitas pessoas de vista perfeita nunca viram realmente um quadro, embora o tenham visto. Falta-lhes imaginação.O autor da estória viu a tela “Moça com brinco de pérolas” e sua imaginação voou. Se me der na telha vou publicar de novo a estória que inventei ao meditar sobre uma outra tela de Vermeer. “Mulher lendo uma carta”. As telas de Vermeer põem paz ma minha alma. Elas me reconduzem a um mundo de intimidade tranqüila, de sombra e luz, de cores quentes, que não existe mais. É nesse mundo que mora a minha alma. Acostumados à ação rápida é altamente provável que os jovens não consigam ficar até o fim. Eles vivem num mundo que não é o meu. Não são culpados. Fico triste por não poder compartilhar com eles o mundo da minha alma. Sugestão: Vá a uma livraria boa e compre um livro com telas de Vermeer da coleção “Taschen”. É barato. Quem sabe seu filho ou filha vai se encantar...

As Olimpíadas são um evento assombroso. Começa com aquela festa linda, comovente, festa de fraternidade e paz. Norte americanos e iraquianos desfilaram no mesmo desfile sem que o Bush tentasse matar os atletas do Iraque, como terroristas disfarçados. Ele estava jogando golfe. O grande símbolo: uma oliveira cheia de folhas! Dizem os poemas sagrados que a pomba que Noé soltou ao final do dilúvio voltou com um ramo de oliveira no bico. Que bom seria se aquela oliveira anunciasse o fim do dilúvio de loucuras bélicas que está destruindo o mundo! Algumas dessas festas ficam inesquecíveis. Lembro-me do ursinho que marcou as olimpíadas de Moscou. No encerramento o

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ursinho chorou: lágrimas escorriam pelo seu rosto. Sei muito bem que urso não tem rosto, urso tem é focinho, mas seria feio dizer “lágrimas escorriam pelo seu focinho”. Do jeito como as coisas vão, em breve se dirá que os bichos têm rosto e os homens têm focinho.

Aí chega o primeiro dia. Vai-se a fraternidade. Agora é briga. Briga pelo pódio. O pódio é motivo de briga. Todo pódio é motivo de briga. Nas Olimpíadas não há lugar para fraternidade porque fraternidade significa todo mundo junto brincando de roda e nas Olimpíadas não há cantigas de roda. No pódio só cabem três. Cada atleta quer mesmo é que o outro se dane. Ah! A suprema felicidade do velocista dos 100 metros quando sabe que o recordista baixou hospital acometido de uma súbita cólica renal, na véspera das finais. E as ginastas rezam, enquanto as adversárias executam os seus números: “Tomara que ela escorregue...”

Havia na UNICAMP um professor visitante na Faculdade de Educação Física, Manoel Sérgio, que era muito contra ao atletismo. Ele perguntava: “Você conhece algum atleta longevo?” E concluia: “Quem vive muito são essas velhinhas que se encontram ao fim da tarde para tomar chá com bolo...” Já viu cavalo treinando os 1.500 metros? Só quando dominados por homens. As Olimpíadas não são uma manifestação de saúde. São uma exaltação do desejo de ser o maior. Prova disso são os doppings. Os atletas sabem que a coisa faz mal à saúde. Pode matar. Mas uma morte prematura bem vale um lugar no pódio! Aquela máquina de correr, uma negra norte-americana, me esqueci de nome dela, só músculos, morreu subitamente de um ataque cardíaco. Assim não pensem que os atletas têm boa saúde, que praticam hábitos saudáveis de vida. Lembram-se da corredora suíça, ao final da maratona? Era a imagem de um corpo torturado pela dor. Penso nas nadadoras. Elas me assustam. Não se parecem mulheres. Aqueles ombros enormes! Acho que meus braços não conseguiriam abraçar uma delas. E nem eu quereria. E acho que nem ela quereria. Abraço é perda de tempo. É preciso aproveitar o tempo lutando contra a água. Inimigas da água. Isso mesmo. Porque uma pessoa que passa dez anos de sua vida treinando seis horas por dia não por prazer mas para sair da piscina um centésimo de segundo na frente da marca olímpica só pode ter ódio da água. A água é o inimigo a ser vencido. Compare com as crianças. Elas amam a água. Elas não querem sair da água. A água é sua companheira de brincadeiras. As nadadoras, ao contrário, não brincam com a água. Lutam contra ela. Tocada a borda da piscina, para onde olham as nadadoras? Elas olham para o placar onde aparece o tempo. É isso. É o tempo que elas amam. Quanto mais depressa melhor! O perigoso é que elas apliquem essa doideira em outras coisas da vida onde o que vale é “quanto mais devagar melhor”.

Estou velho. Sofro do mal dos velhos: repito coisas que já disse. Por vezes repito por esquecimento. Outras vezes porque quero repetir. Contador de piada repete piada sabendo que já a contou dezenas de vezes. No grupo de poesia que se reúne comigo às 3as. feiras repetimos poemas porque eles são belos. Nas festas de aniversário repetimos o chatíssimo “parabéns prá você” e estupidamente sopramos as velinhas, símbolos da morte. Pois vela que se apaga não é símbolo da morte? E aí me vieram alguns badulaques à cabeça. Suspeitei que já os tivesse mostrado. Conferi. De fato, eu já os mostrei. Mas vou mostrar de novo porque eles se aplicam bem ao momento olímpico que estamos vivendo.

Há um famosíssimo, badaladíssimo conferencista que anuncia suas conferências com a afirmação: “Seu lugar é o pódio”. Esse é o sonho de todo atleta que vai para as Olimpíadas. Mas logo ele descobre que a verdade não é aquela anunciada pelo conferencista mas uma outra, muito mais sóbria, enunciada por Jesus: “Muitos são os chamados mas poucos os escolhidos.” No pódio só há lugar para três. Os outros atletas

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não aparecem. Na vida também é assim. Se o lugar de todo mundo fosse o pódio, se todos seguissem os conselhos do dito conferencista, todos ganhariam a medalha de ouro. Já pensaram nisso? Todos com medalhas de ouro no peito? Tantos pódios quantos são os atletas? Que coisa maravilhosa nas Olimpíadas! Que coisa maravilhosa na vida! Todos os problemas do país estariam resolvidos. Os pobres andariam de BMW e os famintos comeriam camarão na moranga. Governo burro esse que temos! Por que não nomeia o dito conferencista como Ministro da Educação para que todos subam no pódio? E não é só ele que anuncia o evangelho do pódio. Tem uma seita, entre as milhares que prometem milagres que diz: “Você está destinado ao sucesso”. Com Jesus o primeiro lugar nas Olimpíadas está garantido! E na vida! Teologia maravilhosa essa: Jesus Cristo morreu na cruz para que nós tivéssemos sucesso! Para que ganhássemos a medalha de ouro! Corolário: se você não está no pódio, se você não tem sucesso é porque você está longe de Deus. Pecador miserável! Arrepende-te dos teus pecados, entrega o teu coração a Jesus, não para ir para os céus, mas para ir para o pódio...

Mas há um jeito de todo mundo ter medalha e já o escrevi aqui. A idéia foi de Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, que todo mundo leu e não prestou atenção. Porque o verdadeiro ato da leitura não está na leitura mas na ruminação. É preciso ler bovinamente, ruminantemente. Tratava-se de uma corrida. Alice queria saber as regras. O Pássaro Dodo explicou: “Primeiro marca-se o caminho da corrida, num tipo de círculo, ( a forma exata não tem importância), e então os participantes são todos colocados em lugares diferentes, ao longo do caminho, aqui e ali. Não tem nada de “um, dois, três, já”. Eles começam a correr quando lhes apetece, ou abandonam quando querem, o que torna difícil dizer quando a corrida termina.” Assim a corrida começou. Depois que haviam corrido por mais ou menos meia hora o Pássaro Dodo gritou: “A corrida terminou!” Todos se reuniram ao redor de Dodo e perguntaram: “Quem ganhou?” “Todos ganharam”, disse Dodo. E todos devem ganhar prêmios.” (Correio Popular, Caderno C, 21/08/2004.)

RUBEM ALVES ENTREVISTA MAX NUMA CERVEJARIA

Pensei, inicialmente, que uma variação sobre o prazer, a ser composta por economistas, banqueiros e homens de negócios, deveria ser executada tendo como instrumento musical as caixas registradoras, das antigas e das modernas. As antigas, por seus sons metálicos e suas teclas que nos fazem lembrar de órgãos, cravos e pianos. Também as manivelas, que um lutier habilidoso poderia transformar numa "viela de roda", instrumento medieval que não mais se usa, mas que pode ser visto em museus e em telas de Brueghel. As caixas registradoras modernas e seus sons eletrônicos fariam inusitados duetos com as vielas medievais, atestando assim o fato de que o dinheiro possui os atributos da divindade: ignora o tempo, é eterno. Tudo isso acompanhado por pandeiros, cujos sons fazem lembrar o tilintar do dinheiro... E os ritmos seriam sincopados e rápidos, como contraponto às extra-sístoles e taquicardias que marcam o mundo das bolsas de valores.

Pensei que isso estaria em harmonia com a estética dos economistas. A maioria, de fato, concordou comigo. Mas houve um que protestou: era um velho de cabeleira e barba imensas, que fazia lembrar Walt Whitman. Encontrei-o, por acaso, assentado sozinho à mesa de um bar que eu freqüentava. Bebia cerveja e fumava charuto. O fato de estar sozinho sugeria que se tratava, provavelmente, de um intelectual decadente ou aposentado. Assentei-me à sua mesa. Ele começou a falar.

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Contou-me que seus discípulos o haviam abandonado. É comum que os filhos venham a se envergonhar dos pais. Isso acontece quando os pais, com o passar dos anos, vão ficando velhos. Com a velhice vem a verdade: com o enfraquecimento dos mecanismos de censura os pais, outrora recatados e pudicos, começam a revelar um erotismo jamais imaginado, para vergonha dos filhos. Velhos não devem ter erotismo. Os filhos, então, não mais querem saber da sua companhia.

Às vezes acontece o contrário: os filhos se envergonham daquilo que os pais já foram, e tratam de separar o seu presente respeitável do seu passado duvidoso. Alguns chegam ao extremo de queimar arquivos fotográficos.

" - Você está enganado sobre a economia", ele me disse em voz baixa. Parecia temer que alguém o ouvisse, como se estivesse dizendo uma heresia. " A economia não é a ciência das caixas registradoras, do dinheiro. Sei que, para muitos, é isso que ela é. Mas para mim é uma outra coisa: é a ciência do prazer. Dizer que a economia é a ciência do dinheiro é o mesmo que dizer que a culinária é a ciência das panelas. Alguns pensam que sou um economista como os outros porque dediquei grande parte da minha vida ao estudo do maior jogo de dinheiro jamais havido na história. Mas, se eu o fiz, foi porque eu queria decifrar os descaminhos do prazer. Estudei a panela para saber o que estava acontecendo de errado com a comida. Eu acho que o objetivo da vida é o prazer. Isto está inscrito em nossos próprios corpos. Nossos corpos não são máquinas produtivas - não pertencem inteiros a " Feira das Utilidades". Sim, é claro, trabalhamos, produzimos. Mas somos diferentes dos animais. “Os animais constroem somente de acordo com as padrões e necessidades da espécie. Os homens constroem também de acordo com as leis da beleza (Marx’s concept of man, Erich Fromm, New York, Frederick Ungar Publishing Co., 1964, “Manuscritos econômicos e filosóficos”, p. 102 ).

Gostamos dos livros, mesmo quando não derivamos de sua leitura nenhum resultado prático. O corpo contém uma certa exigência de "prazer inútil” – sem valor econômico. Desde jovem sonhei com uma condição em que o trabalho, à semelhança daquilo que acontece com os artistas, pudesse ser um motivo de prazer. O trabalho não apenas como meio de vida, mas o trabalho como brinquedo. As crianças brincam por puro prazer. Imaginava uma situação em que os homens, ao terminar o seu trabalho, sorririam de felicidade, e veriam o seu próprio rosto refletido em sua obra, da mesma forma como Narciso via o seu rosto refletido na água da fonte. ( Ibid. p.102 )

Veja, por exemplo, os sentidos! Que prazeres extraordinários eles nos dão! É verdade que em sua condição bruta os sentidos somente atendem às necessidades elementares da sobrevivência. Um homem faminto não é capaz de fazer distinções sutis entre gostos refinados: angu ou lagosta - é tudo a mesma coisa. Saindo dessa condição bruta de existência, entretanto, os sentidos se refinam, desenvolvem-se, tornam-se sensíveis a prazeres que até então lhes eram desconhecidos. O grande trabalho da história, até agora, tem sido a educação dos sentidos. A história impulsiona o corpo humano na direção de uma exuberância dos sentidos cada vez maior. A história conspira para que os homens sejam cada vez mais felizes. “O cultivo dos cinco sentido é o trabalho de toda a história passada” . ( Ibid. p. 134 )

Eu entendo que a economia é a ciência dos meios necessários à realização erótica dos homens. Como tal, ela pertence à "Feira das Utilidades". A economia é um instrumento para que os homens cheguem à " Feira da Fruição".

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O que atormenta o meu pensamento”, ele continuou, “ é uma contradição: a economia explica a riqueza das nações. Mas ela não consegue dar uma explicação aceitável para a miséria e a pobreza dos homens.

Meu pensamento oscilava: num momento eu sonhava os sonhos mais loucos e utópicos: eram esses sonhos que eu queria ver realizados. Imaginava que os homens, um dia, conseguiriam arrebentar as correntes que os prendiam, e que podereiam então colher a flor viva da vida, , tão próxima das suas mãos. (Que ninguém nos ouça: eu procurava o caminho de volta ao Paraiso. Como poderia eu me esquecer do grande mito com que a Torah, livro sagrado do meu povo, se inicia?)

Num outro momento meu pensamento deixava de sonhar e se voltava para as condições materiais da produção da história. Não que eu me esquecesse dos meus sonhos. Eu procurava a ciência como meio para a sua realização. Estudava as panelas e o fogo por amor à moqueca... Voltei-me para a história por acreditar que, sendo nela que a pobreza e a miséria dos homens era produzida, seria nela que elas seriam superadas. Se os problemas dos homens são criados na história, teria de ser nela que eles seriam resolvidos. Para se desfazer o nó é preciso saber como ele foi produzido. A atividade dos homens para produzir a sua vida - a isso eu dei o nome de praxis. Dei-me conta de que a teologia e as religiões, ao pregar que a história acontece pela atividade de Deus, impedia que os homens a compreendessem como resultado de sua própria atividade. As religiões, assim, têm um duplo efeito. O primeiro é a paralisia da inteligência dos homens. Se tudo acontece pela vontade de Deus então é inútil tentar entender a história como produto das ações dos homens. O segundo é a paralisia moral. Se tudo acontece pela vontade de Deus, tudo é sagrado. E eu via os miseráveis operários sacralizando a sua miséria com o dito conformado: “ Deus quis...”

A história não se faz só com sonhos. Quem sonha com um banquete há de dominar a ciência das panelas e dos fogos. Tornei-me inimigo dos sonhadores ingênuos que pensavam que bastaria que os homens mudassem as suas idéias para que o mundo mudasse também. Moquecas não se fazem só com idéias e intenções. Quem quer mudar o mundo tem de ser um especialista no uso do fogo. Na história, esse uso do fogo tem o nome de política...

Não estranhe o meu uso das imagens culinárias. Só me atrevo a fazer uso delas longe dos intelectuais, nessa mesa de bar... Em um contexto acadêmico eles diriam que eu devo estar bêbado ou senil. Aqui eu posso me dar ao luxo de falar como um poeta. Aprendi muito com eles. Durante um certo tempo, inclusive, eu convivi com um intelectual maldito ( ah! como os malditos são maravilhosos!). Sua filosofia tinha a beleza da poesia. Lê-lo era um deleite. O insólito dos seus conceitos se misturava com a beleza das suas imagens. Foi ele que chamou a minha atenção para a importância dos sentidos. O seu nome já tinha algo de culinário, fogo, "Ribeiro de Fogo", Feuer / bach. E culinária também era a sua metafísica, pois que se comprazia em dizer que " somos o que comemos". Na minha juventude fui seu discípulo, e sob a sua influência escrevi textos saborosos... O que, para os intelectuais, é sempre um pecado. Eles pensam que a verdade deve ser insípida.

Essa relação, depois que envelheci, passou a ser um motivo de embaraço para os meus seguidores. Causava-lhes mal-estar imaginar que eu havia sido influenciado por ele. Trataram, então, de queimar o arquivo. Desqualificaram os textos que eu escrevera, sob a alegação de que, ao escrevê-los, eu era jovem demais, imaturo, ainda não descobrira o caminho da ciência, e falava com as palavras imprecisas da filosofia. Espalharam, então, que tal fase perturbada havia terminado com uma tal

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"cesura epistemológica" expressão que, traduzida, quer dizer: de repente, como uma cigarra que passa por uma metamorfose e deixa a casca, ele deixou a sua casca filosófica em algum lugar e se pôs a voar com as asas da ciência. Era de um jeito, ficou de outro. Falava sobre os homens, passou a falar sobre estruturas. Era humanista, virou estruturalista. E chegaram mesmo a dizer que, para ler os meus escritos, era preciso ter sempre em mente um rigoroso anti-humanismo metodológico. Estruturalista! Sim, é verdade que o capital funciona como uma estrutura. Como se fosse uma máquina, com suas leis próprias. Mas se eu assim o estudei, é porque eu queria desvendar o segredo dessa cozinha perversa onde os cozinheiros ficavam sempre com fome.

Com essas palavras ele bebeu o que restava na caneca, enxugou a espuma do bigode, pediu outra cerveja, reacendeu o charuto que se apagara, enfiou a mão no bolso do paletó zurrado, tirou de lá um livrinho e me deu com estas palavras: " A alegria é a prova dos nove. Esse livrinho fala sobre isso... “ Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844: esse era o título. Autor: Karl Marx.

Fez-se silêncio. Comecei a lê-lo. À medida que virava as páginas eu não conseguia evitar as traduções culinárias que o texto me sugeria. Era como se a conversa não tivesse acabado, como se ele ainda continuasse ali, ao meu lado, falando.

Primeiro manuscrito: " O Trabalho Alienado": " Mas que história é esta? O trabalhador faz a comida e é um outro que come tudo, só lhe sobrando a raspa da panela?"

Segundo manuscrito: “Propriedade Privada”: " Mas claro! Tem de ser assim. O operário come a raspa porque ele não é o dono da panela. Quem é dono come a comida. Quem não é dono come o que sobra."

Terceiro manuscrito: "Que perversa transformação esta cozinha opera sobre os que comem da sua comida! Os homens são roubados dos seus sentidos, perdem a capacidade de sentir prazer!"

Perguntem à Babette qual é o fim da culinária... Ela responderá: " O prazer, a alegria!" E, para dar prazer e alegria ela gastou tudo o que tinha. Ficou mais pobre de dinheiro. Ficou mais rica humanamente!

Perguntem ao dono do restaurante qual é o fim da culinária. Ele responderá: " O lucro". Claro que mesmo nos restaurantes capitalistas se serve o prazer dos sentidos. Mas a mola propulsora do "negócio" não é o prazer da comida; é o prazer da caixa registradora. Ah! Como é maravilhosa aos ouvidos do proprietário a sua música! Vá a um banco, vá a uma bolsa de valores! Lá, por acaso se fala sobre os prazeres gastronômicos? De forma alguma. Lá se fala sobre o prazer que se tem num jogo abstrato que se joga sobre a lógica do verbo "ter".

Aí ele interrompeu a minha leitura e continuou.

“Veja: eu não estou dizendo que os indivíduos não mais sintam prazer. Há, no capitalismo, prazeres refinados, e muitos. Estou dizendo outra coisa: que dentro da sua lógica, dentro da "razão capitalista", os prazeres não contam. Eles não são tomados em consideração, não são pensados como ponto de chegada da viagem. Para o capitalismo o objetivo da viagem é um só: o lucro. E, assim, dentro da lógica do sistema, os restaurantes e as fábricas de armas estão no mesmo nível, são peões do

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mesmo jogo de xadrez. Ninguém, no pregão da bolsa de valores, se pergunta sobre quais ações estão ligadas às empresas que dão mais prazer. Quem fizer isso logo ficará pobre. A lógica do jogo do dinheiro exige que os prazeres dos sentidos sejam desconsiderados. Esse jogo perverso nos tornou " tão estúpidos e parciais que somente consideramos nosso um objeto quando o possuimos, quando ele é utilizado de alguma forma. Assim, todos os sentidos físicos e espirituais são substituidos pela simples alienação de todos esses sentidos, ou seja, pelo sentido da posse(...) Quanto menos você comer, beber, comprar livros, for ao teatro, aos bailes, às boates, quanto menos você pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, tanto mais você será capaz de economizar e tanto maior será o seu tesouro. Quanto menos você for, tanto mais você terá..." ( Ibid. p. 132 ).

O capitalismo só conhece as coisas passíveis de serem transformadas em mercadorias, isto é, coisas que podem ser fabricadas, vendidas e compradas. Mas o prazer não é dado automaticamente pelo ter. Posso ter o mais fantástico aparelho de som e a maior coleção de CDs. O prazer dependerá de uma qualidade espiritual minha, do meu ser, uma sensibilidade para a música, que não pode ser comprada por dinheiro. É preciso que os sentidos sejam educados! O prazer e a alegria crescem de uma relação erótica com o objeto, isso que se chama amor. E essa relação não pode ser comprada. Cresce de dentro.

O espírito do capitalismo dominou de tal forma a cabeça das pessoas que até mesmo aqueles que se dizem meus discípulos foram enganados. Veja o caso da educação. Os professores de "esquerda" têm medo dessa palavra "amor", e a julgam babaquice romântica. De fato, "amor" é coisa que a ciência não consegue pensar. Preferem, os professores, considerar-se "trabalhadores" que ganham pelas "mercadorias intelectuais" que produzem de forma competente, sob a forma de um saber. Como professor produzo tal mercadoria que vale tanto. Ignoram que isso é o que sempre detestei! Ao assim pensarem o ensino, eles o inserem na perversa lógica dos "valores de troca". Valor de troca é uma "quantidade abstrata" que mora tanto num revolver quanto num jantar, e que permite essa equação horrenda, base de todo o jogo econômico: "X" jantares = "Y" revólveres. O prazer e a morte são a mesma coisa...

E em qual escola se gasta tempo na educação dos sentidos? Bobagem. Isso é coisa da " Feira da Fruição" - não circula no sistema. O que importa é a " Feira das Utilidades" - seus saberes úteis, transformáveis em mercadoria, passíveis de circular no mercado de trabalho. Por que gastar tempo no desenvolvimento das inúteis potencialidades do ser, na educação dos sentidos para os prazeres inúteis, insignificante do ponto de vista econômico, se os corpos podem ser transformados em unidades de produção. O que é um profissional? É um corpo, outrora portador de sentidos, que se transformou em ferramenta, utilidade. " Quanto menos você for, mais você terá..."

Mas o que me entristece é que meus discípulos não entenderam nada do que eu disse. Acharam que prazer é coisa burguesa - como se os trabalhadores não gostassem de comida boa, de cerveja e de transar. Droga! Ficaram mais próximos do papa do que de mim. Meus discípulos ficaram com medo de que eu fosse considerado um babaca romântico. Transformaram-me num rigoroso economista. Um economista, de fato, vale muito mais como "mercadoria" que um poeta romântico. Num "curriculum vitae" se pode escrever: "Profissão: economista". Mas só um louco colocaria " poeta romântico". Românticos não são mercadorias, não arranjam empregos... Estudei a panela por causa da moqueca. Estudei o violão por causa da música. Estudei o trabalho por causa da felicidade. Estudei o capitalismo por causa do prazer.

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Aquela sua idéia de tocar a economia com caixas registradoras e pandeiro, música tocada em movimentos rápidos e ritmos sincopados, a performance acontecendo em bancos e bolsas de valores: isso não tem nada a ver comigo. O dinheiro tem de ser subordinado ao prazer, a utilidade tem de estar a serviço da alegria. Será que isso é possível? Ou será só um sonho? Bem sei que os experimentos fracassaram. E nem poderia ser de outra forma. Os novos cozinheiros não me entenderam: só trocaram o formato das panelas e o livro de receitas, substituindo o poder abstrato do dinheiro pelo poder sem face da burocracia. Minha esperanca era de que nesse caldeirão chamado história, fervente ao fogo da dialética, se consumasse o preparo do prato escatológico do prazer: a educação dos sentidos e a produção do banquete, para todos.

O sonho não morreu. Ele continuará, para sempre. Pensei que ele morasse no coração da história. Pensei que a história tivesse coração. Talvez eu tivesse me enganado. Os sonhos só moram no coração dos homens. Somos incuravelmente românticos. Os homens haverão sempre de sonhar com o prazer e a felicidade.

Por isso, eu preferiria que a "variação" que me cabe fosse tocada suavemente, ao violino, como fundo para um jantar à luz das velas, onde o amor e o prazer são servidos gratuitamente, e o corpo, embriagado de alegria, se pusesse a sonhar... Os membros do partido e as esquerdas vão me reprovar, e dizer que isso não combina com minha conhecida solidariedade operária. Eles não entendem. Pensam que ser solidário com pobre é gostar de pobreza. Ser solidário com pobre é sofrer a pobreza deles e sonhar sonhos de prazer e riqueza. Os sonhos são sempre a subversão da realidade. Trabalhador não sonha com angú e feijão - não é preciso sonhar, para isto basta abrir os olhos. Trabalhador sonha é com coisas bonitas e gostosas. Bem que gostariam de comer o que comem os patrões, e não só a raspa da panela. Está lá dito pelo Vinícius, no "Operário em Construção". Porque, como disse muito bem o Joãozinho Trinta, "quem gosta de pobreza é intelectual. Pobre mesmo, gosta é de riqueza..."

Ditas essas palavras ele esvaziou a caneca de cerveja, apagou o charuto fedorento no cinzeiro, e se foi.

RUBEM ALVES ENTREVISTA NIETZSCHE TOCANDO FLAUTA

“O meu nome é Zaratustra, e me espanto de que você me tenha pedido para tocar uma "variação filosófica" na minha flauta. Com certeza você não me conhece. Sou músico. Mas a música que toco não agrada aos filósofos. Basta que eu comece a tocar para que os filósofos comecem a correr.

A flauta que tenho na mão é a flauta de Dionísio, o deus grego da alegria. Ela tem poderes mágicos, semelhantes aos da flauta do flautista de Hamelin. Quem ouve a sua música fica alegre e se põe a dançar. (FN III, p.(II) 1146; Ecce Homo, " O Caso Wagner", #1).

Por isso os filósofos correm: eles têm medo de que eu, com minha música, os faça dançar. A dança é o que mais os amedronte. Porque dança é coisa que se faz com o corpo inteiro. Mas os filósofos não têm corpo. Eles só têm cabeça e olhos. É dos seus olhos que

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nascem os seus pensamentos. Não sabendo dançar, nem mesmo pensar eles sabem. Porque pensar é dançar com os pensamentos. Os pensamentos dos filósofos não dançam. Eles marcham, como soldados em ordem unida.

Por muitos séculos esta flauta esteve enterrada. Desde Sócrates, quando a razão triunfou sobre o instinto. Foi nesse momento, quando a flauta de Dionísio foi enterrada, que a decadência do mundo grego começou. (FN-III (II) p. 1109, Ecce Homo, Prefácio, 2 ).

Essa flauta tem o poder mágico de acordar o instinto. Aqui já aparece o meu conflito com os filósofos: falei em magia. Para os filósofos magia é superstição. Os filósofos não acreditam que as palavras tenham o poder de criar. As palavras são, para eles, apenas "ferramentas" na oficina da razão. Eles "usam" as palavras. Suas palavras pertencem ao mundo da "utilidade". Mas magia é, precisamente, criar pelo poder da palavra.

Em oposição aos filósofos, as palavras para mim são música. Eu as uso como quem toca um instrumento, porque elas são belas, porque elas são diáfanas pontes coloridas sobre coisas eternamente separadas, pelo prazer que me dão. As palavras fazem amor. Minhas palavras pertencem ao mundo do deleite, da fruição.

Faço isso não só por puro prazer, mas porque acredito que a beleza e a alegria são divinas. São elas que dão ao homem o poder de contemplar e viver a tragédia sem serem destruídos por ela. Foi assim que os gregos triunfaram sobre a tragédia: eles a transformaram em beleza. E ainda há alguns que me acusam de impiedade, de não acreditar em Deus. Como dizer isso, se a beleza existe? Acredito em deus, sim, num deus que dança...

*[ “Eu poderia crer somente num deus que dançasse. E quando vi o meu demônio eu o encontrei sério, rigoroso, profundo e solene: era o espírito da gravidade – por ele todas as coisas afundam. Não se mata por meio do ódio. Mata-se por meio do riso. Venham, vamos matar o espírito de gravidade! Agora estou leve! Agora eu vôo! Agora um deus dança através do meu corpo.” ( FN II ( II ) p.307 , Assim falou Zaratustra, “Sobre o ler e o escrever” ]*

É verdade que, vez por outra, eu uso as palavras como ferramentas, por vezes como diapasão, para testar a afinação, às vezes como fogo, havendo alguns que chegaram a me acusar de incendiário, como martelos e marretas, para destruir e até mesmo como pimenta....

Mas, se faço isso, eu o faço da mesma forma como o cozinheiro usa a faca e os fogos, da mesma forma como o escultor usa o martelo e o cinzel, da mesma forma como o jardineiro usa as cavadeiras e as enxadas, da mesma forma como o parteiro usa os forceps: para que uma coisa nova, bela e alegre possa nascer. Todo criador tem de ser um destruidor.

*[ “Entre as condições para a tarefa dionisíca estão, de uma forma decisiva, a dureza do martelo, a alegria mesmo em destruir. ... Todos os criadores são duros... ( FN III (II), p. 1140. Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, #8) ]*

Não é assim que os filósofos usam as palavras. A oficina deles só tem instrumentos de ótica: óculos dos mais variados tipos, lentes, microscópios, telescópios, prismas, velas, lanternas, lâmpadas, holofotes, e especialmente espelhos. Muitos espelhos. Os filósofos desejam ser espelhos, espelhos de cem olhos. Todos os outros instrumentos existem por causa dos espelhos. A filosofia deseja ser um reflexo, um reflexo apenas. A isso os filósofos dão o nome de verdade. ( PN II ( II ) p. 652, Assim falou Zaratustra ).

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Stendhal descreveu com precisão o caráter do filósofo. "Para se ser um bom filósofo", ele disse, "é preciso ser seco, claro, sem ilusões. Um banqueiro que fez fortuna tem uma parte do caráter exigido para se fazer descobertas em filosofia, ou seja, para ver com clareza dentro daquilo que é". ( FN-III, (II)p. 603; Além do Bem e do Mal, 40).

Houve um outro pensador que disse que a única coisa que os filósofos profissionais queriam era interpretar o mundo. Ora, interpretar é refletir, produzir uma imagem. Mas até mesmo as mulheres vaidosas que passam o dia contemplando a sua imagem nos espelhos o fazem para ver se há formas de ficarem mais belas. De forma alguma se conformariam com uma imagem feia. O mundo pede para ser transformado.

O deserto deseja ser um jardim. "Faça amor comigo!", diz o mundo. A que o filósofo responde: "Isso eu não posso. Para isso falta-me o órgão apropriado... Mas trago comigo uma câmera fotográfica. Que tal, ao invés do amor, uma foto colorida?"

Os filósofos desejam ver. Mas a minha alma é de músico. O mundo, para mim, é um instrumento cósmico onde dormem as mais belas melodias. Os filósofos dizem que estão em busca da verdade. Mas a verdade, para eles, é o que é. Mas aquilo que é não pode não pode ser a verdade. A verdade do piano não é o piano: são as músicas que ele pode tocar. A verdade é o possível. Onde estava a sonata antes de ser tocada no piano? Estava no sonho do compositor. A verdade do universo está nos corações dos homens, no lugar dos seus sonhos. " Todos aqueles que tiveram de criar tiveram também os seus sonhos proféticos e sinais astrais – e fé na fé." Quem só reflete, como espelho, sem sonhar, é estéril. ( FN – II – (II), p. 378) Em que lugar do mundo se encontram as peças de Schumann, para serem refletidas? Em lugar algum. Daí minha tristeza, ao contemplar os meus contemporâneos. Escrevi, para eles, palavras amargas e tristes.

*[ “Esta, na verdade, é a amargura das minhas entranhas, que eu não posso suportar vocês nem nús e nem vestidos, vocês, homens de hoje. Tudo o que é sinistro no futuro e tudo o que jamais fez pássaros fugitivos tremer é certamente mais confortável e familiar que a sua “realidade”. Pois assim vocês falam: “ Somos reais, inteiramente, sem crenças ou superstições.” E assim vocês estufam os peitos - mas eles são ôcos! (...). Nos seus espíritos todas as eras tagarelam umas contra as outras; mas os sonhos e a tagarelice de todas as eras são mais reais que a sua vigília. Vocês são estéreis: essa é a razão por que vocês não têm fé. Porque todos os que tiveram de criar também tiveram seus sonhos proféticos e sinais astrais - e tiveram fé na fé. Vocês são portas semi-abertas onde os coveiros esperam. E essa é a sua realidade: “ Tudo deve perecer”.]*

A evidência de que o possível foi atingido, ainda que num momento fugaz, está na experiência de alegria. Na alegria o corpo, encantado, está dizendo: " É isso mesmo! Assim é, assim deve ser!"*

Tive essa experiência muitas vezes. Com a flauta de Dionísio eu desejo acordar o possível, fazer o mundo vibrar, como música. Não me basta ver sem tocar. Quero sentir o mundo estremecer de amor, ao sentir o toque mágico das minhas palavras. É isso que me separa dos filósofos: sou um amante. Tenho uma caso de amor com o universo...

Eu toco a flauta de Dionísio para acordar o instinto. Instinto é a fonte transbordante de vida que borbulha dentro do corpo. Foi aí, nessa fonte de vida, dentro do corpo que encontrei a flauta de Dionísio.

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Mas não salte para conclusões precipitadas, imaginando que eu pertenço ao rebanho dos psicanalistas. É verdade que também eles descobriram os instintos. Mas, tendo vergonha de tocar a flauta de Dionísio, por medo de que os filósofos os acusassem de feitiçaria, ao se aproximarem da fonte borbulhante de vida as suas palavras agitam o lodo, e a água cristalina fica suja. Basta que falem para que as flores se transformam em esterco e a felicidade se transforme em infelicidade.

Nisto eles revelam seu parentesco com seus ancestrais, os sacerdotes que, como disse o poeta William Blake, à semelhança das lagartas que escolhem as folhas mais belas para nelas botar os seus ovos, escolhem as nossas alegrias mais belas para nelas botar suas maldições ( William Blake, The Portable Blake, p. 254).

Comigo é diferente: quando eu toco a minha flauta os monstros se põe a rir. Eu gostaria que os psicanalistas ouvissem o que eu disse de Édipo, o seu heroi: "Ele subjugou monstros, decifrou enigmas: mas é preciso que ele redima ainda os seus próprios monstros e enigmas, transformando-os em crianças celestiais. Até agora o seu conhecimento não aprendeu a sorrir e a ser sem inveja; até agora a sua paixão torrencial não encontrou a tranquilidade da beleza." ( FN II (II), p. 374; Assim Falou Zaratustra, II, " Sobre aqueles que são sublimes").

Concordamos, os psicanalista e eu, em que o corpo é um mar e " a consciência é a superfície" ( FN-III - p.(II)1095; Ecce Homo # 9). Mas, em oposição às suas funduras sinistras, " o fundo do meu mar é tranquilo: quem poderia imaginar que nele vivem monstros brincalhões? Minhas profundezas são imperturbáveis. Mas elas cintilam com enigmas e risos nadantes." (FN-II (II) p.372; Assim Falou Zaratustra, II, " Sobre aqueles que são sublimes").

Dentro de todos os abismos eu ainda levo comigo o meu "Sim" abençoante... - Mas isso, de novo, é o conceito de Dionísio. ( FN -III, . (II), p. 1136).

Os psicanalistas desconfiam dos instintos e chegam mesmo a falar de um instinto de morte. Para eles o instinto é burro, irracional, só quer prazer. Daí o nome de "princípio do prazer" que o fundador da psicanálise deu ao princípio mais fundo da alma humana.

Eu concordo: o prazer, em si mesmo, é burro e irracional. Mas, para mim, o que se encontra no fundo da alma humana, ali no lugar onde brotam as fontes das águas da vida, não é o desejo do prazer mas o desejo da alegria. A alegria está ligada à beleza. A alegria é a marca da beleza. A alegria é a prova dos nove...Sempre que se tem alegria pode-se saber que a beleza se mostrou. Freud falou no “princípio do prazer”. Eu digo “princípio da beleza”...

Ah! Você pede uma imagem... É assim. Prazer é a experiência do orgasmo puro. Pode ser produzido até por masturbação. Alegria é o que sente o amante na simples memória do rosto da pessoa amada. O orgasmo, como todas as experiências de prazer, uma vez acontecido, esgota-se. Não se deseja mais. Prazer é descarga. A alegria, ao contrário, não se cansa. A alegria, pela simples memória do rosto da pessoa continua suavemente. A alegria é a experiência de união com objeto amado. O prazer tem a ver com o corpo só. A alegria, ao contrário, é uma experiência de amor: o corpo em harmonia com o mundo. Também eu desejo a razão. Mas, por oposição àqueles que pensam que a razão é um espelho do real, eu afirmo que a razão é um artista que toma o real como matéria prima para transformá-lo, de sorte a produzir a beleza e a alegria. "A única felicidade está na razão. Mas a razão mais alta está na obra do artista, ( que em tudo se assemelha) a gerar e educar um ser humano" ( The Portable Nietzsche p. 50).

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Vou fazer uma confissão que não deveria fazer, porque sei que os "filósofos" vão usá-la contra mim. Foi num longo período de doença que a minha filosofia nasceu. Foi então que "eu descobri de novo a vida, inclusive a mim mesmo. Foi então que provei todas as coisas boas, mesmo as pequenas, de uma forma que os outros não podem provar com facilidade. Transformei então a minha vontade de saúde, a minha vontade de vida, numa filosofia". (FN-III, p. (II) 1072; Ecce Homo, " Por que eu sou tão sábio" #2.). " Somente a minha doença me trouxe à razão" (FN - III, (II) p. 1072; Ecce Homo, p.(II)1086, " Por que eu sou tão esperto" # 2).

É preciso estar na iminência de perder as coisas para tomar consciência delas. A possibilidade de perder aguça a capacidade de sentir o gosto. Assim aconteceu comigo. Minha filosofia, assim, nasceu da mais alta afirmação da vida, "da abundância, da exuberância, do Sim sem reservas, mesmo ao sofrimento, mesmo à culpa, mesmo a tudo aquilo que é questionável e estranho na existência" ( FN-III- (II) p. 1109, Ecce Homo, " O Nascimento da Tragédia" # 2).

Isso foi coisa que aprendi com os Gregos: para se enfrentar o trágico é preciso que o corpo esteja possuído pela Beleza.

A doença, com a possibilidade da perda, transformou os meus olhos. Não me bastava espelhar o mundo dentro dos meus olhos. Eu queria possuí-lo, sentir o seu gosto bom. Isso que digo me apareceu "num sonho, no último sonho da manhã...

" ... eu me encontrava ao pé das colinas - além do mundo; tinha uma balança nas minhas mãos e pesava o mundo... Com que certeza meu sonho olhava para esse mundo finito - não fazendo perguntas, não querendo possuir, sem medo, sem mendigar... - era como se uma maçã inteira se oferecesse à minha mão, maçã madura e dourada, de pele fresca, macia, aveludada, assim esse mundo se ofereceu a mim... - como se uma árvore me acenasse, galhos longos, vontade forte, curvada como um apoio, lugar mesmo de descanso para o caminhante cansado, assim estava o mundo ao pé das minhas colinas;

-como se mãos delicadas me trouxessem um escrínio, um escrínio aberto para o deleite de olhos tímidos, olhos que adoram, assim o mundo se ofereceu hoje a mim; -não um enigma que assusta o amor humano, não uma solução que faz dormir a sabedoria humana: uma coisa boa, humana: assim o mundo foi, para mim, hoje, embora tanto mal se fale dele..." ( FN- II, (II),p. 435).

Mas aqui é preciso ter cuidado. Nem todos aprenderam o segredo da alegria. "A vida é uma fonte de alegria; mas ali, onde a plebe também bebe, todas as fontes ficam envenenadas" ( (FN-II- (II) p. 346; Assim falou Zaratustra, II, "Sobre a Compaixão"). A estes, os mais desprezíveis, plebe, incapazes de dar à luz uma estrela, solo onde nenhuma árvore alta cresce - a estes eu apelidei de " os últimos homens" (FN II (II) p.284; Assim falou Zaratustra, I, #5).

Eles dizem haver inventado a felicidade. Pensam que felicidade é ficar assentados num charco, onde os naufrágios são impossíveis. Pensam que felicidade é conforto. Sonham com a "terra da Cocanha", a terra onde o vinho corre no leito dos rios, as paredes das casas são feitas de bolo, e os leitões e aves assados correm para a boca dos preguiçosos. Engordam, indolentes e estéreis, sob a sombra das árvores, incapazes de ficar grávidos e dar à luz Jamais sobem as montanhas; jamais se arriscam pelos desertos; jamais navegam por mares desconhecidos.

Minha felicidade é outra. "Você nunca viu a vela que entra no mar, redonda, tensa e trêmula com a violência do vento? Como aquela vela, tremendo com a violência do

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espírito, a minha sabedoria entra no mar - minha sabedoria selvagem". ( FN-II-(II) p.362; Assim falou Zaratustra, II, " Sobre os Sábios Famosos").

Há uma felicidade que só se experimenta quando se vive "como os ventos fortes, vizinhos das águias, vizinhos da neve, vizinhos do sol: assim vivem os ventos fortes. E como um vento forte eu desejo soprar..." (FN-II (II) p.356; Assim falou Zaratustra, II, "Sobre a Plebe")]*. "O segredo da maior fertilidade e do maior gozo da existência é: vivam perigosamente! Construam as suas cidades debaixo do Vesúvio! Enviem os seus navios aos mares desconhecidos! Vivam em guerra com seus iguais e com vocês mesmos! Sejam ladrões e conquistadores...!" (FN-II-(II) p. 166; CA ( Ciência alegre), # 283).)

Aos filósofos bastam os reflexos num espelho. Mas eu preciso de risos, de dança, de beleza. Por isso eu conto parábolas, faço aforismos, escrevo com sangue. ( FN-II- (II) p. 305)

Concordo com Kierkegaard, filósofo que nunca li: a verdade do coração, morada da alegria, não se encontra na letra; ela se encontra na música, além das palavras. Ensinar a alegria: é isso que eu desejo.

Escrevi que os sacerdotes são meus inimigos. “E, no entanto, meu sangue está ligado ao deles, e eu desejo saber que o meu sangue é honrado mesmo no deles" ( FN-II- (II) p. 348; Assim falou Zaratustra, II, "Sobre os Sacerdotes")

Pois eles usavam boas palavras para falar dos mistérios dos seus sacramentos, sem saber que sacramentos são parábolas. Diziam que o pão e o vinho eram acidentes onde se escondia uma substância sagrada, o corpo de Deus. Digo o mesmo dos meus sacramentos: os meus saberes são apenas acidentes; a substância divina é alegria, o corpo de Deus que mora neles. Nessa eucaristia eu acredito. Essa eucaristia eu celebro. Os saberes são taças que transbordam de alegria. A minha escrita são as minhas mãos que se estendem, à procura de amigos.

Desejo aqueles para quem escrevo. Quero que eles dancem ao som da flauta de Dionísio, que é o símbolo da afirmação incondicional da vida, mesmo com todo o seu sofrimento e terror. É assim que entendo as palavras, meus brinquedos. "Palavras e sons: que são eles senão diáfanas pontes iridescentes entre coisas eternamente separadas?" ( " sind nicht Worte und Töne Regenbogen und Schein-Brücken zwischen Ewig-Geschiedenen?") " Não foi para isso que os nomes e os sons foram inventados, para que o homem encontrasse refrigério nas coisas? Falar é uma deliciosa loucura; por meio da fala o homem dança sobre todas as coisas. Que adorável é toda fala e o engano dos sons! Por meio dos sons o nosso amor dança sobre arcor-iris coloridos..." ( FN-II-(II) p.463); Assim falou Zaratustra, III, " O Convalescente" # 2) .

"Da minha beleza cresce uma fome...Dentro de mim há algo insaciável, que deseja poder ser dito. Um desejo de amor está mim, desejo que fala a linguagem do amor" ( FN-III, (II) p. 1137), Ecce Homo, "Assim Falou Zaratustra", # 7)]*

. E o que ela diz é que " vida é uma fonte de alegria", " e que o nosso pecado original é que temos tido muito pouca alegria. (FN-II-p.(II) p.354, 346) Para isso eu escrevo: para ensinar a alegria.

Porque escrevo para fazer rir, para brincar, para mostrar a beleza, filósofo não sou. Sou bufão, sou criança, sou poeta..."

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“Assim, para fora da minha verdade-loucura eu mergulhei, para fora da minha nostalgia pelo dia, -cansado do dia, doente da luz,- mergulhei para o fundo, para a noite, para a sombra, -queimado pela verdade, e sedento: Tu te lembras ainda,- te lembras, coração ardente,- de como tinhas sede? Que eu seja exilado de toda a verdade, somente um tolo! Somente um poeta! ( FN II ( II) p. 810, Assim falou Zaratustra )

Ditas essas palavras ele se pôs a rir. Tomou a flauta de Dionísio, começou a tocar e, à medida que tocava, foi ficando leve, leve, até que flutuou, dançante, no ar...

BAIXOU O ESPÍRITO DO DRUMMOND

Carlos Drummond de Andrade, um homem manso. A mansidão está naquele rosto triste, que me faz lembrar os farmacêuticos das cidades do interior de Minas Gerais. Está na sua voz baixa, quase rouca, que desconhece argumentos e eloqüência, voz que só deseja dizer os seus poemas. Está nos seus poemas, sem arroubos, sem pressa, fotografias das coisas simples do cotidiano. Manso. Qualquer perturbação de raiva seria impensável na imagem do Drummond.

Mas... Eu já disse que o corpo é um albergue. Nele moram muitas versões de mim mesmo. Há uma versão oficial, pública, o dono do albergue, aquele que se vê sempre. Mas nos quartos do albergue moram muitos outros, todos eles com o mesmo rosto, mas diferentes por dentro. Em mim moram o Rubem escritor, o educador, o falador, a criança, o velho, o místico, o palhaço, o deprimido e um outro. Sim, um outro...

Dentro do Drummond também morava um outro. Procurei nas minhas coisas um texto desse outro que eu conheço. Queria transcrevê-lo inteiro. Não o encontrei no meio das minhas bagunças. Texto que é um urro de uma fera encurralada pelos caçadores. Texto fúria. As palavras são navalhas. O texto inteiro é um grito. Não me enviem poemas, não me enviem textos pedindo que eu os leia e dê minha opinião. O que querem é elogios. Mas não sou crítico literário. Quero ler o que eu quero ler e não aquilo que querem que eu leia. Quero é viver quieto a minha vida de poeta. Quero é ter tempo para os meus poemas. E as crianças? Tão bonitinhas. Lá vou eu caminhando pela calçada de Copacabana. Quero sentir o vento e ver o mar. Mas lá vêm elas. Por detrás delas, as professoras! Agarrem o velho urso, elas dizem! Vêm com papel e lápis na mão. Queremos entrevistá-lo. Quando foi que o senhor nasceu? Qual foi o poema que mais gostou de escrever? Não. Eu não nasci. Desisti de nascer quando vi que não poderia viver em paz!

Essas palavras não são de Drummond. São minhas. Mas eu as tirei das memórias confusas e duras que tenho do seu texto, o texto do Outro.

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Rubem Alves

Ah! Poeta mal educado! Se lhe enviam poemas e textos é porque o admiram, é porque o amam. É assim que você reage a esses gestos de amor? E as crianças? Para um escritor poderá haver felicidade maior que se ver cercado de crianças que amam os seus poemas? E, no entanto, você reage com fúria e grosseria a esses gestos de amor! Mal agradecido. Grosseiro. Cara de manso, fingido!

A verdade é triste: são os que dizem amar que provocam a raiva. Os que não amavam o Drummond e não lhe enviavam poemas e textos não o perturbaram. Os caminhantes da praia que não o conheciam o deixaram em paz na sua caminhada. Acho que Albert Camus deve ter tido experiência parecida porque escreveu no seu diário que a melhor coisa no mundo é ser desconhecido. Isso não é verdade. Os que não são conhecidos gostariam de sê-lo. E é bom ser conhecido. Mas há um momento em que o ser conhecido se transforma em maldição. O dito amor dos admiradores rouba da pessoa o seu direito de viver a sua própria vida e de fazer o que lhe apraz. O amor tira a liberdade. Penso que Sartre estava com coisa parecida na cabeça quando escreveu que “ o inferno é o outro”.

É assim que acontece quando o amor não conhece a sabedoria da amizade. Aprendi um ditado que achei fantástico: Amigo não empata amigo. Isso mesmo. E até vou repetir: Amigo não empata amigo. A amizade cuida da liberdade do outro. Um amigo é um mestre em escutar, um mestre em adivinhar e um mestre em guardar silêncio. Um amigo conhece o sentido da palavra “Não”. O “não” é a palavra que estabelece os meus limites, limites que não podem ser invadidos, nem mesmo com a desculpa do amor.

Lembro-me de algo que me aconteceu, faz vários anos. Eu deveria fazer uma palestra numa certa cidade, na sexta-feira e outra, numa cidade próxima, no sábado. Aí recebi um telefonema amoroso na véspera da minha viagem para a primeira cidade. “Professor Rubem Alves, nós queremos trazê-lo até nossa cidade no sábado. É tão pertinho...” Respondi: “Bem que gostaria, mas já tenho um compromisso no sábado...” A voz, do outro lado, argumenta “ O senhor cancela o seu compromisso! Nós gostamos tanto do senhor...” E assim o diálogo foi comendo os minutos, nesse impasse irresolvível entre a minha impossibilidade e o desejo daquela pessoa que teimava porque gostava de mim. Era precisamente esse gostar que a impedia de ouvir o que eu estava dizendo. Compreendi que o impasse não se resolveria pela razão. Perdi a paciência. Um Rubem grosseiro saiu do seu quarto no albergue, arrancou-me o telefone das mãos e assumiu o controle: “Percebo que a senhora não fala português.” Resposta espantada: “ Como assim?” O Rubem grosseiro concluiu com uma navalha: “ A senhora não entende o sentido das palavras. A senhora não sabe o sentido da palavra não.”

Parece que o amor torna as pessoas incapazes de entender o não. Seria tão simples! O não exprime o meu limite, o meu desejo naquele momento. Não posso. Não quero. Se a pessoa que diz amar tivesse aprendido a lição da amizade responderia simplesmente: “Que pena! Mas haveremos de nos encontrar numa próxima vez.” Aí eu ficaria feliz por haver uma pessoa assim tão amiga, tão respeitadora dos meus limites.

Eram muitas as cartas que chegavam. Todas com letrinha de criança. Todas da mesma cidade. Todas de uma mesma escola ( estava escrito no remetente ). Deliciosas cartas de crianças. Por vezes cinqüenta de uma vez. Que coisa boa ser assim amado pelas crianças! As cartas eram resultado de um trabalho competente e amoroso de professoras. Elas haviam lido algumas das minhas estórias infantis, as crianças haviam gostado, e elas sugeriram que as crianças escrevessem para mim.

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Rubem Alves

Só tenho louvor a essas professoras. Se não fosse por um pequeno detalhe: todas as cartas pediam respostas individuais... Isso é covardia. Cinqüenta crianças escrevendo para um escritor. Um escritor escrevendo para cinqüenta crianças. Não justo. Não é possível.

As crianças não me haviam interrompido na minha caminhada, hábito do Drummond.( Entre parêntesis: o que mata a caça não é a arma. O que mata a caça é o hábito. Porque a caça tem hábitos, o caçados se põe à espera, no lugar onde ela vai passar. E eis um animal vivo transformado em churrasco... Para não virar churrasco é preciso não ter hábitos. Sabedoria do bruxo D. Juan. ). O Drummond era caça fácil. Meu caso foi diferente. Elas entraram diretamente na minha toca, amoravelmente, sem pedir licença... As culpadas eram os professoras. Por amor. Imaginaram a felicidade que eu iria sentir. Mas não imaginaram o resto... Freqüentemente as pessoas pensam que um escritor é um ser aéreo, separado dos problemas práticos da vida, com um tempo vazio imenso, à sua disposição. As professoras, por amor, criaram expectativas na cabeça das crianças. Cada uma delas receberia uma longa carta do escritor. Uma expectativa impossível de ser cumprida. Porque o escritor, ser limitado, tem outras coisas para fazer. Inclusive vagabundear, ler, escutar música. O escritor também tem direitos individuais. Lembro-me de um dia, eu com o maço de cartas na mão, sem saber o que fazer, irritado. Senti então um objeto estranho numa das cartas. Uma criança colocara dentro do envelope uma bala de hortelã. Não chupei a bala porque ela me atravessou o coração...

O problema com as pessoas que amam é que elas acham o seu amor tão bonito e tão puro que dele só podem sair coisas boas. O amor, só amor, só se pensa. Não pensa o outro. É o caso do marido apaixonado que deseja fazer amor com a sua esposa. Para ele o seu amor é a coisa mais pura e linda do mundo. Mas ela lhe diz sorrindo, esperando ser respeitada: “Meu bem, eu não estou com vontade...” Ele argumenta de novo, fazendo poemas sobre o seu amor. Ela responde repetindo o seu desejo: “ Não estou com vontade...” O desentendimento vai se estendendo até que ela perde a esperança de fazer-se entendida pelo marido e diz: “Está bem, faça o que você quer fazer. Mas saiba que estarei odiando você...”

Aconteceu isso comigo esta semana. O dito amor insistia do lado de lá, eu respondia do lado de cá. Não posso. Estou muito cansado. Preciso ter tempo para mim mesmo. Mas o lado de lá, lado do amor que não aprendeu da amizade, não me ouvia, não me entendia, e repetia a mesma coisa: “Mas nós gostamos tanto do senhor.” Chegou um momento em que compreendi que as minhas razões era inúteis. Elas não importavam. Importava apenas que o outro tivesse o seu desejo realizado. Aí o espírito do Drummond baixou sobre mim...

Essa semana passada teve momentos de grande felicidade. Encontro de velhos amigos, promovido pela editora VERUS. O Leonardo Boff, o Luiz Carlos Lisboa e eu. Estávamos lançando livros. O Boff, Novas fronteiras da igreja. O Luiz Carlos Lisboa, O som do silêncio. E eu, Se eu pudesse viver a minha vida novamente. Publicado no Correio Popular (20/06/2004)

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Rubem Alves

NOSSAS VERDADES SÃO SÓ PALPITES

Encontrar amigos é sempre uma alegria. Especialmente se fazia muito tempo que os amigos não se encontravam. Amigos se encontrando, não é preciso explicar. Amigos se entendem sem precisar falar. Pois nos encontramos na semana passada, o Leonardo Boff, o Luiz Carlos Lisboa e eu. O Leonardo e eu já éramos amigos há muitos anos. Em razão de sofrermos, ambos, de uma doença incurável: uma relação de ódio e fascínio teologia. Essa doença dá grande coceira nas idéias, coceira que chega sangrar. Eu, de tradição protestante, ele de tradição católica. Mas sempre andamos juntos alegremente, jogando frescobol com palavras. Teologamos duetos, piano e violino, juntos e diferentes, sem confusão, sem separação, sempre em harmonia, de acordo com as definições do concílio de Calcedônia sobre as duas naturezas de Cristo. Concordamos em que Deus não entregou os seus negócios para serem administrados por uma instituição chamada igreja. Como Jesus mesmo disse, Deus faz sua chuva cair sobre mais e bons, e o sol brilhar sobre justo e injustos. A água da chuva, todo mundo sabe o que é. O calor do sol, todo mundo sabe o que é. A confusão sobre Deus – chuva e sol – começa quando religiões afirmam que prá se molhar na chuva e se aquecer ao sol é preciso ter idéias certas sobre a chuva e o sol, idéias que só elas têm, e que se chamam dogmas. Essas religiões pensam que conseguiram engaiolar Deus. Deus só existe dentro delas. Religiões são gaiolas vazias. Não. Não estão vazias. Dentro delas há um pássaro empalhado. Mas Deus é um pássaro em vôo... Há um ditado judeu que diz: “Os homens pensam. Deus ri.” Ele se ri das bobagens que pensamos sobre ele – ou ela, não estou bem certo. O mar também se riria de nós...

O Luiz Carlos Lisboa, eu já era amigo dele antes de conhecê-lo pessoalmente. Eu li, faz muitos anos, o seu livro Nova Era. Li e percebi que, sem nunca nos termos visto, éramos amigos. Quis comprar outros exemplares para dar de presente aos meus filhos. Mas a edição estava esgotada. O remédio foi fazer cópias xerox. Tão sábio e tão poético que o li com o meu grupo de poesia. O que encanta nos seus textos é, em primeiro lugar, a sabedoria mansa. Depois, os textos são curtos, menos que uma página. Finalmente, a música da sua escritura. Kierkegaard dizia que a verdade mora não na letra do texto mas na música que existe nos interstícios das palavras. Fernando Pessoa também sabia disso. Escreveu a um poeta (talvez ele mesmo ): “... e a melodia que não havia se bem me lembro faz-me chorar...” Na folha de papel estavam as palavras do poema. Mas não eram elas que faziam chorar. O que fazia chorar não eram as palavras mas uma melodia que saia das entrelinhas... Todos os terapeutas deveriam prestar atenção nessa lição. Prestar menos atenção no que a pessoa está falando e mais na música que ele não sabe que está fazendo.

Vou transcrever dois textos que se encontram no seu livro O som do silêncio, publicado pela VERUS: “Um brinquedo, uma roupa, a pequena cama – os objetos que cercam a vida de uma criança conservam a sua energia quando ela se ausenta para ir à escola ou viajar. Há naquelas coisas uma vibração que se percebe no ar. Aqueles que amam costumam também imantar tudo o que tocam, e assim deixam um rastro perfumado por onde passam.” “Ah, o desperdício de falar, quando há tanta coisa a ouvir de quem não tem nada a dizer. Às vezes somos como o grito de uma serraria, escondendo o solo perfeito de um violino. Só é preciso prestar atenção e ficar em silêncio, para escutar a música que vem do mundo. Nela estão as respostas que procuramos, e nela está a certeza de que todas as perguntas são fúteis quando somos felizes.’ Que lindo presente para uma pessoa querida! Quem dá um livro como esse está dizendo: “Acredito que você é uma pessoa inteligente e sensíve”.

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Rubem Alves

À noite estivemos na FNAC, para conversar com quem quisesse. Havia muita gente. Para começar, uma surpresa que não estava no programa. Entrou no palco o grupo “Serenata Brasileira”, em roupas dos anos vinte ou trinta, não sei bem. Eles cantam os antigos sucessos das tradicionais serenatas numa afinação absoluta. Eu estava assentado à mesa, de frente para o público. Tive dois prazeres: o da música e o dos rostos que eu via Todos sorriam. Sorrisos diferentes. O sorriso dos jovens era só sorriso. O sorriso dos velhos estava misturado com saudade. Teve gente que chorou. Eu, quase... Todo mundo ficou triste quando a música acabou. A música tem um poder de ligar as pessoas que as palavras não têm (exceto a dos poetas). E nós três teríamos de falar porque, se fôssemos cantar, sairia tudo desafinado, muito embora o poeta tenha dito que no peito dos desafinados também mora um coração...

Como cantar nós não sabemos, por causa da desafinação, passamos a fazer o que sabemosr: pensar, conversar, rir. Que os temas fossem dados pelas perguntas do público! Ficou logo claro que todos estavam curiosos com o título do livro do Leonardo, Novas fronteiras da igreja. Especialmente porque, como se sabe, ele é um herege. Em outros tempos ele já teria sido queimado num edificante Auto de Fé, numa das fogueiras da Inquisição. Que ele é herege não é difamação minha. Foi ele mesmo que confessou publicamente, até com um certo sorriso... Contou-nos de um jantar de homenagem que lhe ofereceram Darci Ribeiro e Oscar Niemeyer, ambos ateus confessos, para celebrá-lo como o primeiro herege brasileiro O que é um herege? É uma pessoa que anda na direção contrária. É alguém que diz o que foi proibido dizer. O pecado dos hereges não é moral. Ninguém e herege por ser um assassino ou fornicador. Esses são pecados de que se pode arrepender, e que são resolvidos no confessionário. O pecado dos hereges, ao contrário, não é pecado de ação. É pecado de pensamento. E não há formas de se arrepender daquilo que se pensa. Ele pensa aquilo que é proibido pensar. Só há um jeito de curar um herege: queimando-o na fogueira.

Pois o Leonardo, já há algum tempo, tem estado dizendo coisas proibidas. Por elas foi levado ao Santo Ofício e interrogado pelo guarda da fé, o Cardeal Ratzinger. O Leonardo diz, brincando: “Tive a honra de me assentar na mesma cadeira em que se assentou Galileu...” Galileu também foi herege por afirmar uma coisa proibida, que a terra não era o centro do universo. Ah! Como as religiões afirmam coisas confusas! Felizmente se arrependem delas, passados quinhentos anos... Outro herege famoso foi Jesus Cristo que andava pela Palestina negando aquilo que sempre tinha sido dito: “Ouvistes o que foi dito aos antigos, eu, porém, vos digo... A heresia do Leonardo tem a ver com aquilo que ele pensa sobre a igreja. Para ele Jesus jamais imaginou uma igreja hierárquica, burocrática, dotada de poder ( houve um período em que ela chegou a ter exércitos ) e que pretende ser a única detentora da verdade, a verdade inteira. Essa pretensão torna impossível o ecumenismo oficial. Porque se uma instituição possui a verdade toda, ela não precisa ouvir ninguém. Seria uma perigosa perda de tempo. O pensamento do outro só pode ser mentira. É o outro que tem de ouvi-la. Ela é “mater et magistra” – mãe e mestra. Para o Leonardo, ao contrário, a igreja é formada por todos aqueles que sonham o mesmo sonho, o sonho que está contido na poesia do Pai Nosso: um mundo de fraternidade, sem misérias, sem vinganças, sem violência.

Perguntaram ao Luiz Carlos Lisboa – que ama o Rio de Janeiro, cidade mais linda não há – sobre essa estranha coincidência: o Rio de Janeiro é uma das cidades mais religiosas do Brasil e é a cidade mais violenta do Brasil. Qual é a relação que existe entre religião e violência? Ele lembrou que, na história do Ocidente, as religiões sempre estiveram ligadas à violência. Os maiores horrores já foram perpetrados por causa de dogmas religiosos. Agora mesmo, para justificar a guerra contra o Iraque, o

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Rubem Alves

presidente Bush declarou que conversava com Cristo todas as manhãs. A loucura tem fortes relações com a religião institucionalizada. Os loucos pensam que suas idéias são as idéias de Deus. Pensa-se que a violência criminal vai se resolver com a violência policial. Mas onde se encontram as raízes da violência? Elas não se encontram dentro de nós mesmos? A violência só vai ser resolvida quando os homens aprenderem a ser mansos. Mas isso exige uma transformação espiritual. Era assim que pensavam Jesus Cristo, São Francisco de Assis e Gandhi...

Foi uma conversa gostosa, honesta, por vezes com um pouco de pimenta, que era logo eliminada com o humor.

O que é necessário compreender é que ninguém tem a verdade. Nós só damos palpites. No momento em que os indivíduos compreenderem que suas verdades não passam de palpites eles ficam mais tolerantes. E é gostoso conversar mansamente, cada um ouvindo honestamente o que os outros tem a dizer. (Correio Popular, Caderno C, 27/06/2004.)

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