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Teorias e prticas de

letramento

REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Luiz Incio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAO Fernando Haddad SECRETRIO EXECUTIVO Jos Henrique Paim Fernandes INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANSIO TEIXEIRA (INEP) Reynaldo Fernandes DIRETORIA DE TRATAMENTO E DISSEMINAO DE INFORMAES EDUCACIONAIS (DTDIE) Oroslinda Maria Taranto Goulart

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO Reitor Rui Getlio Soares Vice-Reitora de Graduao Eliane Lucia Colussi Vice-Reitor de Pesquisa e Ps-Graduao Carlos Alberto Forcelini Vice-Reitora de Extenso e Assuntos Comunitrios Cla Bernadete Silveira Netto Nunes Vice-Reitor Administrativo Nelson Germano Beck

Lia Scholze Tania M. K. Rsing (Org.)

Teorias e prticas de

letramento

Braslia-DF

2007

UPF

Coordenadora-Geral de Linha Editorial e Publicaes (CGLP) Lia Scholze Coordenadora de Produo Editorial Rosa dos Anjos Oliveira Coordenadora de Produo Visual Mrcia Terezinha dos Reis Editor Executivo Jair Santana Moraes Reviso Maria Emilse Lucatelli Liana Langaro Branco Sabino Gallon Capa Raphael Caron Freitas Projeto grfico Sirlete Regina da Silva Diagramao e Arte final Niepson Ramos Raul Tiragem: 1.000 exemplares Este livro, no todo ou em parte, conforme determinao legal, no pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizao expressa e por escrito do autor ou da editora. Editoria Inep/MEC Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Esplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo I, 4 Andar, Sala 418, CEP: 70047-900 Braslia-DF Brasil Fones: (61)2104-8438, (61)2104-8042 Fax: (61)2104-9812 [email protected] Distribuio Inep/MEC Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Esplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo II, 4 Andar, Sala 414, CEP: 70047-900 Braslia-DF Brasil Fone: (61)2104-9509 [email protected] www.inep.gov.br A exatido das informaes e os conceitos e opinies emitidos so de exclusiva responsabilidade dos autores. Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Teorias e prticas de letramento / organizao, Lia Scholze, Tania M. K. Rsing. Braslia: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira, 2007. 297 p. ISBN 978-85-75154-07-6 1. Letramento. 2. Leitura. 3. Escrita. I. Scholze, Lia. II. Rsing, Tania M. K. III. Universidade de Passo Fundo IV. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira. CDU 372.415

Sumrio

Prefcio Andr Lazaro.............................................................................7 Apresentao A escrita e a leitura: fulguraes que iluminam Lia Scholze e Tania M. K. Rsing..............................................9 Acesso social, prticas educativas e mudanas terico-pedaggicas ligadas ao gnero textual Ana Maria Raposo Preto-Bay...................................................17 A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianas Cancionila Janzkovski Cardoso...............................................37 Processos de letramento na infncia: aspectos da complexidade de processos de ensino-aprendizagem da linguagem escrita Ceclia Goulart.........................................................................61 Prticas leitoras multimidiais: no contexto do Centro de Referncia de Literatura e Multimeios Mundo da Leitura Eliana Teixeira........................................................................83 O ensino de portugus nos nveis fundamental e mdio: problemas e desafios Jos Luiz Fiorin........................................................................95 Pela no-pedagogizao da leitura e da escrita Lia Scholze............................................................................117 Que linguagem falar na formao docente de professores de lngua? Ludmila Thom de Andrade .................................................127 Para ler a narrativa literria Mrcia Helena Saldanha Barbosa........................................145

Letrar preciso, alfabetizar no basta... mais? Maria do Rosrio Longo Mortatti..........................................155 Letramento na Mar: uma proposta metodolgica de ensino da leitura e da escrita para jovens e adultos Marlene Carvalho.................................................................169 A leitura literria e o hipertexto na sala de aula: do centro periferia Miguel Rettenmaier...............................................................191 O professor e o erro no processo de alfabetizao Natlia Duarte.......................................................................221 Literatura infantil e introduo leitura Regina Zilberman..................................................................245 Esttica da recepo: a singularidade do leitor e seu papel de co-produtor do texto Rosemari Glowacki................................................................255 Letramento: conhecimento, imaginao e leitura de mundo nas salas de incluso de crianas de seis anos no ensino fundamental Silviane Barbato....................................................................273 A leitura do texto teatral na escola Tania M. K. Rsing.................................................................289

Prefcio

O presente trabalho, organizado primorosamente pelas professoras Lia Scholze e Tania M. K. Rsing, uma reflexo sobre o conceito de letramento e suas prticas e mostra-se oportuno na medida em que vem se somar discusso que o Comit Nacional do Livro e Leitura do MEC est promovendo internamente, visando constituio de uma poltica de leitura para o pas. Assim como o processo do letramento complexo e abrangente envolvendo diversas prticas polticas e sociais, alm da aquisio da competncia da leitura e da escrita, o processo da construo das diretrizes do plano em elaborao tambm exige uma viso mais abrangente. Os eixos principais para iniciar a discusso sobre uma poltica de leitura, tendo em vista o Plano Nacional do Livro e Leitura, no podem deixar de contemplar aspectos como a democratizao do acesso da informao cientfica, didtica ou cultural em diferentes suportes; a formao de leitores, incluindo mediadores de leitura, gestores e educadores; pesquisa e avaliao sobre leitura e a produo de materiais cientficos, didticos e culturais e de leitura, como a obra ora apresentada. O PNLL um conjunto de projetos, programas, atividades e eventos na rea do livro, leitura, literatura e bibliotecas em desenvolvimento no pas, empreendidos pelo Estado (em mbito federal, estadual e municipal) e pela sociedade. A prioridade do PNLL transformar a qualidade da capacidade leitora do Brasil e trazer a leitura para o dia-a-dia do brasileiro. A interlocuo, portanto, entre as instncias acadmicas e institucionais aqui representadas pela Universidade de Passo Fundo e pelo MEC/Inep pertinente e necessria na medida em que a universidade, formadora de recursos humanos, encontra no MEC o espao para a disseminao desta reflexo.

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Prefcio

A presente obra consegue reunir a reflexo de pensadores de vrias instituies em carter multidisciplinar e contempla diferentes olhares sobre a questo do letramento.

Secretrio Executivo do MEC e coordenador do Comit Nacional de Leitura do MEC.

Andr Lazaro

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Apresentao

A escrita e a leitura: fulguraes que iluminamEis que uma fulgurao me ilumina. O que acontece diante de mim uma mulher que l notcias de mares distantes para duas crianas, sentadas tranqilamente numa calada uma linda e comovente aula. Em plena rua, ela ensina a ler, ensina a entender o que se l, ensina a sentir as emoes escritas, anuncia a aflio de viver e os perigos da vida, prenuncia, enfim, que a vida inclui a morte. Alcione Arajo, Notcias de mares distantes, de Escritos na gua

O contato com o texto escrito , em essncia, um ato repleto de vida, como nos faz crer a epgrafe deste texto. Est, ou deveria estar, no cotidiano de todos, nas prticas dirias de comunicao e nas bases do conhecimento de toda a sociedade. Saber ler e escrever , para o indivduo, uma garantia de existncia poltica e cultural num pas, que, por sua vez, se pretenda letrado e, assim, desenvolvido. Nesse sentido, aliceradas na diversidade de situaes de vida e na pluralidade de circunstncias comunicativas, em mais de um tipo de demanda e em mais de um espao social, a leitura e a escrita deixam de se associar mera habilidade de reconhecimento e de manipulao das letras do alfabeto. So instrumentos para se inserir na realidade, para compreend-la e, tambm, para alter-la, como ferramentas do entendimento. Ler e escrever no so apenas habilidades estabelecidas em torno da decodificao; muito mais do que isso, saber ler e escrever significa apropriar-se das diversas competncias relacionadas cultura orientada pela palavra escrita, para, dessa forma, atuar nessa cultura e, por decorrncia, na sociedade como um todo. A educao, no que diz respeito a esse ato de incluso, que letrar mais do que alfabetizar , tem uma funo

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Apresentao

mediadora. pela ao educativa, na sala de aula ou em outros contextos, alm do escolar, que se promovem a aquisio e a utilizao crtica da leitura e da escrita. E essa ao transformadora, tanto do indivduo quanto da sociedade da qual ele faz parte, , acima de tudo, um processo em constante avaliao. Em uma de suas facetas, esse processo se coordena articulado ao mundo, numa prtica que habilita os sujeitos a dialogarem com as complexidades do texto escrito; em outra, de forma contnua, reorganiza-se politicamente, viabilizando aos sujeitos envolvidos, pela leitura e pela escrita, a reflexo e a atuao no que tange s dinmicas sociais; em outra, ainda, esse processo examina repetidamente os prprios mtodos e conceitos, medida que tanto os indivduos quanto o mundo se transformam. De alguma maneira, o letramento, tanto como estado ou condio de um indivduo ou de um grupo, quanto como conceito, estabelece-se num processo sem fim, num caminho com pontos provisrios de chegada, de partida, de redirecionamentos... Este livro mais um passo nesse processo de reflexo sobre o letramento, sobre as suas teorias, sobre suas prticas. Contando com estudos de diversos tericos, a obra articula-se, primeiramente, com o artigo de Ana Maria Raposo Preto-Bay. Em seu texto, a pesquisadora aborda o tema da literacia relacionado questo do gnero textual. Para a autora, saber ler no significa saber ler. Em sua concepo, a leitura e sua interpretao encontram-se problematizadas pelos diferentes contextos em torno da produo e da recepo dos textos nos diferentes gneros aos quais podem pertencer. Por isso, h a necessidade de uma pedagogia ao gnero, a fim de que os aprendentes tenham a oportunidade, no contexto educativo, de explorar relaes sociais e a forma como estas se desenrolam e constituem atravs dos textos. Cancionila Janzkovski Cardoso, em A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianas, discute o ato de escrever como um procedimento que, simulando uma situao imediata de comunicao, envolve em suas especificidades, um enunciador o escritor em situao de comunicao que o distancia de seu interlocutor o outro/ leitor. Tal aspecto exige, no caso da criana que aprende a escrever, um melhor controle sobre esse funcionamento psicolgico especfico, no qual a recepo se encontra fora de seu aqui e agora. Mediante tal perspectiva, a pesquisadora

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A escrita e a leitura: fulguraes que iluminam

apresenta uma pesquisa realizada com alunos na 4 srie de ensino fundamental na qual procurou investigar os nveis de reflexividade e de deliberao sobre o processo de escrita j desenvolvidos por crianas. Ceclia Goulart, em Processos de letramento na infncia: aspectos da complexidade de processos de ensinoaprendizagem da linguagem escrita, pretende refletir sobre modos de alfabetizar na perspectiva do letramento social, na escola. Seu estudo, numa pesquisa concluda recentemente com crianas de quatro e cinco anos de uma creche universitria, pretende refletir sobre a importncia que a noo de letramento pode ter para dar novos sentidos aos processos de aprendizagem da leitura e da escrita na educao infantil e nas sries iniciais do ensino fundamental. Eliana Teixeira, por sua vez, apresenta em seu artigo as prticas leitoras multimidiais no contexto do Centro de Referncia de Literatura e Multimeios da Universidade de Passo Fundo (o Mundo da Leitura), as quais objetivam a formao do sujeitoleitor, a partir do contato com diferentes tipos de textos, nos mais diversificados suportes, embora com destaque ao texto literrio. Diante da constatao de que maioria dos estudantes termina o ensino mdio com dificuldade para ler um texto de mdia complexidade e para redigir adequadamente textos, Jos Luiz Fiorin, em seu estudo, pretende mostrar os principais problemas do ensino de lngua portuguesa nos nveis fundamental e mdio, os quais se estabelecem, principalmente, na fundamentao em noes equivocadas a respeito do funcionamento, da estrutura e das funes da linguagem humana e, dentre outros importantes fatores, no ensino da leitura e da redao no fundamentado em teorias do discurso e do texto. Em Pela no-pedagogizao da leitura e da escrita, Lia Scholze propugna a linguagem como representao de pensamentos, idias, sentimentos do sujeito em uma dada cultura. Nesse sentido, o uso da linguagem, fora do propsito da escola, configura-se como um movimento incessante de incorporao de novas formas de expresso e de organizao. Nessa nova ordem, segundo a estudiosa, cabe escola, pela leitura, assumir a ampliao da imaginao criadora, desenvolvendo sujeitos questionadores e crticos dos arranjos da sociedade. Segundo a pesquisadora, criadas as condies para a sua produo, seremos surpreendidos pelas

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Apresentao

crianas e pelos adolescentes que esperam por estes desafios e nos daro respostas consideradas inesperadas por aqueles que no costumam escut-los. Perante a questo Que linguagem falar na formao docente de professores de lngua?, Ludmila Thom de Andrade pretende apresentar uma reflexo sobre as condies de letramento de professores da escola bsica que lidam com a linguagem. Nesse caminho, investiga as prticas de ensino de leitura e de escrita na formao dos professores, tomando como campo de pesquisa um curso universitrio de formao continuada oferecido aos professores de sries iniciais de escolas pblicas. Suas concluses apontam para a necessidade de se repensar as trajetrias de letramento docente: Se queremos formar alunos leitores na escola bsica, preciso considerar processos possveis para os professores se verem antes como produtores de linguagem. No que se refere narrativa literria, para Mrcia Helena Saldanha Barbosa, investir no letramento proporcionar ao sujeitos uma experincia de leitura em que o encadeamento das aes que compem a histria e, tambm, a conexo entre todos os elementos do texto sejam percebidos e reconhecidos. assim, segundo a pesquisadora, que as potencialidades da narrativa se concretizam e que a trama se atualiza na interao do texto com o leitor. Ilustrando essa concepo, Barbosa analisa o conto Pai contra me, de Machado de Assis. Em Letrar preciso, alfabetizar no basta... mais?, Maria do Rosrio Longo Mortatti avalia o histrico recente do ensino da leitura e da escrita no Brasil, segundo os trs modelos principais que orientaram esse ensino, a saber: o construtivismo, o interacionismo e o letramento. Para a autora, embora estabelecida em bases tericas distintas, a prtica pedaggica, ao tentar, com muita freqncia, conciliar esses modelos, tem incorrido, forosamente, na combinao de elementos incompatveis entre si, numa opo problematicamente ecltica. Marlene Carvalho, em Letramento na Mar: uma proposta metodolgica de ensino da leitura e da escrita para jovens e adultos, apresenta e avalia o Programa de Alfabetizao desenvolvido por professores, estudantes e funcionrio da UFRJ na Mar, uma ampla rea geogrfica margem da Baa de Guanabara, no Rio de Janeiro, prxima do Aeroporto Internacional do Galeo e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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A escrita e a leitura: fulguraes que iluminam

Em A leitura literria e o hipertexto na sala de aula: do centro periferia, Miguel Rettenmaier prope uma leitura hipertextual na mediao da leitura literria. Para isso, valese da leitura das mdias impressas nos textos jornalsticos para discutir temticas atuais da sociedade, como a convulso de violncia ocorrida em maio de 2006 em So Paulo, e para introduzir, criticamente, as possibilidades interpretativas do texto literrio. Nessa perspectiva, alicera a leitura do literrio chamada literatura marginal, pretendendo rediscutir os conceitos sobre o que seja a leitura e o que pode se considerar literatura. Em outra ordem, mas na mesma problemtica relacionada ao ensino da leitura e da escrita, Natlia Duarte, em O professor e o erro no processo de alfabetizao, apresenta um diagnstico que evidencia o fracasso da alfabetizao no Brasil, discorre sobre as principais propostas de alfabetizao atuais e fixa-se na alfabetizao ps-construtivista. Em seu artigo, a autora prope uma nova relao do professor com o erro do aluno, entendendo-o como fruto indispensvel do dilogo entre sujeitos e o conhecimento, principalmente na aprendizagem da leitura e da escrita: O erro do aluno na escrita desvela o esquema de pensamento e hiptese que o aluno est vivenciando. ele que possibilita apoiar a aprendizagem dos alunos, desde que o professor reoriente seu trabalho pedaggico para provocar e alimentar os esquemas de pensamento em construo. Em Literatura infantil e introduo leitura, Regina Zilberman trata sobre o conceito de letramento associado leitura literria infantil. Nesse mbito, para a estudiosa, a admisso ao mundo da literatura depende e ultrapassa a alfabetizao e o letramento. Depende da alfabetizao, enquanto envolve o domnio das tcnicas de leitura e de escrita, e do letramento, na medida em que as prticas de leitura e escrita esto presentes em cada etapa da experincia do sujeito. No trabalho de alfabetizar e de apresentar a literatura s crianas, Zilberman apresenta obras de escritores consagrados, como Erico Verissimo, Ceclia Meireles, Mario Quintana e Ziraldo, os quais assumiram o desafio de recriar com qualidade esttica as cartilhas de alfabetizao. Rosemari Glowacki, por sua vez, pretende refletir sobre a teoria da esttica da recepo, de Hans Robert Jauss, observando nessa corrente a descoberta do leitor co-produtor num processo de interlocuo texto/leitor. Para a pesquisadora, as orientaes

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Apresentao

tericas dessa nova perspectiva sobre o leitor devem ter implicaes na escola: Segundo a Esttica da Recepo, o contato com os livros, se o objetivo for construir leitores conscientes e felizes, deve ser iniciado o mais cedo possvel, no s pelo manuseio dos textos, como tambm pela histria contada, pela conversa ou pelos jogos rtmicos, no sentido de fazer amar a leitura, para que o leitor se sinta o protagonista do seu aprendizado, numa ponte que ligue a teoria e a prtica, entre o universo esttico e o universo real. Silviane Barbato, em Letramento: conhecimento, imaginao e leitura de mundo nas salas de incluso de crianas de seis anos no ensino fundamental, reflete sobre as prticas de letramento no processo de alfabetizao, considerando o desenvolvimento das crianas de seis anos que entram no primeiro ano do ensino fundamental e as metodologias de alfabetizao no ensino de lngua materna. Norteia suas consideraes a condio de que as prticas de alfabetizao sejam consideradas segundo a concepo de que o processo de ensino-aprendizado uma negociao entre o que se espera atingir em termos de objetivos, as habilidades de acordo com a srie e as demandas das crianas em desenvolvimento. Nessa negociao se integra uma pedagogia do dilogo, na qual, segundo Barbato, a construo de significados deslocada do eu e do tu para o inter, passando a abarcar tambm os instrumentos utilizados no processo de ensino-aprendizado e os procedimentos, inclusive discursivos, da interao nos modos comunicativos orais, escritos e visuais. Tania Mariza Kuchenbecker Rsing, ao final da obra, contrastando com vrias dcadas de desvalorizao do texto teatral no meio escolar e nos cursos de letras, expe, em A leitura do texto teatral na escola, as lacunas que se ampliam na formao humanista de jovens e adultos quando no tm acesso leitura de textos da dramaturgia, ou, o que ainda pior, a espetculos teatrais. Para a pesquisadora, a deciso de ler o texto teatral uma atitude firme em direo ao entendimento da condio humana pela ampliao do imaginrio. Teorias e prticas de letramento, pelo nmero de pesquisadores envolvidos e pela diversidade de olhares sobre as questes relativas leitura e escrita, uma reunio de vozes no rigorosamente unidas por um referencial terico monolgico. O letramento, como conceito e, mesmo, como palavra ainda lugar de discusses. Seus sentidos e suas

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A escrita e a leitura: fulguraes que iluminam

aplicaes dentro e fora da sala de aula no nos conduzem a definies, mas ao dilogo contnuo. Restar ao leitor, assim, ao fim e ao cabo do contato com cada um dos artigos deste livro, no a constatao inequvoca de um entendimento estabelecido, mas um convite reflexo que cerca as complexidades pertinentes s dinmicas da cultura escrita e a insero, na escola ou alm dela, dos sujeitos, nessa cultura. Restar, sobretudo, talvez, a certeza de que o contato com o mundo da escrita e da leitura sempre uma fulgurao a nos iluminar, pois guarda sempre em si a capacidade de um maior entendimento das coisas da vida.

Lia Scholze Tania M. K. Rsing (Organizadoras)

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Acesso social, prticas educativas e mudanas terico-pedaggicas ligadas ao gnero textualAna Maria Raposo Preto-Bay*

Uma abordagem com base na literacia representa um estilo de ensino que os educadores devem considerar se querem preparar os aprendentes para uma participao completa em sociedades que progressivamente exigem competncia em nvel multilingustico, multicultural e multitextual (Kern, 2000, p. 16). Embora ainda no saibamos exactamente o que o termo globalizao significa e quais as suas implicaes e repercusses na vida da populao mundial a curto e a longo prazo, o facto que o seu uso presentemente to comum que j se tornou quase banal. A realidade que procura descrever a realidade do incio do sculo XXI uma realidade difcil de descrever dada a sua complexidade e ambiguidade. A constante movimentao de pessoas e produtos, a falta de estabilidade dos mercados de trabalho em nvel mundial e local, a diversificao e rpida restruturao de organizaes e empresas e a reconfigurao de tarefas e responsabilidades que requerem adaptao a qualquer momento, todas elas intensificam esse sentido de incerteza a vrios nveis. Paralelamente, e no surpreendentemente, o acesso real aos meios de produo, consumo e participao social esto cada vez mais ligados capacidade de adaptao a essas rpidas mudanas. Os avanos tecnolgicos, de que quase*

Doutora em Psicologia Educativa e Tecnologia na rea da aquisio lingstica. Leciona na Brigham Young University em Provo, Utah, nos Estados Unidos da Amrica. Licenciada pela Universidade Clssica de Lisboa, faz investigao na rea dos sistemas educativos e da litercia, entre outros.

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Ana Maria Raposo Preto-Bay

todas as comunidades humanas alargadas agora dispem para a realizao de intercmbios sociais, culturais, econmicos e polticos, requerem um nvel de sofisticao que , na realidade, responsvel por uma ainda maior excluso social daqueles que a eles no tm acesso. A participao social e laboral , no sculo XXI, mais complexa. Enquanto, por exemplo, a economia industrial dependia de trabalhadores manuais, cujas qualificaes se limitavam quase somente capacidade de realizar uma mesma tarefa repetidas vezes, a nova sociedade e economia requerem dos seus participantes, entre outras, a capacidade de rpido pensamento crtico, resoluo de problemas, argumentao e negociao e, talvez, acima de tudo, altos nveis de literacia. A idade da informao no s definida pelo acesso e controle de tecnologias e redes-chave, mas tambm pela livre circulao de grandes quantidades de dados, os quais so quase sempre codificados, catalogados e circulados pelo meio escrito. Neste sentido, a produo e o consumo de textos revelam-se progressivamente como catalisador social de participao e acesso a fontes de conhecimento e, consequentemente, de poder. Trata-se no s de saber ler e escrever, de saber registar e decifrar os aspectos lingusticos de um texto, mas, principalmente, de compreender e saber estabelecer relaes sociais atravs desse mesmo texto. Como artefactos sociais e culturais, os textos escritos so produzidos e, at certo ponto, produzem as estruturas sociais das comunidades em que existem; so mapas para o entendimento das relaes entre membros das vrias comunidades e, por conterem indcios reais dessas relaes sociais, permitem-nos acesso aos valores e princpios de cada comunidade. Por esse motivo, a nossa familiaridade com textos escritos constitue verdadeira evidncia da nossa participao legtima em comunidades culturais, polticas, religiosas e laborais e , ao mesmo tempo, um ponto de acesso a comunidades a que ainda no pertencemos. Assim sendo, o acesso social a estruturas e comunidades a que desejamos pertencer , em larga escala, mediado pelo uso efectivo e competente do processo literato da leitura e da escrita nas suas vertentes no s cognitivas, mas tambm sociais e culturais. Podemos, assim, argumentar que a literacia um dos aspectos fundamentais da participao social e que, ao activarmos os mecanismos necessrios em nvel educativo,

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possvel, at certo ponto, diminuir os nveis de excluso e desigualdade sociais responsveis por altas taxas de pobreza, por exemplo, via um maior nvel de actividade literata que emana dum sistema educativo eficaz. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea), quando se observa que pessoas com distintos atributos produtivos recebem distintos rendimentos, considera-se que o mercado de trabalho revela uma heterogeneidade preexistente na fora do trabalho, gerada no sistema educacional (TD 1000). Embora possa parecer no s ambicioso como tambm injusto justapor o sistema educativo, a literacia e a participao social numa relao causal na mesma linha de argumento, a realidade que esse verdadeiramente o chamado das pessoas e dos sistemas ligados educao. Posicionados como janelas para o mundo, os sistemas educativos tm, muitas vezes e infelizmente, as cortinas fechadas. Geralmente preocupados com a aquisio e transmisso de conhecimentos no contexto escolar, muitos educadores em todos os nveis recriam ciclicamente uma forma de incesto intelectual ao duplicarem estruturas antigas de reproduo de saberes para consumo interno em vez de prepararem os aprendentes para aco inteligente e autoafirmante nas comunidades a que pertencem, naquelas a que querem ter acesso e no mundo em geral. Se o sistema escolar , por um lado, um veculo sui generis de transmisso do conhecimento acumulado durante a histria da humanidade, tambm, por outro lado, um contexto privilegeado para a preparao para o presente e futuro dessa mesma humanidade. Quando o sistema educativo exclue ou inclue s parcialmente, pelas suas limitaes pedaggicas e logsticas, aqueles que mais poderiam se beneficiar da sua existncia e funcionamento, o processo de desenvolvimento social estancado. , por esse motivo, vital que a escola assuma o seu papel social e providencie os meios atravs dos quais os aprendentes se possam cientizar do valor intrnseco das comunidades a que pertencem e da sua capacidade de participao em novas comunidades sociais, culturais, laborais e polticas. Esse sentimento de pertena e de valor prprio pode ser fomentado pela participao activa no processo escolar, tornando, assim, o sistema educativo uma verdadeira ferramenta para a incluso e participao dos aprendentes nas sociedades a que pertencem.

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O processo contnuo de desenvolvimento e transformao social e cultural inerente a todas as comunidades reside na participao legtima dos seus membros (Lave e Wenger, 1991). Esta legitimidade est ligada ao acesso a recursos atravs dos quais os participantes podem desenvolver o seu potencial. Na comunidade educativa, os aprendentes precisam ter acesso a estruturas que facilitam o seu desenvolvimento pessoal no s sob o ngulo vocacional, mas tambm nas reas de enriquecimento pessoal, lazer e auto-actualizao. O lugar que a literacia ocupa neste processo indiscutvel. Cummins (1989) sugere que necessrio que se faa uma anlise das habilidades e atitudes que esta gerao vai precisar para participar tanto numa sociedade democrtica como numa comunidade globalizada (p. 21) e, segundo ele, uma delas o uso activo da lngua para comunicao genuna no contexto de uma tarefa com a qual os alunos se sentem intrinsicamente comprometidos (p. 33).

Alfabetizao literriaApesar de, atravs dos sculos, a maioria das pessoas ter tido um acesso limitado lngua escrita, os textos sempre desempenharam um papel vital na histria humana no s em termos do contedo, mas tambm da forma. A escrita revela a natureza das relaes sociais na comunidade e cultura que os produz e usa como aspecto fundamental dessas mesmas relaes. A natureza de um texto religioso no sculo XIV revela a estrutura social, cultural e religiosa da poca. O mesmo acontece com uma mensagem de e-mail enviada entre colegas de trabalho numa companhia de seguros. Segundo Nystrand (1989), a comunicao escrita um acto fiducirio entre autores e leitores no qual ambos se tentam orientar continuamente visa-vis um estado anticipado de convergncia entre si (p. 75). De certa forma, todos o textos so escritos tanto pelo escritor como pelo leitor. A possibilidade de comunicao via textos mais do que a capacidade de leitura de smbolos lingusticos numa pgina. O que um texto simplemente diz e o que comunica socialmente podem ser realidades e ideias completamente distintas. O intercmbio real entre um autor e um leitor baseado num passado social e cultural partilhado. Ler um texto e interpretlo so duas realidades e experincias diferentes. Saber ler no

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significa saber ler. Sem a interpretao contextualizada no tempo e espao, a comunicao ocorre somente num nvel superficial, se de todo. A menos que o termo e conceito de alfabetizao venham a ser alargados para se referir tambm a um tipo de alfabetizao cultural e social, este termo no pode ser considerado sinnimo de literacia, porque, segundo Kern (2000):A literacia o uso de prcticas situadas no contexto social, histrico e cultural que nos permite criar e interpretar significados atravs do uso de textos. (Por esse motivo a literacia) presupe pelo menos o conhecimento das relaes entre as convenes textuais e os contextos em que so usadas e, idealmente, a capacidade de reflectir de forma crtica sobre essas relaes. Como est ligado a objectivos claros, a literacia dinmica no esttica e varia de uma comunidade discursiva e cultural para outra. (A literacia) chama a si uma grande variedade de aptides cognitivas e conhecimentos da lngua escrita e falada, do conhecimento de gneros e de conhecimento cultural (p. 16).

Os smbolos lingusticos que nos permitem registar contedos so prerequisitos essenciais para a literacia, no so, contudo, o seu expoente mximo. Kern afirma que, embora ligada ao uso da lngua escrita, a literacia tem que ver, acima de tudo, com a linguagem e o conhecimento da forma como usada, e s secundariamente com os sistemas da escrita (2000, p. 23). Cada indivduo tem um discurso primrio, aquele que aprendeu na sua cultura familiar e no grupo em que se insere. Alm desse sistema familiar e comunal do seu discurso primrio, cada um geralmente aprende discursos secundrios ligados s instituies sociais em que se movimenta escola, local de trabalho etc. Cada discurso dentro de cada comunidade sempre ideolgico e resiste crtica interna enquanto, ao mesmo tempo, se ope a outros discursos e atribui valor a certas coisas a custo de outras, estando, assim, ligado distribuio de poder e hierarquia estrutural da sociedade (Gee, 1996, p. 53). Quando uma pessoa, embora participe numa comunidade primria e tenha um discurso primrio, se encontra margem da organizao social mais lata, tal sentido de falta de poder limita a sua capacidade de participao literata nessa mesma sociedade. Como domnio [efectivo] dos discursos secundrios (Gee, 1996, p. 56), a literacia , por isso mesmo, uma forma real de participao social alargada. Por bvias que as afirmaes prvias paream, na realidade, s recentemente se comeou a conceber de forma

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coerente a natureza verdadeiramente generativa e social dos textos, especialmente no que se refere ao seu ensino e didctica. O conceito de alfabetizao anterior ao conceito de literacia e teoricamente ligado a conceitos comportamentalistas e cognitivos de independncia de aco do aprendente no processo de aprendizagem tem sido executado atravs do ensino dos processos lnguisticos irredutveis da leitura e da escrita. Independentemente da esfera social onde circula e existe, e sem esse entendimento, a aprendizagem torna-se um processo alienatrio para muitos dos aprendentes. Segundo Silva e Colello (2003):Tradicionalmente, a didatizao das atividades para o ensino da leitura e escrita na escola cristalizou-se como uma linguagem estranha aos alunos, falantes nativos da lngua portuguesa que nem sempre percebiam as prticas pedaggicas como extenso ou possibilidade efetiva do seu dizer. Longe de atender as necessidades do indivduo, de desenvolver e ampliar os seus modos de expresso e interao, ou ainda, de alimentar o desejo de aprender, ensinava-se uma lngua que, de fato, no era a dele; impunha-se uma relao como as letras incompatvel com o seu mundo, e, portanto, a revelia do prprio sujeito (p. 7).

Sem o entendimento e valorizao das comunidades e discursos primrios dos aprendentes, e porque no assenta naquilo que eles j conhecem rumo quilo que podem vir a conhecer, a aprendizagem das letras vazia e conduz a situaes de rejeio por parte dos aprendentes, os quais se tornam, ento sim, resistentes a esforos de alfabetizao no seu sentido mais bsico. Em vez disso, a aprendizagem da literacia pode e deve ser feita com as literacias primrias dos aprendentes formas legtimas de expresso social do seu repertrio, sejam elas quais forem como ponto de partida. A escola somente um dos muitos aspectos da participao social. Os alunos tm as suas vidas prprias fora do contexto da escola em que muitos desempenham j papis muito relevantes nas suas comunidades primrias. Shaughnessy (1998) diz que os professores, em vez de tentarem converter os nativos e abrir as comportas da verdade, a qual, condescendentemente, partilham com os seus alunos, devem, sim, tornar-se observadores atentos e tentar, de facto, conhecer os alunos a quem querem ensinar. Quando a escola se integra primeiro no sistema social dos alunos e os ajuda a analisar e entender os seus discursos primrios, a possibilidade de ensinar prticas literatas da sociedade alargada aumentam significativamente.

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O gnero como vertente terico-pedaggica da literaciaTodos ns reconhecemos um editorial no jornal da manh, uma receita mdica, um anncio de uma casa venda, um roteiro de um cruzeiro s Bahamas ou um relatrio sobre a qualidade de vida de homens encarcerados num estabelecimento prisional como formas vlidas de comunicao escrita contendo um certo contedo, formato e funo social. Se cada um deles tem ou no a ver com a nossa vida pessoal, uma questo de quem somos, onde vivemos, o que fazemos profissionalmente, qual o nosso estatuto scioeconmico etc. Embora, pessoalmente, a autora gostasse de admitir familiaridade com roteiros de frias nas Bahamas, tal no acontece. Estamos naturalmente mais familiarizados com certas formas de escrita do que outras. Provavelmente, j fomos ao mdico e recebemos uma receita; por outro lado, no de surpreender que poucos, ou nenhum, de ns j tenham tido acesso a um relatrio do tipo mencionado. Todos esses textos pertencem a gneros textuais diferentes e realizam funes sociais diferentes. Os gneros textuais contm, como marca da sua produo, os termos do contracto social estabelecido atravs deles. Da mesma forma que a literacia uma coleco de processos culturais dinmicos e no um grupo de atributos psicolgicos estticos e monolticos (Kern, 2002, p. 23), o gnero, como veculo histrico-cultural e didctico, tambm um conceito aberto, fluido, em permanente evoluo, dada a natureza generativa e evolutiva dos indivduos que o usam na sua comunicao. Apesar disso, o conceito de gnero mantm, ao mesmo tempo, uma estrutura base, um tipo de infraestrutura conceptual atravs da qual nos podemos orientar tanto na produo como na recepo de textos escritos. Segundo Freedman (1993), os gneros so aces, eventos, e/ou respostas a situaes recorrentes ou contextos com relaes complexas de substncia, forma, contexto e motivo ou inteno. A reocurrncia de contextos especficos conduzem a aces sociais que se tornam ritualizadas, por isso os gneros podem ser concebidos como aces retricas-tipo baseadas em aces reocurrentes (Chapman, 1994, p. 351).

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Os autores experientes geralmente iniciam o processo de comunicao por escrito usando um plano de referncia mtuo entre leitores e autores e uma calibrao do tpico atravs da escolha de temas, tom e metadiscurso. Podem fazlo porque, ao longo do tempo e com experincias repetidas, criaram um tipo de heurstica do gnero, ou seja, as linhas de base dos elementos que todos os autores bem-sucedidos usam implcita ou explicitamente quando escrevem. Estes aspectos so, ao mesmo tempo, parmetros comuns a todos os gneros e a base na qual os gneros diferem entre si. Atravs de decises feitas no nvel do contedo, das expectativas dos leitores, do vocabulrio e do registo lingustico, do tipo de formato e das fontes usadas, entre outras, o autor consegue desenvolver o texto de forma socialmente adequada. As escolhas da forma como o texto contextualizado e elaborado em termos do tpico, nvel de explicao e da natureza do gnero so todas produto no s da experincia e do saber lingustico do autor, mas tambm do conhecimento scio-cultural e histrico da comunidade a que se dirige por escrito. O ensino da literacia a aprendentes principiantes ou inexperientes atravs do gnero textual requer, por isso, que se faam ajustamentos em nvel terico e prtico. Por um lado, o sistema educativo em geral e o professor em particular precisam adoptar os conceitos de que a aprendizagem e o uso da leitura e da escrita so um processo social, que a literacia a compreenso e produo de discursos secundrios, ou seja, as formas de comunicar por escrito em vrios contextos sociais alargados, e que a escola , de facto, o ponto de partida para os processos de acesso e participao social. Essa postura terica direcciona o ensino para uma aco responsvel, sabendo que como aspecto da prtica social, a aprendizagem envolve as pessoas na sua globalidade... [o que] implica no apenas uma relao com actividades especficas, mas uma relao com comunidades sociais implica tornar-se participante, membro, um tipo de pessoa (identidade) (Matos [s. d.], p. 67). Antes que possamos falar dos aspectos prticos da didtica da leitura e da escrita via gnero, impe-se que aceitemos as dimenses tericas da literacia e do gnero como ponto de partida e alicerce da nossa prtica. Por outro lado, a adopo terica da importncia do ensino da literacia nas suas vertentes cognitivas e sociais implica uma prtica pedaggica comprometida em que

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o ensino da literacia abandona a noo de escrever por escrever (Colello; Silva, 2003, p. 12). Em vez disso, procura encontrar meios atravs dos quais o que acontece na sala de aula reflecte esta noo de que a escrita acontece num contexto scio-cultural mais lato do que o contexto escolar e s pode ser compreendida e ensinada de forma eficaz sob essa perspectiva. Uma vez que os alunos so j participantes dentro de comunidades discursivas primrias, a funo do sistema educativo no seu todo a de alargar a capacidade de acesso dos alunos a outras comunidades atravs da leitura e da escrita, uma responsabilidade que reside na escola, sendo esta muitas vezes a comunidade de discurso secundrio com a qual os alunos tm o seu primeiro contacto. Usando o conceito de gnero textual, o ensino da literacia pode ser feito com base no reconhecimento de que todas a comunidades e discursos, incluindo a comunidade e o discurso primrio de cada aluno, tm valor intrnseco, mas que a participao efectiva a vrios nveis dessas comunidades requer que cada um venha, pelo menos em parte, a conhecer o conjunto de valores e formas de interao que essas comunidades, quer sejam culturais, polticas ou laborais privilegiam. Tal como pessoas que transitam entre dois mundos e precisam aprender os seus diferentes valores e contractos sociais, os alunos precisam ser ensinados explicitamente sobre quais so as caractersticas dessas novas comunidades e aprender a naveg-las atravs dos processos da escrita. No se pretende com este argumento menosprezar a funo da alfabetizao ao seu nvel mais bsico e vital o processo de aprendizagem do cdigo lingustico e sem o qual seria impossvel sequer pensar em termos de literacia. No entanto, importa reafirmar que at mesmo no processo de aquisio da lngua escrita o contexto da aprendizagem deve sempre visar ao que h de social em toda a linguagem humana, ou seja, o processo de comunicao de algo a algum. O cdigo lingustico no um fim em sim mesmo, mas o meio atravs do qual, de forma socialmente adaptada, comunicamos efectivamente e dessa forma nos tornamos membros ou mantemos a nossa afiliao literata nas comunidades de que fazemos ou queremos fazer parte. Segundo Colello (2004), na ambivalncia dessa revoluo conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face do ensino da lngua:

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alfabetizar letrando (p. 6). Resta-nos agora repensar a nossa prtica pedaggica de forma a tornar real os princpios tericos apresentados at aqui.

A pedagogia aplicada aprendizagem da literacia atravs do gnero textualOs anos 80 marcaram o incio do ensino da escrita atravs do processo. Alm de ser revolucionrio no sentido que criou, pela primeira vez, a possibilidade de verdadeiramente ensinar aos escritores inexperientes o processo seguido pelos escritores experientes (Preto-Bay, 2005), a pedagogia do processo da escrita permitiu, ao mesmo tempo, desmascarar falsas ideias que se pensou estaram associadas produo escrita, nomeadamente a noo de que s algumas pessoas tm o dom da escrita e que esta j existe de forma acabada na cabea do escritor antes de chegar ao papel. Basicamente at pesquisa realizada por Flower e Hayes (1981), a qual documentou o processo sofisticadado da escrita seguido por autores experientes, no havia ensino da escrita segundo a concepo que temos presentemente. Em vez disso, no contexto escolar, a escrita era avaliada como produto acabado sem ser verdadeiramente ensinada. Atravs do processo, a escrita comeou a ser vista e ensinada como parte de um mtodo de desenvolvimento e aprendizagem a que todos tm acesso. Deixou de se pensar que algumas pessoas nunca podero se comunicar adequadamente por meio da escrita e passou a pensar-se em termos da responsabilidade pedaggica que a escola tem de ensinar esse processo. Se, por um lado, a psicologia cognitiva nos deu acesso aos processos mentais dos escritores e nos permitiu pensar na escrita como um processo passvel de aprendizagem, por outro, a psicologia social tem-nos remetido, mais recentemente, para noes da lngua e da sua natureza social. Entramos, assim, numa segunda fase da pedagogia da escrita ligada, desta vez, no somente aos aspectos da produo escrita mas tambm do ensino da sua funo social. Assim, nascem o conceito de gnero textual no contexto escolar e a necessidade de desenvolver uma pedagogia para o seu ensino. Embora o ensino do processo da escrita ajude os escritores a sistematizar as fases e passos da codificao dos textos, este no garante, por si s, que o autor inexperiente leve em linha de conta os

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aspectos sociais, culturais e histricos da produo dos textos de modo a que esses textos sejam eficazes comunicativamente no mbito social. De acordo com Johns (1997), no caso do discurso escrito, h muitos factores que so determinados na e pela cultura onde os textos so produzidos ... incluindo os objectivos e a funo dos textos, os papis e as relaes entre os autores e os leitores, o contexto em que o texto produzido e lido, as caractersticas formais do texto, o uso do contedo e at mesmo o nome dado ao texto (p. 196). Para desenvolver uma pedagogia do gnero precisamos, pelo menos, pensar em termos (1) das experincias prvias dos alunos, (2) da aprendizagem situada na sala de aula e do que os alunos a podem experenciar e aprender, bem como (3) da transferncia desses saberes para novos contextos que o aluno vir a encontrar na sua prtica social, pois naturalmente que no contexto escolar no possvel ensinar a mirade de gneros textuais que as mltiplas comunidades discursivas usam como forma de comunicao.

Avaliao das experincias prvias, necessidades e interesses dos alunosO sistema de design de instruo mais conhecido e mais usado, o chamado modelo ADDIE, prope que o design de sistemas inclua cinco fases sequenciais: a anlise, o design, o desenvolvimento, a implementao e a avaliao. Apesar de esse processo ser geralmente usado para o design de sistemas instrucionais em larga escala, podemos aplic-lo ao design da instruo ao nvel do ensino da literacia na sala de aula. O primeiro passo nesse processo a anlise, a qual inclue trs aspectos principais: a anlise do problema a ser resolvido atravs da instruo, o estabelecimento de objectivos para a instruo e, no menos importante, a anlise das caractersticas dos alunos. No faz sentido fazer design, desenvolvimento ou implementao de um sistema de instruo sem, primeiro, saber quem so os alunos, quais as suas experincias educativas, culturais e sociais prvias, quais os seus objectivos para a aprendizagem e quais as suas caractersticas em geral. Surpreendentemente, na maioria das situaes de instruo, o ensino feito como se essas experincias e caractersticas no tivessem qualquer impacto no processo de aprendizagem.

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Sem conhecer os alunos de perto, as suas situaes de vida, as suas ambies e objectivos, difcil verdadeiramente ensin-los. O tipo de experincia que os alunos tm fora da escola, nas suas comunidades e discursos primrios, tem um impacto directo na sua aprendizagem de discursos secundrios e da literacia em geral. Ao tentar proteger a torre de marfim (Shaughnessy, 1998) e as suas teorias pr-fabricadas de quem os alunos so e o que podem ou no aprender, ou que metas pessoais e sociais podem ou no atingir, os professores tornamse, em parte, pactuantes com uma viso determinstica e pessimista das possibilidades na vida dos seus alunos. Ao repensar a sua abordagem e atitude perante cada cada aluno individualmente e cada novo grupo de alunos, o professor pode [1] conceber o papel dos alunos como agentes inteligentes no processo de aprendizagem ... [2] ter em considerao a variedade de recursos que venham a ser necessrios para atingir objectivos de aprendizagem e [3] incluir explicaes de processos de aprendizagem especficos no contexto de descries mais alargadas das estrutura cognitivas atravs das quais as pessoas se adaptam a vrios contextos para atingirem as suas metas pessoais (Bereiter, 1990, p. 619). Dessa forma, quando o professor reconhece que os aprendentes tm um conhecimento inadequado dos recursos necessrios para desempenhar a tarefa [e que o] seu depositrio de conhecimento do mundo, das estruturas retricas e lingusticas ...[] insuficiente (Wenden, 1991, p. 318), pode, assim, respeitando e incluindo as experincias prvias dos alunos, orient-los na aquisio do desenvolvimento de discursos secundrios, ou seja, da literacia em geral.

A sala de aula como comunidade lingusticaAo permitir uma experincia social alargada necessria ao desenvolvimento social dos alunos, a sala de aula tornase uma comunidade scio-retrica, uma zona em permanente construo, onde os alunos se apercebem que o seu discurso primrio um ponto de partida para o entendimento e aprendizagem das prticas literatas de outros, as quais podem ser aprendidas e perante as quais no necessitam se sentir intimidados. Uma vez que toda a aprendizagem ocorre de

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forma situada socialmente, a criao de uma comunidade de prtica na sala de aula permite que os alunos trabalhem os textos como autores e leitores e, nessa reciprocidade, aprendam a avaliar a situao retrica. O contexto escolar torna-se, assim, uma primeira comunidade alargada para os alunos e, se gerida de forma a explorar o seu potencial real, pode tornar-se uma ponte para o mundo medida que tal como outras instituies sociais ... providencia prtica no uso de ferramentas especficas e tecnologias para resolver problemas especficos... [a escola obedece assim] a princpios que definem objectivos importantes a ser atingidos, problemas significativos a ser resolvidos e abordagens sofisticadas a ser usadas para resolver problemas e atingir metas (Rogoff, 1990, p. 191). As relaes sociais que se estabelecem na sala de aula, particularmente no que se refere posio do professor como mentor e mestre em relao a um aprendente, do nfase ao conceito da aprendizagem atravs de participao activa e progressivamente mais competente numa comunidade de prtica especfica (Atkinson, 2002). Assim, atravs da participao orientada pelo professor, a literacia desenvolvese como uma actividade completa e complexa, em que as metas comunicativas e sociais da escrita so comunicadas e practicadas. Embora se fale com frequncia da zona de desenvolvimento prximo como um conceito individual, Moll (1989) prope que se repense este conceito como participao colectiva. Diz-nos: O objectivo ajudar ... [os aprendentes] a criar significados atravs da participao em diversas actividades literatas. O objectivo [ajud-los] ... a se aperceberem de forma consciente de que esto a usar o processo literato e ajud-los a aplicar tal conhecimento para reorganizar experincias e actividades futuras... [Atravs de estratgias que] obtiveram atravs do uso e anlise da linguagem para moldar as suas prprias actividades e criar textos mais sofisticados e claros (p. 132). Esse tipo de desenvolvimento pessoal e social dos alunos no acontece, contudo, sem ser cuidadosamente planejado, desenvolvido e apoiado de forma intencional. Uma vez que o desenvolvimento dos aprendentes ocorre a longo prazo, necessrio que esses tenham oportunidade de reorganizar as suas formas de pensar de modo

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a, progressivamente, atingirem um nvel de entendimento, habilidade e perspectiva sobre a comunidade a que pertencem para usarem esse entendimento e crescimento pessoal na sua relao com instituies sociais alargadas e com outros membros da comunidade. Para que tal acontea os alunos devem ter acesso participao social orientada pelo professor, a qual inclui: planeamento e estruturao de actividades; calibrao de tarefas difceis; participao conjunta em tarefas de resoluo de problemas; discusso de metas e objectivos gerais; ateno resoluo de partes de problemas que levam resoluo de problemas mais complexos; oferta de apoio e estrutura; providenciamento de rotinas a serem usadas em actividades ou situaes mais complexas; participao orientada; transferncia de responsabilidades do professor para o aprendente de acordo com a avaliao que o professor faz das capacidades deste ltimo; ajuste do apoio dado com base nas necessidades do aprendente; aumento de responsabilidades e expectativas medida que o aprendente se torna mais capaz (Rogoff, 1990). Paralelamente, atravs da reflexo, na sequncia das discusses na sala de aula e da prpria natureza da atmosfera da aula, os alunos comeam a desenvolver no s os seus prprios processos e experincia, mas tambm uma arquitectura de significados e relaes que so o produto da comunidade lingustica que a sala de aula constitue, bem como das relaes estabelecidas entre os alunos em si e entre o professor e estes mesmos alunos. Na aprendizagem da literacia no se pode dar demais importncia s relaes pessoais estabelecidas entre o professor e os alunos. Quando os alunos sentem que tm o respeito e ateno do professor e que o objectivo do professor o de os ajudar, muitos respondem de forma positiva. Segundo Cummins (1989), a interao estabelecida na aula entre alunos e professores e entre os alunos em si vital para o desenvolvimento da literacia desses mesmos alunos. Algumas das suas sugestes incluem:

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dilogo genuno entre o professor e o aluno tanto oralmente como atravs da escrita; orientao e apoio; colaborao atravs do dilogo entre os alunos; uso significativo da lngua escrita em vez de ateno s estruturas superficiais da comunicao escrita; aspectos do desenvolvimento lingustico integrados em todo o contedo curricular; nfase dada s habilidades de anlise e resoluo de problemas; apresentao de tarefas de forma a engendrar motivao intrnseca nos alunos. Essa forma de pensar e estruturar a sala de aula e as relaes nela existentes cria, de certa forma, um sistema modelo atravs do qual os alunos podem explorar outras relaes sociais alargadas na sua experincia presente e futura.

Pedagogia aplicada ao gneroum processo social estvel e generativoO que se pretende com o ensino aplicado do gnero textual a servio da literacia que os aprendentes tenham a oportunidade, no contexto educativo, de explorar relaes sociais e a forma como estas se desenrolam e constituem atravs dos textos. Didacticamente, o nosso objectivo no pode ser, obviamente, o de ensinar todos os gneros textuais que os alunos vo encontrar no seu percurso de vida. Em vez disso, podem usar-se experincias com a leitura e a escrita de textos especficos como exemplos situados e partir da para o entendimento de que, em contextos diferentes e para fins diferentes, os textos assumem caractersticas diferentes. O gnero precisa ser apresentado sob a perspectiva de que varivel e que nos ajuda, ao mesmo tempo, a perceber e a modificar o mundo, uma vez que, embora tenha um conjunto de caractersticas de base estveis, , acima de tudo, uma actividade generativa. Johns (1997) sugere um curso de aco que envolva a discusso do que pode ser considerada uma anlise comparativa de gneros. Como ponto de arranque, os aprendentes comeam

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por examinar textos com que j se encontram familiarizados nas reas do contedo, forma, intento comunicativo e das foras sociais em geral que determinam a sua construo e interpretao. Com base neste tipo de pensamento crtico e atitude de anlise, o professor pode, ento, apresentar outros textos pertencentes a outras comunidades discursivas com os quais quer que os aprendentes se familiarizem. medida que vrios textos vo sendo analisados, os alunos vo comeando a produzir textos visando leitores em comunidades diferentes. A experincia didctica que visa familiarizao com vrios leitores e s suas comunidades pode, inicialmente, ser to simples como pedir que os alunos escrevam um pargrafo descrevendo um acontecimento das suas vidas, tal como um hipottico acidente de carro, a leitores diferentes: aos pais, ao seu melhor amigo, ao chefe da polcia e ao namorado ou namorada, por exemplo. A anlise de tal exerccio escrito revelar, certamente, uma escolha de palavras e nfase de acontecimentos que se adaptam s expectativas do leitor e forma como o autor quer ser visto e entendido. Dependendo do nvel educativo dos alunos, este pargrafo pode no s ser diferente em termos do contedo, do registo e do tom, mas tambm assumir um formato diferente. Dessa forma, os alunos comeam a perceber o conceito de leitor no seu sentido mais restrito e de comunidade discursiva no seu sentido mais lato. Actividades didcticas bem mais avanadas requerem que os alunos leiam um texto com o qual no esto familiarizados e da deduzam os valores e relaes sociais entre os leitores e autores desses textos. O que se pretende que os aprendentes faam perguntas aos textos, aos contextos e aos membros experientes dessas comunidades e a si prprios (Johns, 1997, p. 92). Nesse processo de desenvolvimento da literacia, o professor, como mentor e autor mais experiente, pode orientar o aprendente ao ajud-lo a identificar e analisar as caractersticas dos gneros, as aces retricas que os autores experientes usam para atingir os seus objectivos e as escolhas lingusticas que fazem, entre outras. A sala de aula pode tornar-se, assim, um lugar de convergncia de pessoas e textos, um lugar onde os aprendentes podem (1) analisar gneros discursivos vrios e aplicar o novo conhecimento a novos contextos da escrita; (2) rever e actualizar as suas prprias teorias do que so os gneros textuais; (3) desenvolver estratgias para lidar com

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situaes de escrita e leitura novas no contexto social; (4) aprender a analisar activamente e criticar de forma construtiva as vrias funes sociais, os textos e os contextos; (5) adquirir uma metalinguagem para discutir os textos; (6) reflectir nas suas experincias literatas passadas e presentes (Johns, 1997). Como comunidade lingustica, contudo, a sala de aula no precisa ser uniforme. Quando escrevem, os aprendentes no tm que escrever todos no mesmo gnero textual. Com base na sua experincia prvia e interesses futuros, esses podem tornar-se pesquisadores etngrafos das comunidades em que esto interessados em participar este tipo de prtica num ambiente acolhedor permite que os alunos experimentem ideias e processos que podem parecer intimidantes fora do contexto educativo, mas que nesse contexto transformam a sala de aula num verdadeiro laboratrio social de prticas literatas: O tipo de ensino que envolve e desafia os aprendentes em tarefas com significado tambm ajuda os alunos a serem capazes de correr riscos, apoia a colaborao entre eles, rev de forma propositada as abordagens que faz e anticipa a natureza a longo-prazo e contnua da aprendizagem. Este tipo de pedagogia boa para todos (Zamel; Spack, 1998, p. XI). Atravs deste processo aberto e generativo, os alunos podem comear, verdadeiramente, a ter experincias que vo alm da realidade da comunidade discursiva a que pertencem e inferir esses princpios para futuros textos que venham a escrever e contextos em que venham a participar numa rede social mais alargada.

Consideraes finaisOs estudiosos nas vrias reas do conhecimento preocupam-se com aspectos multifacetados da experincia e desenvolvimento humanos. Embora vivamos num perodo da histria do mundo em que se torna necessrio compartimentalizar os vrios ramos dos conhecimento, importa, ainda assim, estabelecer relaes entre eles de forma a ter uma viso mais abrangente do que possvel. Certamente, o tema da literacia atravs do gnero textual como forma de desenvolvimento da qualidade de vida dos seres humanos pode ser considerado como uma minscula contribuio para este fim. No entanto, como o relatrio do Ipea sugere, v-se que mesmo pequenas diminuies no grau de desigualdade

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poderiam reduzir a pobreza significativamente (TD 1000). Porque a natureza da sociedade e de todo um conjunto de problemas multifacetada, torna-se necessrio que as solues apresentadas tambm o sejam. Colello (2004) afirma que a desconsiderao dos significados implcitos do processo de alfabetizao o longo e difcil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, a reao dele em face da artificialidade das prticas pedaggicas e a negao do mundo letrado acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas evitvel se o professor souber instituir em classe uma interao capaz de mediar as tenses, negociar significados e construir novos contextos de insero social (2004, p. 11). Essa , certamente, uma das possibilidades que nos so dadas atravs da nfase no desenvolvimento da literacia atravs do gnero textual.

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A escrita e o outro/interlocutor no dizer das crianas

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Cancionila Janzkovski Cardoso*

Vivemos no Brasil, a partir da dcada de 1980, profundas mudanas no processo de ensino da lngua materna. O avano de vrias cincias correlatas da educao, em especial das cincias lingsticas, deslocou o centro do ensino da gramtica normativa tradicional para o texto como unidade de ensino. Especialistas da rea da linguagem, pesquisadores, professores formadores tm feito um enorme esforo para divulgar/vulgarizar uma concepo de linguagem como interao, como trabalho, como discurso, como prtica scio-histrica, na qual as prticas de leitura e escrita so ressignificadas. Esse movimento se fez sentir, igualmente, no processo de alfabetizao. Por um lado, novas concepes sobre como a criana apreende o sistema de escrita a psicognese da escrita e, por outro, a ampliao do conceito de alfabetizao trouxeram muitas modificaes para o ensino e a aprendizagem do ler e do escrever. nesse contexto que ganha visibilidade um novo fenmeno: o letramento. Autores brasileiros como Tfouni (1988, 1995), Kleiman (1995), Soares (1995, 1998, 2002, 2003), Masago (2003), Mortatti (2004), entre outros, tm constitudo uma importante produo acadmico-cientfica sobre esse novo fenmeno e, portanto, sobre o novo conceito que veio a denomin-lo no interior da cincia pedaggica, buscando explorar diferentes aspectos e problemas nele envolvidos, a partir de diferentes perspectivas tericas.*

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Doutora em Educao pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Educao pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior. Texto apresentado no 14o. Cole. Campinas, 2003, modificado e ampliado.

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, pois, no contexto de profundas alteraes cientficas, tecnolgicas, polticas e sociais que se prope a formao de um novo leitor e escritor. A alfabetizao escolar, por si s, j no basta; necessrio que os indivduos aprendam a ler e produzir textos, para alm daqueles produzidos no contexto escolar, textos que remetam s mais variadas prticas sociais de leitura e escrita. Alfabetizao e letramento, gradativamente, esto sendo entendidos como dois processos interdependentes, complementares, cada qual com especificidade prpria. A mudana na compreenso do processo de alfabetizao colocou, portanto, os usos sociais da escrita, materializados em textos, no centro das atividades de ensino. O desafio que se coloca hoje para a prtica alfabetizadora alfabetizar letrando. Para Soares (2003, p. 90), ao mesmo tempo em que o aluno dever se apropriar do sistema de escrita alfabtico e ortogrfico, ou seja, da tecnologia da escrita, dever conquistar habilidades e atitudes de uso dessa tecnologia em prticas sociais que envolvem a lngua escrita. O primeiro processo chama-se alfabetizao; o segundo, letramento. Ambos devem ocorrer simultaneamente. Assim, os processos de alfabetizao e de letramento escolares envolvem, fundamentalmente, a apropriao e o uso competente da leitura e da escrita de textos variados, com significado e relevncia social. Com base nesse pressuposto, este texto discute um aspecto importante da aprendizagem da escrita: a adaptao do texto a um interlocutor determinado.

O ato de escreverEscrever um texto pressupe a simulao de uma situao: prever um destinatrio e os efeitos de forma e de contedo do texto sobre ele. Desse modo, a aprendizagem da escrita, diferentemente da aprendizagem da fala, requer da criana uma dupla abstrao: por um lado, ela deve lidar com uma linguagem que no conta com os aspectos sonoros em sua realizao, restringindo-se ao plano das idias veiculadas pelas palavras; por outro, deve trabalhar considerando a ausncia do interlocutor na situao imediata de sua produo (Vygotsky, 1987/34, p. 122). Assim, o texto escrito supe, fundamentalmente, um enunciador o escritor em situao de comunicao que

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o distancia de seu interlocutor o outro/leitor e, por isso, exige um trabalho de organizao textual que busque a explicitao dos significados para esse interlocutor ausente. O processo de construo do texto escrito exige que seu autor ajuste, antecipadamente, o seu dizer a um determinado interlocutor. Numa palavra, o texto escrito exige a construo de um interlocutor, ou, como sugere Bakhtin, a considerao de um auditrio social. Assim, globalmente, pode-se dizer que o problema da aprendizagem da escrita o de a criana conseguir um melhor controle sobre sua prpria atividade de linguagem: aprender a planejar um texto, a desenvolv-lo em funo da situao, adapt-lo a um destinatrio. Encontra-se aqui, portanto, aquela caracterstica importante da atividade de produo de textos escritos j mencionada por Vygotsky: seu carter consciente. Para Schneuwly (1988, p. 50), do ponto de vista psicolgico, trata-se de fazer funcionar e dominar, nas diferentes situaes de comunicao escrita, dois processos: a) o planejamento autogerado do texto; b) a instaurao de uma relao mediata em relao situao material de produo. No que concerne ao primeiro, necessrio compreender que o controle e a gesto da produo no se ancoram mais na anlise da produo de linguagem na situao, na qual o interlocutor d pistas e participa conjuntamente da construo do discurso; necessrio desenvolver uma instncia de controle e de gesto autnoma, permanente, que funcionar durante toda a produo do texto. Igualmente, o outro processo implica que o clculo e a criao das origens textuais (temporais, espaciais, argumentativas) funcionem independentemente da situao particular. No nvel psicolgico, trata-se de um funcionamento que exige a criao de novas instncias de clculo, de gesto e de controle, que j se encontram, de maneira rudimentar, nas situaes ligadas ao uso da oralidade. Para esse autor, trata-se de um processo de planejamento monogerado,2 que exige uma reflexo mais deliberada e consciente sobre a lngua.2

No modelo de produo do discurso, desenvolvido por Bronckart (1985) e Schneuwly (1988), existem dois grandes tipos de planejamento no nvel dos planos de textos ou de modelos de linguagem: o planejamento poligerado, que corresponde, em geral, a uma ancoragem implicada, e o planejamento monogerado, de ancoragem autnoma. Como exemplo de planejamento monogerado, poderamos pensar numa narrativa ficcional escrita na qual a representao do destinatrio mediatizada pela representao interna do enunciador.

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Os procedimentos da pesquisaAs particularidades elencadas sugerem que o processo da escrita possui um funcionamento psicolgico especfico cuja caracterstica principal a adoo por parte do escritor de uma relao metatextual com seu texto, tomando-o como objeto de ateno para o comentar, o estruturar, o modificar, o clarificar. Tendo como objetivo apreender os nveis de reflexividade e de deliberao sobre o processo de escrita j desenvolvidos por crianas, realizei uma pesquisa com 14 sujeitos, alunos da 4a srie do ensino fundamental, que tinham, em mdia, dez anos de idade.3 Os procedimentos envolviam entrevistas individuais nas quais a criana era convidada a falar sobre seus processos mentais, suas opinies sobre a lngua, exigncias formais do texto, tarefas escolares, leitores em potencial, possibilidade de reviso textual etc., trs ou quatro dias aps a produo do texto. Os sujeitos ficavam muito vontade, dado todo um conhecimento j construdo com a professora/pesquisadora e com o equipamento de gravao. O objetivo foi mostrar como a criana v o seu prprio texto na interao oral sobre ele, evento que denominei entrevista de explicitao. A entrevista de explicitao, que sempre comeava com a leitura do texto, proporcionou momentos de reflexo meta (metalingstica, metapragmtica, metatextual, metadiscursiva) em que as crianas puderam discutir sobre as formas de enunciao de seu pensamento para o outro, apontar o que perceberam como limites na materializao do texto e, ainda, sugerir formas alternativas de tratamento das unidades apontadas como inadequadas. Para efeitos de anlise, as entrevistas foram transcritas e recortadas em unidades, que denominei seqncias enunciativas. Nos limites deste trabalho, discutirei apenas parte dos resultados, notadamente aqueles que tratam da percepo das crianas relacionada ao seu interlocutor/leitor.

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Este foi um dos objetivos de uma pesquisa mais ampla, de carter longitudinal, na qual acompanhei/analisei quatro anos de escolarizao desses sujeitos. Grande parte dessa pesquisa j se encontra publicada em duas obras: a) CARDOSO, Cancionila J. Da oralidade escrita: a produo do texto narrativo no contexto escolar. Braslia/Cuiab: co-edio Inep/Comped e EdUFMT, 2000, e b) CARDOSO, Cancionila J. A socioconstruo do texto escrito: uma perspectiva longitudinal. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2003.

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O interlocutor/leitor em cenaBakhtin aponta como ndice substancial, constitutivo do enunciado, o fato de ele se dirigir a algum, de estar voltado para o destinatrio. Para o autor, as formas e concepes do destinatrio se determinam pela rea da atividade humana e da vida cotidiana a que se reporta um dado enunciado. A quem se dirige o enunciado? Como o locutor (ou o escritor) percebe e imagina seu destinatrio? Qual a fora de influncia deste sobre o enunciado? disso que depende a composio e, sobretudo o estilo, do enunciado (Bakhtin, 1979/1992, p. 321). Assim, a avaliao do locutor sobre o que est dizendo, mesmo quando aparentemente no se faz presente, e o seu julgamento, com respeito a quem est se dirigindo, moldam o seu discurso, determinam a escolha das unidades de linguagem, lexicais ou gramaticais e, ainda, a escolha das unidades de comunicao, tais como o estilo de uma fala ou os gneros discursivos empregados. O interlocutor , portanto, tambm definidor da configurao textual. No processo de socioconstruo da lngua escrita, quando alunos dos anos iniciais do ensino fundamental escrevem, o quanto est concretizado esse outro, seu leitor em potencial? Algumas seqncias enunciativas podero elucidar tal questo:4 [Quadro (1)]. Case demonstra, por meio de uma reflexo metapragmtica, ter conscincia de que a sua produo textual determinada pela percepo que ela tem de seus destinatrios. Num contexto pedaggico mais distenso, possvel produzir um texto

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Tendo como principal interesse as concepes das crianas sobre a escrita, optei por transcrever as entrevistas de explicitao da forma mais legvel e simples possvel, ortograficamente, apontando apenas as pausas mais evidentes: - uso de sinais de pontuao (exclamao, interrogao); - uso de dois pontos (..) para assinalar pausa menor (semelhante a ponto ou vrgula na escrita); - uso de reticncias (...) para assinalar uma pausa maior hesitao, reflexo; - uso de chave ( [ ) para assinalar falas concomitantes; - uso de aspas ( ) para assinalar segmentos lidos; - uso de duplo parnteses (( )) para assinalar comentrios; - entrevistadora identificada pela inicial K (Ktia Cancionila); - criana identificada pela inicial do nome.

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(1) K- agora me fala uma coisa .. quando voc produziu esse texto.. que oc teve essa idia de produzir um texto parecido com o do Continho.. voc no ficou Ttulo do texto: pensando.. no ficou com medo de que eu e a Edilma Ktia e no gostssemos? Edilma, as C- ah eu fiquei engraadinhas K- ficou com medo? ((rindo)) C- a depois eu falei assim.. ah tambm se elas no gostar.. eu fao outro K- eu fao outro... no... e se a gente alm de no gostar a gente ficasse braba com voc? C- ((risos)) mas que vocs no iam ficar brava.. vocs iam ri K- porque que voc acha que eu no ia ficar brava? C- ah porque voc sempre foi alegre.. voc no briga com a gente.. l.. se no fosse assim.. vichi eu nem (Obs. Esse texto ia colocar extremamente K- o qu? C- se voc fosse de mau humor eu nem ia fazer esse sarcstico com texto.. ia fazer outro as personagens, K- ah t.. voc seria capaz de fazer um texto desse que so a pesquisadora e falando da professora? sua auxiliar) C- h h ((negativa)) K- no? por qu? o que que oc acha? C- porque ela muito brava.. muito chata K- ela brava e poderia ficar brava com voc? C- ... K- e se eu tivesse ficado brava... hem? C[a K[assim brava.. nervosa mesmo... que absurdo que essa menina escreveu.. Anexo 1 e a hem? C- a eu ia pegar rasgar e fazer outro.. s que no de vocs.. de outras pessoas K- de outras pessoas... mas oc ia fazer um texto parecido com esse de novo? C- no.. ia fazer outro .. sem ser desse... .. pr de uma historinha... no engraada igual essa da.. Case - 25.11.96 sarcstico, mesmo envolvendo as professoras como personagens, pois ela sabe/pressente/antecipa a reao: mas que vocs no iam ficar brava .. vocs iam ri. O mesmo texto no seria escrito em um contexto mais formal, em que a concepo que ela tem de seu destinatrio a leva a hipotetizar uma recusa ou censura. Essa concepo, determinada por uma rea de atividade humana o contexto escolar pode no refletir a realidade, mas , para Case, legtima. A fala da criana parece tambm revelar uma percepo ampla das possibilidades dos gneros de textos, adequados a situaes e interlocutores determinados, na medida em que ela responde

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que, para escrever sobre outras pessoas, ia fazer outro .. sem ser desse... .. pr uma historinha.. no engraada igual essa da. A vivncia nas prticas escolares de leitura e produo textual reafirma, constantemente, um destinatrio quase exclusivo para os textos das crianas. Ao longo de sua escolarizao, elas vo constituindo uma concepo de interlocutor o professor/leitor que tem expectativas bem definidas com relao sua produo escrita: ensinar, corrigir, avaliar. Juliany traduz um conhecimento relativo funo do texto escolar, seu interlocutor, seu destino, seu objetivo: [Quadro (2)]. (2) K- hum.. mas Ju.. quando vo.. por exemplo esse dia que voc tava escrevendo esse texto aqui.. voc sabia que esse texto era pra quem.. quem ia ler? Ttulo do J- voc texto: K- c sabia que era pra mim n.. pra mim e pra Edilma Os gnomos n.. e a.. voc.. quando c t escrevendo voc pensa em mim.. voc fica imaginando.. ah quem vai ler a professora Ktia.. ou no.. nem pensa nisso.. s pensa no texto? J- penso (Obs. Texto K- pensa? e l na sala de aula.. quando voc t muito criativo, escrevendo.. voc tambm pensa na professora ? J- hum hum permeado K- que tipo de pensamento que vem na sua cabea de interassim ertextualidade com histrias J- no porque l.. ela vai olhar as pontuaes bem infantis e certinha tem que fazer tudo bem certo.. porque propaganda depois ela olha.. se tiver errado... de TV) K- o que acontece? J- o que acontece? Voc me pergunta? K- ..eu te pergunto! J- ela manda a gente fazer tudo de novo Anexo 2 J- de novo? mas ela mostra onde t errado? J- mostra.. por sinal ela s manda apagar e corrigir Essa reiterao do interlocutor tem sido apontada como sendo extremamente prejudicial. Trata-se, como salientou Geraldi (1991, p. 143), de um grande problema, especialmente porque as redaes dos alunos (no sua produo textual) tm sempre como leitor a funo-professor, no o sujeitoprofessor. A via de mo nica para a produo infantil, em termos de destinatrio, pode gerar inseguranas como a expressa por Juliany: quando pode, quando seu leitor no Juliany 25.11.96

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compulsrio, essa criana diz selecionar quem pode ler seus textos, apontando para uma vergonha de que seu leitor possa ach-los de m qualidade: [Quadro (3)]. (3) K- ... quando voc escreve Ju.. voc pensa.. alguma vez voc j pensou em quem vai ler? J- j K- como que isso.. conta pra mim como que isso Ttulo do J- eu no gosto muito de .. assim.. nem minha me texto: assim eu gosto muito que fica perguntando (...).. eu Os gnomos fico com vergonha K- por qu? J- ah.. sei l K- porque que voc tem vergonha? J- achar o texto da gente ruim.. ou seno ... ah sei l.. Anexo 2 eu tenho vergonha de mostrar.. a chegando em casa assim.. no sei porque a minha me assim eu no deixo ver.. mas as minhas colegas assim que bem ntima at que eu deixo A reiterao, no entanto, no impede que as crianas desenvolvam idias sobre um interlocutor fictcio, eventualmente outra pessoa que no o professor. no interior dessas mesmas prticas sociais de leitura e escrita que se pode, timidamente, abrir uma perspectiva de maior socializao do texto escolar das crianas. No interior das situaes vivenciadas e discutidas naquele momento pelas crianas, Diego capaz de perceber funes diferenciadas em seus interlocutores, aliadas a expectativas distintas: o texto elaborado em situao escolar , essencialmente, exerccio de estilo, aplicao de conhecimentos gramaticais e estticos, isso porque a funo principal de seu leitor ensinar e o escritor/aluno deve mostrar que aprendeu. O texto elaborado em situao periescolar5 distingue-se do primeiro em virtude de ter um interlocutor cuja funo principal estudar. Destinos tambm diferentes: um fica no caderno, ao passo que o outro ser analisado, valorizado e, quem sabe, virar livro. [Quadro (4)]. Juliany 25.11.96

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Para esta pesquisa, situao escolar entendida como aquela na qual os sujeitos produziam seus textos escritos como tarefas corriqueiras desenvolvidas pelo currculo escolar. Situao periescolar entendida como um contexto social de produo distinto do primeiro, embora ainda escolar, em que os sujeitos eram reunidos para participar de aulas desenvolvidas pela pesquisadora, envolvendo a produo textual.

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(4) K- me fale uma coisa .. O que que voc sente quando a professora manda fazer um texto.. e quando eu mando fazer um texto? Diego 9.9.96 D- eu fao rpido K- pois .. diferente ou no fazer um texto pra professora .. e fazer um texto pra mim? Ttulo do texto: D- diferente Olimpadas K- porque que oc acha que diferente? 96 no Futebol D- ah.. pra eu fazer um texto pra voc .. voc vai estudar sobre o texto n.. voc vai fazer.. como que ... Brasileiro um livro.. n.. que nem voc fez aquela vez com ns quando ns estava na 1 srie.. e a professora ... quando ela manda fazer um texto pra gente aprender a fazer esttica e aprender a pontuao Anexo 3 mais bem.. e aquilo fica no nosso caderno.. e quando ns faz um texto fica pra voc Esse grupo de crianas teve, pelo menos, dois leitores empricos em, tambm, pelo menos, dois momentos do seu processo de escolarizao, ou seja, na 1a e na 4a srie.6 A entrevista procurou extrapolar esses dois conhecidos leitores empricos, criando um leitor virtual, insistindo e puxando a idia de fazer a criana pensar num interlocutor hipottico. Nesse contexto, o mesmo Diego que fornece outros ndices de uma reflexo sobre esse leitor/interlocutor virtual e suas possveis exigncias para a recriao de um contexto, no intuito de haver uma boa recepo do texto. Para Diego, o texto no se basta por si s. A compreenso requer um entendimento sobre o assunto em pauta; requer uma familiaridade com o jeito de se falar daquele assunto. H que se fazer algumas relaes para que se estabelea um sentido, ou, melhor dizendo, a compreenso do todo do enunciado sempre dialgica (Bakhtin, 1979/92, p. 354). Aspectos profundos como contextualizao/ descontextualizao, auditrio social/esferas sociais, temtica/ enunciado podem ser identificados na opinio metatextual7 dessa criana: [Quadro (5)].

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A investigao longitudinal foi desenvolvida em forma de pesquisa participativa em dois momentos: quando as crianas freqentavam a 1 e a 4 srie. Para uma anlise cognitivista do problema das relaes intralingsticas entre os signos e seu contexto lingstico (domnio metatextual) ver Gombert (1990).

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(5) K- algum.. digamos assim uma pessoa que mora bem longe.. que no assistiu as Olimpadas.. t?.. que no escutou nenhuma notcia.. .. uma pessoa que Diego - 9.9.96 mora l na zona rural.. digamos D[hum Ttulo do K[se essa pessoa ler o seu texto.. voc acha que ela entende tod.. toda a sua histria? texto: Olimpadas D- ((no com a cabea)) 96 no Futebol K- ? por qu? Brasileiro D- porque no tem.. no tem .. no tem entendimento.. sobre.. sobre as o.. o negcio.. tem que ter um Anexo 3 entendimento sobre as Olimpadas K- hum... mas e a as coisas que esto escritas aqui no so suficientes para entender? D- eu acho que no K- no? D- no K- fala mais sobre isso.. vamo ver como que oc t pensando isso D- no.. eu t falando assim .. que nem aqui.. que t falando assim nas Olimpadas.. que nem a minha tia.. uma tia minha mora l na .. no .. em Gois na zona rural n.. a ela no tem televiso l.. ela tinha uma s que quebrou n.. a ela .. ela gosta de ver novela assim.. a se a gente falar de uma novela ela no vai saber o que que .. ela vai pensar que um filme.. s que uma novela K- humm D- a ela no vai entender o que que K- certo.. mas e se sua tia ento.. digamos que ela no tenha assistido as Olimpadas.. n D[no K- ela t l.. ela.. se sua tia lesse o seu texto.. n.. voc acha que ela no vai entender ou ela vai entender? D- vai entender assim mais ou menos K- mais ou menos .. ento t bom.. Dessa forma, Caise, Juliany, Lucas e Diego mostram, cada qual a seu modo, que a imagem do leitor-interlocutor visado no s est presente como tambm regula o processo de produo.

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O interlocutor/leitor construdo/filtrado nas formas lingsticas adequadasConvidadas a refletir sobre a apropriao de seus textos para um determinado interlocutor, as crianas manifestaramse de formas variadas. Algumas no apontaram qualquer problema em seu texto que pudesse impedir a compreenso do leitor; outras apontaram localmente problemas de letra ou de ortografia; outras, ainda, foram capazes de perceber distintos problemas nos aspectos organizacionais de seus textos e nas suas relaes internas. Scardamalia e Bereiter (1987), ao apontarem dois tipos de abordagem do conhecimento que o sujeito assume na tarefa de elaborao de textos, sugerem igualmente diferenas evolutivas no grau de conscincia das operaes implicadas no ato da escrita. Para os autores, o escritor iniciante assume uma abordagem de relato de conhecimento em que a tarefa da escrita consiste em anunciar o que se conhece, lembra ou quer dizer. O escritor constri a representao do contedo temtico e essa representao vai preponderar na tarefa de gerar o texto. Preocupado com o que vai dizer em seguida, no planeja deliberadamente as questes de coerncia. Um escritor mais experiente assume a abordagem de transformao do conhecimento, em que a tarefa da escrita entendida como soluo de problemas que envolve tanto o plano dos constituintes temticos quanto o dos princpios de organizao do discurso. A passagem de uma etapa outra na forma como o conhecimento abordado na linguagem envolve, provavelmente, um longo processo, em que as experincias em escrever e em pensar sobre como escreveu desenvolvem papel importante. Assim, no processo de letramento da criana, penso ser de fundamental importncia refletir sobre o papel, a clareza, a presena do interlocutor, seja ele real ou imaginrio, da/para a escrita. A entrevista de explicitao proporcionou momentos de profunda reflexo e aprendizagem por parte dos sujeitos. Dessa reflexo possvel vislumbrar uma anlise mais refinada e deliberada no uso das formas lingsticas, tendo em mente o outro leitor/interlocutor para quem se diz. [Quadro (6)].

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(6) K- agora me fala uma coisa .. voc acha que algum.. uma outra pessoa que no me conhea .. no Case conhea a Edilma.. quem.. uma outra pessoa 25.11.96 a de fora.. qualquer pessoa que ler o seu texto.. esse texto aqui.. ela vai entender o texto todo? C- sei l.. acho que vai.. no sei Ttulo do K- acho que vai? Porque que oc ach.. bom d uma texto: olhadinha.. vamo recordar um pouquinho o seu Ktia e texto.. oc acha que uma pessoa de fora.. qualquer Edilma, as pessoa lendo o texto.. ela entende todinho? ngraadinhas C- se no for pela letra eu acho que entende K- ah.. a letra t tima.. sua letra t linda.. no tem nada contra CAnexo 1 [engracadinha olhe eu K[hn? C- engracadinha engraadinha K- ah.. a tem um um probleminha? mas voc colocou a .. a .. C[ no.. foi o pinguinho no i K- ah esse o pingo do i.. esse no o cedilha no .. engraadinha.. Numa anlise metalingstica, Case aponta duas ordens de problemas, ambos elementos de superfcie textual: levanta, inicialmente, a hiptese de a letra ser ilegvel, fato que no corresponde realidade; depois, aponta a palavra engraadinha no corpo do texto grafada sem a cedilha (a mesma palavra aparece no ttulo, escrita corretamente). Outros sujeitos, como Lucas e Fbio, tambm apontam a legibilidade grfica como fator importante para a compreenso. Morlean outra criana que, colocada para refletir sobre um interlocutor virtual, rapidamente percebe lacunas em seu texto e acaba por realizar uma anlise metapragmtica, adequando-o, por meio de uma maior explicitao, para um leitor virtual, no mais a professora/pesquisadora: [Quadro (7)]. O movimento interlocutivo dessa seqncia parece apontar para o fato de que, inicialmente, a criana procura descobrir aspectos referentes interao, tais como qual a concepo do adulto da definio da situao, a expectativa

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(7) K- agora me fale uma coisa Morlean.. algum que no conhece a sua vila.. no conhece voc.. t.. outra pessoa.. outra pessoa de fora... se essa pessoa l o seu texto.. aqui esse texto seu.. voc acha que ela Ttulo do vai entender toda a sua histria? texto: M- vai A istria da K- vai? Voc acha... voc no gostaria de mudar alguma coisa nessa histria.. pra que a p