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cadernos metrpole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009
Polticas urbanas de patrimonializaoe contrarrevanchismo: o Recife Antigoe a Zona Histrica da Cidade do Porto*
Rogrio Proena LeitePaulo Peixoto
ResumoEste artigo pretende discutir alguns aspectos das polticas urbanas de enobrecimento, tendo como referentes empricos o Bairro do Recife e a zona histrica do Porto (Portugal). O argu-mento central que, aps o perodo de apogeu das intervenes urbanas, que agem como um elixir para os problemas de uma realidade deca-dente, ocorre uma contrarrevanche exacerbada por um sentimento de reconquista do espao que aniquila as perspectivas depuradoras des-sas operaes. Esse trabalho, desenvolvido no mbito de uma pesquisa comparada entre reali-dades urbanas brasileiras e portuguesas, ques-tiona esses processos de patrimonializao de centros histricos procurando relevar a volubi-lidade desses processos.
Palavras-chave: cidades; patrimnio cultu-ral; enobrecimento urbano.
AbstractThis article discusses some aspects of urban policies of gentrification, based on the following empirical references: the Neighborhood of Recife and the historic area of Porto (Portugal). The central argument is that, after the apex of urban interventions, which act as an elixir for the problems of a decaying reality, there is a counter-revanchism exacerbated by a sense of space recovery that annihilates the perspectives to improve such operations. This work, developed in the scope of a research study that compares Brazilian and Portuguese urban realities, questions such processes that transform historic centers into cultural heritage, trying to reveal their volubility.
Keywords : c i t ies; cultural her itage; gentrification
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rogrio proena leite e paulo peixoto
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O poder redentor do patrimnio
As funes e o estatuto do patrimnio no
contexto da vida urbana de cidades que,
pelo seu ethos, se representam e so re-presentadas como histricas, convertem os
processos e as intervenes patrimoniais
em uma espcie de nova realidade alegri-
ca das cidades. Essa realidade alegrica evi-
dencia a promessa redentora de, atravs de
complexos processos de patrimonializao,1
reconstruir as imagens das cidades, e sobre-
tudo de suas zonas histricas, em busca da
superao de um incontornvel processo de
declnio. Esse processo de patrimonializao
implica diferentes nveis de interveno dife-
renciada, com fortes repercusses, tanto na
infraestrutura urbanstica e arquitetnica,
quanto na formatao dos usos dos espaos
enobrecidos (Ferreira, 2005) .
Uma primeira repercusso desse pro-
ces so se faz sentir na materializao de
uma ideia de espao pblico ordenado,
higie nizado e minimizado de seus aspectos
conflituais, que faz com que a cidade seja
imaginada e transformada a partir da rein-
veno de um seu passado (Zukin, 1995).
Nessa perspectiva, o patrimnio cada vez
mais apresentado como a expresso mate-
rial de uma ideia pacfica de espao pblico,
construdo com base em uma suposta ideia
de passado comum e de tradies compar-
tilhadas. Sob forma figurada da imbricao
entre consumo e lazer, os centros histricos
alvo de requalificao so uma alegoria desse
espao pblico idealizado, supostamente per-
dido, que urge recuperar. As intervenes
mais voltadas para um urbanismo intensivo
tm ocorrido nos locais onde uma ideia de
patrimnio se pode juntar a uma ideia de
espao pblico para ser potenciada como
atrao turstica e de lazer (Sennett, 1998;
Fortuna, 2002).
De forma semelhante, h considerveis
repercusses na promoo de uma anima-
o crescente, enquadrada pelo consumo
visual e pelo turismo urbano, e por formas
de expresso de um patrimnio imaterial,
que pretende sugerir ideais de cidadania e
de participao cvica. Nesse plano, o es-
pao recuperado se apresenta como uma
nova plataforma de pendor artstico capaz
de gerar significados sociais e culturais, co-
mo se o visual fosse a condio fundadora
de novas e enriquecedoras sociabilidades.
Tambm se observam alteraes na con-
cretizao de representaes destinadas
a funcionar como imagens de marca das
cidades e como expresses metonmicas
que convidam a tomar a parte, ordenada e
embelezada, pelo todo e a difundir noes
abstractas de centralidade e de qualidade
de vida. Nesse plano, o patrimnio funcio-
na como alegoria, dado que o esplendor e
a qualidade urbanstica dos espaos em que
ele se exibe, as cores garridas das fachadas
recuperadas, frequentemente contrastando
com o resto da cidade que as envolve, tor-
nam os bens investidos de um valor patri-
monial numa espcie de obra de arte que
representa ideias abstratas de qualidade de
vida e de funcionalidade. Neste mbito, fun-
cionam como imagem metonmica da cida-
de, convidando a tomar a parte, ordenada e
embelezada, pelo todo.
O patrimnio e as suas representaes
que emergem no contexto desses processos
de patrimonializao podem ser caracteriza-
dos como uma inveno cultural que procura
legitimar e naturalizar um determinado tipo
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polticas urbanas de patrimonializao e contrarrevanchismo
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de discurso sobre a vida urbana. A busca e
a aquisio de um estatuto patrimonial pelos
centros histricos do Recife e do Porto so,
assim, experincias paradigmticas do com-
plexo percurso contemporneo das polticas
urbanas.
Numa primeira configurao histrica,
os centros histricos constituem um com-
ponente estrutural e funcional da vida ur-
bana. Condensam as primeiras experincias
de uma cultura urbana (Simmel, 1997) e
tornam-se espaos de destaque na economia
poltica das cidades. Numa segunda fase,
geralmente perdem sua importncia socio-
econmica, sendo estigmatizados e susci-
tando progressivamente a emergncia de
uma sentida tomada de conscincia relativa
sua desvalorizao social. Numa terceira
etapa, reclamam e adquirem uma identidade
patrimonial (Arantes, 2000), inserindo-se
novamente no centro das polticas urbanas.
nessa fase que ocorrem a reinveno do
patrimnio e a construo de uma nova ima-
gem da cidade, mediante polticas intensivas
de revitalizao e enobrecimento urbano.2
Espaos antes considerados degradados
passam a ter seu atribudo valor patrimo-
nial ressaltado e se transformam em foco
nodal de intensivas polticas urbanas e ma-
cios investimentos pblico e privado. Com
seus espaos higienizados e embelezados, a
cidade adentra a concorrncia intercidades
(Fortuna, 1997) com renovada perspectiva,
tendo seus patrimnios transformados em
mercadoria. nessa passagem da segunda
para a terceira etapa que a ideia patrimonial
emerge em meio s transformaes urbanas
advindas dos processos de enobrecimento.
Mas tambm nessa fase que, to-
mando aqui o caso concreto das duas re-
alidades propostas para anlise (Recife e
Porto), se consuma uma quarta e nova fase
observvel, caracterizada por uma espcie
ps-revanchismo patrimonial. A expresso
revanchismo, aplicada aos processos de
gentrification, conhecida nos estudos ur-banos para designar uma espcie de vin-
gana tardia, mas eficaz, da cidade, que de-
marca espaos, segrega usurios e expulsa
moradores indesejados (Smith, 1996). A
operao lembra as polticas de higienizao
urbana das cidades porturias, tpica do ur-
banismo haussmaniano. O que resulta desse
ambguo processo de embelezamento estra-
tgico para usar mais uma vez a feliz ex-
presso de Walter Benjamin (1997) , a
no menos conhecida espetacularizao da
cultura em geral, e do patrimnio material e
imaterial, em particular.
A quarta fase, aqui chamada de ps-
revanchista, gerada no auge do contexto
de patrimonializao e de suas vulnerabili-
dades, e encerra um desfecho inevitvel e
indesejado para gestores e capital. Sugesti-
vamente, esse ps-revanchismo sinaliza, por
outro lado, uma abertura da cidade queles
que no tinham espao nas polticas de eno-
brecimento. Contudo, o alto preo por essa
curiosa e tardia incluso social a volta
desses espaos a condies de esvaziamento
e deteriorao crescentes.
O papel do patrimnio e da requalificao urbana na concretizao de novas centralidades
Encarados como repositrios e como pro-
pulsores de atividades culturais diversas, os
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centros histricos, ao concentrarem as ini-
ciativas patrimonialistas, tornam-se objeto
de uma idealizao no mbito das polticas
urbanas e de processos de patrimoniali-
zao. Na medida em que alimentam com
frequncia uma viso predominantemente
culturalista da cidade, vertida em campa-
nhas de criao e de difuso de imagens,
os centros histricos, sustentando-se em
operaes de patrimonializao e de requa-
lificao urbana, tornam-se uma espcie
de hipercentro das cidades. Verdadeiro re-
ceptculo de investidas distintas, do campo
poltico ao tcnico, passando pelo associa-
tivo e pelo empresarial, esse espao, que
muitos, atravs das polticas de reabilitao
urbana, pretendem tornar a mais falada, a
mais estudada, a mais animada ou a mais
colorida das configuraes urbanas, parece
constituir-se como o novo foco, em busca
de uma certa centralidade cultural. Mais do
que um centro, que muitas vezes j no so,
por ganharem uma visibilidade superior
quela que tm no desenrolar da vida quo-
tidiana das urbes, os centros histricos so,
no contexto do investimento plstico que
neles feito, um hipercentro das cidades,
na medida em que, virtualmente, se cons-
tituem como um ponto de convergncia de
intervenes urbanas diversas destinadas a
um certo mediatismo. Os casos do Bairro
do Recife e da Ribeira do Porto, enquanto
paroxismos de processos de patrimoniali-
zao, encaixam-se nesse modelo de desen-
volvimento das polticas urbanas (Peixoto,
2006; Leite, 2007).
Dos centros histricos, pretende-se ca-
da vez mais que no sejam apenas um mero
lugar nem um centro. Mas sim que se tor-
nem num hiperlugar e num hipercentro, na
medida em que tm de ser simultaneamente
um lugar, uma apropriao e uma prtica
coletiva de formas de sacralizao ou de es-
pectaculosidade. Mais do que remeter para
a esfera ntima ou para prticas quotidianas,
o hipercentro exige um investimento coleti-
vo que reveste um carter mais ou menos
sagrado, mais ou menos venervel, mais ou
menos festivo, mais ou menos extraordin-
rio. Nessa medida, procurando contrastar
com o seu papel recente e com o seu en-
torno urbanstico, os centros histricos so
alvo de intervenes destinadas a torn-los
prottipos da vida urbana e so mediatiza-
dos como lugares exemplares. Por essa via,
enraizados numa iconografia patrimonial,
acabam por preencher a funo de imagem
proftica de um futuro diferente para a ci-
dade de que fazem parte, participando no
desgnio maior de qualquer comunidade.
Ou seja, a capacidade em criar e em man-
ter lugares de centralidade que possam ser
propostos aos locais e aos estranhos como
lugares a admirar e a venerar.
Nesse contexto, em posies extrema-
das que atravessam as polticas de reabili-
tao, parece consolidar-se a ideia que para
ser belo ou atrativo, e consequentemente
meditico, preciso sofrer. Seja o sofrimen-
to inerente s posies estticas e polticas
daqueles que defendem que a funo dos
centros histricos preencher o lugar que
as runas ocupam na formao e no fun-
cionamento da memria coletiva, atuando
como uma espcie da beleza do morto
de que nos fala de Certeau (1996). Seja o
sofrimento relativo s transformaes pls-
ticas que, para promover um certo sentido
esttico, transfiguram lugares e objetos tor-
nando-os como que irreconhecveis e alvo de
crticas profundas por parte dos puristas da
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Tendo por referncia as imagens di-
fusas que irradiam desse hipercentro, no
deixa de ser pertinente questionar a tenso
marcante que enquadra muitas das inter-
venes atuais nos centros histricos. Es-
sa tenso, nem sempre fcil de identificar,
decorre da coliso entre imagens idea li-
zadas do passado (o que se pensa que fo-
ram) e imagens idealizadas do futuro (o
que se pensa que devem ser). Tenso que
faz emergirem projetos opostos ou alterna-
tivos e, por vezes, inconciliveis. E que, no
sendo ultrapassada pelo confronto com a
realidade mais ou menos recente e presente
dos centros histricos se constitui como um
obstculo intransponvel a uma interveno
sustentvel nas reas urbanas antigas, na
medida em que ser sempre um contras-
senso reabilitar indo contra aquilo que exis-
te. Nessa medida, no despiciendo notar
que as intervenes nos centros histricos,
na sua globalidade, e no caso concreto das
duas realidades urbanas retidas para anlise,
e no obstante o forte pendor retrico que
as envolve, participam mais da produo re-
presentacional e imagtica que anima a pro-
moo local que propriamente de uma pol-
tica urbanstica claramente orientada para a
reabilitao, como o evidencia o surgimento
de processos de revanchismo. Evidencia-
se, por essa via, o risco de as campanhas
de promoo local ficarem excessivamente
prisioneiras de imagens sem contedo. Em
contextos em que o marketing das cidades,
movido por uma linguagem hiperblica e
alimentando fenmenos de escalada, parece
estar a adquirir uma preponderncia cres-
cente, substituindo-se ou sobrepondo-se
ao poltica, interveno tcnica e cria-
o artstica e cultural.
O processo de patrimonializao do Bairro do Recife
Para o aspecto central da anlise aqui pro-
posta, fundamental destacar que o Bairro
do Recife, ao longo dos seus mais de 400
anos de existncia, j experimentou o apo-
geu e a decadncia quase absolutos em
termos de centralidade econmica, relevn-
cia arquitetnica e visibilidade cultural , em
pelos menos trs grandes momentos da sua
histria. O primeiro momento se deu quan-
do da prpria fundao do Povoado dos Ar-
recifes (sculo XVI) e depois, j com a pre-
sena do Mauricio de Nassau (sculo XVII),
quando a sede do governo holands foi
edificada no vizinho bairro de Santo Anto-
nio, deixando o bairro do Recife a amargar
uma posio poltica secundria. O segundo,
quando o bairro foi quase todo demolido e
reconstrudo no melhor estilo da Paris de
Haussmann, ainda no auge da economia
aucareira de Pernambuco (incio do sculo
XX) para, em seguida, presenciar quase seu
despovoamento e, uma vez mais, a perda da
sua relevncia para outras reas da cidade
(sobretudo no ps-guerra at os anos 80
do sculo XX). Por fim, aps amargar vrias
dcadas de quase total abandono, o bairro
ressurge nos anos de 90 como um dos
mais emblemticos, importantes e impac-
tantes processos de enobrecimento urbano
do Brasil (Leite, 2007)
A fase mais aguda desse processo de
patrimonializao se deu entre 1989 at
aproximadamente 2001, poca em que se
deu o enobrecimento do Bairro. Nesse pero-
do, o bairro teve suas feies arquitetnicas
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e funcionais bastante alteradas, com a trans-
formao de antigos casares em animados
pubs e sofisticados restaurantes. As ruas, palco de espetculos teatrais, shows mu-
sicais e exposies artsticas, tornaram-se
boulevards para as famlias de classe mdia da cidade. Rotinas antes impensveis devi-
do m fama de local perigoso, o porturio
bairro foi se transformando em opo de
lazer seguro e entretenimento para a popu-
lao, foco do turismo internacional e palco
de grande visibilidade pblica para eventos
polticos.
O processo de patrimonializao foi in-
tenso, tanto no que se refere ao patrim-
nio imaterial quanto material. O primeiro
foi caracterizado por um agudo processo
de retradicionalizao do bairro, median-
te a apresentao espetacular de folguedos
da cultura popular pernambucana, a exem-
plo de tradicionais grupos de maracatus. A
patrimonializao edificada por sua vez foi
to profunda que, pela primeira vez na his-
tria das polticas de preservao no Brasil,
um bairro em estilo ecltico foi reconhecido
como patrimnio nacional pelo Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
IPHAN, a despeito da discutvel relevncia
arquitetnica do bairro para os cnones pa-
trimoniais e preservacionistas brasileiros.
Foi nesse bairro haussmanniano do
Brasil que o Plano de Revitalizao do Bair-
ro do Recife veio a ser colocado em prtica,
tendo como fundamentao uma proposta
de restaurao do patrimnio edificado ar-
ticulada ideia de interveno urbana na
forma de um empreendimento econmico.
Afinado com os pressupostos do chamado
market lead city planning, o plano tinha trs objetivos principais: 1) transformar o Bairro
do Recife em um "centro metropolitano re-
gional", tornando-o um polo de servios mo-
dernos, cultura e lazer; 2) tornar o Bairro
um "espao de lazer e diverso", objetivan-
do criar um "espao que promova a concen-
trao de pessoas nas reas pblicas criando
um espetculo urbano"; 3) tornar o Bairro
um "centro de atrao turstica nacional e
internacional". Esses objetivos sinalizavam,
desde o incio, o quanto a proposta estava
voltada ao incremento da economia local,
pretendendo tornar o Bairro do Recife um
complexo mix de consumo e entretenimen-to. De igual modo, a noo de um espao de
"espetculo urbano", que iria caracterizar
todo o plano, um indicador importante da
presena de uma poltica de gentrification. Tudo parecia perfeito, aps a implan-
tao do Plano de Revitalizao, com o an-
tigo centro histrico transformado em festa
permanente, numa imbricada relao entre
consumo e entretenimento, cultura e merca-
doria; at que um fantasma voltou a rondar
a bem-sucedida experincia de enobreci-
mento no Brasil. Aos poucos, o movimento
de pessoas se arrefece, bares e restaurantes
fecham suas portas; a arrecadao cai; lenta
e gradualmente, seus espaos vo decaindo,
perdendo visitantes, saindo da agenda cultu-
ral da cidade. Com a ausncia de ao con-
tinuada do poder pblico, os espaos fsicos
vo se deteriorando, o patrimnio edificado
vai perdendo suas cores e, para surpresa
dos desavisados, a antiga rea, parecendo
cumprir seu histrico ciclo vital, volta quase
a ser o que era antes: espao de vidas coti-
dianas, sem muita visibilidade pblica e sem
a espetacularizao do seu patrimnio e das
rotinas sociais.
Em 2006, cinco anos aps a fase mais
intensa da revitalizao do bairro, pouco
restou das sociabilidades que caracterizaram
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a efervescncia cultural do processo. Mais
uma vez, o local experimentava o vazio das
suas ruas e do seu belo patrimnio material
quase s escuras.
O processo de patrimonializao do centro histrico do Porto
O fato mais marcante do centro histrico do
Porto reside na circunstncia de, em apenas
trs dcadas, ter passado repentinamente de
objeto disfuncional e de alvo de uma poltica
de demolio a objecto de exibio e alvo de
uma poltica de proteco patrimonial (Pei-
xoto, 2006).
O Plano Director de Robert Auzelle
para a cidade do Porto defendia, como
tantas outras solues de planeamento ur-
bano de inspirao haussmaniana, a mera
demolio do Barredo (zona hostrica mais
densa), o que motivou o primeiro estudo
de recuperao da parte antiga da cidade
pelo arquiteto Fernando Tvora.3 Apresen-
tado em 1969, esse estudo deu origem, em
1974, constituio de um organismo p-
blico especializado para o levar a cabo o
CRUARB (Ramos, 1995, p. 539), cuja ao
viria a ser preponderante para que, apenas
35 anos depois do plano Auzelle, em 1996,
a rea a demolir fosse elevada condio de
patrimnio mundial pela Unesco.
A deteriorao que ocorre no centro
histrico do Porto a partir do sculo XIX,
agravada pela segregao espacial motivada
pela urbanizao crescente da cidade, pelo
aumento demogrfico derivado da indus-
trializao e pela concentrao da populao
mais desprovida de recursos no Bairro hist-
rico da S, ao passo que a burguesia emer-
gente se fixava nas novas zonas da cidade
(como a Foz), atinge limites de ingoverna-
bilidade que suscitaram evidentes solues
de tbua rasa. Nessas circunstncias, porque
quanto mais deteriorado um lugar se encon-
tra mais ele tende a concentrar e a ampliar
os problemas verdadeiramente prementes
que existem numa cidade e na sociedade, o
centro histrico do Porto criou, certamen-
te, mais que qualquer outro em Portugal,
condies de difcil implementao de uma
poltica de reabilitao.
No Porto, a poltica de reabilitao e
de requalificao urbana teve como pano
de fundo os movimentos de moradores e o
Servio Ambulatrio de Apoio Local SAAL.
Em 1969, a comunidade que d significado
zona histrica mencionada como estan-
do impregnada de um valor histrico a pre-
servar (Rocha et al., 1985) e a constituio
do Comissariado para a Renovao Urba-
na da rea da Ribeira-Barredo (CRUARB)
constitui-se como um marco decisivo no
lanamento da poltica local de reabilitao
urbana ancorada numa retrica patrimonial.
Essa poltica, na formulao legislativa do
diploma que a enquadra, projetada, em re-
lao sua zona mais nobre, com receios de
enobrecimento da zona histrica e de centri-
fugao da populao a residente. Consi-
derando a urgente necessidade de conduzir
eficazmente o processo de renovao urba-
na da zona da Ribeira da Cidade do Porto
afigura-se igualmente premente assegurar
que a populao trabalhadora que h mui-
to habita essa zona nas piores condies de
alojamento e explorao no venha a ser de-
la deslocada por fora da valorizao da pro-
priedade e da zona decorrentes da prpria
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operao em tempo planeada (Rodrigues,
1999, pp. 40-41). Em 1980, segundo da-
dos do INE, nos 3.200 edifcios existentes
no centro histrico do Porto residiam cerca
de 20.000 indivduos, numa assinalvel m-
dia de 6,25 por edifcio. Esse desiderato de
evitar a sada de residentes no foi contudo
concretizado, uma vez que cerca de 800 re-
sidentes foram deslocados para o Bairro do
Aleixo, gerando-se entre eles, contrariamen-
te ao que muitas vezes se procura evidenciar
quando se insiste que as operaes de rea-
lojamento desta natureza so sempre feitas
contra a vontade dos prprios, sentimentos
contraditrios.
Como lembra Gaspar Pereira, as ope-
raes de renovao urbanstica, levadas a
cabo na zona central da cidade, em especial
as que atingem as zonas mais densamente
povoadas do centro histrico, onde se con-
centravam populaes pobres, tm efeitos
perversos e no antecipados. Isso porque
contribuem para agravar as carncias ha-
bitacionais, conduzindo quer a uma sobreo-
cupao do miolo da cidade antiga no atin-
gido pelas demolies, quer centrifugao
de famlias pobres para a periferia (Pereira
apud Rodrigues, 1999, p. 16).
Acresce que, desde cedo, por outro la-
do, de modo a procurar tornar menos densa
uma configurao urbana atulhada, se ma-
nifestam contornos de uma renovao sele-
tiva que pretende ver-se travestida de uma
prtica de reabilitao integrada que, pelo
menos retoricamente, valoriza o conjunto
histrico constitudo pelo habitat residen-cial e pela comunidade local. Essa poltica
se orienta, assim, para o enobrecimento do
espao pblico e para o florescimento de
condies que favorecessem as prticas ur-
banas de lazer e de consumo. Por isso mes-
mo, no despiciendo nem inaudito notar
que zona da Ribeira, palco da cultura do
consumo visual, tenha sido conferida uma
prioridade em termos de reabilitao e de
requalificao. Como lembra, de resto, um
dos tcnicos envolvidos nas operaes de re-
qualificao:
Se edifcios muito degradados sobre
que pretendamos operar no revelas-
sem valor patrimonial suficientemente
positivo ou se a sua presena e recons-
truo significasse aumento de densida-
de construtiva, nociva vida das popu-
laes, o Mestre [Arquitecto Viana de
Lima] propunha, sem hesitao, o seu
apeamento em favor do espao aberto
que proporcionasse o estar ldico e a
circulao facilitada (). Ainda hoje, e
j sem a presena directa do Mestre,
solues urbansticas deste tipo foram
reutilizadas, como no Largo da Viela
do Anjo, onde, custa da demolio
de algumas construes em runa, foi
conseguido um espao urbano aberto
de grande qualidade arquitectnica, no
interior da densa malha medieval da S,
sem as descaracterizar, antes valorizan-
do-as. (Moura, 2001, pp. 106 e 108)
Ainda que nunca tenha sido assumido
pelos poderes locais que a reabilitao urba-
na empreendida no centro histrico do Por-
to tivesse sido inicialmente motivada pelo
mpeto em ver o centro histrico tombado
patrimnio mundial, a verdade que esse
objetivo se vai consolidando com a matura-
o do processo de reabilitao.
Retendo uma ideia de Antnio Firmino
da Costa (1999), segundo a qual as zonas
onde a reabilitao e a requalificao urba-
nas ocorrem so socialmente constitudas
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como objetos de reabilitao urbana, mes-
mo antes das operaes dessa natureza te-
rem incio, vale a pena relevar que, frequen-
temente, essas operaes se resumem a
pouco mais que esse processo de construo
social (com uma amplitude limitada que di-
ficilmente ultrapassa os discursos polticos)
e que essa , recorrentemente, uma queixa
difundida pelos tcnicos envolvidos. Mesmo
no sendo o caso, porque configurou uma
interessante operao de reabilitao e de
requalificao urbanas, tornado, por isso
mesmo, ainda mais pertinente este argu-
mento, a verdade que, obtido o estatuto
de patrimnio mundial (no obstante faltar
reabilitar uma grande poro do edificado e
requalificar uma parte do espao pblico na
rea Ribeira-Barredo, e de a interveno na
mais densificada zona do Bairro da S levar
apenas 8 anos de realizao), o CRUARB
enfrentou um processo de extino a partir
de 2005, o que evidencia a volubilidade dos
processos de patrimonializao.
Concluso: do enobrecimento ao contrarrevanchismo
As experincias urbanas das cidades do Re-
cife e do Porto guardam similitudes impor-
tantes num quadro analtico comparativo. A
retrica e a prtica inerentes aos processos
de patrimonializao, a prazo, por estarem
sujeitas a opes polticas, s vicissitudes
dos investimentos pblicos e a fenmenos
de moda, podem ser geradoras de efeitos de
revanchismo (neste caso, contrarrevanchis-
mo, se entendermos que o prprio processo
de patrimonializao foi uma revanche da
cidade aos usurios e moradores indeseja-
dos).
Nessa medida, no assim to fora do
vulgar constatar que os processos de patri-
monializao retroagem sobre eles mesmos,
levando a que os efeitos positivos que gera-
ram, em face dos objetivos que perseguiam,
retrocedam no sentido que levavam e se en-
caminhem para situaes qualitativamente
inferiores queles que prevaleciam poca
de sua implementao. Nesses casos, tudo
se passa como se a interveno patrimonial,
como tantas vezes acontece nas operaes
de enobrecimento, viesse gerar num deter-
minado espao uma situao contra natura que acaba, uma vez esmorecida essa inter-
veno, no s por se normalizar, mas tam-
bm por se refinar, no sentido em que tende
a concentrar e a atrair exponencialmente os
fenmenos expurgados pelos processos de
patrimonializao.
No Porto, a extino do Comissariado
para a Renovao Urbana da rea da Ribei-
ra-Barredo (CRUARB) e da Fundao para o
Desenvolvimento da Zona Histrica (FDZH),
que foram as duas instituies que desen-
volveram uma interveno sistemtica de
reabilitao e de requalificao urbanas, no
deixam potencialmente de enquadrar fen-
menos de revanchismo ligados aos proces-
sos de patrimonializao. A ausncia dessa
interveno no s significa o retomar de
uma dinmica de decadncia, travada pela
existncia dos processos de requalificao e
de patrimonializao, como a legitima numa
lgica fatalista que acaba por a acelerar a
um ritmo muito mais intenso.
Mas esse fenmeno de revanchismo
de natureza complexa e, unidimensional-
mente considerado, no deixa de evidenciar
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posies marcadamente ideolgicas. O que
leva a que seja profcuo question-lo na sua
complexidade.
No caso do Porto, a extino do
CRUARB e da FDZH recorrentemente jus-
tificada por no terem sido levadas a um
ponto timo as operaes de enobrecimen-
to urbano e por essas instituies terem
limitado esse enobrecimento a interven-
es de requalificao do espao pblico.
Designadamente, na retrica legitimadora
do novo instrumento financeiro-jurdico-
urbanstico (as Sociedades de Reabilitao
Urbana), critica-se o fato de o CRUARB ter
apostado numa reabilitao de qualidade, e
impossvel de generalizar a toda a cidade,
para realojar em casas luxuosamente re-
cuperadas uma populao residente de bai-
xos recursos. Com a agravante se releva
de essa populao, que paga ao municpio
rendas ajustadas sua baixa renda mensal,
no ter recursos, nem os permitir gerar,
para fazer face, a mdio prazo, s despesas
de manuteno das intervenes realizadas.
Por isso, um enobrecimento generalizado e
mais ousado defendido como estratgia
mais adequada para evitar fenmenos de
revanchismo em que os processos de patri-
monializao se vejam hipotecados por eles
prprios.
No caso do Bairro do Recife, o enfra-
quecimento das atividades do Escritrio de
Revitalizao do Bairro do Recife acompa-
nhou a diminuio progressiva de investi-
mentos. Ancorado, sobretudo, em uma con-
cepo de consumo e entretenimento, tpico
dos processos denominados gentrification para visitao, o processo de enobrecimen-
to do Bairro do Recife no se alicerou em
polticas residenciais, embora se soubesse,
desde as primeiras iniciativas do Plano de
Revitalizao Bairro do Recife, que essa
dimenso era fundamental para o retorno e
manuteno de certas atividades desejadas.
Em decorrncia de sua incontestvel
importncia, um dos aspectos mais discuti-
dos nas polticas de enobrecimento tem sido
justamente a dimenso residencial desses
empreendimentos. Entende-se que, sem
essa caracterstica, faltaria a esses projetos
uma das suas principais bases de sustenta-
o, capaz de gerar certas rotinas cotidianas
de servios que so essenciais manuteno
do curso de uma vida regular. Contudo, o
caso do Recife repete uma tendncia que
tem sido quase um padro no Brasil: o de
no incorporar polticas habitacionais nos
projetos de revitalizao. Nem na forma
de melhoria das condies de vida das po-
pulaes mais pobres, que em geral habitam
essas reas centrais das cidades (em sua
maioria, regies porturias), nem na forma
de novos empreendimentos imobilirios.
Somada a ausncia de investimentos
residenciais, e tendo ou no o plano de re-
vitalizao apoio da administrao pblica,
existe uma dimenso cotidiana da questo,
relacionada delicada equao da comunica-
bilidade poltica expressa nos usos e contra-
usos desses espaos que podem contribuir
para a fragilidade das relaes sociais e vul-
nerabilidade desses espaos enobrecidos.
Nesse caso, h de se considerar a presena
continuada e persistente de contrausos nos
espaos enobrecidos, e suas ressonncias
sobre os processos interativos (estruturado-
res de identidades mediante a atribuio de
sentidos aos lugares) entre os distintos gru-
pos envolvidos nos usos desses espaos.
Por fim, nesse sentido que a relao
entre enobrecimento e o revanchismo que
lhe subjaz traduz-se de dois modos distintos.
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polticas urbanas de patrimonializao e contrarrevanchismo
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Na vingana que as antigas dinmicas com-
batidas pelos processos de patrimonializa-
o, aproveitando o enfraquecimento destes
ltimos, exercem, retomando e alastrando
sua importncia. Mas tambm na incapa-
cidade das operaes de preservao, que
existem para reagir a um enobrecimento
generalizado, em se manterem sustentveis
num contexto de igual afectao de recursos
a todas as operaes de requalificao.
Rogerio Proena LeiteProfessor e pesquisador do Programa de Ps-graduao em Sociologia da Universidade Fede-ral de Sergipe (Sergipe, Brasil). Pesquisador 2 do [email protected]
Paulo PeixotoProfessor e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universi-dade de Coimbra (Coimbra, Portugal)[email protected]
Notas
(*) Texto produzido no mbito das pesquisas da Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos (CPLP/MCT/CNPq e CAPES-FCT). Uma primeira verso deste artigo foi apresentada na 26 Reunio Bra-sileira de Antropologia ABA, Bahia, Brasil.
(1) Referimo-nos aos processos de patrimonializao para dar conta de um movimento de duplo
alcance. Por um lado, e na sua essncia, os processos de patrimonializao se referem a inter-venes de natureza patrimonial e predominantemente tcnica que visam, acima de tudo, ob-ter, atravs de uma operao de tombamento formal, um estatuto patrimonial. Por outro lado,
lateralmente, os processos de patrimonializao se referem a operaes de natureza diversa
(arquitetnica, paisagstica, urbanstica, poltica, cultural, comercial, etc.) cujos objetivos, inde-pendentemente de um reconhecimento formal, assentam na exacerbao de um patrimnio ou
do valor patrimonial de um objeto, para efeitos de consumo visual, turstico ou sustentao de
um mercado urbano de lazeres.
(2) O enobrecimento, nobilitao, ou gentrification (termo ingls correntemente utilizado na gria da
reabilitao urbana), d conta da substituio da populao residente por outra de estratos so-ciais mais elevados na sequncia de processos de conservao e de restaurao de determinado
espao urbano, remetendo numa viso mais redutora para a qualificao do espao
(3) A haussmanizao refere-se a uma poltica de demolio, levada a cabo em Paris por Georges-
Eugne Haussmann, na segunda metade do sculo XIX, que pretende intervir no espao urbano
de modo a controlar, disciplinar e higienizar os comportamentos, assim como a criar referncias
e marcadores do espao atravs da monumentalizao.
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Recebido em dez/2008Aprovado em mar/2009