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 Gragoatá  Niterói, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013 Para além do efeito de circularidade: interpretando as noções de pré-construído e articulação a partir de enunciados idem per idem  Aracy Ernst-Pere ira (LEAD/UCPE L) Ercilia Ana Cazarin (LEAD/UCPE L)  Marchiori Quevedo (LEAD/UCPEL) Resumo  A parti r da obser vação da inte r-rel ação entr e o funcionamento metafórico e ideológico em enunciados idem per idem os que realizam a  fórmula “X é X” , discutem-s e as noções de  pré-construíd o e discurso transverso, relativas ao interdiscurso, e suas implicações na administra- ção da leitura. Esse funcionamento caracteriza-s e  pela indefect ibilidade do pré-const ruído e pela relação estabelecida com discursos transversos que explicam tanto o caráter de evidência quanto de deriva dos sentidos. Considera-se também a dife- rença entre o já-dito e o pré-construído e os efeitos de estranhamento e de invisibilidade decorrentes.

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  • Gragoat Niteri, n. 34, p. 131-143, 1. sem. 2013

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    Para alm do efeito de circularidade: interpretando as noes

    de pr-construdo e articulao a partir de enunciados idem per idem

    Aracy Ernst-Pereira (LEAD/UCPEL) Ercilia Ana Cazarin (LEAD/UCPEL) Marchiori Quevedo (LEAD/UCPEL)

    ResumoA partir da observao da inter-relao entre o funcionamento metafrico e ideolgico em enunciados idem per idem os que realizam a frmula X X , discutem-se as noes de pr-construdo e discurso transverso, relativas ao interdiscurso, e suas implicaes na administra-o da leitura. Esse funcionamento caracteriza-se pela indefectibilidade do pr-construdo e pela relao estabelecida com discursos transversos que explicam tanto o carter de evidncia quanto de deriva dos sentidos. Considera-se tambm a dife-rena entre o j-dito e o pr-construdo e os efeitos de estranhamento e de invisibilidade decorrentes.

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    Palavras-Chave: Pr-construdo; Discurso-transverso; Metfora; Ideologia; Memria.

    Consideraes iniciaisEnunciados considerados tautolgicos so talvez um dos

    trunfos de que se pode valer um analista de discurso para defen-der algo que, em sua seara, tem ares de obviedade: o sentido no est no texto. fcil j aqui conjecturarmos situaes em que enun-ciados como brasileiro brasileiro, negro negro ou mulher mulher, para alm do efeito de circularidade, produzam ou um sentido X ou mesmo seu antpoda. Tomemos o ltimo enunciado para ilustrarmos o que queremos dizer a partir da seguinte narra-tiva: certa feita, um professor foi surpreendido pela resoluo de uma aluna de no mais fazer o trabalho da disciplina com a mel-hor amiga (deciso rara na trajetria de ambas no ensino mdio). A justificativa foi um inefvel: ah, professor, mulher mulher. Sem maior azo para solicitar uma glosa, a interpretao desse enunciado estacionou em duas possibilidades relativas tomada da palavra mulher: (i) a retomada de um esteretipo: volvel, instvel, no confivel; e (ii) a retomada de uma contraposio a esse esteretipo: ser de fibra, obstinada por defender suas ideias, perseverante (o que poderia ser pouco apropriado, visto que elas discordavam e muito sobre o tema do trabalho).

    De acordo com Orlandi (1999), os sentidos tm um funcio-namento ideolgico e metafrico. O primeiro d conta de uma naturalizao desse sentido, da produo de sua evidncia. por estar sob o domnio de uma formao discursiva1 que o sentido se nos apresenta de uma determinada forma. Em uma FD ma-chista, por exemplo, mulher mulher produz, sob a condio de aquilo que todo mundo pode ver, sentidos de futilidade, consumismo ou inferioridade. Tanto isso se nos torna evidente que, nessa formao, um conectivo mas uniria Ela queria muito economizar e mulher mulher. J em uma FD feminista, ou ao menos no machista, uma possvel montagem discursiva abdica-ria do mas por um porque, produzindo um sentido prximo de a mulher querer economizar porque as mulheres so precavidas, se preocupam com os filhos, pensam no futuro etc.

    Paralelamente ao fato de que o sentido no pode ser qual-quer um, temos que ele sempre pode ser outro. Esse movimento prprio do sentido. Trata-se aqui do segundo funcionamento: o metafrico. Se isso provoca sempre a possibilidade da emerg-ncia de um outro sentido (produzido por um novo gesto de interpretao), por outro lado implica a necessidade de o sujeito (tentar) administrar a posio de leitura do outro sujeito. O que comumente feito com algum sucesso: basta observarmos que o sentido tende a reproduzir-se, que h uma forte impresso de

    1 Conforme Pcheux, aquilo que numa for-mao ideolgica dada, isto , a partir de uma posio dada numa con-juntura dada, determi-nada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermo, de um panfleto, de uma exposio de um programa, etc.) (1995, p.160).

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    literalidade da palavra e, se quisermos exemplos mais pungentes, que os esteretipos tm grande eficcia material.

    O funcionamento metafrico, embora permita o atravessa-mento do inconsciente (ou dele seja efeito), sempre afetado pelo ideolgico. Uma construo como O Brasil precisa cuidar melhor de suas mulheres, estando alijada sua leitura das condies de produo, apresenta-se-nos inescrutvel: fala-se do Brasil-Estado, da sociedade ou dos homens brasileiros? Cuidar foi atuali-zado em que sentido: observar, vigiar ou tratar com carinho? Mulheres seriam as esposas, seriam todas as mulheres, seriam tambm as crianas do sexo feminino... Afinal, trata-se aqui de um conceito biolgico ou de gnero? Somente a partir de um lu-gar discursivo, essa frase produz a evidncia de seu sentido: um alerta, uma ameaa s mulheres ou uma reivindicao feita por elas mesmas. Somente situada no interior de uma dada relao de foras, a assero significa solicitao ou de uma ainda maior tirania ou de uma menor dessimetria entre os gneros.

    Enunciados tautolgicos, ao menos os que realizam a fr-mula X X, parecem-nos exemplificar muito bem a inter-relao entre esses dois funcionamentos. Alm de reiterarmos que um enunciado como mulher mulher s fala o que afinal a mulher ou como se a l , quando reportado a uma formao discursiva, arriscamos ainda uma hiptese: na realizao da frmula X X que os dois tipos de funcionamento dos sentidos encontram sua eficcia mxima. O ideolgico, por convocar o exterior jus-tamente no paradoxo do no funcionamento/funcionamento de uma identificao objetiva. O metafrico, por simular a suspenso de seu prprio funcionamento em uma espcie de curto-circuito significante. Para tanto, recorremos noo de interdiscurso e s modalidades de sua interveno no intradiscurso.

    1. Uma proposta terica a partir das modalidades de funcionamento do interdiscurso

    Afirmamos, na introduo deste estudo, que o sentido dependente da formao discursiva em que se constitui, o que equivale a dizer que no lhe pode ser pr-existente. Esse sentido no nem insensvel materialidade nem incomunicvel com o exterior da FD, visto que essa responde ao todo complexo com dominante, intrincado no complexo das formaes ideolgicas, embora simule a evidncia do sentido na dissimulao dessa de-pendncia. o que podemos depreender deste excerto:

    ... propomos chamar interdiscurso a esse todo complexo com dominante das formaes discursivas, esclarecendo que tambm ele submetido lei de desigualdade-contradio--subordinao que, como dissemos, caracteriza o complexo das formaes ideolgicas. Diremos, nessas condies, que o prprio de toda formao discursiva dissimular, na trans-parncia de sentido que nela se forma, a objetividade material

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    contraditria do interdiscurso que determina essa formao discursiva como tal, objetividade material que reside no fato de que algo fala (a parle) sempre antes em outro lugar e independentemente, isto , sob a dominao do complexo das formaes ideolgicas. (PCHEUX, 1995, p. 162, grifo do autor)

    O interdiscurso , por assim dizer, o exterior especfico de uma FD (PCHEUX, 1997, p. 314) e deve ser visto como

    ... un processus de reconfiguration incessante dans lequel une FD est conduite, en fonction des positions idologiques que cette FD represente dans une conjoncture dtermine, incorporer des lments prconstruits produits lextrieur delle-mme, en produire la redfinition ou le retournement susciter galement le rappel de ses propres lments, en organiser la rptition mais aussi en provoquer ventuelle-ment leffacement, loubli ou mme la dngation. (COURTINE; MARANDIN, 1981, p. 24)

    Sendo a exterioridade constituinte do discurso, o interdis-curso tem no intradiscurso seu simulacro material (FERREIRA, 2001). Para Pcheux (1995), o intradiscurso, enquanto fio do discurso do sujeito, , a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma interioridade inteiramente determinada como tal do exterior (p. 167); o funcionamento do discurso com relao a si mesmo (o que eu digo agora, com relao ao que eu disse antes e ao que eu direi depois) [...] o conjunto dos fenmenos de co-referncia (p. 166). Para ancorar-se2, o interdiscurso inter-vm a partir de dois tipos de funcionamento: o pr-construdo e a articulao de enunciados.

    O pr-construdo apresentado, em uma primeira aproxi-mao na obra Semntica e Discurso, em meio ao debate com a posio fregeana (para a qual deveria haver coincidncia entre o objeto de pensamento e o objeto real). A partir da frase aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu, Pcheux demonstra que o discurso atesta funciona pela negao, no todo da proposio, daquilo que necessariamente fora admitido na subordinada. A imperfeio que Frege atribua s lnguas naturais revista por Pcheux como separao, distncia ou discrepncia [...] entre o que pensado antes, em outro lugar ou independente-mente, e o que est contido na afirmao global da frase (p. 99). A necessidade de dar conta desse funcionamento lingustico do interdiscurso levou P. Henry a

    propor o termo pr-construdo para designar o que remete a uma construo anterior, exterior, mas sempre independente, em oposio ao que construdo pelo enunciado. Trata-se, em suma, do efeito discursivo ligado ao encaixe sinttico (PCHEUX, 1995, p.99, grifo do autor).

    O pr-construdo consiste, assim, na separao fundamen-tal entre o pensamento e o objeto de pensamento, com a pr-existncia desse ltimo, marcada [por] uma discrepncia entre dois domnios

    2 Termo tomado na acepo de Maldidier (2003).

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    de pensamento (p.102). Um desses dois seria o impensado do pensamento e remeteria

    simultaneamente quilo que todo mundo sabe, isto , aos contedos de pensamento do sujeito universal suporte da identificao e quilo que todo mundo, em uma situao dada, pode ser e entender, sob a forma das evidncias do contexto situacional (p. 171, grifo do autor).

    Nesse mesmo sentido, para Courtine, um elemento do interdiscurso nominaliza-se e inscreve-se no intradiscurso sob forma de pr-construdo, isto , como se esse elemento j se encontrasse ali. O pr-construdo remete assim s evidncias pelas quais o sujeito se v atribuir os objetos de seu discurso: o que cada um sabe e simultaneamente o que cada um pode ver em uma dada situao. (2009, p.74, grifo do autor)

    Ao ser naturalizado pela FD, isto , tendo produzida sua evidncia, o pr-construdo justamente funciona pela eliso desse impensado do pensamento: a discrepncia entre o recorte de sentido que dado na formao discursiva e a heterogeneidade ou contradio a que essa posio de interpretao remete e res-ponde. A tomada de posio s pode dar-se a partir de um espao dividido, ainda que possa constituir por si mesma um novo nicho.

    O segundo modo de funcionamento alude articulao de enunciados. Para Pcheux (1995), enquanto o pr-construdo forne-ce-impe o mundo das coisas (p.164), a articulao constitui o sujeito em sua relao com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominao da forma-su-jeito (p. 164). Essa articulao, por estar identificada a uma FD, rege o processo discursivo sob, por exemplo, a possibilidade de substituio: tanto como equivalncia (meta-relao de identidade) quanto como implicao, em cuja substituio orientada o filsofo no v uma relao de identidade, mas sim de encadeamento (conexo). sequncia produzida nessas condies, ele chama discurso-transverso (p. 165).

    Aludindo a uma especificidade diferencial dos dois tipos de elementos do interdiscurso (pr-construdos e articulaes) (p. 163, grifo nosso), Pcheux, poucas pginas a seguir (p. 171) em Semntica e Discurso, aclara as diferenas entre ambos. Enquanto o pr-construdo aquilo que todo mundo sabe (contedo de um sujeito universal, suporte da identificao, e o que todos veem como evidente em um contexto situacional), a articulao pelo funcionamento do discurso-transverso corresponde a como todo mundo sabe (retorno do Universal no sujeito), como dissemos (evocao intradiscursiva) ou at mesmo o como todo mundo pode ver (universalidade implcita do humano).

    No obstante, h uma inter-relao entre ambos, conforme podemos ver no excerto a seguir:

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    ... o interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e pe em conexo entre si os elementos discursivos constitudos pelo interdiscurso enquanto pr-construdo, que fornece, por assim dizer, a matria-prima na qual o sujeito se constitui como sujeito falante, com a formao discursiva que o assujeita. (1995, p. 167, grifo do autor)

    Dentre as vrias questes que no quadro terico da Anlise de Discurso ainda se encontram em aberto (seno todas; afinal, como disse Pcheux, no h questes vencidas), podemos citar trs mais atinentes ao que estamos aqui revisando: a interpreta-o de interdiscurso como pr-construdo (Pcheux parece-nos explcito acerca dessa diferena); a interpretao de interdiscurso como sinnimo de memria discursiva (ao que, pelos excertos por ns escolhidos, j facilmente dedutvel termos posio diversa); e a variao na interpretao de qual o sentido da discrepncia entre o pr-construdo e o construdo no enunciado. o que bre-vemente discutiremos no tpico a seguir.

    No que tange primeira questo, optaremos por simples-mente evocar a especificidade diferencial referida por Pcheux acerca dos dois tipos de funcionamento do interdiscurso. Quanto segunda, recorremos a Courtine (1981), que introduziu a noo de memria discursiva em Anlise de Discurso. Para ele, a noo de memria discursiva diz respeito existncia histrica do enunciado no interior de prticas discursivas regradas por aparelhos ideolgicos. Courtine, que corrobora a concepo pecheuxtiana de interdiscurso, ainda fala da existncia de uma FD como memria discursiva (2009, p. 105-106).

    Na esteira dessa reflexo, aqui consideraremos memria como um domnio tanto de uma FD quanto do interdiscurso. Assim, temos que tanto o j-dito (pr-assertado, pressuposto) de uma FD quanto o pr-construdo so diferentes formas de o sujeito enunciador lidar com a memria: tanto a que se encontra em sua formao discursiva quanto a que se encontra alhures. A memria funcionaria como

    aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem reestabelecer os implcitos (quer dizer, mais tecnicamente, os pr-construdos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condio legvel em relao ao prprio legvel (PCHEUX, 1999, p.52).

    Se o interdiscurso , por assim dizer, um domnio do dis-curso, consideraremos a memria como um domnio tanto do interdiscurso quanto da FD, pois em um e em outra ela que vai estabelecer a relao de ambos com uma anterioridade. O carter de categoria analtica, dada a ela por Courtine, parece-nos pre-servado, pois em vista de que um recorte temporal um corte ideolgico (LE GOFF, 2003, p. 208) somente na anlise que as categorias de anterioridade e presente se podem produzir.

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    J no tocante terceira questo, pretendemos ser menos parcimoniosos ao expor sobre ela. Para tanto, comecemos com a seguinte afirmao:

    a expresso ou as expresses que introduzem o objeto de refe-rncia restringem sua interpretao. O ponto importante que a restrio depende de um plano de organizao da lngua, isto , de uma articulao regrada forma-sentido. Percebe-se bem a noo de pr-construdo quando se a contrasta com aquela do j-dito (e toda modalidade do dito fora da assero: pr-assertado ou pressuposto): o pr-construdo qualifica a forma da expresso na medida em que ela limita a interpre-tao, enquanto o j-dito depende do contedo (proposicional ou nocional). (MARANDIN, 1994, p.131).

    Aqui pensamos ter no apenas a reiterao da diferena entre pr-construdo e j-dito, mas tambm a condio indefec-tvel sob a qual uma FD toma para si elementos do interdiscurso: a partir de uma restrio de interpretao. Isso posto, fazemos uma relao com a citada objetividade material contraditria do interdiscurso. Por ser o interdiscurso um espao intersticial, em que uma FD dominante determinada pelas demais, os objetos dos quais ela se apropria como pr-construdos so objetos ou elementos com significao maior do que ela pode suportar. Esses objetos, malgrado remetam a um todo significativo o conjunto de possibilidades de significao que pertence ao interdiscurso , precisam ser recortados a fim de ingressar no campo do dizvel para uma dada FD.

    Encontramos corroborao para esse raciocnio em Pcheux (1997a): os objetos ideolgicos so sempre fornecidos juntamente com seu modo de usar, seu sentido, isto , sua orientao (p. 145). Esse modo de usar restringe, ou melhor: regula a ancora-gem do pr-construdo, ainda que nele no possam no reverberar lugares outros de dizer, cujos indcios do conta desse impen-sado do pensamento, ao qual se referia o autor. No entanto, tais indcios so dissimulados, em virtude de a FD produzir e coligir evidncias de sentido.

    Marandin disseca a eficcia desse funcionamento nos seguintes termos, explicando que o pr-construdo se instaura quando o diferencial interpretativo recorta uma diferena em uma construo ideolgica. A eficcia ento mxima, pois a diferena se apresenta nas formas tais como a lngua fora a interpret-las (1994, p.131). Collinot e Mazire corroboram tal posicionamento, ao afirmarem:

    Ora, se o pr-construdo esse ponto em que se pega o inter-discurso, reinscrio sempre dissimulada, no intradiscurso, dos elementos do interdiscurso (Denise Maldidier, 1990), sua natureza mesmo a que o faz mestre-organizador da cons-tituio do corpus, lugar onde se tece por baixo do pano o fio do discurso, construo de base que, sozinha, torna possvel

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    o trajeto temtico e o evento semntico. (COLLINOT; MAZI-RE,1994, p. 189-190, grifo do autor)

    Nesse sentido, parece-nos que o pr-construdo um constructo terico com dupla face: tanto remete para o interdis-curso (em cuja objetividade material contraditria, ele indicia a disputa de foras entre diferentes FDs) quanto apropriado e ressignificado por uma dada forma-sujeito na linearizao do discurso. O impensado do pensamento que acompanha o efei-to de pr-construdo dessarte administrado pela dissimulao desse processo, bem como pelo discurso-transverso em que ele interpretado. Parece-nos que o pr-construdo opera no domnio de duas memrias: a do interdiscurso, cuja parte considervel ele (de)nega; e a da FD, que ele atualiza. Em ambas, no entanto, ao constituir o discurso, ele agita a rede de sentidos, produzindo efeitos.

    Em virtude de uma FD depender do seu exterior para produzir sentido, no nos parece ser a melhor opo conjecturar haver frases em que no haja efeito de pr-construdo, sob pena de termos de admitir duas consequncias tericas: (i) limitarmos, nesse caso, a ancoragem do interdiscurso ao discurso-transverso, o que equivale a dizer que o interdiscurso no forneceria sempre os objetos ou elementos para a FD: em algumas vezes, limitar-se-ia a lineariz-los por relaes de implicao, temporalidade, etc. (ii) tomarmos como possvel que uma FD tenha posse completa de seus objetos, o que equivale a afirmar que esses no responderiam a um exterior.

    Aceitas tais consequncias, temos outras ainda mais srias: a (i) forar-nos-ia a admitir a no regularidade do funcionamento interdiscursivo: ele seria intermitente na sua relao com a FD (se pensarmos que a teoria da AD prev uma srie de regularidades funcionamento metafrico e ideolgico, deslizamento etc. , admitiremos uma regio imprevistamente insular). A (ii), por sua vez, ao velar os objetos de uma FD ao seu exterior, suporia a claudicao do princpio da heterogeneidade/diviso/contradio.

    O que estamos tendendo a crer aqui , primeiro, que o pr-construdo no s um constructo terico que d conta da dupla face do sentido (inspirados em Pcheux, 1999, diramos ser ele um frasco sem exterior), mas tambm que evidencia teorica-mente os funcionamentos metafrico e ideolgico do sentido e a administrao de uma dada interpretao. a administrao de sua leitura que evidencia a possibilidade de ele ser sempre outro, mas no qualquer um, aportando sob o signo da evidncia em uma FD.

    Segundo, tendemos a crer que o pr-construdo indefec-tvel em sua presena no discurso. Tanto maior sua eficcia quanto mais em zona de invisibilidade ele estiver. No causando o efeito de estranhamento (ERNST-PEREIRA, 2009), ele encontra-se no

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    s dissimulado ao sujeito, mas tambm obliterado ao analista. Re-lembrando o clebre exemplo pcheuxtiano Aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu , em que a discrepncia bastante evidente, consideremos duas alteraes hipotticas que produzam respectivamente:

    (a) Jesus nunca existiu.

    (b) Aquele que salvou o mundo morrendo na cruz um exemplo para todos ns.

    Se creditarmos o efeito de pr-construdo meramente ao ardil do discurso hegemnico de exigir a assuno da existncia de Cristo como condio sine qua non para vir a neg-lo jogo retrico to requintadamente desmontado na reflexo pecheux-tiana , a singela substituio por Jesus desmonta o construto. Isso porque em (a) no h, entre os sentidos de Jesus e existir, o paradoxo da montagem original (pista do atravessamento do discurso outro). Nesse sentido, parece-nos que, embora o exemplo escolhido por Pcheux apresente uma flagrante discrepncia, no seja ela em si o pr-construdo, seno rastro de sua emergncia.

    J em (b), o problema terico outro, razo pela qual parti-remos do que j foi discutido no pargrafo anterior. O elemento de saber referido por aquele que salvou o mundo morrendo na cruz no um objeto construdo no enunciado; concluso alis incontornvel caso admitssemos a possibilidade de no haver pr-construdo. No entanto, a referncia discursiva Jesus remete a um interdiscurso no qual o discurso cristo se encontra em uma relao de foras com sua exterioridade especfica: os discursos ateu e muulmano, por exemplo.

    Como elemento submetido condio objetiva material contraditria/heterognea/dividida desse espao Jesus figura central no discurso catlico, mas auxiliar no muulmano e ainda mera fico no ateu , esse pr-construdo ancora no dis-curso j tomado pela forma-sujeito, que administra o seu sentido, recortando do imaginrio o que for dizvel a partir do seu lugar discursivo e situando esse resto em uma zona de invisibilidade, embora o efeito de sua presena-ausente ali tambm produza sentidos3.

    O que temos, cremos, na frase alterada somente a eficcia ainda maior do pr-construdo, que, dissimulando a discrepn-cia entre dois domnios de pensamento, opera sob um efeito de consenso e literalidade, a pleno servio de um discurso que tende monossemia. Em outras palavras, um encaixe quase sem decalagem.

    2. Uma proposta analtica a partir de um enunciado tautolgico: mulher mulher

    Discutidos alguns pontos da teoria, podemos voltar aos en-unciados idem per idem. Em primeiro lugar, apropriar-nos-emos

    3 Q u e ve do (2 0 12) desenvolve esse ponto no que tange ao texto visual.

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    do princpio da dupla diferena, com o qual Pcheux pensou a sua prtica de leitura. Em um enunciado do tipo X X, temos uma primeira diferena de identidade de X em relao a Y ou Z. Assim, temos a convocao de um pr-construdo mulher, tomado do interdiscurso pela sua diferena em relao a ho-mem ou criana. Esse termo mulher surge sob a condio de evidncia (mundo das coisas, o que todo mundo sabe) de um contexto situacional: um consenso intersubjetivo mnimo do que seja uma mulher.

    No entanto, j aqui pensamos haver o impensado do pen-samento: s reconhecemos mulher em oposio a homem ou a criana por vivermos em uma formao social em que tal distino seja importante, produza sentido. O pr-construdo, malgrado ainda em um momento construdo hipoteticamente e no qual ainda no se encontre ancorado em uma FD especfica, j previamente administrado em seu sentido. J h um funcionamen-to ideolgico recortando e evidenciando o sentido de mulher.

    Na sequncia da interpretao do que X (que no Y ou Z), instaura-se um paradoxo: ao dizer que X X e produzir um senti-do para alm do tautolgico, X retroage a si mesmo, produzindo o sentido de que X no X. Ou seja, h uma ressignificao do primeiro X pela ausncia inoculada nele pelo segundo. Se mulher mulher produz o sentido de que mulher no seja mulher, mas sim uma outra coisa, temos instaurada uma segunda diferena: a de que X s no seja X sob a condio de s-lo. Isso posto (e admitido) provoca a admisso de uma grande diferena entre o estatuto do sentido em AD em comparao ao estatuto do sentido na lgica e ao valor saussuriano.

    Em mulher mulher, pensamos ter no primeiro termo mulher a ancoragem de um pr-construdo (mulher, que to-dos sabemos o que ) funcionando sempre-j ideologicamente, porque imediatamente tomado pela forma-sujeito que colige as evidncias de sua significao, em um administrao da leitura a partir da linearizao do pr-construdo, ou seja da sua ressi-gnificao por um discurso-transverso.

    Tal ponto talvez fique mais claro a partir de um enunciado no tautolgico, como Mulher de verdade torna-se me tambm. Nele, por exemplo, temos o (mesmo?) pr-construdo mulher, que vai sendo ressignificado pelas relaes de implicao, condio, temporalidade, hierarquia, partio e outras, dadas pelo discur-so-transverso. Assim, mulher passa a significar uma partio (o subgrupo das que, dentre as mulheres, so mulheres de verdade); mulher passa a ser um grupo restrito que alcana uma outra categoria (melhor, porque de verdade); o estatuto de mul-her de verdade condio para ser me e o implica; a condio da mulher estabelecida por uma relao temporal: antes se mulher de verdade, depois se torna me.

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    Tornando ao nosso objeto, no enunciado idem per idem mu-lher mulher, entretanto, temos um funcionamento metafrico que entra em um aparente curto-circuito no significante. O que se oferece ao leitor como um efeito de suspenso e lhe provoca um estranhamento, no entanto, funcionar mais rpido e melhor pela injuno significao. Assim, o pr-construdo mulher logo encontra a si mesmo no fio do discurso j na condio de uma evocao intradiscursiva ou retorno do Universal no sujeito (mulher tal como sabemos). Esse retorno da forma-sujeito no sujeito reger o discurso-transverso, tanto por relaes de impli-cao (mulher mulher, na condio de se entender mulher como x; mulher mulher, o que implica x) ou de equivalncia (mulher mulher, o que equivale a mulher ser x).

    Sem essa remisso a uma instncia maior e prvia (o inter-discurso, sob seus dois modos de funcionamento), no h produ-o de sentido. Assim como no h produo de sentido se no houver uma tomada de posio do sujeito, que cesura o continuum da discursividade e se constitui condio para tomada da palavra. Como afirma Teixeira (2005), isso que fala antes, em outro lugar, no se diz todo, pois h algo no acontecimento que escapa s redes de sentido j construdas; [...] o pr-construdo [...] no se totaliza, pois h a um resduo no integrvel no simblico (p. 181). Nesse resduo, cremos, esto a falha e a falta.

    Consideraes finais

    Com base no que apresentamos, esperamos haver, a partir dos enunciados idem per idem, suficientemente defendido o gesto de interpretao do pr-construdo como especificamente diferente de j-dito e como ubquo (produzindo sentidos seja por efeito de estranhamento seja por efeito de sua presena-ausncia, quando relegado invisibilidade).

    Em nosso entendimento, o interdiscurso funciona indefec-tivelmente a partir do concerto entre pr-construdo e articulao (efeito-transverso). Essa considerao parece aclarar-nos no s a dependncia do discurso a um exterior, o carter de evidncia com que se produzem efeitos de sentido localmente, mas tambm uma deriva, restos de sentido inalcanados pela administrao da leitura proposta pelo enunciador. Restos dos quais se diz alhures no terem relevncia, mas que revelam, e qui relevam, o sujeito em que se realizam.

    A frmula X X indicia, a nosso ver, justamente esse carros-sel dos sentidos no qual somos livremente convidados a tomar parte enquanto sujeitos, cumprindo a sina de andar mais rpido (vendo a evidncia que nos dada a perceber) para no sair de um mesmo lugar (de dizer).

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    2 prova Kthia 17 mar 2014

    AbstractBased on the observation of the interrelationship between the metaphorical and the ideological functioning in idem per idem propositions which follow the X is X formula , this paper discusses the notions of preconstructed and transversal discourse, as related to interdiscourse, and their implications in reading practices. Such functioning is characterized by the indefectibility of preconstructed and by the relation established with transversal discourses that explain both evidence and floating meanings. It also considers the difference between the already-said and the preconstructed and the effects of estrangement and invisibility which follow.

    Keywords: Preconstructed; Transversal discour-se; Metaphor; Ideology; Memory.

    REFERNCIAS

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    2 prova Kthia 17 mar 2014 2 prova Kthia 17 mar 2014

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