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7 A RELEVÂNCIA DO DIÁLOGO NA CONS- TRUÇÃO DE ENCONTROS, SABERES, SUJEITOS E REALIDADES João Paulo Pereira Barros 19 Este relato pretende compartilhar momentos e pensa- mentos propiciados pela minha experiência de alfabetização de jovens e adultos, a qual se deu na Escola de Ensino Fundamental Gustavo Barroso, de janeiro ajunho de 2004, contou com o apoio de uma estudante voluntária do programa Alfabetizar(se). O grupo de alfabetizandos, junto ao qual estivemos du- rante seis meses, se organizou por intermédio de uma outra ducadora, que conseguiu viabilizar a inserção do programa Alfabetizar(se) na escola supramencionada. Devido ao núme- ro de estudantes com dificuldades expressivas no ãmbito da leitura e da escrita, foi possível a formação de duas tur- mas, sendo que uma delas teve seu processo de interação e de aprendizagem facilitado por nós. Após a formação da turma, nosso trabalho se iniciou com seis educandos, em uma sala que comportava, no máximo, dez. Dentre as nossas aspirações principiantes, estava a de contribuir para a construção tanto de vínculos genuínos e significativos entre educadores e educandos, quanto de um clima de cooperação entre estes, por entendermos que-tais aspectos se constituem imprescindíveis em todo contexto inter- relacional que envolve processos de aprendizagem. Isso favoreceu com que, no decorrer do programa, os educandos se sentissem à vontade para se expressar e que relações dialógicas pudessem se instaurar e se fortalecer, com vistas à assunção, por parte de todos os envolvidos, de uma postura de sujeitos construtores de si, do conhecimento e da realidade. '9 Estudante do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará e membro do Núcleo de Psicologia Comunitária da UFC - NUCOM. A RELEVÂNCIA DO DIALOGO NA CONSTRUÇÂO DE ENCONTROS, SABERES, SUJEITOS E REALIDADES 11 5

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João Paulo Pereira Barros 19

Este relato pretende compartilhar momentos e pensa-mentos propiciados pela minha experiência de alfabetizaçãode jovens e adultos, a qual se deu na Escola de EnsinoFundamental Gustavo Barroso, de janeiro ajunho de 2004,

contou com o apoio de uma estudante voluntária doprograma Alfabetizar(se).

O grupo de alfabetizandos, junto ao qual estivemos du-rante seis meses, se organizou por intermédio de uma outra

ducadora, que conseguiu viabilizar a inserção do programaAlfabetizar(se) na escola supramencionada. Devido ao núme-ro de estudantes com dificuldades expressivas no ãmbitoda leitura e da escrita, foi possível a formação de duas tur-mas, sendo que uma delas teve seu processo de interaçãoe de aprendizagem facilitado por nós.

Após a formação da turma, nosso trabalho se iniciou comseis educandos, em uma sala que comportava, no máximo,dez. Dentre as nossas aspirações principiantes, estava a decontribuir para a construção tanto de vínculos genuínos esignificativos entre educadores e educandos, quanto de umclima de cooperação entre estes, por entendermos que-taisaspectos se constituem imprescindíveis em todo contexto inter-relacional que envolve processos de aprendizagem. Issofavoreceu com que, no decorrer do programa, os educandosse sentissem à vontade para se expressar e que relaçõesdialógicas pudessem se instaurar e se fortalecer, com vistas àassunção, por parte de todos os envolvidos, de uma posturade sujeitos construtores de si, do conhecimento e da realidade.

'9 Estudante do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará emembro do Núcleo de Psicologia Comunitária da UFC - NUCOM.

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A principal dificuldade nesse sentido deveu-se à exis-tência, dentro do grupo, de problemas de relacionamentocriados e acentuados em outros espaços; a isso se acres-centou o fato de que determinados alfabetizandos já tinhamlaços de amizade bastante consolidados com alguns, epouco se inclinavam para começar novas relações no interiordo grupo. Tal questão ficou bem evidente nas primeirasdisposições dos participantes no espaço da sala: algunsficavam, em todos os encontros, num mesmo lugar dorecinto e se juntavam, geralmente, aos mesmos compa-nheiros, enquanto outros preferiam, constantemente,realizar, sozinhos, as atividades propostas.

Nosso principal desafio diante desta situação foi, então,utilizar as potencialidades existentes no grupo, bem comoproblematizar, sobretudo nos encontros iniciais, a questãoda intersubjetividade e do ambiente escolar. Concomitantea isso, procurávamos valorizar cada pessoa e acolher cadajeito de ser e de estar, relacionando-nos, intensa e genui-namente, com cada educando, na tentativa de que fossemre-significados os papêis de educador e educando.

Foi preciso um árduo processo para lograr êxito nesseámbito das relações intragrupais. No entanto, observamosclaros sinais que denotaram o sucesso das nossas iniciativas.Em diversos momentos, os alfabetizandos se mobilizarampara ampliar os espaços de interação entre eles e para queseus vínculos transcendessem os limites da sala de aula eos propósitos básicos do programa, organizando, porexemplo, almoços em conjunto na casa de um dos edu-candos e realizando festas de aniversário para os educa-dores, com a participação efetiva de todo o grupo.

Alêm disso. vimos que houve um estreitamento doslaços entre nós e os educandos. manifestado atravês dointeresse deles de que o programa se estendesse mais; dosabraços calorosos no início e no fim dos encontros; do climade respeito e de aceitação recíproca, evidenciado nasbrincadeiras dentro e fora da sala, cada vez mais integradas

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caminhada de apropriação da língua escrita e do mundo,e de recriação da vida; dos presentes sinceros que nosofereciam e que lhes eram oferecidos por nós; dos diãlogosre-aprendidos, exercitados, valorizados, afirmados econcretizados na cotidianidade e na "convivencialidade",muitas vezes acerca de assuntos íntimos que eramcompartilhados com poucos.

A turma chegou ao final com oito pessoas freqüentandoassiduamente, sendo que uma outra educanda aindacomparecia esporadicamente. Na metade do programa,chegamos a contar com onze participantes, sendo que trêsdeles não puderam mais vir aos encontros - uma teve quevoltar para o seu interior de origem, por ter perdido oemprego, enquanto que as outras duas conseguiram empre-gos no horário dos encontros. No decorrer do programa,em contrapartida, outros estudantes começaram a participar.No que diz respeito à evasão escolar, tão recorrente entreas principais dificuldades identificadas por educadoresintegrantes do programa e por outros projetos de alfabe-tização de jovens e adultos, achamos que conseguimos darontinuidade ao trabalho sem termos sido prejudicados porssa problemática.

O contato com produções textuais propicia aos alfa-betizandos o acesso ao que a humanidade construiuhistoricamente, permitindo-Ihes o aperfeiçoamento no usode práticas sociais que utilizam textos, bem como aqualificação da sua atividade sobre a realidade.

Nessesentido, utilizamos situações ligadas à vida práticados educandos do nosso grupo, como, por exemplo, aleitura de ofertas de supermercado, tão usuais nos espaçosque geralmente freqüentam e tão imprescindíveis no usoplanejado e sustentável do pouco recurso financeiro de quedispõem. Tais atividades, por sua vez, desencadearam,também, ricos debates a respeito da economia local, dopoder de compra da população, da distribuição das riquezas

do crescimento de práticas consumistas.

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Com motivos e objetivos similares, trabalhamos, emalguns encontros, tendo como mote o uso de receitasculinárias, uma vez que havia uma considerável presençade donas de casa e empregadas domésticas no grupo, paraquem essa temática era sobremaneira cotidiana e signifi-cativa. Também nos valemos de jornais e revistas, devidoao fato de muitos estudantes chegarem comentando aconte-cimentos que viram pela televisão, ouviram pelo rádio ousouberam por meio de conversas com colegas, sendo olocus escolar profícuo para problematizar as situações quepermeiam o contexto dos educandos.

O processo de alfabetização aqui concebido apresentaa finalidade de auxiliar os indivíduos a se forjarem e a sereconhecerem sujeitos promotores de transformaçõesintencionais no mundo sócio-histórico-cultural onde estãoinseridos. Para tanto, a leitura tem que se remeter aouniverso existencial dos estudantes, tem que dizer respeitoa temáticas que traduzam sonhos, anseies. demandas,inquietações e vivência das pessoas em questão, visto quea palavra não é senão uma maneira de expressar umasituação real e de expressar-se ante a realidade.

As atividades de leitura que propusemos no decursodo programa objetivaram a percepção e a compreensãocrítica do entorno sócio-histórico-cultural e visaram adesencadear a "problernatízaçáo" da realidade dos edu-candos. por entendermos a leitura como uma forma derecriar a história e um instrumento para uma ação transfor-madora sobre o mundo e sobre si mesmos.

Utilizamos, para isso, textos de diversos gêneros queabordassem temáticas que fizessem sentido para o grupo.Propusemos, também, atividades de "fotolinguagem", decolagem e de recortes, bem como usamos crônicas, contos,poesias, jornais completos e/ou notícias especificas, o quepermitia que uma atividade fosse interessante paraestudantes com diversas preferências, além de contar comgravuras que favoreciam o ato de ler. Valemo-nos, do mesmo

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modo, de letras de música, as quais possibilitavam que otexto trazido para leitura tivesse uma conotação muito maisafetiva para o estudante; além do que escutar a músicatambém muito ajudava na decodificação das palavras e nainterpretação textual, elementos essenciais para umaposterior problematização da realidade e para vinculaçõesdo texto com o contexto.

Além disso, procuramos utilizar as frases que seencontravam nas dependências da sala e da escola, bemcomo as situações e os eventos que aconteciam naquelainstituição, como as comemorações a propósito doaniversário de Fortaleza. Aproveitamos, por exemplo, aocasião em que os estudantes da escola se reuniam com ointuito de cantar o hino municipal para discutirmos sobre avida na capital cearense. através da leitura do referido hinoe do confronto entre as adjetivações contidas no texto e assituações cotidianas dos educandos e da maioria dosfortalezenses.

Os temas dos encontros e, conseqüentemente, dasleituras surgiam por sugestão dos participantes e na medidaem que percebíamos, na dinâmica do grupo, a relevânciade determinados assuntos. No começo do ano, quandogrande parte da população da capital, inclusive osalfabetízandos. padeciam em razâo das chuvas, levamostextos e notícias que tratavam dessa questão e tentamosexplorar as situações próximas aos educandos. Na escola,à guisa de exemplíflcaçào. o teto do laboratório de infor-mática cedeu devido às chuvas, e as salas ficavam cons-tantemente alagadas. impossibilitando, por muitas vezes, oandamento das aulas, fatos que acarretavam a indignaçãode muitos estudantes e funcionários.

Outros temas deveras significativos para os educandoseram as questões do trabalho, da violência e da desigualdadesocial, uma vez que todos se situavam entre os que têmsua subjetividade constituída num contexto de carênciainfra-estrutura\. É interessante salientar que, no início do

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programa, num momento em que nosso encontro aindaestava em curso, uma alfabetizanda chegou assustada nasala pelo fato de um carro ter sido roubado na entrada daescola. A violência doméstica foi tema das leituras e dosdiálogos, visto que todo o grupo tinha histórias muitopróximas para relatar, sendo que alguns dos partícipessofriam, pessoalmente, as marcas da violência.

Temas como amor, amizade e relações interpessoaistambém estiveram presentes nos seis meses em queestivemos realizando o trabalho aqui relatado. Torna-seimportante destacar que, na etapa final do programa, porsugestão dos educandos, discutimos sobre as festividadesjuninas. uma das expressões da cultura popular do Nordeste,aproveitando a grande movimentação evidenciada na escoladevido aos ensaios da quadrilha que ocorriam no pátio.

Levamos músicas para compor encontros a respeito detemas como paz, dia da mulher, violência, injustiças sociais,nordestinidade e diversidade de preconceitos, mitos e tabus.

Em todos os temas, em todas as atividades de leiturase de escrita e em todos os diálogos, procuramos reconhecere potencíallzar a capacidade do ser humano de ser sujeitode sua vida. Tentamos utilizar os textos como mecanismospara exploração e aperfeiçoamento gramatical, auxiliando,desse modo, a construção, por parte dos educandos, denovas hipóteses, novos saberes, novas habilidades eatitudes em relação à língua escrita. É valioso aqui ressaltarque um mesmo texto era explorado de formas diferentesna sala, dependendo do processo de cada alfabetizando,como uma maneira de cada um dar significação peculiar àatividade. Assim, alguns liam o texto por inteiro, enquantooutros que apresentavam mais dificuldades, em relaçãoàquela tarefa, tentavam identificar algumas palavras econstruir outras com base nas que encontravam.

Uma das formas que encontramos para selecionar temase leituras com significado existencial para os estudantes foia realização, em diversas semanas, de planejamentos

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participativos dos encontros. Tais momentos eram perti-nentes para que os alfabetizandos pudessem se sentirprotagonistas de todo o processo, manifestando suasopiniões e seus anseios acerca dos procedimentosmetodológicos, das temáticas e dos gêneros literários aserem privilegiados. A título de ilustração, por decisãocoletiva, trabalhamos uma semana com o tema de culturapopular, onde foram enfatizadas expressões típicas dalinguagem cearense. festas nordestinas e a atividade humanacomo produtora da cultura.

Textos sobre relatos de experiências de pessoas queconseguiram aprender a ler e a escrever se configurarampeças-chave no nosso trabalho, uma vez que possibilitarama cada partícipe entrar em contato com situaçõessemelhantes à sua, o que o ajudava a adquirir confiança ea perceber sua condição e seu valor de "gente inacabada",bem como sua capacidade de "ser mais". Para facilitar oprocesso do educando de sentir-se capaz de saber mais doque outrora sabia e de intervir no mundo no intuito deconstruir relações mais favoráveis ao seu desenvolvimento,utilizamos textos que enfatizavam a relação entre saberese o dinamismo da realidade, aspectos que fazem com quesempre exista algo a aprender, a ensinar e a fazer.

Para fortalecer a identidade pessoal e grupal. os laçosexistentes entre os educandos e valorizar cada pes~oado grupo, no início do programa, utilizamos crachás, e aconstrução de calendários que continham datas signi-ficativas para os educandos. como estratêgias de fomentoà leitura e à escrita, ao mesmo tempo em que nosvalíamos dos nomes das pessoas para ajudá-Ias na leiturade outros nomes.

Uma das maiores dificuldades, no que tange à leitura,residia na heterogeneidade da turma, fato que exigia denós, planejamentos que dessem conta da demanda de cadaalfabetizando, embora que, em diversas situações,tenhamos redimensionado o que fora planejado e agido de

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improviso. Havia situações em que um aluno lia com muitarapidez, enquanto outro apresentava maior dificuldade.Nossa preocupação, nesses instantes, era de que a turmanão se reduzisse a pequenos "feudos", em que cada umfizesse uma atividade diferente e não houvesse momentoscoletivos, fundamentais na aventura humana de hurnanizar-se e construir saberes de diversas ordens.

Cabia-nos, nesses momentos, lançar mão de atividadesque explorassem os potenciais daqueles que já haviam seapropriado mais da língua escrita. Outra dificuldade quetambém emergia nos momentos de interpretação textual,de escrita e de diálogos consistia na relativa descrença dosalfabetizandos quanto ao seu poder como pessoa. Eracorriqueiro ouvirmos frases tais como: "eu não sei de nada","eu sou burro mesmo", "eu acho que não vou aprendernunca", "você (referindo-se ao facilitador) é quem sabe epode me dizer o que tá escrito." A despeito desses proble-mas, achamos que, na maioria dos momentos, conse-guimos contribuir para que condições facilitadoras fossemcriadas a fim de que os alfabetizandos se sentissemcapazes de ler e escrever, sendo acolhidos pelo grupo epor nós, facilitadores.

É possível ainda apontar a dificuldade que os educandostinham de interpretar o que lhes era apresentado. Perce-bíamos um esforço enorme no sentido de decodificar oque estava escrito e tentávamos, diante disso, viabilizar ainterpretação, acompanhando-os na leitura e retomandopontos que iam sendo lidos, para que conexões com arealidade concreta pudessem ser feitas pelos alfabetizandos.

A seguir, apresentamos alguns procedimentos de leituraque realizamos ao longo do programa Alfabetizar(se):

• leitura coletiva de textos. O educando que se sentisseà vontade lia uma frase de um determinado texto,dando vez a outros voluntários;

• leitura individual seguida de leitura por nós,facilitadores;

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• leitura em duplas, ou em pequenos grupos, de textosiguais, seguida de leitura por nós, educadores;

• leitura em duplas, ou em pequenos grupos, de textosdiferentes, para que cada grupo contasse aos outrosaquilo que leram, servindo, simultaneamente, comoestratégia de interpretação textual e integração grupal;

• utilização do quadro durante as socializações dasdiscussões suscitadas pelos textos e trabalhos emsubgrupos, para escrevermos, sozinhos ou emconjunto com os educandos. elementos presentesem seus discursos e em suas produções textuais,sempre nos preocupando em utilizar os diversos tiposde escrita. Essa foi uma maneira que encontramosde não dicotomizar o momento da discussão e omomento da aprendizagem da leitura e da escrita,fazendo com que tudo fosse motivo para incentivara leitura;

• correção de textos antigos dos educandos, o quepermitia que dúvidas corriqueiras fossem dirimidas.É importante mencionar que tal atividade era feita demodo que ninguém soubesse quem escreveu o texto-base para a leitura e correção, para que não desen-cadeasse constrangimento nos alfabetizandos nemrotulações no interior do grupo;

• utilização de textos com rimas, para que fossemenfatizadas ainda mais as vinculações entre s9m eescrita;

• entrega de letras de música com a ordem das estrofestrocadas. para que os educandos as corrigissem.Obviamente, essa atividade exigia que as músicasfossem conhecidas de todos, e isso era garantido,uma vez que eles próprios as sugeriram. A leitura demúsicas ajudava porque mesmo aqueles que tinhammais dificuldades de leitura conseguiam ordenar otexto, por já saberem cantar a música;

• interpretação de trechos selecionados do texto eanotados no quadro, após leitura prévia por todos;

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• dramatização da situação do texto. Houve umaocasião em que, juntamente com outros edu-candos, incorporamos personagens do texto parafacilitar sua interpretação e o diálogo acerca datemática por ele trazida;

• uso de dicionários para ampliação do repertóriovocabular e aprimoramento da leitura. Estimulávamoso uso do dicionário quando havia dúvidas em relaçãoa alguma palavra contida em textos ou em notícias.Assim, os próprios alfabetizandos, ao invés deesperarem nossas respostas sobre os significados dealguns termos, buscavam, ativa e cooperativamente,dar conta de suas indagações mediante o dicionário;

• realização de círculos de cultura, nos quais incen-tivávamos a leitura das palavras geradoras, assimcomo a criação e a leitura de outras palavras a partirdas iniciais. É válido esclarecer que o desdobramentodo círculo de cultura também tem que ser adequadoãs demandas de cada educando.

A escrita permite ao educando utilizar melhor suacriatividade, recriar o mundo e qualificar a objetivaçãode sua subjetividade, agora através do incremento denovos signos lingüísticos. Não significa apenas o ganhode uma habilidade, mas também a ampliação da interaçãocom o mundo e com o outro, e a deflagração de modi-ficações cognitivas que potencializam o pensamento.Assim, é necessário, na prática de alfabetização dejovense adultos, compreender o profundo enlace existente entreleitura e escrita, os quais são momentos distintos de ummesmo processo.

Com base nisso, em todos os nossos encontros,almejávamos contemplar atividades não só de leitura, mastambém de escrita, referentes às ternátícas. discussões eleituras que estivessem sendo feitas. Assim como fazíamoscom a leitura, tentávamos propor atividades de escrita quese aproximassem de situações experienciadas pelos

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alfabetízandos. no sentido de que sua inserção na sociedadese desse de modo mais autônomo, oferecendo-lhes condi-ções de se posicionar como artífice de sua trajetôria histórica.

Sob esse prisma, o processo de escrita não é umaatividade meramente motora. mecàníca. mas sim umaexpressão de si e do mundo, pois as palavras aludem àconcretude da existência do sujeito. Constitui uma atividadecomunicacional e, portanto, interativa; deve oportunizar adenúncia de condições entendidas como desfavoràveis aodesenvolvimento pessoal e coletivo, assim como o anúnciode possibilidades que sinalize para a modificação positivae efetiva da realidade. Surge como um elemento quepossibilita a superação de situações nas quais alguns falame impõem seus preceitos e interesses, em detrimento damaioria dos indivíduos, que são cerceados ou impedidosde se expressar como seres que desejam e pensam demaneira singular.

Nossas atividades de escrita eram interligadas à reflexãosobre a realidade concreta dos indivíduos. A partir delas,os educandos expunham suas concepções a propósito domundo, do homem e da inserção deste na realidade;identificavam necessidades em suas vidas, manifestavamsuas esperanças e desesperanças, demonstravam suasalegrias e tristezas, suas certezas e inseguranças.

O método que adotamos gerou, inicialmente,estranharnento. tanto por parte dos alunos quanto dosprofessores e funcionàrios da escola, pois instigava aescrever até mesmo aqueles que desconheciam quase quecompletamente as letras e a associação entre som e escrita.Deparamo-nos com inseguranças e medos historicamentereforçados por um modelo de educação tradicional, quepriva os estudantes de empreenderem tentativas e deesboçarem sua criatividade de maneira mais crítica,incutindo-lhes a idéia, quase fascista, de "certo" e "errado"e da existência de pessoas que tudo conhecem e tudo sabeme de pessoas que tudo desconhecem e nada sabem,

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punindo, por tal razão, aqueles que "tentam sem saber" e"não esperam o professor ensinar para só então tentarem."

Além de traços de "bancarismo" existentes até hoje naescola, o que dificultava com que todos se sentissem à

vontade para escrever o que quisessem, havia asdisparidadesverificadas na própria turma quanto aos níveis de aquisiçãoda escrita. Enquanto uns caminhavam a passos largos naaprendizagem da escrita e participavam prontamente dasatividades propostas, outros progrediam num ritmo um poucomais cadenciado, se comparado aos demais, e, em funçãodisso, sentiam desconforto em participar.

Foram inúmeros os momentos em que ouvimos expres-sões como "eu não sei escrever, não adianta." E, emprincípio, sentimos, por parte dos alfabetizandos, umaexacerbada preocupação em estar totalmente "certo" e umavergonha de mostrar os escritos que desconfiavam queestivessem "errados." Percebemos que tal questão careciade ser trabalhada, mediante a reflexão e a vivênciareferentes à diferença e ao papel do outro na construçãodo conhecimento.

À medida que podíamos, tentávamos acolher essassingularidades, valorizar o processo e o empenho que cadaum evidenciava, estimular os trabalhos integrativos, com apretensão de que os educandos. com seus conhecimentosvários, suas diferentes trajetórias e suas distintas hipótesesem relação à língua escrita, experimentassem momentosde cooperação e construção coletiva. Começamos, muitodevido a isso, a ouvir, com mais freqüência, expressões dotipo: "se não tentarmos nunca vamos sair do canto!", "seerrar, apaga e começa de novo!"

Em seguida, serão apresentadas algumas das atividadesde escrita que empreendemos no decorrer do programa,ratificando que as produções mais intensas aconteciamquando havia um real envolvimento do sujeito com aatividade proposta e quando esta lhe fazia sentido, porretratar situações diariamente por ele vividas:

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• utilização do alfabeto para que os alfabetizandosconstruíssem palavras significativas para eles,consistindo, também, numa maneira de nos fami-liarizarmos cada vez mais com o universo vocabulardos educandos;

• construção de palavras e frases concernentes ao temado encontro, por meio do uso de letras móveis;

• uso dos nomes dos estudantes para a exploração deoutros nomes graficamente semelhantes. Numa dasatividades, trouxemos um texto onde vários nomespróprios apareciam. Exploramo-los e estimulamos afeitura de novos nomes, ora com a mesma sílabainicial, ora com a mesma silaba final;

• formação de palavras com o auxílio de fotos egravuras. Levávamos fotos de pessoas conhecidas edesconhecidas, de locais que se assemelhavam oudiferiam do contexto dos alfabetizandos e de ali-mentos e objetos de suas vidas diárias, o que ajudavana discussão e na formação de palavras. Além depalavras, as fotos e gravuras também eram fundamen-tais na produção textual;

• construção de textos a partir das leituras. Solici-távamos aos educandos que escrevessem suas'impressões acerca do que haviam lido, com a fina-lidade de estimular também a interpretação e aapropriação do que foi por eles decodificado;

• proposição para que os alfabetizandos, ao términodas discussões, dissertassem sobre as possíveisrazões das problemáticas trazidas pelos textos, pelasnotícias ou pelas fotos e, também, sobre as possíveissoluções para tais questões;

• feitura de cartazes com o auxílio de revistas ejornais;• confecção de calendário contendo os meses do ano

e os dias da semana, bem como os nomes de pessoase datas significativas para os educandos. Essaatividade estava inserida nas discussões a respeitodos projetos de vida dos participantes;

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• realização de planejamento participativo da semanasubseqüente. Os educandos. além de falarem o quegostariam que constasse nos encontros da semanaseguinte, eram convidados a escrever suas idéias.Somava-se a isso o registro no quadro de todas asidéias e encaminhamentos que surgiam, viabilizandoinclusive a exploração gramatical;

• produção de textos coletivos; momentos imprescin-díveis de ajuda mútua e de experiência solidária;

• realização de atividades de descontração, comobingos de letras e palavras cruzadas;

• preenchimento de formulários de identificação, natentativa de propor atividades que se aproximassemda vida dos alfabetizandos, possibilitando suainserção crítica e criativa nos diversos espaçossociais.

Os processos de leitura e escrita não são necessaria-mente concomitantes, mas complementares. No entanto,um pode avançar mais rápido que o outro no ãmbito doprocesso de cada alfabetizando. Observamos isso nodecorrer do programa, visto ter sido notório, na nossa turma,que os educandos progrediam mais rapidamente no aspectoda leitura. Quando iniciamos o programa, dos oito partici-pantes que freqüentavam assiduamente os encontros, agrande maioria não conseguia ler, e os que conseguiam ofaziam muito forçosamente. Ao final do programa, sete jáefetuavam com êxito a leitura, além de percebermosmelhorias acentuadas na capacidade que tinham de fazerinterpretações sobre o texto, fundamentais dentro do viésdo letramento e da conscientização.

No que diz respeito à escrita, os estudantes, quandodo início das atividades do Programa, apresentavam, comexceção de uma participante, características semelhantesà hipótese pré-sllábica. sendo que todos já sabiam fazer opróprio nome. Ao final do Programa, percebemos quesomente duas pessoas não se situavam na hipótese

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Ifabética: uma ainda permanecia na fase pré-silábica (jám transição para a silábica) e a outra, na silábico-alfabética.

Um elemento que dificultou esse processo de aquisiçãoda língua escrita foi a necessidade de uma maior conti-nuidade no acompanhamento de alguns alfabetizandos, umavez que uns entraram no programa quando este já estavaem andamento, enquanto outros apresentavam muitas faltas- seja porque tinham que trabalhar eventualmente até maistarde, seja porque adoeciam por um prolongado período,fato que tem de ser levado em consideração por haver, nogrupo, algumas pessoas idosas com problemas de saúde.

Porém, em termos gerais, o processo de aquisição daescrita foi muito positivo, visto que resultados vertiginosospuderam ser verificados, tanto por nós, educadores, comopor eles, educandos. Além disso, o processo grupal tambémfoi muito rico e marcante. Afinal, através de diálogosgenuínos - formadores, reformadores e transformadores,ao mesmo tempo - juntos (cada um singularmente, porém)pudemos, cotidianamente, encontrarmo-nos e reencon-trarmo-nos com o potencial que temos de ser, pluralmente,humanos: mestres e pupilos de encontros, todosinfinitamente aprendizes, sábios inventores de saberes esabedorias, educadores de nós mesmos, sujeitos do própriopresente e do próprio vir-a-ser, arquitetos e feitores darealidade, protagonistas da existéncia, atores e autores davida pessoal e coletiva.

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A RElEVANCIA DO DIALOGO NA CONSTRUÇAO DE ENCONTROS, SABERES, SUJEITOS E REALIDADES 129