7074333 Literatura Em Minha Casa Classico Adaptado Robert Louis Stevenson a Ilha Do Tesouro

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A ilha do tesouro Robert Louis Stevenson adaptação Claire Ubac

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A ilha do tesouro

Robert Louis Stevenson

adaptação Claire Ubac

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Levantar âncora!

Você nunca viu uma fantasia de pirata? Esse tipo de bandido dos mares,

muito comum no passado, até hoje permanece na imaginação das pessoas do

mundo todo. Há vários motivos para isso, mas a história que você vai ler também

ajudou muito a manter esse tema vivo através dos tempos.

Escrita em 1881 pelo escocês Robert Louis Stevenson, um dos maiores

escritores da língua inglesa, “A ilha do tesouro” é um clássico da literatura de

aventura. Lido por milhões de pessoas em todos os cantos do planeta, o livro inspirou

vários filmes.

O texto que você encontrará nas próximas páginas não é a obra original de

Stevenson. Ela é bem mais longa. Aqui, a história foi adaptada pela escritora

francesa Claire Ubac.

Ela conta os trechos principais da aventura de um jeito bem especial: uma

mulher que toma conta de um farol encontra um livro trazido pelo mar. É “A ilha do

tesouro”. O texto está ilegível, mas as figuras, mostrando os personagens, resistiram.

São eles que, saltando para fora do livro, contam a história à faroleira. E a todos nós.

Bem, se os piratas podem sair das páginas do livro e ganhar vida, você

também pode entrar nelas e participar da aventura. Agora é sua vez:

Levantar âncora!

(**)”Aviso aos não-navegantes”: neste livro, aparecem algumas palavras que

só os velhos lobos-do-mar conhecem. Por isso, montamos um glossário de termos de

navegação para ajudar sua compreensão do texto.

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Uma noite de dezembro, no tempo em que eu era faroleira, descobri um

velho livro numa mala que tinha ido dar na praia. As letras douradas do título estavam

quase apagadas: A ilha do tesouro. Do autor, só dava para ler os dois primeiros

nomes: Robert Louis.

O céu carregava-se de nuvens ameaçadoras. Voltei ao farol, acendi um bom

fogo na lareira e espantei-me ao sentir vontade de tomar rum. Pus um pouco no copo

para mim, instalei-me em minha poltrona, usando meu velho roupão escocês, e abri o

livro.

Que decepção! As páginas estavam cobertas de bolor ou roídas pelos ratos.

Só o papel das ilustrações resistira. Consolei-me contemplando a primeira: do alto de

uma falésia batida pelos ventos, um rude marinheiro do século XVIII, com uma

cicatriz no rosto, contemplava o mar com uma luneta de cobre.

Alguém tossiu atrás de mim. Surpresa, voltei-me e vi o personagem da

ilustração avançar em direção à lareira, enquanto um forte cheiro de maresia

misturava-se ao do fogo da lareira.

— Obrigado por me fazer subir ao convés — resmungou ele. — Lá dentro

cheira a mofo. E pode acreditar que isso é duro para um marinheiro acostumado com

o vento do alto-mar.

Ele indicou o livro com o queixo mal barbeado:

— Os ratos, não é? Do fundo do porão eu ouvia o barulho que faziam roendo

o papel!

O aspecto desse homem era de assustar uma dama sozinha, e mesmo

várias damas juntas. Mas o rum me dava coragem.

— Quem... quem é vo...você? — gaguejei.

Ignorando minha pergunta, ele virou novamente o queixo, dessa vez para a

garrafa de rum:

— Você não tem um caneco para um velho marujo? Em troca, eu lhe conto

os cinco primeiros capítulos.

Como resposta, tirei um copo do armário, enchi-o e lhe dei.

Ele engoliu de uma só vez, tomou a garrafa de minhas mãos e serviu-se de

mais rum. Em seguida, começou a contar:

— Eu me chamo Billy Bones, e ai de quem quiser cobiçar o que guardo no

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fundo do meu baú, no livro que Robert Louis escreveu!

Ele endireitou o corpo, certo de que me impressionara:

— Eu fui imediato no Walrus, o navio de Flint.

Como ergui as sobrancelhas, o velho lobo-do-mar se aborreceu:

— Flint, o pirata mais terrível que cruzou os mares!

— Ah, sim, Flint, claro — gaguejei.

Bones já estava falando de novo:

E, com mil tubarões, nada mais natural que, com a sua morte, eu herdasse o

mapa, não é mesmo? O mapa da ilha onde ele escondera o tesouro de toda uma

vida de pirata! Mas vá explicar isso àqueles piratas, que são verdadeiros tubarões.

Quando o livro começa, estão todos na minha cola, Silver, Cão Negro, Pew e os

outros: a antiga tripulação de Flint. E eles não são de brincadeira, pode acreditar,

princesa! O que eles querem é o mapa, e mandar Billy Bones para o inferno.

Bones teve um tique nervoso.

Uma noite, achei que tinha descoberto o lugar certo. Uma estalagem numa

baía perdida na costa inglesa, a “Almirante Benbow”. Do alto da falésia, pode-se

vigiar tudo o que vem do mar. Especialmente os tubarões, está entendendo, minha

linda?

Bones tomou uma talagada de rum e seu rosto se iluminou.

Jim, filho do dono da estalagem, era um bom bacalhauzinho fresco. Você

precisava ver como ele arregalava os olhos ao ver minha cicatriz e meu rabicho

ensebado. Logo ficamos amigos, e ele vigiava o mar comigo.

"Grumete", eu lhe dizia, "fique atento. Abra bem os olhos e me avise se

algum marujo se aproximar, principalmente se ele for perneta!"

Bones teve outro tique nervoso. Esvaziou o copo e recomeçou a falar:

Eu passava horas sobre a falésia com minha luneta. De noite, no salão da

estalagem, pagava aos camponeses da região uma rodada de bebida. Eu os

aterrorizava contando meus ataques a navios na época de Flint. Falava dos pobres

marujos que o capitão partia ao meio a machadadas; dos que ele preferia torturar

antes e dos piratas enforcados na Doca das Execuções, balançando sua carcaça

seca ao sol... Eu entoava minha canção favorita, que era a mesma do capitão Flint, e

os obrigava a cantar o refrão em coro!

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Bones levantou o queixo e se pôs a berrar:

"Bravos rapazes, piratas de verdade,

Empunhem os machados e cortem o cordame.

Levantem a bandeira ‘Sem piedade‘

Na festa do fogo, da pólvora e do sangue.

Que não fique um só vivo e que vença a maldade!

Quinze homens sobre o caixão do Defunto

E uma garrafa de rum!

A bebida e o diabo

Se encarregaram dos outros,

E uma garrafa de rum!"

Puxa! Para sua voz ranger daquele jeito, Bones devia tê-la afinado pelo

rangido da amarra da âncora! Fiquei aliviada quando ele recomeçou a contar:

Naquelas ocasiões, eu sentia como se estivesse de volta aos bons tempos

do “Walrus”, logo depois de ter capturado um navio mercante.

Obrigávamos os sobreviventes a dançar debaixo de chicote antes de jogá-

los ao mar, plaft! Só não gostei do dia em que um médico veio à estalagem me

aborrecer. Um burguês, princesa, você conhece o tipo: ele olha você de cima só

porque nasceu em berço de ouro. Todo mundo me escutava em silêncio, mas ele

continuava a matraquear com a dona da estalagem como se nada estivesse

acontecendo.

— Silêncio nesta joça! — gritei para ele.

Aí ele respondeu, sem se perturbar:

— Por acaso está falando comigo?

Berrei: — Sim, é com você, emperucado aí da popa!

— Eu nem preciso acabar com você — disse-me ele. — O rum vai fazer isso

por mim.

Fiquei furioso e ameacei-o com minha faca. Mas o homem não era só

médico; como juiz de paz, ele podia me expulsar da região quando bem entendesse.

Tive de calar o bico. Porco burguês. Ele também haveria de se afogar em rum, ele

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também haveria de cantar... se recebesse a visita, em pesadelos, de Long John

Silver, o horrível canalha saído do inferno com sua perna de pau!

Bones encheu mais uma vez o copo de rum e o tomou de um trago.

Depois continuou, com o olhar feroz:

Um dia, voltei de meu turno de vigia, o olho vermelho de tanto ficar

observando o mar. E quem eu vejo na sala da estalagem, mais real que um

enforcado na ponta de uma corda? Cão Negro!

— Você pensou que era esperto o bastante para escapar de nós, hein, Bill

Bones? — ele me falou. — Vá me passando o mapa direitinho, ou então eu o

denuncio como pirata, e logo você vai estar balançando numa corda.

Puxei meu sabre e dei um golpe no ombro daquele cachorro sarnento. Ele

bateu em retirada mas fui atrás dele. Só que dei azar: o golpe que iria parti-lo ao meio

acertou na tabuleta da estalagem, onde a minha lâmina ficou presa.

Cão Negro sumiu no mundo.

— Jim — gritei —, rum! Rum, Jim, por piedade, grumete!

Aquele maroto respondeu que eu acabava de ter um ataque e que o doutor

Livesey — o desgraçado do juiz — lhe dissera para cortar o álcool, pois ele me

levaria à cova.

— Esse seu doutor não sabe de nada, Jim! Sem o meu rum, sou apenas um

traste velho carregado pelo vento. Depressa, sinto que vou ter minha visão: Flint, com

o rosto arroxeado na hora de sua morte!

Jim me obedeceu. A primeira golada me fez voltar à superfície, depois

alguma coisa estalou em meu crânio. Tive medo de não ter condições de levantar

âncora antes que aqueles tubarões me mandassem a marca negra.

— Que marca negra, capitão? — perguntou Jim, arrepiado de medo.

— Uma espécie de convocação, filho. Se eles vierem, preste atenção...

Você vai correndo até a casa do cretino do seu juiz. Que ele os entregue à

justiça, toda a tripulação de Flint. Todos os piratas merecem a corda, está

entendendo? Mais uma coisa: desconfie, mais do que da peste do marinheiro, do

marujo de perna de pau!

Jim fez que sim com a cabeça, os olhos arregalados.

Algumas noites depois, consegui me arrastar até a mesa do salão. O tatear

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horrível de uma bengala de cego ecoou na noite.

Então eles tinham escolhido Pew, o cego, para fazer aquilo!

Ele entrou, apoiando todo o peso em Jim, com uma faixa verde imunda

sobre os olhos mortos. Fiquei imóvel, mas ainda assim ele me advertiu:

— Continue sentado, Bill. Sou cego mas seria capaz de ouvir as suas unhas

crescendo. Dê-me a sua mão direita.

E tudo acabou. O toque-toque foi ficando cada vez mais longe.

Eu me perguntava se aquele fantasma repugnante tinha estado realmente

diante de mim.

Mas sim. A marca negra estava lá, na minha mão. Uma rodela de papel

preto, onde se lia no verso: "Até esta noite, dez horas".

Seis horas para escapar deles! Endireitei o corpo, num súbito impulso cheio

de esperança. E caí no chão mais uma vez.

Bones baixou a cabeça desanimado e me mostrou a garrafa de rum vazia.

— Você não teria outra, princesa? Porque a partir desse ponto a coisa

desanda para mim...

Remexi no armário de bebidas. Só me restava uma garrafa de ponche.

Bones tirou-lhe a rolha e continuou com um suspiro:

Quando voltei a mim, vi a dona da estalagem segurando na mão uma vela

trêmula. Ela iluminava Jim, que estava debruçado sobre o meu corpo. Tive vontade

de gritar:

— Ei, grumete o que é que você...?

Mas de minha boca não saía nenhum som. Estou paralisado, pela alma

danada de Flint! Jim e sua mãe pensam que estou morto.

O menino malvado arrancou a chave de meu pescoço. Jim, você não vai...

NÃÃÃÃO! Não toque no meu baú!

Ouço os dois subindo ao primeiro andar. Eles abrem o baú. Sei muito bem o

que eles encontram: a roupa nova para o casamento que nunca houve, um sextante,

meu caneco, tabaco, minhas pistolas, um relógio espanhol, a bússola, uma barra de

prata, lembranças de terras distantes e de amores selvagens, moedas — mais

estrangeiras que inglesas — e, lá no fundo, os papéis de Flint embrulhados num

encerado.

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Esse mapa é meu, estão ouvindo? Que o diabo os carregue se puserem a

mão nele! Quero gritar, mas não consigo. Os olhos me saltam da cara.

Lá fora ressoa o maldito toque-toque da bengala do cego. Pouco depois, Jim

e sua mãe descem a escada a toda e passam feito um pé-de-vento ao lado do meu

corpo. Jim vai levando os papéis de Flint embaixo do braço.

É o meu mapa, menino malvado! Você vai ver quanto custa roubar o velho

Bill! Pela janela, a lua aparece por trás de um véu de neblina. Do outro lado das

paredes da estalagem, reconheço a voz de Pew: "Arrombem a porta!"

Eles entram precipitadamente. Um deles exclama: "Bill bateu as botas!"

Os tubarões sangrentos vasculham meu corpo, revistam toda a sala e

remexem no quarto de cima como cem mil diabos. Mas perderam a parada: Jim já

passara lá antes!

Eles estavam discutindo quando um galope de cavalos lhes impôs silêncio.

Ouviu-se um disparo de pistola lá fora, e eles se espalharam desordenadamente,

deixando Pew tateando em frente da estalagem, implorando com uma voz que

arrepiaria os cabelos de um morto:

— Não me abandonem, rapazes!

Seu berro rasga a bruma, por sobre o galope e o relinchar do cavalo que

passa por cima dele. Mas não tenho tempo de ter pena daquele desgraçado.

Um turbilhão brilhante se abre diante de mim e me puxa para o além: lá vou

eeeuuu!

O tom de voz de Bones era tão comovente que me vieram lágrimas aos

olhos. Enxuguei-os com a manga de meu roupão escocês. Quando levantei a

cabeça, o pirata havia desaparecido.

Na noite seguinte, me servi de um copo de “Graves” e procurei a segunda

ilustração. Era a de um senhor de sobrancelhas enérgicas. Ele erguia seu copo

diante de um homem sentado, que fumava cachimbo.

Levantei os olhos: ele esfregava as mãos diante de minha lareira.

Convidei-o a sentar-se na melhor poltrona e a partilhar a minha garrafa.

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— Hum... vinho de “Bordeaux” — disse ele cheirando o copo, abrindo bem

as narinas.

Lançou um olhar ao meu roupão e corou. Eu lhe disse:

— Não me queira mal por recebê-lo assim, sem a menor cerimônia. Estou

morrendo de vontade de saber o que se passa depois do quinto capítulo.

Estendi-lhe a mão para que a beijasse.

— Claire Ubac de Beaurivage. A quem devo a honra?

O senhor ajeitou com um dedo a sua peruca e me saudou, não sem uma

certa altivez:

Senhor Trelawney, castelão, homem incapaz de fugir à aventura no livro que

Robert Louis escreveu.

Pois bem, minha cara, o capítulo VI se passa em minha casa: eu convidara

meu bom amigo, o doutor Livesey, para jantar.

Joyce, meu criado de quarto, fechou as cortinas sobre a escura bruma de

janeiro. O médico e eu estávamos fumando cachimbo quando meu mordomo, Hunter,

anunciou que um senhor Hawkins esperava permissão para entrar.

— Jim Hawkins, o pequeno estalajadeiro da Almirante Benbow — informou-

me Livesey. — Aposto minha peruca como deve ter havido alguma confusão com

aquele pirata encharcado de rum que está na estalagem há uns quinze dias!

Jim entrou, abalado. Alguns piratas tinham devastado sua hospedaria para

tomar do bêbado Billy Bones um misterioso objeto que havia pertencido ao finado

capitão Flint. Mas eles tinham encontrado o baú vazio e seu velho comparsa morto

de um ataque apoplético.

— Morreu levado pelo último copo, como eu previ! — disse o médico. —

Quer dizer então que o baú estava vazio?

— Minha mãe e eu já tínhamos tirado o que eles procuravam. Estávamos

morrendo de medo, escondidos no mato perto da estalagem, quando os soldados

chegaram — contou Jim. — O cabo passou por cima de um dos piratas com seu

cavalo...

Livesey e eu lançamos um olhar interessado ao pacote embrulhado num

encerado e amarrado com barbante que Jim apertava contra o peito.

— Jim — disse Livesey —, você permite que a gente dê uma olhada nisso?

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Ele tirou do estojo sua tesoura de cirurgião, cortou o barbante e nós três nos

debruçamos sobre o mapa de uma ilha. No sudoeste das terras, havia uma cruz

vermelha, ao lado da qual se lia: "Aqui, a maior parte do tesouro".

Um estalo me deu um susto. Uma acha rolou da lareira para o assoalho.

Trelawney pegou a tenaz e recolocou a acha no lugar. Ele me olhou por

baixo das sobrancelhas grossas:

O médico ainda estava decifrando o documento quando pus a mão em seu

ombro.

— Livesey, você vai abandonar esses seus clientes chatos. Vou fretar um

navio em Bristol. Levo comigo Joyce, Hunter e Redruth, o meu guarda-caça. Com o

valente grumete Hawkins aqui presente e você, o médico de bordo, vamos procurar

esse tesouro e logo voltaremos ricos.

— Um minuto! — interrompeu meu amigo. — Você acha mesmo que esse

Flint...

— Ora, Livesey! A fama desse pirata sedento de sangue não é à toa: se

existe um tesouro garantido no mundo, sem dúvida é o que ele escondeu nessa ilha!

Livesey ficou tão excitado que arrancou a própria peruca.

— Jim e eu embarcaremos com todo o gosto. Só tenho medo de uma

coisa...

Tive um sobressalto:

— De quê?

— De sua língua. Você fala demais. Ora, lembre-se de que homens sem fé

nem lei estão na nossa cola. Os mesmos que há pouco saquearam a hospedaria.

— Quem você pensa que sou, meu amigo?

Trelawney colocou o copo de lado e continuou a contar, os olhos brilhantes:

Dois dias depois eu estava em Bristol. Era incrível: quando eu pronunciava a

palavra "tesouro", todo mundo corria para me ajudar. Meu velho amigo Blandly

desencavou para mim uma bela escuna, o “Hispaniola”, contratou seu capitão, o

senhor Smollett, e prometeu enviar um navio a nossa procura se não estivéssemos

de volta até o mês de agosto. E quando penso que alguns invejosos o acusaram de

agir só por interesse!

Recrutar os marujos foi mais difícil, mas um dia achei o que procurava.

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Era um sujeito de perna de pau, que encontrei no cais. Não falei nem vinte

minutos com Long John Silver e minha tripulação estava completa: esse homem

providencial tinha uma taverna no porto e conhecia todos os bons marinheiros. Ele

próprio trabalhara nos navios do rei. Ele confessou-me, com lágrimas nos olhos, que

sonhava em voltar ao mar. O mínimo que pude fazer foi contratá-lo como cozinheiro

de bordo!

A essas palavras, Trelawney cerrou os punhos dentro dos bolsos do casaco.

Ele respirou fundo e continuou:

Escrevi a Livesey que tudo estava pronto. Quando ele chegou, levei-o

imediatamente ao “Hispaniola”. O navio o impressionou muito.

Pedi a Jim que fosse buscar Long John na taverna e logo os vimos surgir no

cais, parecendo dois velhos amigos. Um, vermelho de excitação, o outro andando

depressa com sua muleta, com um papagaio no ombro. O médico simpatizou

imediatamente com Silver. Como poderia ser de outra forma? Seu rosto largo

irradiava honestidade e bom humor.

O rosto de Trelawney ficou sombrio. Ele pôs na boca o bocal que serve para

soprar o fogo da lareira e suspirou, avivando as brasas.

Em compensação, o capitão Smollett era um tremendo rabugento. Ele veio

se juntar a mim, a Livesey e a Jim, na sala dos oficiais, na popa do navio. Fechou a

porta atrás de si e começou a pôr defeito em tudo. Criticou a expedição e minha

tripulação.

— O mais reles marujo a bordo sabe mais do que eu sobre essa expedição

— disse ele. — Ao que parece, vamos procurar um tesouro situado...

E Smollett falou o local exato da ilha.

— Oh! — fez o médico olhando para mim com ar de censura.

Gritei para ele:

— Dou-lhe minha palavra que não mostrei o mapa a ninguém!

Trelawney voltou a cabeça para mim:

— E era a pura verdade, senhora.

— Pouco importa — interrompeu meu amigo. — O que o senhor propõe,

capitão?

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— Levar a pólvora e as armas do depósito da frente, onde a tripulação

dorme, para a parte de trás do navio. Proponho também que os homens contratados

pelo senhor passem a dormir conosco, atrás.

Ele insinuava que poderia haver um motim durante a viagem: que bobagem!

Mas antes que eu me irritasse, Livesey me apertou o braço. E quando Smollett saiu,

ele me disse com toda a calma:

— Trelawney, esse capitão me dá uma boa impressão.

Era melhor ouvir uma bobagem daquelas do que ser surdo!

O castelão pegou a tenaz da lareira e remexeu as brasas, levantando uma

nuvem de fagulhas.

E continuou:

No dia 9 de março, ao amanhecer, partimos. Os marujos cantavam em coro

o impressionante refrão de Silver.

"Quinze homens sobre o caixão do Defunto

E uma garrafa de rum!"

Os marujos trabalhavam animadamente ao som do apito do contramestre.

Sem querer me gabar, minha cara, aquilo é que era vida, por Deus!

Jim Hawkins estava gostando muito de sua nova função de grumete. Ele não

se afastava um palmo de Silver. O perna-de-pau lhe ensinava a arte da navegação

enquanto mexia as panelas. Ali por perto, o papagaio berrava:

"Moedas de prata! Moedas de prata!"

Hawkins não poupava elogios ao cozinheiro:

— Os marinheiros o adoram, senhor. Ele escora a perna de pau num tabique

e cozinha sem derramar uma gota!

Eu também gostaria de ter o mesmo entusiasmo pelo capitão. Desde que

tínhamos partido,

Smollett me falava por monossílabos e cumpria seu dever sem acrescentar

uma palha. Se ele não fosse um navegador tão brilhante, eu o atiraria no mar.

Só minha escuna era capaz de emocioná-lo:

— Ela obedece ao vento mais do que um marido poderia esperar de sua

própria esposa — dizia ele.

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Mas logo acrescentava, franzindo as sobrancelhas:

— Mas nem por isso conseguimos chegar a bom porto.

Trelawney começou a rir:

Eu tinha vontade de lhe bater na cara! Consolava-me sonhando com a ilha, a

ilha onde nos esperava o tesouro do terrível capitão Flint... Eu morria de impaciência

de chegar lá. E finalmente, certa manhã...

O fidalgo se levantou de repente da poltrona, e pensei que tinha

enlouquecido quando se pôs a gritar:

— Terra!

Ah, senhora, o grito do vigia ainda ressoa e sempre haverá de ressoar em

meus ouvidos!

Corri para a proa, onde estava toda a marujada, que tinha recolhido as velas,

por ordem de Smollett. Ele perguntou se alguém já tinha visto aquela ilha antes.

— Sim, senhor — respondeu Long John. — Uma vez fomos até lá para

buscar água doce, quando eu estava servindo num navio mercante.

E o velhaco não me dissera uma palavra sobre isso quando lhe falei sobre a

ilha, em Bristol! Ele acrescentou, dirigindo-se a Jim:

— Você vai poder tomar banho, subir nas árvores e escalar as colinas, como

eu fazia quando tinha minhas duas pernas, grumete!

Hawkins estava pálido de emoção.

Um instante depois, Livesey me puxou pela manga.

— Meu amigo — disse ele —, venha se reunir a mim na sala dos oficiais, e

traga Smollett também. Jim tem notícias terríveis para nos dar.

Ele falou com uma voz tão oca que meus cabelos se arrepiaram sob a

peruca. Na popa do navio, Jim nos contou uma conversa que acabara de ouvir, no

convés, entre Silver e Hands, o timoneiro. Silver estava tramando se livrar de todos

nós, que ficávamos na popa, no momento oportuno. A metade dos marinheiros já

estava do lado dele, pois eram todos da antiga tripulação de Flint. Quanto aos

demais, ele foi ganhando um a um os marujos mais influenciáveis, durante a viagem.

— Ele disse assim, senhor — concluiu Jim corando: — no dia em que puser

as mãos no tesouro, ele vai desparafusar a sua cabeça de bezerro com as próprias

mãos.

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Senhor, faça com que um dia eu tenha esse patife na boca do meu fuzil!,

pensei eu rangendo os dentes.

— Que homem danado! — murmurou Livesey, exprimindo o meu próprio

pensamento.

— Ele daria um belo enforcado na verga grande, sem dúvida! — exclamou o

capitão. — Senhores, precisamos esperar o momento oportuno para pegar esses

bandidos de surpresa.

— Capitão — disse-lhe eu —, fui um verdadeiro asno nessa história. Conte

comigo para cumprir à risca todas as suas ordens.

Trelawney contou nos dedos, dramático:

Smollett, Livesey e eu, mais Joyce, Hunter e Redruth, meus três criados...

éramos sete, incluindo o grumete, contra dezenove.

— Jim pode nos ajudar muito — disse o médico. — Os homens não

desconfiam dele.

Ao amanhecer, o capitão ordenou que se levasse o navio para a enseada da

ilha do Esqueleto. Um cheiro podre empesteava a atmosfera sem o menor sopro de

vento.

— Aposto minha peruca como a febre e a disenteria correm soltas nessa ilha

— disse o médico em tom sombrio.

O nervosismo aumentava cada vez mais a bordo, e o motim parecia prestes

a estourar. Prudente, Smollett propôs aos homens que fossem passar a tarde em

terra.

Os cretinos soltaram um urro de alegria. Com certeza achavam que iriam

tropeçar no tesouro logo que pusessem os pés em terra! Seis homens continuaram a

bordo, e os outros treze embarcaram nas chalupas... Hunter veio me avisar que Jim

entrara numa delas. Não duvidávamos de sua lealdade, e ficamos muito preocupados

com ele.

Passado um instante, o médico não conseguiu se conter. Decidiu pegar o

pequeno escaler e descer para fazer o reconhecimento da ilha com Hunter.

Eles partiram na direção contrária à dos piratas.

Eu os enxerguei na costa, Hunter de sentinela na areia, Livesey

embrenhando-se na mata. Um minuto depois, o grito de um homem sendo degolado

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gelou o meu sangue.

Livesey, aquele amigo excelente, acabava de morrer por culpa minha! Ao

pensar isso, caí no convés, sem mais forças que uma criança.

A voz de Trelawney adquirira um tom sombrio. Ele temperou a garganta e

recomeçou:

Logo depois percebi que me enganara: vi o médico voltando com Hunter,

são e salvo. Ele também ouvira o grito e esperava de todo o coração que não fosse

de Jim... Com a autoridade de um oficial, ele nos comunicou um novo plano de

batalha: devíamos nos instalar na ilha, num fortim que ele havia descoberto na sua

pequena expedição. O fortim fora construído por Flint.

— O lugar é bem melhor do que o navio para resistir a inimigos em maior

número — ele nos garantiu. — E, detalhe importante, tem uma fonte de água pura.

Minha fraqueza passara. Eu me sentia pronto a vender caro as nossas vidas.

Pela escotilha da sala dos oficiais, enchemos o escaler de pólvora, mosquetes,

caixas de toucinho, biscoitos e remédios. Em seguida, descemos para o escaler e

remamos com força para a costa. Fizemos tudo isso procurando despistar os seis

piratas que tinham ficado no navio.

Quando já estávamos bem longe, nós os vimos correr para o canhão.

— Senhor Trelawney — disse-me Smollett. — O senhor é o melhor atirador.

Dê cabo de um daqueles artilheiros.

Eu o fiz com sucesso. Isso não impediu que uma de suas balas afundasse

nosso barco a alguns metros da costa!

Ouvíamos vozes na colina. Os tiros de canhão tinham chamado a atenção

dos piratas que estavam em terra... Uma comissão de recepção, liderada por Silver,

vinha em nossa direção. Corremos para o fortim para chegar lá antes deles. A batalha

se deu diante da paliçada. Assumimos o controle do fortim, à custa da vida de meu

pobre Redruth.

Durante todo esse tempo os amotinados do navio continuavam a atirar no

fortim com os canhões. Eles podiam ver o fortim do mar, por causa da bandeira

inglesa que Smollett içara no teto. Felizmente, suas balas não causavam nenhum

dano.

Uma boa notícia veio se somar à nossa frágil vitória: Hawkins estava vivo.

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Ele acabara de saltar a paliçada e vinha correndo em nossa direção!

Acordei em minha poltrona às três horas da manhã. O fogo estava apagado,

porque Trelawney não havia tido o cuidado de alimentá-lo. Fui deitar. Naquela noite,

pus um pedaço de queijo comté num prato, abri uma garrafa de vinho do Jura e tive

um sobressalto quando vi a terceira ilustração: uma criatura de forma humana,

escura e peluda, meio escondida por uma árvore.

Tarde demais para lamentar: um tufo de cabelos espetados já estava

passando por trás do encosto de minha poltrona. Ao som de minha voz, seu dono se

enfiou sob o armário. Ele estava mais assustado do que eu!

Agradecendo ao céu por ninguém estar me vendo, chamei-o delicadamente,

oferecendo-lhe um pedaço de queijo comté: "Toma, toma!"

Uma mão apanhou o queijo, na velocidade do raio. A criatura saiu de sob o

armário e se jogou aos meus pés implorando:

— Nossa Senhora, Mãe de Nosso Senhor, não tem queijo parmesão? Nossa

Senhora?! O turbante azul-celeste amarrado em minha cabeça devia ter enganado

aquele espírito fraco! Um pouco depois, sentando-se no chão, sobre as próprias

pernas, o homem-macaco bateu no peito:

Eu sou Ben Gunn, um infeliz que foi abandonado na ilha, no livro que Robert

Louis escreveu. Meu nome de batismo é Benjamin, porque sou filho de uma cristã de

verdade, como sabe, Nossa Senhora. Ela não tem culpa se fui para o mau caminho,

e terminei como pirata no “Walrus” do capitão Flint! Eu estava presente quando ele

veio esconder o tesouro na ilha. Nós, da tripulação, ficamos todos a bordo, até Billy

Bones, o imediato, e Long John Silver, o contramestre: Flint só levara consigo seis

marujos fortes para cavar o buraco.

Mas acontece que ele voltou só, com uma faixa amarrada na cabeça.

Estava pálido como um defunto. Ele trucidara os seis marujos...

Três anos depois, eu estava trabalhando em outro navio. Quando este

passou perto da ilha, revelei que lá havia um tesouro escondido. Procuramos durante

doze dias sem encontrar um alfinete. A cada dia que passava, os companheiros me

olhavam mais atravessado. No décimo terceiro dia eles me abandonaram na ilha.

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Deixaram-me sozinho, com um mosquete, uma pá e uma picareta, e embarcaram

para não mais voltar.

Durante três anos este pobre Ben Gunn ficou na ilha, a sonhar com um

pouco de comida cristã. Em minhas preces, Nossa Senhora, eu pedia principalmente

queijo, sabe?

Ao cabo desses três anos, ouvi um barco aproximando-se na noite. Meu

ouvido se tornara muito apurado, capaz de perceber o mínimo balido através das

colinas. Só assim eu poderia sobreviver.

Ben, disse a mim mesmo, não se alegre, rapaz: esse navio está só de

passagem, como todos os outros que você viu nestes três anos.

De manhã bem cedo subi na colina mais alta, chamada de Telescópio.

Este pobre Ben Gunn não acreditou no que seus olhos viram: o navio estava

ancorado na enseada do Esqueleto.

Se é Flint que está de volta, pensei comigo, sua vida não está valendo um

tostão furado, Benjamin!

Aí pelas duas horas da tarde, ouvi as vozes dos marujos que

desembarcavam. Desci em direção à baía, escondido por trás das árvores da colina.

Um urro me gelou o sangue. Vinha de ato que eu já presenciara e já praticara, me

perdoe, Nossa Senhora.

Era o grito de um homem sendo degolado, não havia a menor dúvida! Mas

na ilha eu recuperara minha alma de cristão e também a vontade de comer queijo.

Espere anoitecer, meu velho Ben, disse a mim mesmo. Nenhum deles tem

seus olhos de gato...

Um barulho um pouco mais baixo chamou a minha atenção. Era alguém que

fugia a toda a velocidade em minha direção. Um grumete, um rapazinho de boa

aparência. Ele me viu e virou para outra direção. Corri e o alcancei.

— Quem é você? — ele me perguntou, levando a mão à pistola que trazia na

cinta.

Há três anos eu não falava com um cristão; o menino franziu as

sobrancelhas, esforçando-se para entender as palavras, que mais pareciam o coaxar

de um sapo.

Olhou minha roupa, remendada do jeito que me foi possível: botões de

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cobre, lascas de madeira e pedaços de corda. Eu passei a mão em sua roupa,

apertei-lhe as mãos. Nossa Senhora bem sabe quanto me agradava reencontrar um

semelhante.

O pequeno me deu uma boa notícia: o navio não pertencia a Flint, mas a um

bom senhor. Ele prometeu me dar quilos de queijo parmesão, se conseguisse voltar

ao navio. E também uma notícia ruim: quem estava em terra era Long John, com um

grupo de marujos, tramando contra alguns fidalgos que permaneciam a bordo.

Agarrei seu braço:

— Oh, grumete, se você me prometer um lugar no navio na viagem de volta,

posso ser sua tábua de salvação. Para voltar a bordo, olhe sob o Rochedo Branco e

encontrará minha canoa de casca de árvore... Esta noite vou fazer algumas viúvas de

piratas!

Ouviu-se um tiro de canhão, em seguida disparos de armas de fogo.

— Eles estão lutando! — exclamou o rapazinho.

Ele correu em direção à bandeira inglesa que começou a tremular acima das

árvores. E eu estou esperando a vinda do fidalgo com uma bandeira branca, que o

rapazinho me prometeu. Tenho tesouros de coisas a lhe dizer.

Ben Gunn reforçou a palavra "tesouros" com um piscar de olhos que não

fazia o menor sentido para mim. Em seguida o homem-macaco sumiu no mato.

Na quarta noite, a tempestade continuava forte. Ela já durava uma semana,

e eu já estava começando a me cansar dos passeios que dava sob a ventania,

usando botas e capa de chuva; estava cansada também do purê de ervilhas.

Para me reconfortar, preparei uma torta “Tatin”, que estava pensando em

comer com uma sidra especial. Acomodei-me junto à lareira com minha torta e minha

bebida e alegrei-me com a quarta ilustração. Um rapaz simpático, o rosto cheio de

sardas, saltava uma paliçada.

— Puxa, essa torta de maçã está com um cheiro ótimo!

Lá estava ele, com as mãos na cintura.

— Torta de maçã? Nada disso, meu rapaz, é uma torta “Tatin”!

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Eu já colocara um segundo prato. Cortei um bom pedaço para ele, e lhe

mostrei o creme:

— Sirva-se. Então, vai me contar a continuação da história?

Ele sorriu, e apareceu uma encantadora covinha na sua face esquerda.

Sou Jim Hawkins, e gosto de agir com audácia no livro que Robert Louis

escreveu!

Você deve saber que achei o mapa e descobri a conspiração de Long John.

Eu estava no fundo de um barril, onde tinha ido pegar uma maçã, e ouvi por acaso a

conversa de Long John com Hands, o timoneiro.

No dia em que os piratas desceram à ilha do tesouro, saltei, num impulso,

numa das chalupas. Um pouco mais adiante, percebi que tinha entrado na boca do

lobo.

Logo que desembarcamos, fugi o mais rápido que pude e me escondi no

mato. Ainda bem que fiz isso! Escondido no mato, vi um dos últimos marujos

honestos ser trucidado por não querer passar para o lado dos conspiradores. Ainda

hoje aquele grito me gela o coração.

A colher de Jim parou um instante no ar, perto de sua boca. Depois ele me

perguntou, batendo o indicador na têmpora, se eu recebera a visita do... tantã.

Ele sorriu.

Por Deus, aposto como ele disse a você "Porque Ben isso, porque Ben

aquilo!" Confesso que não lamentei nem um pouco deixá-lo, quando corri para o

fortim onde os senhores tinham se instalado. Eu contei a eles o que acontecera

comigo.

— Esse tal de Ben Gunn... é um homem ou um selvagem? — perguntou o

médico.

— Por Deus, senhor, para mim é um louco.

— Então é um homem — concluiu ele. — Quem não enlouqueceria ficando

só, por três anos, numa ilha deserta? Vou atrás dele com o parmesão que guardo em

minha tabaqueira, no lugar do tabaco. Quem sabe ele pode ser um aliado.

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E acrescentou, animado:

— Temos mais dois aliados: o rum, que corre solto entre nossos inimigos, e

o pântano insalubre onde eles estão instalados. Aposto minha peruca que todos eles

contrairão a febre em uma semana.

Na manhã seguinte, começaram os preparativos para o combate:

Silver agitou uma bandeira branca do outro lado da paliçada.

— É uma armadilha — sussurrou Smollett.

Ele encarregou cada um de nós de vigiar uma janela ou carregar os

mosquetes, e respondeu a Silver:

— Venha conversar, se é isso o que quer!

Long John escalou com toda a facilidade a paliçada sem a ajuda da perna

ausente e avançou pela areia até a cabana.

— Pelo que vejo, cá estão vocês instalados como uma pequena família —

principiou ele, sentando-se no chão. — Ora, bom dia, Jim!

Abaixei os olhos. E eu, que achava que aquele homem era meu melhor

amigo... Pode pensar o que quiser, mas eu não conseguia odiá-lo.

— Seja breve — interrompeu o capitão.

— Então ouçam o que proponho — disse Silver. — Vocês me entregam o

mapa do tesouro. Em troca, quando estivermos com o dinheiro, dou minha palavra

que os deixo em segurança em algum lugar.

— Muito bem — respondeu o capitão. — Aqui tem minha resposta.

Entreguem-se imediatamente, um a um, e eu os levo para a Inglaterra,

acorrentados no porão do navio, para serem processados. Senão, vocês vão ver

quem é

Alexandre Smollett, que defende as cores de seu rei. E, agora, suma daqui,

e depressa!

Silver levantou-se, contrariado. Com uma praga terrível, ele escarrou na

fonte que havia na entrada da cabana e berrou:

— Em menos de uma hora vou queimar vocês neste barraco feito lenha

seca!

Quando ele terminou de escalar a paliçada, preparamo-nos para o assalto.

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Os sabres e os mosquetes foram colocados no centro. O senhor Trelawney,

Gray, um marinheiro que ficara do nosso lado, Hunter, Joyce e o médico se postaram

atrás das seteiras. Como eu e o capitão éramos péssimos atiradores, preparamo-nos

para recarregar os mosquetes.

Jim parara de comer. Ele continuou a falar, mantendo os olhos fixos e o prato

nos joelhos.

O sol se levantou, aspirou o nevoeiro. Logo o calor ficou tão forte que

derreteu a resina das achas de lenha. A gente se sentia como se estivesse numa

fornalha.

Quando estávamos nas últimas, os piratas se lançaram contra a paliçada,

aos berros. Outros cobriam o seu ataque, atirando de detrás das árvores.

Seguiu-se uma confusão cheia de gritos, de agitação e do assobio das

balas. Vários piratas se aproximaram do fortim fumegante.

— Para fora, rapazes, peguem os sabres! — gritou Smollett.

Mal acabei de sair, vi acima de minha cabeça uma lança brilhando ao sol.

A esta hora eu estaria morto se não tivesse me jogado na areia e rolado num

declive. Enquanto eu me levantava, Gray rachou a cabeça do meu inimigo, que

estava tirando a lança da areia.

Em pouco tempo os piratas bateram em retirada.

Protegidos na cabana, fizemos as contas: Joyce e Hunter estavam mortos, o

capitão, ferido. Mas como tinha havido cinco mortos do lado dos piratas, o futuro

sorria para nós!

Jim raspou vigorosamente o creme com o suco de maçãs do fundo do prato.

Ele recomeçou a falar, animado:

Durante a tarde, nenhuma notícia do inimigo. O médico saíra à procura de

Ben Gunn. Trelawney e Gray acudiam nosso ferido. Então tive uma idéia maluca.

Peguei um par de pistolas, balas e um saquinho de pólvora e saí do fortim.

Talvez você me censure por ter abandonado a cabana, deixando nela

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apenas dois homens válidos. Mas o que você quer? Sou jovem. Por Deus!

Sinto necessidade de me mexer!

Cheguei à enseada pelo lado que dá para o mar aberto, para não ser visto

do navio. Ouvi ao longe, à minha frente, o rugir das ondas contra os rochedos, e logo

cheguei ao banco de areia de onde podia avistar o “Hispaniola”. Dois homens que

estavam a bordo ouviam Silver, que falava com eles de uma chalupa. Um grito

estridente me crispou os nervos, mas logo reconheci a voz do papagaio de Silver,

empoleirado em seu ombro.

Quando o sol desapareceu por trás da colina Telescópio, a chalupa se

afastou do navio.

Consegui encontrar a canoa de Ben Gunn sob o Rochedo Branco e a pus na

água. Eis o meu plano, simples e audacioso: ir até o “Hispaniola” e cortar sua amarra.

O navio iria vagar sem rumo, e os piratas não conseguiriam voltar ao mar.

Minha canoa insistia em ir de lado, mas a maré vazante me levou direto ao

“Hispaniola”.

Quando o alcancei, vi que sua amarra estava muito esticada. A leve canoa

de Ben Gunn seria lançada ao ar se eu tentasse cortá-la naquele momento. Esperei.

Vozes encharcadas de rum e de cólera berravam na sala dos oficiais. Os dois

marujos que estavam guardando o navio lutavam entre si.

Uma lufada de vento sudoeste empurrou o navio à contracorrente e a amarra

se afrouxou sob os meus dedos. Peguei o facão e comecei a cortar, enquanto

escutava as pragas que vinham da popa.

Quando a amarra se soltou, empurrei o barco em direção à popa do navio,

de onde eu poderia voltar para a costa. Mas quando lá cheguei, minha mão tocou

numa corda que pendia do castelo de popa. Antes de me dar conta do que estava

fazendo, pendurei-me na corda e me ergui até a altura da escotilha da sala dos

oficiais, mantendo os pés apoiados na canoa. E então vi uma cena horrível: na

cabine, Hands e um marujo de boné vermelho se pegavam pelo pescoço, os rostos

deformados pelo ódio.

Abaixei-me, trêmulo. Meus pés só encontraram a água! A canoa de Ben

Gunn se afastava de mim em direção à costa. Não tive tempo de me perguntar como

aquilo tinha acontecido.

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A única coisa que podia fazer era subir no navio. Por sorte, a escotilha que

dava para o corredor estava aberta. Fui para o convés, avancei até a proa e me

encolhi atrás de um monte de cordas.

O “Hispaniola” deu uma guinada, carregado pela corrente. Sem ninguém que

o governasse, ele com certeza iria de encontro aos recifes, onde eu iria me

despedaçar.

Eu bebia as palavras de Jim: nesse momento dei um gritinho. O jovem não

pareceu perturbado com minha angústia e guardou um silêncio cheio de suspense,

para depois continuar:

O cansaço me venceu. Eu acordei com o sol alto. O “Hispaniola” andava aos

coices, entregue a si mesmo, ao sabor das ondas. Tudo parecia morto no barco. Uma

garrafa cortada pelo gargalo rolava de um lado para outro.

O vento soprou contra a verga do mastro grande e descobriu os dois

marujos que estavam lutando na popa na noite anterior: "Boné Vermelho" de costas,

os braços cruzados, um ricto de morte nos lábios, Hands encostado na balaustrada,

numa poça de sangue.

Um gemido me indicou que ele estava vivo, e senti piedade até que me

lembrei de que ele não havia tido dó de ninguém, quando dissera a Silver que nos

jogasse por cima da amurada. Aproximei-me dele, e o ouvi murmurar: "Rum". Tremi,

pensando ouvir Billy Bones na estalagem Almirante Benbow.

— Esses piratas são todos iguais: crianças que se alimentam de rum! —

exclamei, para aliviar a tensão. Jim ignorou minha interrupção:

Depois de beber, Hands ressuscitou. Dei-lhe as últimas notícias:

— Sou seu novo capitão, senhor Hands. Cortei a amarra, acabei de tirar a

bandeira negra e de jogá-la na água.

Hands olhou para mim, espantado:

— Então foi você quem...! Por Deus, capitão Hawkins, sem mim você não vai

conseguir voltar à terra, com mil trovões! Eis o que lhe proponho: você me traz

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comida e um lenço para amarrar a minha perna, e eu dirijo as operações.

— Negócio fechado, timoneiro!

Eu queria dirigir o navio para a baía do norte, onde aqueles senhores

poderiam recuperá-lo. Assim, aos seus olhos, eu seria menos culpado de minha

deserção da cabana.

Hands foi ajudado pelo vento, que mudou em nosso favor. Enquanto eu

trabalhava no leme, sob sua direção, seu sorriso mau me incomodava. Eu tinha

conseguido virar de bordo perfeitamente, e o navio ia em linha reta para a parte da

costa coberta de mato. A certa altura, ao me voltar, vi que ele estava prestes a se

atirar sobre mim, com o punhal na mão.

Gritei de terror; ele, de raiva. Por alguns instantes brincamos de gato e rato,

e dou graças a Deus por ter me exercitado nesse jogo entre os rochedos da falésia

onde nasci.

Depois o “Hispaniola” fez que nós dois chegássemos a um acordo.

Chocando-se contra a areia da praia, ele tombou a bombordo.

O convés se inclinou em 45 graus e caímos de ponta-cabeça, rolando junto

com o cadáver de "Boné Vermelho".

Levantei-me antes dele e pulei na escada de cordas. Depois de um

momento de estupefação, Hands também começou a subir. Ele tinha tanta

dificuldade que tive tempo de me empoleirar nas vergas do joanete e de verificar a

pólvora de minhas pistolas.

Quando ele se aproximou de mim, elas estavam apontadas contra ele.

— Bravo! — não pude deixar de gritar, batendo palmas. Jim me fez calar

com um gesto, e imitou a voz rouca de Hands:

— Jim — disse Hands, parando —, eu faço as pazes, embora isso não seja

fácil para um mestre piloto como eu diante de um marinheiro de primeira viagem

como você...

Ele tirara a faca de entre os dentes para falar. Num abrir e fechar de olhos,

ele a jogou contra mim. Fiquei preso ao mastro pelo ombro, enquanto Hands caía de

cabeça para baixo na água, berrando. Juro por Deus, minhas pistolas atiraram

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sozinhas. Eu nem precisei apontar!

Desci, com as pernas trêmulas, deixando no mastro um pouco de minha

carne presa à faca de Hands. Não quis olhar seu corpo, que voltava à superfície da

água. Meu único pensamento era: Eu, Jim Hawkins, trouxe o “Hispaniola” ao seu

proprietário e ao seu capitão! O próprio Smollett reconhecerá que não perdi meu

tempo... E apressei o passo, o coração batendo forte, em direção ao fortim.

Cheguei quando já era noite fechada. Estranho: não havia nenhuma

sentinela na entrada... Mas fiquei tranqüilo ao ouvir os roncos que se elevavam na

escuridão. Foi então que uma voz estridente gritou em meus ouvidos:

— Moedas de prata! Moedas de prata!

A chuva tamborilava na janela. Enrolei um cigarro para mim diante da lareira,

saboreando uma fruta cristalizada. Eu estava muito triste por ter perdido Jim. Na

véspera, ele sumira na noite, como os outros.

Suspirando, procurei a quinta ilustração. Quando vi o pirata de perna de pau,

com um lenço amarrado à cabeça sob o chapéu de três bicos, ouvi uma tempestade

de pragas terríveis. Silver estava diante de mim, com o papagaio no ombro.

— Desculpe-me, senhora! Meu pássaro pragueja mais que Flint, que lhe deu

seu nome, mas é inocente como um bebê. Se a senhora fosse uma freira, ele

blasfemaria da mesma forma!

Meu coração batia descompassado. Pensei na angústia de Bones, no grito

de agonia do pobre marujo, e maldisse minha tolice de remexer na primeira mala que

vinha dar na praia.

Silver avançava. Eu sentia o cheiro de suor e de pólvora.

— Não precisa ter medo, senhora — disse ele em voz baixa. — Eu só quero

um pouco de fumo para o meu velho cachimbo!

Ele se sentou diante de mim e, sem a menor cerimônia, encostou sua perna

de pau na poltrona e encheu tranqüilamente o cachimbo. Eu não ousava dizer nada

ao papagaio, que, trepado na mesa, avançava em minhas frutas cristalizadas. Então

o pirata me disse:

Eu sou Long John Silver. E se alguém merece uma parte desse tesouro sou

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eu mesmo, no livro que Robert Louis escreveu.

Flint talvez seja mal-educado, mas é um bom cão de guarda. Naquela noite

ele me acordou sobressaltado no fortim, onde eu acabara de me instalar com meus

homens.

"Moedas de prata! Moedas de prata!" Num abrir e fechar de olhos, senhora,

todo mundo estava de pé. Dick acendeu uma tocha, e que vejo?

Hawkins! Dava pena sua expressão de terror enquanto contemplava o fortim

e as provisões deixadas pelos senhores. Ele tinha certeza de que nós os tínhamos...

"Cuic!", concluiu Flint, derramando frutas cristalizadas na poltrona, aquele

bicho sujo. Apertando os olhos, Silver continuou:

Quanto a mim, por mais que estivesse entorpecido pelo sono e pelo rum da

noitada, percebi imediatamente que poderia tirar partido da chegada do menino.

Confesso a você: eu estava em pleno naufrágio, e Jim Hawkins era minha tábua de

salvação.

— Não fique com essa cara, meu rapaz — eu lhe disse. — Seus amigos

ainda estão vivos. Só que você por enquanto não pode contar com eles. E a menos

que queira fazer um grupo sozinho, vai ter de ficar do nosso lado.

Jim não respondeu nada. Ele empalidecera, mas seus olhos sustentavam o

meu olhar ousadamente. Eu insisti:

— Você conhece o capitão

Smollett, ele não brinca com a disciplina. E até o médico está furioso com

você!

Eu acertara na mosca. O fogo incendiou as faces do grumete.

— Antes de decidir — disse ele com voz trêmula —, gostaria de saber a

quantas estamos.

— Isso, só o diabo sabe! — começou a dizer Tom Morgan, mas eu lhe dei

um bom pontapé de pau nas canelas.

Eu disse a Jim que o médico viera na véspera a nosso acampamento com

uma bandeira branca:

— Silver, você foi traído: o navio sumiu!

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Por Deus, era verdade. E nós tínhamos bebido um bocado durante a noite.

— Seja como for, o fato é que esses senhores nos ofereceram o fortim e

nós, em troca, os deixamos partir. Aí está: agora você sabe de tudo, Jim.

— Eu conheço seus métodos, Long John. Sei que minha vida não está

valendo um tostão. Mas fique sabendo que fui eu que peguei o navio e o coloquei em

perfeita segurança para aqueles senhores. Além disso, se você me poupar, talvez

fique contente que eu testemunhe em seu favor no dia em que estiver ameaçado com

a forca por rebelião.

Bravo Jim! Eu estava com os olhos cheios de lágrimas. Silver puxou a barba

e confessou:

Aquele garoto me assombrava. Ele sozinho valia mais que meu bando de

brutamontes. Estes já avançavam para ele rosnando, mas eu os ameacei com minha

perna de pau e gritei que por enquanto não devíamos eliminar o garoto. Eles gritaram

que eu os traía, disseram que eu estava fazendo jogo duplo. Depois saíram para

conspirar contra mim e voltaram com a marca negra.

Cá para nós, eles já tinham me dado uma marca negra no dia em que

descemos à terra. Eu queria esperar que aqueles senhores encontrassem o tesouro

antes de atacar, mas os marujos cretinos e preguiçosos tinham me forçado a agir

antes da hora. Resultado: seis sobreviventes do nosso lado, sendo que um ferido,

outro sofrendo de febres, e eu a cada dia me sentindo mais próximo da forca.

Aborrecido, ele cuspiu um jato de saliva marrom na lareira, e uma parte dela

caiu no soalho. Agradeci a Deus por não receber mais piratas em meu farol. Então

ele continuou:

Desta vez, eu tinha um argumento de peso. Eu lhes mostrei o mapa de Flint.

Eles pularam em cima dele! Por Deus, minha senhora, precisava ver aquilo. Jim

arregalara os olhos. Ele não entendia como o mapa podia ter caído em meu poder.

Eu mesmo, depois que o médico me dera o mapa, me perguntava o tempo todo que

armadilha podia haver naquele gesto.

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— Jim — cochichei para ele enquanto os outros estavam ocupados com o

mapa —, eu salvei sua vida. Você vai testemunhar isso, não é?

— Sim — prometeu ele.

Ele devia se perguntar por que eu estava tão inquieto, agora que o tesouro

estava quase nas minhas mãos. Talvez ele tenha tido a resposta, no dia seguinte,

pela boca do médico. Este vinha todas as manhãs tratar meus piratas que estavam

com malária.

Era como se ele dissesse: "Eu os mantenho em boa saúde para a forca do

rei Jorge". Ele parecia muito contrariado por ver que Jim estava conosco. Eu deixei

que os dois conversassem a sós, correndo o risco de receber uma terceira marca

negra. Acompanhando o médico até a saída, pedi-lhe que se lembrasse daquele

favor no dia em que eu estivesse em apuros e ele numa posição mais confortável.

Ele lançou um olhar cheio de curiosidade:

— Você está com medo, Silver? Escute, dou-lhe minha palavra que sim, mas

não deixe que eles se aproximem de Jim.

O médico hesitou um pouco, mas logo acrescentou:

— E pode contar que vai haver briga na hora em que o tesouro for

descoberto.

Estas últimas palavras não faziam o menor sentido para mim.

Silver tirou várias baforadas nervosas de seu cachimbo. Lancei um olhar

duro a Flint, que se ocupava em rasgar o braço de minha poltrona com aqueles pés

horríveis. Silver continuou:

Partimos imediatamente para procurar o tesouro. Eu trazia Jim comigo,

amarrado a uma corda. À medida que andávamos, eu ia ficando mais tranqüilo. O

navio estava em segurança em algum lugar e, de qualquer forma, não seria difícil

recuperá-lo. Apesar de minha perna de pau, eu me sentia leve como uma pluma, e

me divertia imaginando-nos no “Hispaniola”, todos vivos e com saúde, o tesouro sob

nossos pés, morrendo de rir enquanto aqueles senhores choravam na praia. Eu só

tinha um pouco de pena de Jim.

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Ignorando meu olhar indignado, Silver bateu seu cachimbo perto da lareira

para tirar as cinzas. Flint alisava as penas, olhando não sei para onde. Dei-lhe uma

cotovelada como por descuido, e a estúpida ave quase se estatelou no chão. Silver

prosseguiu:

No meio do caminho, um esqueleto nos indicava o caminho certo, o dedo

apontado para o lugar onde estava o tesouro. Jim ia ficando para trás, e eu puxava a

corda para que ele apressasse o passo.

Subimos na elevação indicada no mapa. Quando já estávamos perto de

nosso objetivo, ouvimos este refrão cantado com uma voz trêmula que parecia do

outro mundo:

"Quinze homens sobre o caixão

do Defunto

E uma garrafa de rum!"

Meus pobres piratas de água doce tremiam como varas verdes. Até eu senti

o suor escorrer por minhas costas.

— O fantasma de Flint! Salve-se quem puder!

"Preparar para virar de bordo!", berrou de repente o papagaio. Larguei o

fósforo que acabara de aproximar de meu cigarro e fiz uma queimadura feia em

minha coxa. Silver se levantou, gritando para piratas invisíveis:

— Parem, bando de medrosos! Vocês não vão se acovardar a dois passos

do tesouro!

Ele suspirou:

Passei dez minutos tentando convencê-los a continuar. Finalmente eles

voltaram à razão e chegamos quase correndo ao lugar indicado no mapa.

O buraco já estava cavado. Ele estava vazio. Os rapazes saltaram dentro

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dele e remexeram a terra até perder as unhas. Dei de ombros.

— Vamos lá, vejam se acham uma ou duas raízes para o jantar! — gritei

para eles.

Prevendo o que aconteceria em seguida, recuei com Jim e armei minhas

pistolas.

Quando eles, cheios de raiva, se lançaram contra mim, eu atirei. Três

homens caíram dentro do buraco. O médico e os outros senhores saíram de entre as

árvores que havia em volta. Com eles estava aquele que tinha me passado a perna:

Ben Gunn, o idiota! Ele mesmo havia tirado todo o tesouro e colocado numa gruta,

entregando-o,depois, aos fidalgos. E ainda por cima fora ele quem zombara de nós

com o pequeno refrão que cantara ainda há pouco!

Flint soltou um palavrão.

Silver me lançou um olhar matreiro:

— Você está feliz pensando que a coisa acabou mal para mim, não é,

senhora?

Gaguejei algumas palavras de protesto.

Não precisa se preocupar — disse ele, sorrindo.

No meio da viagem de volta, desceram todos à terra, deixando Ben Gunn

tomando conta do navio. Naquela noite, peguei uma chalupa e fui embora com

alguns sacos de ouro em meus bolsos. E toca o barco!

Sacudindo a cabeça para trás, a estranha figura deu uma gargalhada. Sua

alegria era tão pura que não resisti mais e comecei a rir também. Minha voz ressoou

sozinha na sala.

Fui para a cama e estava entrando em meu primeiro sono quando uma voz

áspera me acordou brutalmente.

"Moedas de prata!"

Acendi a vela e dei um grito de raiva: Silver esquecera o papagaio.

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Glossário

Neste livro, aparecem vários termos de navegação. Você "boiou" por não

conhecer esse vocabulário tão específico? Aqui vão algumas dessas palavras e seu

significado.

Quem é quem na tripulação

imediato — na ausência do comandante (que no navio “Hispaniola” é o

capitão Smollet), é ele que dá as ordens

timoneiro — é o piloto do navio, pois governa o timão, que dá direção ao

leme

mestre — responsável pelo conjunto de velas e pelo aparelho (guindastes,

cabos e roldanas para levantar grandes pesos)

contramestre — o imediato do mestre

grumete — marinheiro de graduação inferior, geralmente novato.

Tipos de embarcação

escaler — embarcação pequena, sobretudo para o transporte do navio à

praia

chalupa — navio também de pequeno porte, com um único mastro.

Partes do navio

proa — porção frontal

popa — porção traseira

convés — piso, pavimento da embarcação, sobretudo o mais alto

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vergas — peças de sustentação da vela presas horizontalmente ao mastro

joanetes — velas e vergas situadas no alto de mastros grandes

escotilha — abertura no convés, como um alçapão, para entrar no interior da

embarcação

castelo de popa — parte coberta, às vezes de porte suficiente para abrigar

pessoas

balaustrada — conjunto que forma um anteparo para impedir que as

pessoas caiam no mar.

Instrumentos de bordo: para que servem?

sextante — localiza os navegantes a partir de referências do céu, como

estrelas

bússola — indica o norte com sua ponteira magnética.

Termos de orientação

bombordo — esquerda (a direita é “estibordo”).

A obra e seu autor

A aventura do garoto Jim na ilha do tesouro já acabou. Mas e a sua

curiosidade? Pois bem, estas páginas são para quem sempre quer um pouco mais.

Nelas, oferecemos informações sobre a vida do autor, outros livros que ele

escreveu e as circunstâncias que envolveram a criação desta obra.

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Uma História Envolvente

Tudo começou quando Robert Louis Stevenson resolveu contar uma história

de piratas para seu enteado, como fazia todas as noites. Era o ano de 1881. O

menino adormeceu, mas o escritor ficou de tal forma envolvido com a trama que

tratou de passá-la para o papel. Dois anos mais tarde ela começou a ser publicada

em capítulos na revista escocesa “Young Folks” (“Gente Jovem”), com o título “The

sea cook” (“O cozinheiro do mar”). O livro tornou-se um clássico do gênero, só

disputando fama com outro romance inglês de aventura, escrito em 1719: o

“Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe.

A história de Stevenson se passa no século XVIII, época de ouro da pirataria.

Conhecidos por suas peripécias como navegadores, os ingleses já se dedicavam ao

banditismo marítimo havia muito tempo, mas especialmente desde o século anterior,

quando as grandes expedições pelas Índias Ocidentais (nossas Américas) e pelo

oceano Índico entraram em decadência. Foi então que os corsários (piratas

"autorizados" por seus governos a assaltar os navios das nações inimigas) se

transformaram em indivíduos completamente fora da lei.

É dessa época a publicação de um tratado sobre os feitos dos piratas mais

célebres, que veio a inspirar diversos escritores, inclusive o próprio Stevenson. Talvez

essa leitura lhe tenha sido fundamental para a composição do personagem

excepcional que contracena com o menino Jim: com uma perna só, o papagaio

sempre no ombro, a fisionomia enganadoramente amigável e aquela tagarelice

inesgotável que caracteriza os marinheiros, Long John Silver tornou-se o pirata mais

famoso da literatura ocidental.

O aventureiro Stevenson

Nascido a 13 de novembro de 1850 em Edimburgo, na Escócia, Robert Louis

Stevenson conviveu toda a sua existência com uma tuberculose crônica, responsável

por grande parte dos rumos que seguiria. A começar pelo gosto por aventuras:

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durante as crises da doença, sua babá costumava acalmá-lo contando histórias de

piratas e contos folclóricos. A eficácia desse "tratamento" era total, funcionando não

só como paliativo das crises, mas também como combustível para sua fértil

imaginação.

Apesar da doença, o menino Robert volta e meia acompanhava o pai nas

andanças profissionais pela costa da Escócia. Tais passeios deixariam marcas

profundas em sua personalidade, inspirando-lhe a grande paixão pelo mar, tema

constante de seus livros.

A partir dos 21 anos, Stevenson dedica-se à literatura, aventurando-se por

diversos gêneros. Escreveu contos, novelas, romances, poemas, ensaios, além de

impressões de viagens e estudos de estética. Sempre, porém, lutando contra as

dificuldades impostas pela saúde frágil. Muitas vezes foi obrigado a escrever na cama

devido às crises pulmonares.

O casamento com a americana Fanny Osborne, em 1880, lhe trouxe a vida

tranqüila que tanto desejava e, talvez como conseqüência, o sucesso profissional.

Ele veio com “A ilha do tesouro”, que rendeu-lhe a consagração do público

em todo o mundo.

Sua fama aumentou com “O estranho caso do dr. Jekyll e do sr. Hyde”,

novela mais conhecida como “O médico e o monstro”.

Publicada em 1886, ela lhe trouxe a tão sonhada independência financeira.

Em 1888, após a morte do pai, Stevenson muda-se com a família para a

Oceania, onde passou os últimos e mais felizes anos de sua vida. Lá, foi

carinhosamente batizado pelos nativos de "Tusitala" — "o contador de histórias".

Sua aventura terminou no dia 3 de dezembro de 1894. Ele, que passou a

vida toda ameaçado pela tuberculose, acabou fulminado por uma hemorragia

cerebral.

Era um homem alto, magro, de olhos e cabelos negros, considerado pelos

amigos um espírito largo, generoso e extremamente sensível a ponto de chorar por

qualquer bobagem.

Na intimidade, revelava uma rara habilidade para desempenhar papéis,

registrada por um velho amigo com as seguintes palavras:

"Stevenson nunca era ele mesmo, a não ser quando estava em algum

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disfarce fantástico". Era mesmo um personagem encantador, esse contador de

histórias.