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AS YALORIXÁS E A MANUTENÇÃO DOS TERREIROS COMO ESPAÇO DE PRODUÇÃO E DISSEMINAÇÃO DE SABER Waldeci Ferreira Chagas Universidade Estadual da Paraíba - UEPB Introdução Na tradição de algumas etnias africanas a mulher é por excelência responsável pela preservação, manutenção e transmissão da cultura. Essa condição garantiu-lhe durante a antiguidade papel importante na composição do universo cultural dos diversos povos africanos do sul, não só porque fora considerada capaz de assegurar a vida e por extensão a reprodução das etnias/raças, mas, sobretudo, devido a sua capacidade de disseminação dos saberes relacionado à vida material e espiritual. Desta feita, ocupou lugar importante na estrutura de algumas comunidades, o que fez com que muitas delas tenham se estruturado socialmente e politicamente no sistema matrilinear. Na compreensão dos europeus a organização familiar fazia parte do processo de evolução e era comum a todas as sociedades humanas conforme afirmaram alguns estudiosos, a exemplo de Engels, que aceitou incontestavelmente essa teoria, e afirmou que havia uma evolução cultural universal a todos os povos. Nesse processo a humanidade passaria pelo matriarcado e atingiria o patriarcado, considerado o modelo europeu de organização, e, portanto superior (ENGELS, 1943, apud NASCIMENTO, 2008, p.74). De acordo com essa teoria, o patriarcado, [...] está associado a superioridade e representa, a espiritualidade, a luz, a razão e a delicadeza. Em contrapartida, o matriarcado foi associado às entranhas cavernosas da terra, à noite, a lua, as coisas materiais e a esquerda, que pertencem à feminilidade passiva, contrastada com o lado direito, ligado à atividade masculina (DIOP, 19878b, p.12 apud NASCIMENTO, 2008, p.74). No entanto, a presença do matriarcado no processo de organização da humanidade, não representou o atraso, especificamente dos africanos, uma vez que o

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AS YALORIXÁS E A MANUTENÇÃO DOS TERREIROS COMO ESPAÇO DE

PRODUÇÃO E DISSEMINAÇÃO DE SABER

Waldeci Ferreira Chagas Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

Introdução

Na tradição de algumas etnias africanas a mulher é por excelência

responsável pela preservação, manutenção e transmissão da cultura. Essa condição

garantiu-lhe durante a antiguidade papel importante na composição do universo cultural

dos diversos povos africanos do sul, não só porque fora considerada capaz de assegurar

a vida e por extensão a reprodução das etnias/raças, mas, sobretudo, devido a sua

capacidade de disseminação dos saberes relacionado à vida material e espiritual. Desta

feita, ocupou lugar importante na estrutura de algumas comunidades, o que fez com que

muitas delas tenham se estruturado socialmente e politicamente no sistema matrilinear.

Na compreensão dos europeus a organização familiar fazia parte do processo

de evolução e era comum a todas as sociedades humanas conforme afirmaram alguns

estudiosos, a exemplo de Engels, que aceitou incontestavelmente essa teoria, e afirmou

que havia uma evolução cultural universal a todos os povos. Nesse processo a

humanidade passaria pelo matriarcado e atingiria o patriarcado, considerado o modelo

europeu de organização, e, portanto superior (ENGELS, 1943, apud NASCIMENTO,

2008, p.74). De acordo com essa teoria, o patriarcado,

[...] está associado a superioridade e representa, a espiritualidade, a luz, a razão e a delicadeza. Em contrapartida, o matriarcado foi associado às entranhas cavernosas da terra, à noite, a lua, as coisas materiais e a esquerda, que pertencem à feminilidade passiva, contrastada com o lado direito, ligado à atividade masculina (DIOP, 19878b, p.12 apud NASCIMENTO, 2008, p.74).

No entanto, a presença do matriarcado no processo de organização da

humanidade, não representou o atraso, especificamente dos africanos, uma vez que o

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patriarcado resultara do contato das comunidades africanas com os invasores árabes no

século VII e com os europeus no século XV, ao invés da evolução como pensara os

europeus. Na época dos contatos das comunidades africanas do sul com os invasores,

elas ainda mantinham o matriarcado como base na sua organização social e política.

Porém, o contato com tais povos possibilitou a incorporação do patriarcado ao universo

cultural africano. Mesmo que em tais comunidades o patriarcado tenha sido

incorporado, o matriarcado não desapareceu totalmente, os dois modelos de organização

passaram a coexistir no mesmo espaço.

Acerca da compreensão do matriarcado como sendo um estagio inferior no

processo de evolução da humanidade, Diop discorda. Depois de analisar detalhadamente

as teorias da evolução universal rumo ao patriarcado, afirma que elas necessitam de

base cientifica, e alerta que se o matriarcado for considerado inferior, civilizações

avançadíssimas, a exemplo dos impérios de Gana ou Asante, na África ocidental, assim

como o Egito antigo, seriam exemplos de barbárie, apenas porque sua estrutura social é

matrilinear. Esse historiador não só discorda da compreensão de inferioridade do

matriarcado, mais também questiona a ideia de superioridade das comunidades que

fundamentaram sua organização social no patriarcado. Ressalta que comunidades

patriarcais consideradas superiores recorreram às várias práticas bárbaras como a

violência contra as mulheres, o infanticídio e o canibalismo. Entre as tantas cita as tribos

nômades germânicas, no entanto, estas são apontadas pelos estudiosos como estando na

fase da “civilização superior” (DIOP, 19878b, p.12 apud NASCIMENTO, 2008, p.74).

Apesar de não concordar com a ideia do matriarcado como inferior, Diop

contestou a teoria do matriarcado universal “primitivo” e apresentou a hipótese dos

“dois berços”. Para ele as formas de organização social eram decorrentes das condições

de vida concretas dos povos. Para tanto, passou a compreender a humanidade a partir

dos dois grandes berços, o norte e o sul. Segundo Diop,

[...] no norte, o caráter nômade dos povos indo-arianos implicava a subvalorização da mulher, pois ela representava um empecilho a mobilidade tribal, um peso a ser carregado nos deslocamentos coletivos. Nesse contexto, ela não tinha uma função produtiva na economia do grupo. Por outro lado, nas civilizações meridionais, agrárias, a mulher desempenhava função central. Ela representava,

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socialmente, o valor máximo da vida e da produção agrícola: a estabilidade. Suas atividades no cultivo garantiam o sustento da coletividade, enquanto os homens desempenhavam funções arriscadas, incertas, ou até economicamente prejudiciais à comunidade, como a caça, a pesca e a guerra (DIOP, 19878b, p.12 apud NASCIMENTO, 2008, p.75).

Nos seus estudos Diop identificou vários casos de comunidades africanas

matrilineares que mudaram para o sistema patrilinear. No entanto, não compreende essa

mudança com produto do processo evolutivo, mas decorrentes das invasões a que tais

comunidades foram submetidas. Analisando a obra desse historiador Nascimento afirma

que ele, [...] examinou vários casos relatados na ciência ocidental em que ocorreu uma aparente evolução de sistemas matrilineares para outros patrilineares, inclusive na Grécia antiga. Seus estudos mostram que, em todos esses exemplos, houve populações originais agrárias sedentárias, de origem meridional (leia-se africana), com organização social matrilinear. Posteriormente, invasores do norte as dominaram e impuseram-lhes outros sistemas. Os invasores setentrionais eram povos nômades, guerreiros agressivos que praticavam o patriarcado (NASCIMENTO, 2008, p.75).

Os estudos de Diop desconstroem a tese do caráter evolutivo da humanidade

com relação à organização social, que coloca o sistema matrilinear como inferior e o

patrilinear como superior, com o que Nascimento concorda. No entanto, essa autora

afirma que nas comunidades africanas onde o sistema matrilinear,

[...] existiu, isso não implicou uma dominação da mulher sobre o homem, mas a partilha de responsabilidade e privilégios, inclusive do poder. Por este ser partilhado entre mulher e homem, um equilíbrio estável era assegurado nos negócios de Estados (NASCIMENTO, 2008, p.75).

Para tanto, essa autora cita no Egito, a existência das várias mulheres

africanas que foram soberanas na condução e administração do Estado e da vida

religiosa e espiritual, a exemplo das rainhas Nefertiti, Nefertari, Cleópatra, e a rainha

Nzinga em Angola, entre outras (NASCIMENTO, 2008, pp.76-79). Diante do propósito

dos portugueses de colonizar o mundo desconhecido em favor dos seus interesses

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econômicos, a África foi alvo de exploração e seu povo escravizado e transportado para

a América com o intuito de trabalhar na lavoura de cana-de-açúcar e tornar a nova terra,

em especial o Brasil produtivo aos olhos da corte portuguesa.

Isso significou o transporte de grande contingente de africanos para o Brasil,

ou seja, a diáspora colocou na nova terra homens e mulheres com diferentes saberes que

se misturaram aos saberes indígena e juntamente com os brancos passaram a compor o

universo cultural da terra Brasil. Os bantos foram os primeiros a desembarcar, vindos,

principalmente, de Angola, Moçambique, do Zaire e Congo. Depois de comercializados,

foram fixados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Já os sudaneses trazidos da Nigéria

e do Benin, foram fixados no Nordeste. Nessa empreitada, os guineano-sudaneses,

oriundos do norte da Nigéria, também tiveram o mesmo destino (SANTOS, 1998, p.

108). Juntamente com esses povos desembarcaram no Brasil diferentes saberes e

práticas, visto os africanos terem vindo de diferentes regiões da África, cujas culturas

são diversas. Dentre os africanos aportados no Brasil merecem destaque as mulheres,

sobretudo, porque elas foram importantes na manutenção e disseminação dos saberes,

conhecimentos e práticas culturais tradicionais que serviram de base para a construção

da identidade cultural dos afrodescendentes no Brasil. Com elas vieram também os

modos de organização social e política, intrínsecos a cultura dos africanos, do qual a

mulher participava juntamente com o homem.

Todavia os portugueses ignoraram o universo cultural trazido pelos

africanos, e passaram a impor-lhes a cultura cristã ocidental, pois antes de serem

vendidos e distribuídos nos engenhos ou nas fazendas, os africanos aportados no Brasil

eram batizados, recebiam um nome cristão e assim ficavam obrigados a professar a

nova fé.

A proposta dos portugueses era a de que em pouco tempo eles esquecessem

a tradição cultural que trouxeram da África e passassem a manifestar unicamente a

cultura cristã, em especial, a fé católica, sobretudo, porque na acepção dos europeus os

africanos eram incivilizados, e sua fé animista era uma decorrência do estado de

ignorância a que ainda estavam submetidos. Por isso, entenderam que colonizá-los na

África e explorá-los no Brasil representava uma oportunidade deles elevarem a sua

cultura e desta feita ter a sua existência material assegurada. Os europeus,

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principalmente os portugueses acreditavam que os africanos eram incapazes

tecnicamente de se manterem e em função disso em pouco tempo seria uma raça extinta,

ou seja, eles não seriam capazes de reproduzirem a sua cultura. Para tanto, não

pouparam nas práticas de violência e a utilizaram como meio para impor a cultura cristã

ocidental. A perspectiva era extinguir de vez a tradição africana.

Embora dentre os propósitos dos portugueses não fizesse parte, o respeito à

cultura africana, essa resistiu, principalmente no que se refere à religião e religiosidade.

Logo, o nosso propósito neste trabalho é discutir a manutenção dessa cultura mediante

os espaços sagrados, em especial os terreiros de candomblé e umbanda, e neles

dedicamos atenção as yalorixás ou mães de santo; mulheres herdeiras das velhas yabás

africanas que ao longo do período escravista aportaram no Brasil e trouxeram consigo

saberes e fazeres que ainda perduram nas roças, terreiros e casas de santos; práticas que

são cotidianamente apropriadas e reinventadas pelos iniciados, mais também pelos

leigos nessa cultura, o que faz da tradição africana um acervo relevante na composição

do universo cultural dos brasileiros. Mesmo assim os terreiros de candomblé e umbanda

no Brasil ainda são alvos da intolerância e discriminação.

No exercício de manutenção e transmissão dos sabres tradicionais africanos,

as mulheres tiveram papel fundamental, uma vez que guardaram nas suas memórias e

práticas a cultura africana, entre elas, o saber dos orixás, presente nas ervas, nas águas,

na comida, nas rezas, nos ritos, ou seja, na natureza em geral.

Embora o culto aos deuses africanos tenha sido proibido no Brasil, ele se

manteve, graças às inúmeras ações forjadas pelas yalorixás, entre elas, o uso dos santos

católicos como estratégia para cultuar os orixás. Essa prática fora comum nas senzalas,

sobretudo, à noite quando depois da extenuante jornada de trabalho os escravizados se

recolhiam. Nas senzalas era comum os escravizados recorrerem as velhas yabás a

procura de ungüento para curar feridas, rezas que os reconfortavam espiritualmente e os

ajudavam a enfrentar as agruras do mundo do trabalho escravo. Desta feita o culto

passara a ser usado como um meio de alento ao cansaço. Por isso, os senhores e

senhoras de escravos o viram como uma estratégia para manter os escravizados sob

controle, e assim livrá-los da possibilidade de revolta.

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Todavia, foi a partir da realização dos cultos dedicados aos (as) santos (as)

católicos (as), que as populações negras no Brasil puderam reinventar a sua cultura e

manter viva a crença nos orixás e assim recriar a África no Brasil. Acerca dessa questão

(CAPUTO & PASSOS, 2007) afirmam que:

O candomblé com seus mitos, seus rituais, símbolos e sua linguagem sagrada viajou na diáspora e foi recriado em terras brasileiras. Sua tradição é mantida e, ao mesmo tempo, ressignificada no cotidiano dos terreiros. A oralidade não é apenas a fala do povo-de-santo, é antes, sua estrutura, sua constituição (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).

A presença dos (as) santos (as) católicos (as) nos rituais religiosos realizados

nas senzalas funcionou como estratégia capaz de possibilitar a realização do culto aos

orixás, uma vez que os senhores não desconfiavam que os cultos realizados fossem

dedicados aos deuses africanos, sobretudo, porque ao olhar o interior das senzalas eles

viam as imagens dos (as) santos (as) católicos (as) e não as referências aos deuses

africanos. No geral essa medida possibilitou aos africanos escravizados no Brasil

reinventarem a tradição dos orixás e inventar os terreiros como espaços de vivência,

manutenção e reinvenção da cultura africana no Brasil. Embora a tradição dos orixás

tenha chegado com os africanos da diáspora, e se mantido nas senzalas, os primeiros

terreiros de candomblé só surgiram no Brasil no século XIX. Durante um longo período

da sua história os escravizados foram impedidos de cultuar os seus deuses, no entanto, a

proibição, e a ausência dos terreiros não significaram a ausência de culto aos orixás. Tão

pouco o surgimento dos primeiros terreiros representou a liberdade desse culto, uma vez

que comumente, desde o império as autoridades governamentais recomendavam a

proibição da prática de culto aos orixás, e reforçavam a ideia do catolicismo como culto

oficial do país.

Por isso, as autoridades imperiais não pouparam as pessoas negras, que

ousaram vivenciar a sua religiosidade, quebraram a ordem social e praticaram o culto

aos orixás, numa época em que a diversidade de culto era autorizada apenas ao recinto

doméstico e restrito aos povos da Europa residentes no Brasil, conforme está enunciado

no trecho de uma carta que o Juiz de Paz da Bahia, o Senhor Antonio Gomes de Abreu

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Guimarães, recebera do Visconde de Camamú. Após receber a carta o tal juiz preparou

relatório e encaminhou ao Imperador D. Pedro, dizendo-lhe:

[...] é verdade que a sagrada constituição Política oferecida por S. M. I. (Sua Majestade Imperial) no artigo 5 diz que: a religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas, mas seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas sem forma alguma exterior ao templo. Isto se entende para com as nações políticas da Europa, e nunca para os pretos africanos, que vindo das suas para a nossa Pátria, se educam no grêmio da nossa religião; como se permitirá que estes venham apostatar, mostrando por uma face catolicismo, e por outra adorando publicamente seus deuses? (REIS & SILVA, 1989, pp. 128-130).

No trecho acima, o Juiz de Paz questiona o imperador acerca da suposta

liberdade dos negros africanos de praticarem a sua religião, quando a Constituição

Brasileira de 1824 não permitia. Fez tal questionamento, porque o preto africano

Joaquim Baptista na tentativa de negar que não estava praticando culto africano, o

procurou e se queixou de que fora ofendido e furtado pelos oficiais do Império em 200

contos de réis, um chapéu de sol, e um pano da Costa. No relatório encaminhado ao

imperador, o juiz diz que o negro não fora roubado, mas que na casa dele os oficiais

encontraram:

[...] em cima de uma mesa toda preparada, um boneco todo guarnecido de fitas, e búzios, e uma cuia grande da Costa cheia de búzios, e algum dinheiro de cobre misturado das esmolas, tocando tambaque, e cuias guarnecidas de búzios, dançando umas {mulheres}, e outras em um quarto dormindo ou fazendo que dormiam (REIS & SILVA, 1989, pp. 128-130).

Em virtude da proibição aos negros (as) de cultuarem seus deuses, o juiz de

Paz, justificou a ação dos oficiais quando chegaram à casa do preto Joaquim, afirmando

que os oficiais:

[...] quebraram o chamado Deus Vodum, cuias, e tudo lançando por terra, e somente se interessaram em prendê-los, fazer acordar as que dormiam; e porque na casa havia bastante roupa de lavadeiras,

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deixaram onze para tomar conta, e as mais com os ditos 3 pretos conduziram a minha presença em número de vinte e cinco, que vendo o choro que fizeram, depois de as repreender, por serem crioulas, as mandei embora, para não dar incômodos a seus senhores (REIS & SILVA, 1989, pp. 128-130).

Conforme se depreende do trecho acima, não se tratava de um terreiro, mas

de um praticante que individualmente realizava as escondidas o culto aos orixás no

interior da sua casa, e quando procurado por alguém a atendia. Mesmo estando na sua

casa fora privado de praticar sua religião por ela ser proibida e pelo fato de ser preto

africano. Essa situação além de evidenciar a intolerância contra a religião e

religiosidade das pessoas negras, é denotativa da condição destas pessoas na sociedade

brasileira do século XIX, visto que além de não ser reconhecido cidadão, uma vez que

teve sua casa invadida e os símbolos da sua religião quebrados e apreendidos Joaquim

Baptista teve sua queixa indeferida porque na compreensão do Juiz de Paz, os oficiais

não o roubaram, mas executaram uma ação, conforme determinação da lei. Por sua vez

a constituição proibia o culto que ele estava realizando.

Mesmo não sendo reconhecido cidadão, Joaquim Baptista não se calou e

recorreu à autoridade imperial no sentido de reaver os símbolos da sua religião, e

denunciar as autoridades imperiais à violência a que fora submetidos. O comportamento

dele é denotativo das formas de resistência a que as pessoas negras recorreram ou se

utilizaram para se manter culturalmente vivas. De inicio a prática do culto aos orixás,

mesmo que as escondidas numa sociedade oficialmente católica é denotativa da

resistência. Por outro lado a recorrência a autoridade imperial, denunciando a situação a

que fora submetido, quando teve sua casa invadida por policiais e seus objetos sagrados

quebrados e apreendidos, também é digna de nota. Uma evidencia de que os africanos

escravizados no Brasil, nunca aceitaram essa condição. De uma forma ou de outra

resistiram à violência que lhe fora imposta.

Mesmo que a atitude de Joaquim Baptista não tenha resultado na devolução

dos símbolos sagrados que lhes pertenciam, na punição do policial que o agrediu e na

concessão do direito para praticar livremente o culto aos orixás, ela é relevante, porque

é uma evidencia da ação dos escravizados contra o sistema escravista, uma prova de que

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nunca aceitaram a condição que lhe fora imposta e recorreram a vários mecanismos,

entre eles a abertura dos terreiros de candomblé; espaço sagrado onde o saber

tradicional fora guardado, vivenciado e reinventado.

Assim o terreiro se constituira em lugar de aconchego e guarda dos

escravizados fugidos. Pois era para onde corriam os (as) negros (as) fugidos dos

engenhos. Sob a proteção dos orixás e a guarda das mães de santo, os fugidos

aguardavam o momento de sair em busca dos quilombos ou das matas onde formavam

outros quilombos.

Desde o século XIX quando surgiram os primeiros terreiros de candomblé

no Brasil, esse assumiu função social, pois não se tratava de um espaço meramente

sagrado, mais também social e político, e desde outrora vem possibilitando aos

iniciados ou não a vivência e aproximação com a cultura africana, além de fortalecer os

laços de sociabilidade fundamentados na família, base da organização social e política

da África tradicional. Nos primeiros terreiros de candomblé abertos no Brasil, desde

outrora as mulheres assumiram papel relevante, sobretudo, porque eles foram iniciativas

de mulheres africanas, que durante o período da escravidão aportaram no Brasil.

Abriram-nos e deixaram com suas filhas de santo, ou biológicas a tarefa de prosseguir e

manter viva a tradição dos ancestrais africanos no Brasil. Um exemplo disso é Mãe

Beata de Iemanjá, uma,

descendente direta de africanos, da família Aro, da cidade de Ketu. Os seus bisavós vieram da África como milhões de homens e mulheres arrancados de sua terra e transformados em escravos. Trouxeram duas filhas, gêmeas, de três anos, Maria da Conceição e Josefa. A primeira morreu no navio negreiro e foi lançada ao mar. A segunda sobreviveu e chegou ao porto de Salvador onde foi vendida junto com os pais (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).

Em entrevista essa yalorixá disse:

Minha bisavó quando chegou no Recôncavo ficou alegre porque uma quantidade de escravos vendidos foi para Pernambuco, outra para Maranhão e outra para Bahia. O navio negreiro chega no porto em Salvador e lá era o mercado de escravos que dividia tudo. E podiam ir também para todos os Engenhos ... do Recôncavo, da Cruz, Campina, Catolé, Brandão, Engenhoca. Para alegria deles, meus bisavós foram

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vendidos para o Engenho Novo. Mas só descobriram isso lá (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).

A sobrevivência da bisavô de Mãe Beata de Iemanjá, representou a

manutenção do culto dos orixás que com ela aportou no Brasil; uma herança vivenciada

por Mãe Beata e passada para as suas filhas e netas, uma vez que essa Yalorixá ao longo

dos seus 81 anos de idade ainda mantém a tarefa de passar os seus saberes e praticas aos

seus filhos e filhas de santos ou biológicos. A tradição aprendida com a sua bisavô, mãe

Beata de Iemanjá vem passando para seu neto Noam, iniciado no candomblé desde os

11 anos de idade, e hoje aos 16 anos continua a aprender os mistérios e segredos do

candomblé (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 96).

Outros exemplos de Yalorixás são pertinentes na manutenção desse culto e

dos terreiros como espaço de vivência e manutenção do culto aos orixás, como é ocaso

da paraibana Mãe Beza. Iniciada no culto dos orixás há 39 anos, Mãe Beza é filha de

Xangô com Yansã e pertence às nações Angola, Keto e Nagô, uma herança dos pais de

santo que a iniciaram no culto dos orixás, especialmente na umbanda. Mesmo tendo

sido iniciada nesse culto, também foi doutrinada na jurema, na qual fez sua primeira

formação. Em razão disso, seu terreiro se denomina “Umbanda na Jurema” e é dedicado

ao caboclo Tupirí, entidade do culto indígena e dono do terreiro. Portanto, encontramos

no seu terreiro dois assentamentos, um dedicado aos orixás, pertencente ao culto

africano, e outro dedicado aos caboclos e mestres, proveniente do culto indígena.

(Conforme entrevista concedida em 28/10/2006, por Dona Inacia Pereira de Pontes, 61

anos, Mãe Beza, yalorixá do Terreiro de Umbanda na Jurema, Caboclo Tupirí,

localizado na Cidade de Sapé – PB).

Embora no terreiro de candomblé e umbanda a mulher tenha

representatividade e seja autoridade religiosa, portanto, uma sacerdotisa, não queremos

afirmar que essas religiões sejam eminentemente femininas, mas ressaltar que tais

mulheres herdaram da antiguidade africana não só a religiosidade, mas a tradição de

organização social e política, fazendo com que nos terreiros ou casas de santo o sistema

matrilinear seja uma realidade, visto que no seu processo de administração a mulher está

lado a lado do homem e tem o mesmo poder de decisão e participação. Nesse espaço

perdura a solidariedade e não a sobreposição da mulher em relação ao homem, mas o

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equilíbrio, representado no mito de Osíris e Isis, e que na antiguidade africana

fundamentaram a base das sociedades tradicionais.

Mas não foi apenas no período da escravidão que os terreiros serviram de

refugio as populações negras, essa prática se estendeu para além desse período e o

tornou um espaço político relevante na organização e mobilização das pessoas negras no

Brasil, pois foi nesse local onde elas, na época da ditadura militar se reuniram para

discutir a situação política, social e econômica do país, e desta feita forjar estratégias de

reivindicações e oposição a esse regime.

Logo, foi nos terreiros de candomblé que as pessoas negras na cidade do Rio

de Janeiro, São Paulo, e Salvador se reuniram e deram inicio as primeiras discussões

que resultou na fundação do Movimento Negro Unificado, na década de 1970.

Portanto, o terreiro, seja de candomblé ou umbanda se solidificou na

sociedade brasileira como uma casa de acolhimento, vivência, e transmissão de saberes;

os quais estão presentes na natureza e são decifrados pelos idosos, entre os quais

destacamos as mulheres, yabás, pretas velhas, mulheres de santo, yalorixás e senhoras

do saber.

No geral a política de perseguição ao culto dos orixás perdurou após o século

XIX, quando da abertura dos primeiros terreiros e se manteve ao longo da história. A

prova disso é o fato de que só na década de 1970 a prática do candomblé deixou de ser

caso de polícia e cessou de ser exigida das yalorixás a autorização da polícia para que

nos terreiros pudessem ser realizados os toques e os rituais dedicados aos orixás. Pois é

na vivência do terreiro observando as práticas das yalorixás, e demais mulheres idosas

que os filhos e filhas de santo aprendem o segredo dos orixás e passam a atuar na vida.

Mesmo que algumas yalorixás tenham recorrido à linguagem escrita para sistematizar

os seus conhecimentos e saberes, e publicaram livros, no candomblé prevalece à

tradição oral, ou seja, o saber é aprendido e transmitido na relação entre as yalorixás e

seus filhos e filhas de santo. Segundo Mãe Beata de Yemanjá,

[...] tudo o mais acontece nos terreiros e na vida, no dia-a-dia não só dos filhos e filhas-de-santo, mas de todo aquele e aquela que ama o candomblé. É na vida em comunidade que se aprende o candomblé sejam crianças, jovens ou adultos. É preciso ter vivência. Isso o livro

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não ensina, nem eu ensino nos livros (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).

Também é a esse espaço que recorrem às pessoas não iniciadas quando por

ventura são acometidas por alguma energia ou força que a medicina desconhece. Pois

nele as pessoas lidam com outro saber, que chegou ao Brasil trazido pelas mãos e

memória das mulheres negras escravizadas, cuja essência ou segredo está nas ervas, na

terra, na água e no ar, um saber que não separa homem e natureza, mas que os

compreendem como complementares. Assim sem natureza não há orixá, não há

candomblé, não há vida. Pelas mãos das yalorixás a cosmovisão africana adentrou e está

presente na cultura brasileira e no conhecimento praticado nos terreiros; neles

“encontramos os orixás, a natureza, os animais, os seres humanos, vivos e mortos”

(CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95). Cada um deles traz um ensinamento, importante a

vida das pessoas que recorrem a esse espaço em busca de solução para algum problema

que por ventura esteja o afligindo. Comumente as pessoas procuram o terreiro para

curar um mal físico, espiritual e afetivo, sobretudo, porque diante deles se

desestabilizam e ficam mais suscetíveis as intempéries da vida. A recorrência ao terreiro

é a crença de que nesse espaço há uma energia ou força que pode auxiliá-las a superar,

enfrentar e resolver o mal que lhes afligem.

Normalmente no terreiro não se encontra a solução dos problemas, mas

conforto, força e energia, que pode está numa palavra da yalorixá, num banho de erva

indicado, num alimento recomendado, numa oração ou num gesto de solidariedade e

bondade com o semelhante ou um orixá. É um exercício onde a pessoa busca o seu

interior, e em momentos introspectivos retoma o equilíbrio consigo e com a natureza, o

que faz com que a vida siga seu fluxo normal e os sujeitos nas relações que estabelecem

se percebam. Essa prática é milenar e ao longo da história do Brasil vem sendo

reinventada e ressignificada, o que faz com que cada yalorixá seja relevante na

manutenção do terreiro como espaço singular na transmissão e manutenção do saber e

conhecimento dos orixás.

Referências

Page 13: 6 AS YALORIXÁS E A MANUTENÇÃO DOS TERREIROS - … · Mesmo assim os terreiros de candomblé e umbanda ... o saber dos orixás, presente nas ervas, nas águas, na comida, nas rezas,

CAPUTO, Stela Guedes & PASSOS, Mailsa. “Cultura e Conhecimento em terreiros de Candomblé: lendo e conversando com Mãe Beata de Yemanjá”. In: Currículo sem Fronteiras, v.7, n.2, pp.93-111, Jul/Dez 2007. DANTAS, Beatriz Góis. “Nanã de Aracaju: trajetória de uma mãe plural”. In: SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org.) Caminhos da alma: memória afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002. FERRETTI, Sérgio. “Andresa e Dudu – os Jeje e os Nagô: apogeu e declínio de duas casas fundadoras do tambor de mina maranhense”. In: SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org.) Caminhos da alma: memória afro-brasileira. São Paulo: Summus, 2002. LEITE, Fábio. Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. In: Introdução aos estudos sobre África contemporânea. São Paulo: Centro de Estudos Africanos da USP, 1984. NASCIMENTO, Elisa Larkin. “As civilizações africanas no mundo antigo”. In: ______________. A Matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afro-descendente. Curitiba: Gráfica Popular, 2006. PRANDI, Reginaldo. “O candomblé e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, nº. 47, outubro/2001. REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SANTOS, Renato de Oliveira. “Cultos afro-brasileiros no Rio Grande do Sul”. In: ASSUMPÇÃO, Euzébio e MAESTRI, Mario. (Orgs.) Nós, os afro-gaúchos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998.