48693750 Alfabetizacao e to Unicid Online 1 Copia

152
 2009 ALFABETIZAÇÃO e LETR AMEN TO Maria Auxiliadora Cavazotti Luiz Percival Leme Britto

Transcript of 48693750 Alfabetizacao e to Unicid Online 1 Copia

Maria Auxiliadora Cavazotti Luiz Percival Leme Britto

ALFABETIZAO

e LETRAMENTO2009

2009 IESDE Brasil S.A. proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorizao por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.

C377

Cavazotti, Maria Auxiliadora; Britto, Luiz Percival Leme. / Alfabetizao e Letramento. / Maria Auxiliadora Cavazotti; Luiz Percival Leme Britto, Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2009. 152 p.

ISBN: 978-85-387-0263-4

1. Alfabetizao. 2. Alfabetizao Metodologia. 3. Letramento. I. Ttulo. II. Britto, Luiz Percival Leme CDD 372.414

Capa: IESDE Brasil S.A. Crdito da imagem: Comstock Complete

Todos os direitos reservados.

IESDE Brasil S.A.

Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel Curitiba PR 0800 708 88 88 www.iesde.com.br

Luiz Percival Leme BrittoDoutor e mestre em Lingstica, e graduado em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Programa de Ps-graduao da Universidade de Sorocaba; Presidente da Associao de Leitura do Brasil; Autor dos livros A sombra do caos ensino de lngua x tradio gramatical; Contra o consenso cultura escrita, educao e participao.

Maria Auxiliadora CavazottiPs-doutora na rea de concentrao: Filosofia e Histria da Educao pela Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), doutora em Educao: Histria, Poltica, Sociedade pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), mestre em Educao: Histria, Poltica, Sociedade pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP) e graduada em Pedagogia e Filosofia pela Universidade Federal do Paran (UFPR). Pesquisadora sobre a historicidade das prticas pedaggicas escolares e relaes com as prticas sociais que as instituem.

SumrioO processo histrico do ensino e aprendizagem da leitura e da escrita .............................................................. 11Alfabetizao: a cartilha desde Comenius ...................................................................... 11

Alfabetizao ou letramento?.............................................. 17Definio de letramento ......................................................................................................... 19

A produo social da linguagem oral e escrita.............. 23Produo da linguagem, produo da conscincia .................................................... 24

A relao entre aprendizagem da lngua escrita e desenvolvimento do pensamento ...................................... 31Processo inicial de aquisio da escrita............................................................................. 32

Textualidade, cdigo e meios de produo da escrita ..................................................................................... 37Crtica aos mtodos tradicionais de alfabetizao ........................................................ 38 A prtica pedaggica do ensino da lngua escrita que articula textualidade, cdigo e meios de produo da escrita ............................................................................ 40

As quatro prticas da alfabetizao................................... 47Leitura e interpretao ........................................................................................................... 47

Leitura e interpretao ........................................................... 53A prtica pedaggica da leitura e interpretao .......................................................... 54 Seleo dos textos de leitura ................................................................................................ 55 Relao de contedos ............................................................................................................. 56

Produo de textos .................................................................. 61O texto oral .................................................................................................................................. 61 Relao de contedos da produo oral .......................................................................... 62

Produo de texto escrito ..................................................... 69Relao de contedos da produo escrita..................................................................... 71 Prtica de escrita........................................................................................................................ 73

Anlise lingstica ................................................................... 77

Sistematizao para o domnio do cdigo ..................... 85Contedos relativos codificao e decodificao................................................... 85

Procedimentos pedaggicos para sistematizao do domnio do cdigo ............................................................ 93

Reescrita do texto com vistas sistematizao do cdigo....................................................101

Avaliao em ensino da lngua escrita ..........................109Ficha de avaliao em ensino da lngua escrita ...........................................................110

Letramento: novas realidades, novos conceitos .........123As origens do novo conceito...............................................................................................123 Novidades e continuidades .................................................................................................124 Letramento: problemas conceituais .................................................................................130 Os termos em dilogo ...........................................................................................................133

Referncias................................................................................141

Anotaes .................................................................................149

ApresentaoA concepo de alfabetizao na perspectiva histrica e seus fundamentos terico-metodolgicos, desenvolvidos nos textos que compem esta disciplina, apiam-se nas reflexes concebidas e elaboradas pela professora doutora Lgia Regina Klein. Essa concepo e as questes e propostas de encaminhamentos das prticas pedaggicas que lhe so pertinentes constam das publicaes da pesquisadora, disponibilizadas h algumas dcadas para a formao de professores da rede pblica de ensino, em diferentes estados brasileiros. Tenho compartilhado da trajetria de elaborao da produo terica sobre a prtica pedaggica assentada nos fundamentos da perspectiva histrica, razo pela qual me sinto estimulada a oferecer esta contribuio para os alunos desta disciplina, interessados em acessar o conhecimento cientfico produzido no campo da pesquisa em educao.

Maria Auxiliadora

O processo histrico do ensino e aprendizagem da leitura e da escritaMaria Auxiliadora CavazottiVamos iniciar nossa disciplina refletindo sobre o desenvolvimento histrico do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, apontando-o como prtica pedaggica essencial da escola moderna. Essa reflexo toma como marco inicial a organizao do trabalho pedaggico proposto por Comenius, que oferece a sistematizao da aprendizagem da leitura por meio da cartilha, mtodo que perdurou no longo perodo de vigncia do ensino tradicional. Na escola atual, as mudanas tecnolgicas dos meios e contedos da comunicao, produzidas no interior do processo de expanso e globalizao das relaes sociais capitalistas, exigem a insero do alfabetizando nas prticas sociais de leitura e escrita, que chamamos de letramento, ultrapassando a mera aquisio da tcnica do ler e escrever. A concepo de letramento como fundamento do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita, por sua vez, demanda a adoo tanto de novos contedos como da metodologia de seu ensino.

Alfabetizao: a cartilha desde ComeniusA produo social da necessidade de universalizao do domnio da leitura e da escrita pela via do ensino escolar tem suas razes na modernidade. Sua emergncia se d no contexto da expanso do comrcio de mercadorias, produzidas em manufatura, sob a forma do trabalho coletivo e do desenvolvimento da nova ordem social burguesa, constituda pelas classes em ascenso: a burguesia empreendedora e os trabalhadores manufatureiros. Por seu turno, os reformadores protestantes, coerentemente com o esprito burgus, preconizavam, desde o sculo XVI, o aprendizado da leitura, ainda que elementar, com a finalidade de conhecer o texto bblico.

Alfabetizao e Letramento

Nesse contexto de transformaes sociais, coube a Joo Ams Comnio ou simplesmente Comenius, pastor protestante, considerado o pai da pedagogia moderna, lanar, no sculo XVII, os fundamentos da escola que perdura at nossos dias, definindo a organizao do trabalho pedaggico com base nos elementos constituintes da produo manufatureira, j presentes na sociedade de seu tempo. (ALVES, 2001) Ao preconizar o princpio bem conhecido de ensinar tudo a todos, Comenius define em primeiro lugar o papel do professor. Nessa escola, no h mais lugar para o sbio, que inicia cada discpulo nas fontes do conhecimento aprofundado, mas o mestre capaz de promover a instruo sobre tudo pelo uso do mtodo que generaliza o conhecimento necessrio ao cidado comum. Tal como a manufatura, que abandona o arteso, conhecedor da arte de elaborar seu produto com maestria, e o substitui pelo trabalhador, que realiza tarefas parceladas no processo coletivo de trabalho, Comenius concebe a simplificao do trabalho do professor pelo emprego do manual didtico como instrumento do ensino. O livro didtico difere dos livros cientficos ao apresentar o conhecimento no com a profundidade das fontes originais, mas compendiado em frmulas e definies que introduzem o aprendiz nos primeiros passos da instruo cientfica. Nessa perspectiva, Comenius prope a cartilha de ensinar a ler, elaborada com a preocupao didtica de iniciao leitura, ilustrada com figuras ao lado das palavras, das slabas e das letras do alfabeto. Nada mais parecido com as cartilhas que perduraram ou ainda perduram atualmente nas nossas escolas. Um outro aspecto da escola de Comenius que cabe mencionar a instruo simultnea, ou seja, a classe heterognea, com os alunos realizando o aprendizado ao mesmo tempo, embora em graus e atividades diferenciadas. Trata-se da utilizao do mesmo princpio do trabalho coletivo manufatureiro e sua concomitante diviso de tarefas, que viabiliza o aumento da produo. Na escola, o ensino simultneo possibilita a realizao do princpio do ensinar a todos, embora sua realizao s tenha sido efetivamente alcanada por meio de difcil e lento esforo social, apresentando os primeiros resultados em meados do sculo XIX. Consagrada a organizao do trabalho pedaggico da escola moderna, em que com o professor e o livro didtico ensinam o conhecimento sistematizado para muitos, o aprendizado da leitura e escrita ocupa um lugar de destaque no processo que chamamos de ensino-aprendizagem.

12

O processo histrico do ensino e aprendizagem da leitura e da escrita

Texto complementarA instruo pblica e a Reforma Protestante(ALVES, 2001)

Comenius est na origem da escola moderna. A ele, mais do que a nenhum outro, coube o mrito de conceb-la. Nessa empreitada, foi impregnado pela clareza de que o estabelecimento escolar deveria ser pensado como uma oficina de homens; foi tomado pela convico de que a escola deveria fundar sua organizao tendo como parmetro as artes. Note-se que artes, segundo a acepo dominante poca em que viveu Comenius, abrangiam tambm as manufaturas. [] Ocorre que a manufatura, depois de ter-se apropriado da base tcnica do artesanato, representava a sua superao, pois, atravs da diviso do trabalho, havia decomposto o todo do ofcio medieval em suas operaes constitutivas; ao mesmo tempo, especializara no s os artfices em uma ou poucas dessas operaes, mas at mesmo os instrumentos de trabalho, que ganharam formas mais adequadas s operaes nas quais eram utilizadas. [] Logo, o educador morvio pressupunha uma organizao para a atividade de ensino no interior da escola que visava equipar-la ordem vigente nas manufaturas, onde a diviso do trabalho permitia que diferentes operaes, realizadas por trabalhadores distintos, se desenvolvessem de forma rigorosamente controlada, segundo um plano prvio e intencional que as articulava, para produzir mais resultados com economia de tempo, de fadiga e de recursos. [] A simplificao do trabalho didtico, tanto para o aluno como para o professor, ganhava destaque nas consideraes de Comenius, ao mesmo tempo em que a sala de aula comeava a ser tratada como um espao cujo domnio se deslocava do professor para o manual didtico. Na atividade de ensino passava a reinar o texto especializado, que exclua os antigos instrumentos de trabalho e submetia o professor ao seu frreo controle. O manual

13

Alfabetizao e Letramento

didtico, comportando toda a gama de suas especializaes, decorrentes dos diferentes momentos de escolarizao e das distintas reas de conhecimento, estreitou os limites do saber exigido do professor, pois, objetivamente, restringiu-os aos seus prprios limites. Assim, concretizou de uma forma evidente, tambm, a reproduo da diviso do trabalho, dentro do estabelecimento escolar, de um modo similar ao ocorrido anteriormente na manufatura.

Atividades1. Quais as caractersticas da organizao do trabalho pedaggico da escola atual perante as condies materiais e o trabalho social, prprios da nossa sociedade?

14

O processo histrico do ensino e aprendizagem da leitura e da escrita

2. Estabelea uma comparao entre os livros didticos utilizados atualmente na alfabetizao e as cartilhas. Ressalte caractersticas que expressam de fato transformaes significativas da prtica pedaggica.

3. Arrole argumentos a favor ou contra cada uma das formas de organizao do ensino que tm predominado na escola: ensino individualizado e ensino simultneo em classe.

Dicas de estudoRecomendamos a leitura da obra de: COMENIUS, Didtica magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985.

15

Alfabetizao ou letramento?A prtica pedaggica do aprendizado da leitura e da escrita por meio da cartilha perdurou durante o longo perodo que chamamos de ensino tradicional. Esse mtodo, centrado no domnio do cdigo, revelou-se suficiente dadas as condies histricas prprias do aprendizado da leitura, tais como o uso privilegiado da escrita (as cartas, os bilhetes, os registros de compra etc.) como recurso de comunicao entre interlocutores distantes, em razo da ausncia de outros meios tcnicos. Entretanto, o processo crescente de expanso e globalizao do capital, ao intensificar as relaes sociais recprocas de interdependncia entre sujeitos de classes sociais, comunidades, regies e pases diversos, produziu tambm novos processos de comunicao quanto aos seus meios e contedos. Trata-se de um processo comunicacional dotado de tamanha rapidez, de tal simultaneidade entre a produo e a recepo de grande nmero de informaes que passou a exigir novos patamares de leitura e de escrita, denominados pelos estudiosos de letramento. Segundo Soares (2003, p. 20), s recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que no basta apenas saber ler e escrever, preciso tambm saber fazer uso do ler e escrever, saber responder s exigncias de leitura e escrita que a sociedade faz continuamente. Para ampliar a concepo de letramento, recorremos s reflexes de Klein(2000, p. 11), que assim explica:No h dvida que o letramento , hoje, uma das condies necessrias para a realizao do cidado: ela o insere num crculo extremamente rico de informaes, sem as quais ele, inclusive, nem poderia exercer livre e conscientemente sua vontade [] o homem contemporneo afetado por outros homens, fatos e processos por vezes to distantes de seu cotidiano que somente uma rede muito complexa de informaes pode dar conta de situ-lo, minimamente, na teia de relaes em que se encontra inserido. Neste universo, to mais vasto e complexo, a escrita assume relevante funo, registrando e colocando ao seu alcance as informaes que podem esclarec-lo melhor.

Assim, podemos compreender que o processo educacional de acesso leitura e escrita modifica-se, pois o educando instado a inserir-se nas prticas sociais de leitura e escrita, ultrapassando a mera aquisio da tecnologia do ler e escrever (SOARES, 2003, p. 21). Em primeiro lugar, do ponto de vista da complexidade da interlocuo, faz-se necessrio um leitor capaz de apreender o significado dos

Alfabetizao e Letramento

discursos, interpretando os elementos histricos, cientficos e ideolgicos que o constituem. Para isso, precisa dominar os elementos de textualidade que constroem o mbito discursivo oral e escrito, como tambm os elementos materiais de sua codificao (letras e sons). Por outro lado, cabe salientar que os meios tecnolgicos, que viabilizam simultaneidade comunicao, conferem menor funo prtica escrita manual, dispensando o aprendizado de vrios contedos relativos ao domnio especfico do cdigo, como se procedia no passado no ensino sistematizado por meio das cartilhas. Em resumo, as mudanas apontadas implicam a adoo de novos contedos do ensino da leitura e da escrita, pois, enquanto os contedos relativos textualidade se tornam cada vez mais relevantes, alguns aspectos pertinentes ao cdigo perdem sua predominncia (KLEIN, 2000, p. 14). Entretanto, no que se refere alfabetizao, como momento inicial do processo educativo do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita, cabe enfatizar, ainda segundo Klein (2000, p. 41), que essa etapa se caracteriza pelo fato de desenvolver, juntamente com os contedos relativos textualidade (coeso, coerncia, unidade temtica, clareza, concordncia que o modelo tradicional de alfabetizao no levava em conta), tambm os contedos pertinentes codificao/decodificao (letras, slabas, famlias silbicas, direo da escrita, segmentao etc.). Por fim, como decorrncia da adoo de novos contedos dos processos educativos do ensino da leitura e da escrita, pressupe-se tambm novos processos, metodologias e estratgias para seu ensino-aprendizagem. Podemos concluir que compreender o desenvolvimento e as mudanas do processo do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita pressupe refletir sobre os determinantes histricos que produziram formas diferenciadas de organizao do trabalho pedaggico em momentos distintos. Tambm cabe examinar o processo social de comunicao, cujos avanos tecnolgicos criam necessidades prprias de produo de um leitor e de um escritor capaz de se apropriar e de interpretar as informaes que circulam na intensa rede de relaes que se estabelece na sociedade. Como decorrncia, cabe escola considerar a importncia e a necessidade de fundamentar sua prtica pedaggica numa clara concepo desses fenmenos sociais e de suas diferenas e relaes. Assim, o carter histrico da comunicao e do papel que a leitura e a escrita desempenham nesse contexto o ponto de partida para a formao do educador-alfabetizador, que pretende desempenhar18

Alfabetizao ou letramento?

sua funo docente no desenvolvimento de processos educativos de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita.

Definio de letramentoSegundo Soares (2003), enquanto a alfabetizao dedica-se ao ensinar/aprender a ler e a escrever, o letramento consiste no apenas em saber ler e escrever, mas ao cultivo das atividades de leitura e escrita que respondem s demandas sociais de exerccio dessas prticas. Tratam-se, portanto, de aes pedaggicas que, embora distintas, processam-se de forma complementar e simultnea, de modo que possam ensinar a ler e a escrever no contexto das prticas sociais da leitura e escrita, tornando-se o aluno ao mesmo tempo alfabetizado e letrado. Uma dificuldade que essa concepo de letramento apresenta de como diferenciar um alfabetizado de um letrado. Faz-se necessrio retomar o pressuposto j explicitado de que o letramento comporta a dimenso individual do domnio tcnico de ler e escrever desenvolvido no mbito da alfabetizao , e a dimenso cultural, com um conjunto de atividades sociais que envolvem a lngua escrita e seu uso segundo o padro das exigncias de determinado contexto social. Pautando-se nessa concepo, pode-se distinguir o mbito da aprendizagem da leitura e da escrita, que se refere aquisio das habilidades de ler e escrever, e o mbito que inclui a prtica dessas habilidades em atividades significativas para a formao cultural, cientfica e ideolgica do aprendiz.

Texto complementarO que letramento?(SOARES, 2003, p.15-18)

Letramento palavra recm-chegada ao vocabulrio de Educao e das Cincias Lingsticas: na segunda metade dos anos 1980, h cerca de apenas dez anos, portanto, que ela surge no discurso dos especialistas dessas reas. Uma das primeiras ocorrncias est no livro de Mary Kato, de 1986 (No Mundo da Escrita: uma perspectiva psicolingstica, Editora tica): a autora, logo no incio do livro (p. 7), diz acreditar que a lngua falada culta 19

Alfabetizao e Letramento

conseqncia do letramento. Dois anos mais tarde, em 1988, no livro Adultos No Alfabetizados: o avesso do avesso (Editora Pontes), Ieda Verdiani Tfouni, no captulo introdutrio, distingue alfabetizao de letramento: talvez seja esse o momento em que letramento ganha estatuto de termo tcnico no lxico dos campos da Educao e das Cincias Lingsticas. Desde ento, a palavra torna-se cada vez mais freqente no discurso dos especialistas, de tal forma que, em 1995, j figura em ttulo de livro organizado por ngela Kleiman: Os Significados do Letramento: uma nova perspectiva sobre a prtica social da escrita. [] Onde fomos busc-lo [esse vocbulo]? Trata-se, sem dvida, da verso para o portugus da palavra inglesa literacy. Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o sufixo cy, que denota qualidade, condio, estado, fato de ser. [] Ou seja, literacy o estado ou condio que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implcita neste conceito est a idia de que a escrita traz conseqncias sociais, culturais, polticas, econmicas, cognitivas, lingsticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivduo que aprende a us-la. Em outras palavras: do ponto de vista individual, o aprender a ler e escrever alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se alfabetizado, adquirir a tecnologia do ler e escrever e envolver-se nas prticas sociais de leitura e escrita tm conseqncias sobre o indivduo, e altera seu estado ou condio em aspectos sociais, psquicos, culturais, polticos, cognitivos, lingsticos. O estado ou a condio que o indivduo ou grupo social passam a ter, sob o impacto dessas mudanas, que designado literacy. [] Letramento , pois, o resultado da ao de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condio que adquire um grupo social ou um indivduo como conseqncia de ter-se apropriado da escrita.

Atividades1. Converse com alguns colegas sobre o filme Nenhum a menos ((Not one less) Dir: Zhang Yimou. Columbia Pictures, 1999.) e discutam questes como: interao da comunidade com a escola; importncia conferida ao domnio da leitura;20

Alfabetizao ou letramento?

compromisso da alfabetizadora e dos alunos com o aprendizado; procedimentos pedaggicos.

2. Anote as intervenes e argumentos e com os colegas redija um texto conjunto norteado pela pergunta: alfabetizao ou letramento?

21

A produo social da linguagem oral e escritaMaria Auxiliadora CavazottiA Educao Infantil que, primeiramente, dedica-se a cuidar da criana e as Sries Iniciais do Ensino Fundamental tm carter essencialmente pedaggico, cumprindo a funo social de proporcionar aos infantes o acesso ao conhecimento que lhes permite a apreenso da realidade historicamente produzida pelos homens de sua sociedade. Evidentemente, essa apreenso corresponde a nveis diferenciados de interao que o aprendiz estabelece com a realidade, elaborando sua compreenso de forma processual, pela via do ensino e da aprendizagem oferecidos pela escola. No que se refere reflexo sobre o processo pedaggico da aquisio da linguagem escrita, nos nveis escolares que correspondem Educao Infantil e s Sries Iniciais do Ensino Fundamental, faz-se necessrio explicitar, inicialmente, a produo social da linguagem oral e escrita, que fundamenta a sistematizao da apropriao/transmisso escolar. A histria humana tem seu pressuposto nos indivduos reais, na sua ao e nas condies materiais e concretas de vida por eles mesmos produzidas. Assim, o primeiro ato histrico, pelo qual os homens se distinguem dos animais, no o fato de pensar, mas o de produzir os seus prprios meios de existncia. A ao dos homens sobre a natureza, pelo trabalho, leva-os produo, ao mesmo tempo, dos seus meios de vida e de sua prpria vida material. A mo humana ela mesma rgo e produto do trabalho cria instrumentos que vo lhe dominar a natureza. Assim, em um processo de mtua transformao, no s os homens imprimem sobre a natureza as marcas de sua ao, humanizando-a, como tambm produz a si mesmo, humanizando-se. Dito de outra forma, ao produzir seus prprios meios de existncia, realiza uma forma humana de vida: produz tecnologia (artefatos, instrumentos); idias (crenas, conhecimentos, valores); mecanismos para elaborao das idias (planejamento, raciocnio, abstrao), distinguindo-se cada vez mais das outras espcies animais. Dessa maneira, o modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende dos meios j encontrados e que podem reproduzir, construindo assim a histria da humanidade.

Alfabetizao e Letramento

Ao buscar responder s suas necessidades nessa relao com a natureza, o homem supera os limites da situao imediata que o desafia, descobrindo propriedades nas coisas at ento desconhecidas: penetra na sua essncia, abstrai suas caractersticas e capta as relaes nas quais se insere, rompendo as fronteiras da experincia sensvel. Realiza e incorpora experincias e conhecimentos e, ainda, cria novas necessidades. Por seu turno, a complexidade crescente das atividades que precisa realizar para responder s necessidades criadas impe ao homem a exigncia de auxlio mtuo. Portanto, a produo da sua existncia se estabelece como relao social no sentido de que se faz imprescindvel a cooperao entre os semelhantes, quaisquer que sejam as condies, o modo e a finalidade das aes a serem empreendidas. O enfrentamento desse importante desafio de cooperao mtua se efetiva na produo da linguagem. Por meio da linguagem possvel organizar a atividade prtica coletiva, sistematizando e comunicando as informaes necessrias sua realizao. Sobretudo, a linguagem permite acumular as experincias socialmente realizadas, num processo de troca e transmisso da informao, pois possvel codific-las pela palavra. Por essa razo, as geraes seguintes podem dar continuidade ao processo de desenvolvimento das formas humanas de vida a partir do estgio j alcanado, sem voltar ao ponto de partida da gerao que a precedeu.

Produo da linguagem, produo da conscinciaPela linguagem, alm dos laos sociais serem consolidados e os conhecimentos acumulados e transmitidos, produzida a possibilidade da conscincia humana propriamente dita. A linguagem , pois, a conscincia real e prtica dos homens. Ao viabilizar a representao por meio da abstrao e generalizao das caractersticas do mundo exterior no pensamento, possibilita a passagem da conscincia sensvel conscincia racional, permite a transposio das operaes com objetos concretos para operaes mentais por meio de conceitos e representaes. Nessa perspectiva, a linguagem no s liberta o homem da sua subordinao ao concreto e ao imediato, permitindo-lhe operar na ausncia dos objetos pela ao de uma conscincia capaz de discernimento e abstrao, como ainda

24

A produo social da linguagem oral e escrita

responsvel juntamente com a atividade prtica pela prpria formao das faculdades que possibilitam a realizao das operaes mentais. Dessa concepo decorre o princpio de que tanto a linguagem como a conscincia no so faculdades naturais e inatas, mas resultado da ao que os homens realizam ao longo do processo histrico de produo social da existncia humana. Assim, nem a linguagem imutvel e acabada, nem os processos de abstrao e generalizao permanecem invariveis. Pelo contrrio, determinados pelo grau de desenvolvimento das relaes materiais e sociais do modo de produo da vida, apresentam-se de forma diversificada nos diferentes estgios da sociedade. Tendo em vista que a dimenso simblica da linguagem implica a possibilidade de realizao de processos mentais mais elaborados, o domnio cada vez mais amplo da linguagem tambm acarreta maiores possibilidades de apreenso do conhecimento historicamente acumulado, demandando, por seu turno, o desenvolvimento dos prprios processos mentais. Portanto, historicamente, a linguagem, inicialmente presa situao prtica e ao gesto, avanou em possibilidade de representao exigida pela produtividade gerada pela diviso social do trabalho at a construo de um sistema de cdigos capaz de transmitir as informaes mais abstratas. Esse esforo para emancipar a linguagem da situao concreta imediata, ampliando seu grau de abstrao, tem na linguagem escrita seu produto mais desenvolvido. Dessa forma, o texto escrito representao da representao no conta com elementos extraverbais (gestos, mmica, entonao) que possam vincul-lo situao prtica que lhe deu origem, de forma que toda informao se apoiar unicamente nos elementos prprios da escrita. Tal grau de abstrao determina o desenvolvimento correspondente das funes mentais superiores. Em decorrncia desse princpio, pode-se afirmar que privar o homem da possibilidade de domnio da lngua escrita implica subtrair-lhe a condio plena de interao sociocultural que lhe permite o acesso ao acervo de experincias (conhecimentos) codificadas em lngua escrita. Por conseguinte, implica tambm restringir as condies necessrias para o desenvolvimento das formas de pensamento mais elevadas, compatveis com os nveis mais avanados de conhecimento j produzidos pela sociedade.

25

Alfabetizao e Letramento

Texto complementarSobre o papel do trabalho na transformao do macaco em homem(ENGELS, 2004)

O trabalho a fonte de toda a riqueza, afirmam os economistas. Assim , com efeito, ao lado da natureza, encarregada de fornecer os materiais que ele converte em riqueza. O trabalho, porm, muitssimo mais do que isso. a condio bsica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que, at certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o prprio homem. H muitas centenas de milhares de anos, numa poca ainda no estabelecida em definitivo, daquele perodo do desenvolvimento da Terra que os gelogos denominam tercirio, provavelmente em fins desse perodo, vivia em algum lugar da zona tropical talvez em um extenso continente hoje desaparecido nas profundezas do oceano ndico uma raa de macacos antropomorfos extraordinariamente desenvolvida. [] de supor que, como conseqncia direta de seu gnero de vida, devido ao uso das mos, ao trepar, tinham que desempenhar funes distintas das dos ps, esses macacos foram-se acostumando a prescindir de suas mos ao caminhar pelo cho e comearam a adotar cada vez mais uma posio ereta. Foi o passo decisivo para a transio do macaco em homem. [] As funes, para as quais nossos antepassados foram adaptando pouco a pouco suas mos durante milhares de anos em que se prolongam o perodo de transio do macaco em homem, s puderam ser, a princpio, funes sumamente simples. [] Antes de a primeira lasca de slex ter sido transformada em machado pela mo do homem, deve ter transcorrido um perodo; e tempo to largo que, em comparao com ele, o perodo histrico por ns conhecido torna-se insignificante. Mas havia sido dado o passo decisivo: a mo era livre e podia agora adquirir cada vez mais destreza e habilidade; e essa maior flexibilidade adquirida transmitia-se por herana e aumentava de gerao em gerao.

26

A produo social da linguagem oral e escrita

Vemos, pois, que a mo no apenas o rgo do trabalho; tambm produto dele. Unicamente pelo trabalho, pela adaptao a novas e novas funes, pela transmisso hereditria do aperfeioamento especial mais amplo, tambm pelos ossos; unicamente pela aplicao sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funes novas e cada vez mais complexas foi que a mo do homem atingiu esse grau de perfeio que pode dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, s esttuas de Thorwaldsen e msica de Paganini. [] Como j dissemos, nossos antepassados simiescos eram animais que viviam em manadas; evidentemente, no possvel buscar a origem do homem, o mais social dos animais, em antepassados imediatos que no vivessem congregados. Em face de cada novo progresso, o domnio sobre a natureza que tivera incio com o desenvolvimento da mo, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do homem, levando-o a descobrir constantemente nos objetos novas propriedades at ento desconhecidas. Por outro lado, o desenvolvimento do trabalho, ao multiplicar os casos de ajuda mtua e de atividade conjunta, e ao mostrar assim as vantagens dessa atividade conjunta para cada indivduo, tinha que contribuir forosamente para agrupar ainda mais os membros da sociedade. Em resumo, os homens em formao chegaram a um ponto em que tiveram necessidade de dizer algo uns aos outros. A necessidade criou o rgo: a laringe pouco desenvolvida do macaco foi se transformando, lenta mas firmemente, mediante modulaes que produziam por sua vez modulaes mais perfeitas, enquanto os rgos da boca aprendiam pouco a pouco a pronunciar um som articulado aps outro. Primeiro o trabalho, e depois dele e com ele a palavra articulada, foram os dois estmulos principais sob cuja influncia o crebro do macaco foi-se transformando gradualmente em crebro humano que, apesar de toda sua semelhana, supera-o consideravelmente em tamanho e perfeio. E medida que se desenvolvia o crebro, desenvolviam-se tambm seus instrumentos mais imediatos: os rgos dos sentidos. Da mesma maneira que o desenvolvimento gradual da linguagem est necessariamente acompanhado do correspondente aperfeioamento do rgo do ouvido, assim tambm o desenvolvimento geral do crebro est ligado ao aperfeioamento de todos os rgos dos sentidos. O desenvolvimento do crebro e dos sentidos a seu servio, a crescente clareza de conscincia, a capacidade de abstrao e de discernimento cada

27

Alfabetizao e Letramento

vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento. Quando o homem se separa definitivamente do macaco, esse desenvolvimento no cessa de modo algum, mas continua, em grau diverso e em diferentes sentidos entre os diferentes povos e as diferentes pocas, interrompido mesmo s vezes por retrocessos de carter local ou temporrio, mas avanando em seu conjunto a grandes passos, consideravelmente impulsionado e, por sua vez, orientado em um determinado sentido por um elemento novo que surge com o aparecimento do homem acabado: a sociedade.

AtividadesAgora que voc j estudou esta unidade, reflita sobre a concepo social da produo da linguagem e elabore uma sntese dos conceitos que a fundamentam. Voc pode encontrar o texto completo de Friederich Engels na internet e fazer uma leitura com o objetivo de aprofundar sua reflexo.

28

A produo social da linguagem oral e escrita

29

A relao entre aprendizagem da lngua escrita e desenvolvimento do pensamentoMaria Auxiliadora CavazottiO processo inicial de apropriao da lngua escrita assume, nos primeiros nveis de educao escolar, um papel fundamental ao instrumentalizar a criana para a insero na cultura letrada. Alm disso, cria as condies de operaes mentais do aprendiz, que o capacitam apreenso progressiva dos conceitos mais elaborados, que resultam no desenvolvimento das formas sociais de produo de sua sociedade. Assim, a apropriao da lngua escrita significa mais do que apreender um instrumento de comunicao: sobretudo a possibilidade de construir estruturas de pensamento capazes de realizar abstraes necessrias apreenso da realidade concreta. Para iluminar essa importante questo, podemos recorrer reflexo de Vygostsky acerca da relao entre aprendizado escolar e desenvolvimento, tomando como paradigma a aquisio da linguagem:Propomos que um aspecto essencial do aprendizado o fato de ele criar a zona de desenvolvimento proximal; ou seja, o aprendizado desperta vrios processos internos de desenvolvimento, que so capazes de operar somente quando a criana interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperao com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisies do desenvolvimento independente da criana. Desse ponto de vista, o aprendizado no desenvolvimento; entretanto, o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e pe em movimento vrios processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossveis de acontecer. Assim, o aprendizado um aspecto necessrio e universal do processo de desenvolvimento das funes psicolgicas culturalmente organizada e especificamente humanas. (VYGOTSKY, 2002, p. 117-118)

Pode-se concluir, portanto, que a formao e o desenvolvimento das funes e faculdades psquicas superiores ocorrem sob a forma de apropriao do contedo da experincia humana, generalizado e fixado nos produtos materiais das atividades realizadas ou em categorias conceituais sob a forma verbal. Ao interagir com o mundo objetivo, j no mais natural, mas transformado e marcado pela atividade humana, a criana se apropria, pela mediao dos adultos que a cercam, dessas categorias conceituais que organizam e explicam o mundo humanizado.

Alfabetizao e Letramento

Processo inicial de aquisio da escritaEm decorrncia da concepo de conhecimento, de linguagem e de aprendizagem explicitadas, ressalta-se que o objeto do processo de alfabetizao a prpria lngua portuguesa, em razo do que se toma como elemento norteador do ensino-aprendizagem o texto oral e escrito, enquanto unidade de sentido da lngua. importante lembrar, j de incio, que o texto no mero pretexto para apresentao da palavra-chave ou de famlias silbicas, letras e fonemas, mas trata-se de um contexto de interao no qual os elementos textuais (palavras, slabas etc.), que portam relaes entre si, revestem-se de sentido. Para tanto, preciso que o texto tenha significado para a criana, que configure um momento real de uso da linguagem. Alm disso, a apresentao do texto para a criana dever ser feita de forma a garantir sua compreenso global. Somente quando o aluno tem essa compreenso torna-se possvel destacar frases e palavras ento saturadas de sentido para a sistematizao do domnio da leitura e da escrita. Assim, por intermdio de palavras reconhecidas no texto que se iniciar o estudo das relaes que organizam o sistema grfico. Essa perspectiva do processo de alfabetizao exige que se explicite ainda o papel do professor, definindo-se qual a sua interferncia possvel e necessria no processo. Como vimos, a apropriao do conhecimento socialmente produzido se efetiva por meio da interao da criana com os adultos mais experientes, capazes de inserir a criana no universo dos objetos de conhecimento. Como nos ensina Vygotsky (2002, p. 11): o aprendizado humano pressupe uma natureza social especfica e um processo atravs do qual as crianas penetram na vida intelectual daqueles que a cercam. No caso da lngua escrita, importante a participao decisiva do professor no processo pedaggico enquanto algum que domina esse objeto de conhecimento e pode estabelecer a mediao necessria entre a criana e ele. preciso considerar, ainda, que o processo de aquisio da escrita j teve incio para as crianas muito antes de sua entrada na escola. Assim, muitas delas desde cedo esto em contato com a escrita pela interao com pessoas que lem e escrevem e pela manipulao de material escrito. Assim, se por um lado relevante evidenciar que a criana interage sobre esse objeto de conhecimento, elaborando hipteses, estabelecendo relaes, por outro lado necessrio ressaltar que no basta proporcionar criana contato com o material escrito para que ela desenvolva naturalmente um processo de conhecimento da lngua escrita.32

A relao entre aprendizagem da lngua escrita e desenvolvimento do pensamento

Como j vimos, a produo da linguagem, quer oral, quer escrita, no um processo natural, mas resultado de um lento esforo de produo dos homens. Da mesma forma, sua apropriao tambm no natural ou espontnea: exige a insero do aluno nessa realidade histrico-cultural pela mediao do professor capaz de desenvolver um processo pedaggico que comporta encaminhamentos metodolgicos bem-definidos.

Texto complementarZona de desenvolvimento proximal: uma nova abordagem(VYGOTSKY, 2002)

Um fato empiricamente estabelecido e bem conhecido que o aprendizado deve ser combinado de alguma maneira com o nvel de desenvolvimento da criana. Por exemplo, afirma que seria bom que se iniciasse o ensino da leitura, escrita e aritmtica numa faixa etria especfica. S recentemente, entretanto, tem-se atentado para o fato de que no podemos limitar-nos meramente determinao de nveis de desenvolvimento se o que queremos descobrir as relaes reais entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizado. Temos que determinar pelo menos dois nveis de desenvolvimento. O primeiro nvel pode ser chamado de nvel de desenvolvimento real, isto , o nvel de desenvolvimento das funes mentais da criana que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento j completados. Quando determinamos a idade mental de uma criana usando testes, estamos quase sempre tratando do nvel de desenvolvimento real. [] Quando se demonstrou que a capacidade de crianas com iguais nveis de desenvolvimento mental, para aprender sob a orientao de um professor, variava enormemente, tornou-se evidente que aquelas crianas no tinham a mesma idade mental e que o curso subseqente de seu aprendizado seria, obviamente, diferente. Essa diferena entre doze ou entre nove e oito (anos), o que chamamos a zona de desenvolvimento proximal. Ela a distncia entre o nvel de desenvolvimento real, que se costuma determinar33

Alfabetizao e Letramento

atravs da soluo independente de problemas, e o nvel de desenvolvimento potencial, determinado atravs da soluo de problemas sob a orientao de um adulto ou em colaborao com companheiros mais capazes. [] Em crianas normais, o aprendizado orientado para os nveis de desenvolvimento que j foram atingidos ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento global da criana. Ele no se dirige para um novo estgio do processo de desenvolvimento, mas, ao contrrio, ao invs disso, vai a reboque desse processo. Assim, a noo de zona de desenvolvimento proximal capacita-nos a propor uma nova frmula, a de que o bom aprendizado somente aquele que se adianta ao desenvolvimento. [] Resumindo, o aspecto mais essencial de nossa hiptese a noo de que os processos de desenvolvimento no coincidem com o processo de aprendizado. Ou melhor, o processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrs do processo de aprendizado; desta seqenciao resultam, ento, as zonas de desenvolvimento proximal. Nossa anlise modifica a viso tradicional, segundo a qual, no momento em que a criana assimila o significado de uma palavra, ou domina uma operao tal como a adio ou a linguagem escrita, seus processos de desenvolvimento esto basicamente completos. Na verdade, eles apenas comearam. A maior conseqncia de se analisar o processo educacional desta maneira mostrar que, por exemplo, o domnio inicial das quatro operaes aritmticas fornece a base para o desenvolvimento subseqente de vrios processos internos altamente complexos no pensamento da criana.

AtividadesFaa uma leitura do livro de Vygotsky e elabore um resumo, destacando os conceitos do autor que fundamentam a relao entre a aprendizado da criana e o seu pensamento. Lembre-se de que se trata de leitura indispensvel para o professor alfabetizador.

34

A relao entre aprendizagem da lngua escrita e desenvolvimento do pensamento

35

Textualidade, cdigo e meios de produo da escritaMaria Auxiliadora CavazottiConceber a escrita em uma perspectiva social implica, como vimos, entend-la como produo humana e compreender a forma que ela assume sob determinada organizao social e quais funes cumpre. Por essa razo, o ensino da lngua escrita nem mesmo no perodo inicial de sua aprendizagem, que chamamos de alfabetizao se reduz ao mero domnio do cdigo, pois este apenas um instrumento de realizao de determinadas funes, e como tal no esgota todas as possibilidades sociais da escrita. No ensino dito tradicional, a concepo de alfabetizao est orientada pelo princpio de que o aprendiz pode ser considerado alfabetizado quando reconhece o alfabeto, escreve o nome ou capaz de ler e escrever textos simples. A prtica pedaggica decorrente dessa concepo limita-se, portanto, ao ensino dos elementos bsicos do cdigo. Nesse sentido, a alfabetizao se reduz ao reconhecimento das letras e do seu valor fontico, o que permite, e at obriga, a partio da linguagem em seus elementos materiais mais simples: slabas, letras e fonemas. Entretanto, atualmente, h um consenso quanto superao desse conceito limitado e s se considera alfabetizado quem capaz de utilizar a escrita conforme sua vontade e necessidade, tanto veiculando seu prprio discurso quanto interpretando o discurso escrito de outrem, inclusive identificando sua intencionalidade. Dessa concepo decorrem exigncias pedaggicas no consideradas pelos ditos mtodos tradicionais de alfabetizao, os quais se centravam exclusivamente no domnio bsico do cdigo.

Alfabetizao e Letramento

Crtica aos mtodos tradicionais de alfabetizaoFazem parte da concepo tradicional de alfabetizao que se configura pelo uso da cartilha como sistematizadora dos procedimentos selecionados os mtodos orientados, basicamente, pelo princpio do processo ou de sntese ou de anlise para chegar codificao/decodificao dos elementos da escrita. No primeiro grupo, situam-se os mtodos fnicos e silbicos, conhecidos como sintticos precisamente porque partem das menores unidades da lngua. O outro conjunto, o dos mtodos analticos, pretende superar os problemas que se verificam na aprendizagem por mtodos sintticos e inicia o processo de alfabetizao pela palavra ou pela frase ou at mesmo por uma histria. Nesse caso, apresenta s crianas uma palavra-chave, que pode ser escolhida aleatoriamente ou retirada de uma frase ou histria, e estudam-se as slabas e letras que a compem. A crtica aos procedimentos do mtodo analtico cabe, em primeiro lugar, ao fato de que o texto tomado como mero pretexto para a apresentao da palavra-chave ainda que significativa para a criana na tentativa de motivao para seu estudo, em detrimento do texto concebido como uma unidade de sentido. Por outro lado, supe-se que a criana est alfabetizada quando conhece o conjunto de famlias silbicas. preciso assinalar, por fim, o fato de que comum, ainda, a utilizao de ambos os procedimentos, sinttico e analtico, na prtica pedaggica denominada mtodo misto. Embora, primeira vista, os procedimentos sintticos e analticos de alfabetizao paream radicalmente opostos, tais mtodos tm em comum o privilegiamento do domnio do sistema grfico em detrimento do contedo discursivo que se materializa nesse sistema. Por essa razo, elimina-se a dimenso mais importante da lngua escrita: sua significao construda na produo social e histrica da vida dos homens e reconstruda no processo de interao verbal entre seus falantes. Ora, a palavra s suscita significao quando portadora da sntese das experincias acumuladas pelas geraes anteriores de que o falante se apropria e reconstri num novo contexto significativo. Ao reconstruir a significao da palavra no contexto do texto, o falante recupera a rede semntica que caracteriza e qualifica o objeto e explicita as possveis relaes em que ele se insere. Assim, por exemplo, ao dizer aucareiro, o falante estar embutindo em uma palavra toda uma srie de conceitos que se formaram ao longo da histria dos38

Textualidade, cdigo e meios de produo da escrita

homens. No caso, aucareiro designa, por generalizao, uma srie de objetos; indica, ainda, que o objeto se relaciona com uma substncia o acar; informa sobre seu carter instrumental serve para e insere o objeto na categoria de continente contm algo. Por outro lado, se a palavra tomada, no contexto do texto, em uma significao no apenas literal, mais rica ainda a rede semntica que o falante constri. Nesse caso, alm da representao construda, ele a reconstri, inserindo-a em outra rede de significao. Ou seja, lana mo de duas representaes semnticas distintas e estabelece entre elas relaes analgicas possveis. A expresso cada macaco no seu galho um bom exemplo dessa construo verbal, pois estabelece uma elaborada rede de relaes conceituais, que contm, ao mesmo tempo, a significao literal das palavras macaco, galho, cada e a significao de duas situaes distintas: um macaco em cada galho. Essa ltima formulao contm o sentido de respeito pelo espao do outro; do profissional na funo que lhe prpria e respeitando a rea do outro. Enfim, a analogia une as duas situaes na formulao do resultado desastroso da invaso do espao alheio. Ora, esse conjunto de significaes somente possvel de ser elaborado no texto. A palavra isolada, embora sntese de uma rica rede semntica, portadora dos limites da literalidade, sem que possa realizar o movimento relacional mais amplo (KLEIN, SCHAFASCHEK, 1990, p. 37). Nessa perspectiva, se a palavra isolada no garante a apropriao das possibilidades amplas de significao, o que dizer, ento, da slaba e da letra? Efetivamente, se a lngua significao, cuja representao se materializa nos sons e nas letras, o que relevante na alfabetizao a apropriao do cdigo escrito enquanto veculo de significao. Dessa forma, desloca-se a nfase do aspecto material grfico-sonoro da lngua para a constituio de sentido, para a dimenso argumentativa da linguagem, para o processo de interao verbal. Nesse caso, a alfabetizao supera a reduo ao mero domnio do cdigo e se configura como um processo de aquisio de uma forma particular de linguagem, dotada de significao. Essa concepo se fundamenta no princpio de que, em lugar de um todo uniforme e acabado, regulado por regras fixas, a lngua o prprio processo dinmico de interao verbal, oral ou escrito, no qual interlocutores instituem o sentido do discurso. Assim, analisar a palavra plena de significado requer apreend-la enquanto interlocuo, no processo de interao verbal que se institui no contexto mais amplo do texto. Esses fundamentos permitem afirmar que o processo de alfabetizao no pode limitar-se ao reconhecimento dos elementos materiais da escrita, centran39

Alfabetizao e Letramento

do-se, assim, no domnio do cdigo escrito, embora este constitua um dos eixos importantes do processo. Impe-se, pelo contrrio, tomar a prpria lngua como objeto do processo de alfabetizao. Para tanto, o elemento norteador dos procedimentos alfabetizadores o prprio texto oral e escrito, enquanto unidade de sentido da lngua, no interior do qual a palavra, a slaba e a letra ganham seu contexto.

A prtica pedaggica do ensino da lngua escrita que articula textualidade, cdigo e meios de produo da escritaA reflexo anteriormente desenvolvida aponta para a questo de que o ensino centrado na cartilha limitador porque exclui do ensino da lngua escrita o estudo das relaes textuais. O esforo de superao dessa lacuna, incorporando tais contedos prtica pedaggica da alfabetizao e enfatizando o trabalho com o texto como eixo norteador do processo, significou considervel avano. Entretanto, o embate entre as limitaes do ensino centrado na cartilha e as propostas de trabalho com o texto abriram um novo flanco de equvocos no processo de alfabetizao. Com a preocupao de suplantar o ensino da cartilha, muitas propostas de alfabetizao passaram a enfatizar as questes da gramtica textual, secundarizando as atividades de codificao/decodificao. Trata-se de outra tendncia reducionista, pois, ao incorporar os contedos da discursividade, secundarizaram-se os recursos e princpios articuladores do cdigo da escrita, chegando-se, at mesmo, a abandon-los, deixando-se que o aluno os descubra por si mesmo. Essa uma viso problemtica porque o cdigo constitui, efetivamente, um aspecto fundamental da escrita. Assim, nem cabe reduzir o ensino da escrita ao domnio bsico do cdigo, limitando as condies de produo do texto; nem comporta eliminar as atividades de codificao/decodificao, pois tambm so elementos necessrios produo textual. A tentativa de eliminar essas atividades revela uma compreenso que desconsidera a especificidade da alfabetizao, vendo-a como um processo absolu-

40

Textualidade, cdigo e meios de produo da escrita

tamente indistinto de outros momentos de aprendizado da escrita. Se, por um lado, o aprendizado da escrita no chamado perodo de alfabetizao contm elementos comuns ao processo genrico de aprendizagem da lngua escrita sobretudo no que diz respeito aos contedos da textualidade , por outro, o domnio dos princpios gerais da codificao/decodificao requerem, neste perodo, procedimentos especiais, configurando uma especificidade da alfabetizao. Desse modo, a alfabetizao, enquanto momento inicial do domnio da escrita, caracteriza-se por desenvolver simultaneamente os contedos relativos textualidade e os contedos pertinentes codificao/decodificao. Nesse sentido, incorpora sua prtica pedaggica os contedos gerais da gramtica textual (coeso, coerncia, unidade temtica, clareza, concordncia, entre outros) e, tambm, os contedos bsicos do cdigo da escrita alfabtica (letras, slabas, famlias silbicas, direo da escrita, segmentao etc.). No que se refere ao cdigo, cabe enfatizar que a alfabetizao requer estratgias especficas para seu ensino, propondo atividades de sistematizao que desenvolvam contedos relativos aos recursos do cdigo e seus princpios organizadores. Podemos concluir reafirmando a necessidade de superar as concepes reducionistas que limitam a alfabetizao apenas ao domnio do cdigo ou que, ao contrrio, desconsideram a necessidade de procedimentos de sistematizao para esse domnio. Assim, pode-se afirmar a compreenso de que a alfabetizao constitui um momento do ensino-aprendizagem da lngua escrita em que ambos os campos de contedo necessitam de desenvolvimento sistematizado, norteado por um objetivo mais amplo que a compreenso das funes sociais do texto escrito. O ensino da lngua escrita, em qualquer nvel, tambm no perodo da alfabetizao, tem por objetivo produzir um leitor/escritor competente portanto, ressaltando-se que os recursos discursivos podem ser aprimorados indefinidamente, e que os contedos que deles derivam devem ser abordados desde o incio da alfabetizao, embora se estendam ao longo de toda a formao escolar do aluno na Educao Bsica. Por outro lado, a aquisio bsica do cdigo configura um rol de conhecimentos cujo domnio tem lugar no incio do ensino-aprendizagem da lngua escrita, que chamamos de alfabetizao, contendo, portanto, determinado grau de especificidade, mas que no se distingue, de modo absoluto, do processo geral de aprendizado da escrita.

41

Alfabetizao e Letramento

Texto complementarA respeito de alguns fatos do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianas na alfabetizao(CAGLIARI, 1998, p. 65-69)

Alunos que so submetidos a um processo de alfabetizao, seguindo o mtodo das cartilhas (com livro ou no), so alunos que so expostos exclusivamente ao processo de ensino. O mtodo ensina tudo, passo a passo, numa ordem hierarquicamente estabelecida, do mais fcil para o mais difcil. O aluno, seja ele quem for, parte de um ponto inicial zero, igual para todos, e vai progredindo atravs dos elementos j dominados, de maneira lgica e ordenada. A todo instante, so feitos testes de avaliao (ditados, exerccios estruturais, leitura perante classe), para que o professor avalie se o aluno acompanha ou se ficou para trs. Neste ltimo caso, tudo repetido de novo, para ver se o aluno, desta vez, aprende. Se ainda assim no aprender, repete-se mais uma vez, remanejam-se os alunos atrasados para uma classe especial, para no atrapalharem os que progrediram, at que o aluno, fora de ficar reprovado, desista de estudar, julgando-se incapaz. E a escola lamenta a chance que a criana teve e no soube aproveitar (sic!). O mtodo das cartilhas no leva em considerao o processo da aprendizagem. Quando diz que faz a verificao da aprendizagem atravs de ditados, provas etc., na verdade no est verificando se o aluno aprendeu ou no, mas se o aluno sabe responder ao que se pergunta, reproduzir um modelo que lhe foi apresentado, demonstrar que o professor ensinou direito. O que se passa na mente do aluno, as razes pelas quais ele faz ou deixa de fazer algo so coisas que o mtodo no permite que o aluno manifeste. Um bom trabalho de alfabetizao precisa levar em conta o processo de ensino e de aprendizagem de maneira equilibrada e adequada. O professor tem uma tarefa a realizar em sala de aula e no pode ser um mero espectador do que faz o aluno ou simples facilitador do processo de apren42

Textualidade, cdigo e meios de produo da escrita

dizagem, apenas passando tarefas. Cabe a ele ensinar tambm e, assim, ajudar cada aluno a dar um passo adiante e progredir na construo de seus conhecimentos. Com as novas idias do construtivismo, alguns professores tm levado os trabalhos da alfabetizao para o extremo oposto ao das cartilhas, tambm com graves conseqncias para alguns alunos. o caso absurdo do professor que pretende tirar todos os conhecimentos a partir do aluno e, para tanto, acha que sua tarefa no a de ensinar, mas, apenas, a de promover situaes para o aluno fazer algo. Tudo o que o aluno faz valorizado mesmo que se constate que ele comea a andar em crculos e no consegue ir alm do que faz na esperana de que, um dia, ele descubra a soluo de seu problema. Isto pode demorar demais e o aluno pode se ver ridicularizado pelos seus colegas, perturbado pelos pais, quando no acontece, para sua grande surpresa, um convite por parte da escola para ele se retirar ou ir para uma classe de alunos de seu nvel. Muitos eufemismos e hipocrisias. No extremo, por exemplo, algumas classes, estudando algo escrito, se parecem com um grupo de pessoas completamente desnorteadas diante do sistema de escrita; como turistas curiosos vendo peas de um museu: todos do palpites e no se constri nada. A escola tem de ser diferente: como o professor conhece o sistema de escrita que usamos (e alguns alunos conhecem alguns de seus aspectos), a escola deve dispor desses conhecimentos para ajudar quem no sabe. No s o professor que um mediador entre uma atividade e um aluno que aprende, mas os prprios alunos podem ser mediadores uns dos outros, quando trabalham juntos e compartilham conhecimentos. Deixar o aluno construir seus conhecimentos fundamental como atividade prpria do aluno. Ensin-lo, ajud-lo a progredir tambm fundamental como atividade do professor que d a razo de ser de uma escola. Se for apenas para constatar o que cada um faz na vida, no preciso escola.

Atividades1. Faa uma pesquisa nas escolas, no rgo local da Secretaria de Educao e junto a professores, buscando recuperar informaes sobre os mtodos de alfabetizao:43

Alfabetizao e Letramento

mtodos de marcha sinttica; mtodos de marcha analtica; mtodos fnicos ou silbicos; mtodos globais; mtodos mistos; mtodos autodenominados construtivistas. 2. Organize as informaes, sistematizando dados como nome do mtodo, nome do seu criador ou inspirador, material didtico utilizado, cartilha ou livro didtico em que se apia, fundamentos que proclama, e ainda outras caractersticas que achar relevantes. No se esquea de classific-lo nos conjuntos de mtodos assinalados acima, evidenciando suas diferenas e semelhanas. Se for necessrio, crie outras classificaes, desde que fundamentadas.

44

Textualidade, cdigo e meios de produo da escrita

45

As quatro prticas da alfabetizaoMaria Auxiliadora CavazottiAfirmar que o processo de alfabetizao centrado no trabalho conjunto com o texto e o estudo do cdigo implica a compreenso de alguns pressupostos relativos ao ensino da lngua escrita, em razo de que esses princpios norteiam as quatro prticas pedaggicas da alfabetizao, a saber: leitura e interpretao; produo de textos orais e escritos; anlise lingstica; sistematizao do cdigo. O trabalho permanente com textos, baseado nas quatro prticas articuladas acima citadas, permite que em cada nova situao discursiva se repitam os fundamentos da lngua escrita, explicitando o sentido de cada um de seus recursos. Dessa forma, o aluno passa a ter reiteradas oportunidades de rever o mesmo contedo, sob enfoques diferentes, num processo gradativo, mas no fragmentado. Por outro lado, a compreenso gradativa dos fundamentos da lngua permite uma avaliao processual em que o que conta so os fundamentos de que o aluno se apropriou e no os erros que cometeu. Vamos ler o que nos diz Klein (2003, p. 34-38) sobre a leitura e a alfabetizao.

Leitura e interpretaoA leitura dever contemplar uma tipologia variada de textos: informativos, narrativos, narrativo-descritivos, normativos, dissertativos, de correspondncia, textos argumentativos, literrios, em prosa e em verso, textos ldicos, textos didticos, textos publicitrios, entre outros, buscando promover o conhecimento da funo social e dos mecanismos constitutivos de cada tipo. A quantidade das prticas de leitura e a qualidade dos textos oferecidos aos alunos constituem regra bsica do ensino da lngua escrita. Entretanto, necessrio observar duas situaes diferentes para essa prtica: leituras de pura fruio, sem a interveno do professor, e leitu-

Alfabetizao e Letramento

ras com interveno pedaggica. No primeiro caso, importante que o professor disponibilize para a classe vrias opes de textos (livros de histria, poesia, crnica, livros informativos, jornais e revistas, histria em quadrinhos), promova um clima agradvel e incentive os alunos explorao desses textos sem, no entanto, fazer qualquer tipo de cobrana sobre a leitura realizada. Desta forma, pretende-se produzir intimidade com o material escrito e despertar o gosto pela leitura. No outro caso, a leitura estratgia para ensinoaprendizagem; por esta razo, a escolha do texto estar minimamente determinada pelos contedos que o professor deseja sistematizar, seja enquanto leitura oral, seja enquanto interpretao, ou ainda como referncia para o estudo dos contedos relativos ao grfico ou s relaes textuais. Nos momentos iniciais do processo de alfabetizao, a leitura ser feita, pelo professor, para os alunos. medida que estes forem dominando a decodificao, o professor ir transferindo-lhes progressivamente esta atividade, at que eles tenham condies de realiz-la autonomamente. Nas atividades de leitura, o professor trabalhar aspectos da funo social do texto, sua interpretao, anlise lingstica e decodificao. Nas atividades de interpretao, fundamental superar o nvel superficial que se caracteriza pela simples localizao de informaes ou reconhecimento do enredo e proceder explicitao do tema propriamente dito, do contedo das entrelinhas, das posies e intenes do autor, bem como desmontar e desenvolver a crtica aos contedos ideolgicos porventura presentes no texto. Em outras palavras, necessrio extrair do texto todas as conseqncias possveis.

Produo de textosA produo de textos pode envolver desde a simples denominao de elementos do desenho do prprio aluno, at relatos que supe textos narrativos e narrativos-descritivos, textos informativos, de correspondncia etc., at textos dissertativos. A composio poder ser individual ou coletiva. No incio do processo de alfabetizao quando os alunos ainda no dominam minimamente a escrita o texto ser produzido oralmente pelos alunos e transposto para escrita pelo professor. Progressivamente o professor vai transferindo essa atividade para os alunos, medida que eles vo evoluindo nas suas tentativas de escrita.

48

As quatro prticas da alfabetizao

Anlise lingsticaA anlise lingstica uma atividade paralela s atividades de Leitura e Produo de Textos. Essa prtica objetiva apreender os mecanismos de constituio de sentido do texto, tais como, concordncia, regncia, organizao, ambigidade, clareza, argumentao, entre outros. A atividade de reescrita do texto a forma mais fecunda de desenvolver a anlise lingstica, uma vez que apreende contextualmente esses mecanismos.

Sistematizao para o domnio do cdigoEsta prtica, especfica do processo de alfabetizao, tem sido atualmente ignorada por muitos professores, retardando ou at mesmo invibializando a aquisio da escrita. No entusiasmo da crtica aos mtodos de cartilha, que se sustentavam na memorizao de famlias silbicas e que ignoravam completamente os elementos textuais, tais como coeso e coerncia, acabou-se por ignorar ou at mesmo proibir intencionalmente qualquer trabalho especfico com as letras, com as slabas e, sobretudo, com as malfadadas famlias silbicas. Assim, se a alfabetizao no pode estar assentada na montona repetio das famlias silbicas segundo a proposio das cartilhas, tambm no possvel realiz-la sem uma abordagem das letras e slabas que so afinal, o contedo grfico, juntamente com os sinais diacrticos. Evidentemente as prticas anteriormente descritas: leitura, produo de texto e anlise lingstica contribuem para a aquisio do grfico. No so, entretanto, suficientes. necessrio que o professor desenvolva atividades especficas que auxiliem os alunos a compreenderem as relaes entre letras e fonemas: percebendo a existncia de relaes permanentes, cruzadas e arbitrrias; identificando as letras e seus diferentes valores fonticos, reconhecendo a exigncia de uma nica forma de grafia para uma dada palavra, no obstante a variedade de letras que possam representar alguns de seus fonemas etc. Para tanto, prope-se que, partindo de uma palavra j identificada num texto trabalhado, se desenvolvam atividades variadas de comparao grfico-fontica com outras palavras, bem como atividades de identificao de outros vocbulos por meio de decomposio e de combinao, por exemplo, para domnio dos padres silbicos. Os jogos so a forma mais interessante de desenvolvimento dessas atividades, que tem a finalidade de49

Alfabetizao e Letramento

promover a repetio necessria consolidao do aprendizado, de forma ldica e que enseje o esforo de manter o interesse e a ateno necessrios ao aprendizado.

AtividadesQuestione alguns professores alfabetizadores a respeito das prticas de alfabetizao acima explicitadas. Com apoio no estudo desta unidade, elabore um texto desenvolvendo uma anlise crtica das respostas obtidas.

50

As quatro prticas da alfabetizao

51

Leitura e interpretaoMaria Auxiliadora CavazottiA proposta de alfabetizao pressupe o desenvolvimento da prtica de leitura como forma de produo de sentido, por meio da interao do leitor ativo com o texto. Ler, portanto, dialogar com o texto, estabelecendo interlocuo significativa, ou seja, no apenas decodificao de letras. As crianas pequenas, que ainda no sabem ler a lngua escrita, mantm contato com material grfico presente no ambiente cotidiano onde vivem pinturas, sinais e propagandas e se apropriam de seu significado, ainda que de forma limitada. Tambm manuseiam textos que circulam em seu meio, e so capazes de antecipar o sentido que eles contm a partir das ilustraes que o acompanham. Dessa forma, embora no realizem plenamente a leitura, estabelecem interao com alguns elementos do texto escrito. A leitura uma relao de dilogo que se estabelece entre o leitor e o texto, mas, efetivamente, a produo de sentido no constitui livre interpretao, sendo qualquer afirmao aceitvel. Da a importncia da prtica pedaggica capaz de produzir, progressivamente, um leitor capaz de perceber a riqueza de possibilidades e os limite de interpretao do texto. A sistematizao da leitura, na escola, tem o objetivo de possibilitar a interao da criana com os mais diversos textos em situaes significativas e diferenciadas, secundando essas interaes com as reflexes necessrias sobre a lngua escrita. Por isso, quanto interpretao, os alunos sero incentivados a assumir uma postura crtica na leitura, realizando um estudo aprofundado do texto. A leitura de um texto no mera decodificao de sinais grficos, mas a busca de significaes marcadas pelo processo de produo do texto e tambm pela produo da leitura. Por essa razo, o professor precisa ter clareza sobre a funo dos textos com os quais trabalha com os alunos e verificar, inclusive, em que contexto eles podem ou no ser alvo de interpretao crtica. Assim, desde o incio da alfabetizao, o professor incentiva as crianas a lerem criticamente, a fim de apreenderem a realidade humana na qual esto inseridas. Deve ser explicado a elas que a leitura muito importante porque nos possibilita pensar sobre a sociedade em

Alfabetizao e Letramento

que vivemos e sobre as condies de vida dos homens dessa sociedade. Tratase, pois, de um dilogo que envolve por que lemos, para qu, e como lemos.

A prtica pedaggica da leitura e interpretaoLer uma prtica de natureza social, ou seja, um processo de interao verbal entre pessoas que esto determinadas pelas relaes sociais de seu tempo: seu lugar na estrutura social, suas relaes com o mundo e com os outros. Desse modo, importante que a criana seja levada a posicionar-se criticamente diante do texto, ou seja, que aprenda a efetuar uma anlise desse texto para perceber a inteno do autor e suas idias, bem como sua insero na sociedade que lhe contempornea. A leitura, nessa perspectiva, desenvolve-se nas formas abaixo. Estudo do texto, procurando, por meio da interpretao, fazer uma leitura crtica, ou seja, uma anlise do texto, que ensejar, inclusive, a possibilidade de outras leituras, bem como a produo de textos. Fruio, quando o aluno seleciona livremente a leitura que deseja fazer, sem a interveno do professor, e l pelo prazer que isso lhe proporciona. Busca de informao em textos que contenham instrues, notcias, comunicaes, como folhetos informativos sobre sade, meio ambiente e outros assuntos de interesse; verbetes de dicionrio e de enciclopdia; textos didticos etc. Trata-se de uma leitura de busca de informao esclarecedora ou prtica, que possa atender a uma necessidade de conhecimento imediato por parte do leitor. Na leitura de textos informativos, o aluno deve ser levado a perceber as ideias do texto, bem como as relaes ou contradies que existem entre elas. Alm disso, importante apreender a intencionalidade do autor e os argumentos de que se vale para buscar convencer o leitor. Os textos literrios, por sua vez, tm papel fundamental na alfabetizao, principalmente os poticos, que, pela sonoridade e a musicalidade do ritmo e da rima, tm finalidade de fruio, facilitando de forma ldica a compreenso da relao existente entre oralidade e escrita. Convm ressaltar que o texto literrio comporta possibilidades de muitas interpretaes de acordo com a sensibilidade, a cultura e a viso de mundo do leitor. Entretanto, o professor deve orientar os alunos quanto aos limites

54

Leitura e interpretao

da interpretao, no sentido de proporem idias pertinentes ao texto do autor. Essa caracterstica do texto literrio torna muito rica as atividades de interpretao, mas, por outro lado, a avaliao da sua leitura e interpretao no obedece aos mesmos critrios do texto informativo ou cientfico. A leitura dos textos literrios, pela experincia prazerosa que proporciona e pela importncia que tem na formao do gosto e da prtica de leitura, deve ser constante no trabalho pedaggico.

Seleo dos textos de leituraDos fundamentos explicitados at aqui, possvel depreender que a prtica de leitura na alfabetizao implica seleo criteriosa e variada de textos a serem trabalhados em sala de aula. A boa qualidade dos textos, quer na forma, quer no contedo, preocupao do professor que os escolhe. Um primeiro critrio norteador que as crianas devem ler, na escola, os mesmos tipos de textos que circulam no cotidiano das pessoas: rtulos, avisos, listas, cartazes publicitrios, receitas, manuais, agendas, bilhetes informais, postais, convites, cartas, correspondncia comercial, notcias da imprensa, entre outros. Tambm devem ser trabalhadas, na sala de aula, as linguagens jornalstica, televisiva e cinematogrfica, uma vez que elas constituem uma diversidade de linguagens muito presente na sociedade contempornea. No entanto, pertinente mostrar ao aluno como elas se relacionam entre si e com o contexto no qual se originam e so veiculadas. fundamental ainda, na alfabetizao, desenvolver leituras utilizando textos que so, segundo a tradio cultural, prprios do universo infantil, tais como as cantigas de roda; as parlendas (rimas) usadas para escolher a vez no jogo, os trava-lnguas (composio de recitao difcil, por ser composta por palavras repetidas), as poesias, as narrativas como as lendas, as fbulas, os contos, os contos de fadas; as crnicas e as histrias da literatura infantil. Da literatura, de modo geral, no deixar de inserir outros gneros como textos teatrais, humorsticos, satricos, dirios de viagem e folhetos de cordel. Convm lembrar, por fim, que os objetivos a serem alcanados determinam o tipo de texto a ser escolhido.

55

Alfabetizao e Letramento

Relao de contedosContedos mais especficos da leitura e produo escritaReconhecimento de idias contidas em alguns smbolos usuais. Criao de smbolos em contextos diversos, com compreenso de sua convencionalidade. (KLEIN, 2003, p. 48) (KLEIN, 2003, p. 51)

Utilizao e interpretao de formas variadas de representao (mmica, dramatizao, desenho etc.). Compreenso da funo do smbolo. Interpretao de desenhos. Uso do desenho para representar idias: compreenso do desenho como uma forma de representao grfica de imagens visuais. Compreenso das funes da escrita. Distino entre os smbolos da escrita e outros grafismos (desenho, logotipo, nmero etc.).

Discriminao visual das letras: distino das letras; traado legvel das letras; reconhecimento das letras em caixa alta e cursiva; reconhecimento de letras escritas em tipos diferentes. Distino entre letras e notaes lxicas (acentos, til, trema, apstrofo, cedilha, hfen). Reconhecimento da direo convencional da escrita. Reconhecimento da segmentao entre palavras no texto escrito.

Contedos mais especficos da interpretao de textos oraisCompreenso das idias e argumentos de textos orais. Anlise da coerncia e pertinncia das idias e argumentos de textos. Anlise crtica de idias e argumentos. Distino entre informaes, idias e argumentos essenciais e acessrios nos discursos.56

Leitura e interpretao

Reproduo compreensiva e adequada das idias veiculadas em discurso oral. Identificao da temtica de um discurso, distinguindo-a do enredo. Identificao de incorrees lingsticas em texto ouvido. Identificao de inadequaes de fluxo, de ritmo, de entonao Identificao de inadequaes lexicais. Identificao de inadequaes de ordenao lgica das idias.

Contedos mais especficos da interpretao de textos escritosCompreenso das idias e argumentos do autor. Anlise da coerncia e pertinncia das idias e argumentos do autor. Anlise crtica das idias e argumentos do autor. Distino entre informaes, idias e argumentos essenciais e acessrios no discurso do autor. Reproduo das idias veiculadas no texto. Identificao da temtica de um discurso, distinguindo-a do enredo. Identificao, no texto, de incorrees grficas e lingsticas. Identificao, no texto, de inadequaes lexicais. Identificao, no texto, de inadequaes de ordenao lgica das idias. Estudo de vocbulos desconhecidos.

Texto complementarFobias(VERISSIMO, 2003, p. 97-98)

No sei como se chamaria o medo de no ter o que ler. Existem as conhecidas claustrofobia (medo de lugares fechados), agorafobia (medo de espaos abertos), acrofobia (medo de alturas) e as menos conhecidas ailurofobia57

Alfabetizao e Letramento

(medo de gatos), iatrofobia (medo de mdicos) e at treiskaidekafobia (medo do nmero 13), mas o pnico de estar, por exemplo, num quarto de hotel, com insnia, sem nada para ler no sei que nome tem. uma das minhas neuroses. O vcio que lhe d origem a gutembergomania, uma dependncia patolgica na palavra impressa. Na falta dela, qualquer palavra serve. J sa da cama de hotel no meio da noite e entrei no banheiro para ver se as torneiras tinham frio e quente escritos por extenso, para saciar minha sede de letras. J ajeitei o travesseiro, ajustei a luz e abri uma lista telefnica, tentando me convencer que, pelo menos no nmero de personagens, seria um razovel substituto para um romance russo. J revirei cobertores e lenis, procura de uma etiqueta, qualquer coisa. Alguns hotis brasileiros imitam os americanos e deixam uma Bblia no quarto, e ela tem sido a minha salvao, embora no no modo pretendido. Nada como um best-seller numa hora dessas. A Bblia tem tudo para acompanhar uma noite de insnia: enredo fantstico, grandes personagens, romance, o sexo em todas as suas formas, ao, paixo, violncia e uma mensagem positiva. Recomendo Gnesis pelo mpeto narrativo. O Cntico dos Cnticos pela poesia e Isaas e Joo pela fora dramtica, mesmo que seja difcil dormir depois do Apocalipse. Mas e quando no tem nem a Bblia? Uma vez liguei para a telefonista de madrugada e pedi uma Amiga. Desculpe, cavalheiro, mas o hotel no fornece companhia feminina Voc no entendeu! Eu quero uma revista Amiga, Capricho, Vida Rotariana, qualquer coisa. Infelizmente, no tenho nenhuma revista. No possvel! O que voc faz durante a noite? Uma esperana! Tric! Com manual? No. Danao.

58

Leitura e interpretao

Voc no tem nada para ler? Na bolsa, sei l. Bem Tem uma carta da mame. Manda!

AtividadePergunte aos alunos de diferentes sries e graus de ensino: o que gostam de ler, por que gostam de ler e como aprenderam a gostar de ler. Com apoio no estudo desta unidade, elabore um texto desenvolvendo uma anlise crtica das respostas obtidas.

59

Produo de textosMaria Auxiliadora CavazottiEscrever um texto significa ser movido pela inteno de comunicao com um interlocutor real ou virtual. O objetivo que leva elaborao do texto, assim como o interlocutor a quem ele dirigido, definem a escolha do tipo de texto e da linguagem mais adequada, das informaes e dos argumentos enfim, estruturam o contedo e a forma do texto. Os tericos da educao tm sido muito enfticos em apontar com propriedade o vazio da escrita escolar quando propem atividades apenas como mero exerccio de escrever. Entretanto, preciso considerar que da natureza do processo pedaggico o desenvolvimento de atividades escolares que comportam certo grau de artificialidade como recurso didtico para incentivar o aluno ao aprendizado da escrita, como de outros objetos de conhecimento. fundamental, entretanto, que esses artifcios se aproximem ao mximo das condies reais da experincia social vivida no cotidiano da vida das pessoas. Para tanto, o desenvolvimento da prtica de produo de texto requer que se estabelea, previamente, os elementos que o compem: o interlocutor, o objetivo da interlocuo, o assunto e a forma de veiculao do texto.

O texto oralAs crianas, mesmo as menores, quando chegam escola, j apresentam suficiente domnio da linguagem oral para produzirem textos, comunicarem-se e interagirem verbalmente com os outros. claro que esse domnio da capacidade de uso da linguagem oral varia conforme as experincias anteriores de cada criana. De qualquer forma, so falantes de sua lngua nativa e cabe ao trabalho escolar levar em considerao as diferentes formas de expresso que trazem de sua comunidade. Entretanto, no se pode perder de vista que o domnio da lngua portuguesa requer que o ensino escolar oferea ao aluno a possibilidade de aquisio da linguagem-padro tambm na oralidade. Vale lembrar que tal objetivo pode ser alcanado mantendo-se respeito pelos valores culturais da comunidade da qual o aluno oriundo. A incorporao de expresses,

Alfabetizao e Letramento

pronncias e construes alheias sua variedade dialetal podem se processar de forma no agressiva, pelo contato reiterado do aluno com a variedade padro. As situaes de comunicao diferenciam-se em funo do grau de formalidade ou de informalidade exigida, o que depende muito do assunto tratado, das relaes entre os interlocutores e da inteno comunicativa. A maioria das crianas adquire a capacidade de uso da oralidade em contextos comunicativos informais, coloquiais, familiares. Essa experincia lingstica pode ser ampliada na escola por meio de situaes diversificadas de prtica da oralidade como debates, conversas, relatos, recontos que proporcionam oportunidades de praticar formas de oralidade diferentes daquelas exercitadas no seu ambiente familiar. Assim, por meio de atividades de produo de textos orais, como comentrios, discusses, apresentaes etc., as possibilidades de expresso oral se enriquecem, ampliando e aperfeioando o discurso, de modo a tornar o aluno um usurio competente da lngua oral. Isso pressupe o ensino-aprendizagem do uso de diferentes recursos da linguagem oral, adequando-os s diversas situaes, ao grau de formalidade necessria, aos objetivos pretendidos, ao interlocutor. Dessa forma, o aluno pode tornar-se um sujeito capaz de dotar sua fala de argumentos que dem conta de estabelecer uma conversa, responder a uma entrevista, participar de um debate. Nesse sentido, preciso selecionar contedos e organizar estratgias adequadas composio oral, que pode ser individual ou coletiva.

Relao de contedos da produo oralContedos mais especficos da produo oralArticulao correta dos fonemas. Pronncia correta das palavras conhecidas (eliminao de erros de ortopia (ex: t/cs/ico em vez de t/s/ico; de prosdia (ex: rubrica em lugar de rbrica) e de hiper-correo (ex: sorvete em lugar de solvete). Emprego da entonao adequada frase (interrogativa, afirmativa, exclamativa); emprego dos recursos de entonao para expressar sentimentos (ternura, zanga, medo). Ritmo adequado do discurso oral (sem atropelo e sem lentido cansativa): fluxo adequado de oralidade, sem pausas desnecessrias.62

(KLEIN, 2003, p. 47-48) Prtica da oralidade

Produo de textos

Vocabulrio, domnio vocabular compatvel: observao do uso adequado dos termos no discurso oral; ampliao do vocabulrio por incorporao adequada de novos termos; adequao do vocabulrio aos objetivos do texto e ao interlocutor. Clareza de idias na exposio oral: seqncia lgica; objetividade na exposio oral; capacidade de elaborar concluses. Riqueza de idias: acrscimo de detalhes e informaes necessrias; distino entre informao e idias essenciais e acessrias no discurso oral; originalidade. Argumentao: desenvolvimento de argumentos com coerncia e consistncia. Estilo: eliminao de expresses viciosas (repeties, grias, jarges, lugares-comuns, termos de baixo calo), salvo quando a narrativa assim o exigir; emprego de figuras de linguagem como recurso de enriquecimento do texto oral. Concordncia verbal e nominal (de gnero e de nmero). Conjugao verbal. Modalidades de citao: discurso direto e indireto.

Prtica da oralidade(KLEIN, 1996, p. 29-30)

Narrar falas em seqncia temporal e/ou casual. Fazer exposio oral com ajuda de perguntas feitas pelo professor. Descrever objetos que no se encontram na sala de aula. Descrever cenrios e personagens de histrias lidas pelo professor.

63

Alfabetizao e Letramento

Realizar dramatizaes de livros lidos pelo professor e de histrias escritas coletivamente pelos alunos, com ajuda do professor. Relatar de maneira clara e ordenada idias, opinies, sentimentos e experincias manifestas. Ouvir e reproduzir oralmente textos da tradio oral popular como trava-lnguas, quadrinhas, parlendas, adivinhaes, canes, lendas e causos. Produzir textos orais em situaes de intercmbio verbal, como recados, instrues, saudaes e dilogos, entrevistas, pesquisas, debates, dilogos com autoridades etc. Ouvir e interpretar textos de rdio e televiso, como propagandas, entrevistas e notcias. Adequar a linguagem ao grau de formalidade requerida pela situao, como conversa com uma autoridade, solicitando a realizao de um servio; telefonema a um amigo, convidando-o para um passeio, ou a algum, cumprimentando-o pelo aniversrio; conversa com o vendedor de estabelecimento comercial do bairro ou localidade em que vive. Responder oralmente a problemas apresentados pelo professor. Dramatizar textos, poemas e msicas tendo em vista o aprimoramento da entonao, dico, gesto, postura etc. Ouvir atentamente a fala do professor e dos colegas para aprender a esperar a vez de falar, bem como respeitar a fala do outro. Contar filmes assistidos, histrias relatadas na famlia, fatos vivenciados. Recriar histrias, compondo oralmente o incio ou final incompletos, alterando-os; inventando ou retirando personagens, acrescentando falas s personagens.

64

Produo de textos

Texto complementarO trabalho com texto e o estudo do cdigo(KLEIN, 2003, p. 31-34)

O texto oral e escrito consiste num processo de interlocuo. a enunciao que se realiza por meio de um cdigo e que contm unidade temtica, estrutura, coerncia, coeso. O cdigo da escrita apresenta elementos e aspectos prprios: alm das letras, lanamos mo, ao escrever, de recursos como pontuao, acentuao, pargrafo. Mas h, ainda, para articularmos o sentido do texto, outros recursos da lngua que o texto escrito deve incorporar, tais como elementos de coeso, concordncia, regncia, entre outros. Ora, esses recursos no tm uma funo em si mesmos. Esta determinada pelo contexto do texto, de modo que para entend-los necessrio observar sua insero no interior do prprio texto. Este, por sua vez, est inserido num contexto de interlocuo, o qual determina situaes diferentes para um mesmo recurso. Da a necessidade do exerccio de produo de textos com a devida compreenso de que os objetivos do texto, o interlocutor a quem ele se destina e a situao do autor so fatores que vo determinar escolhas quanto ao tipo de texto, linguagem adequada, argumentao, s informaes necessrias, entre outras. Tomar a produo como eixo do processo significa que os contedos sero analisados na situao concreta em que aparecem no texto trabalhado, ou seja, o texto ser tomado como pretexto para um estudo generalizado de regras gramaticais. Dizendo de outro modo, o professor no utilizar, por exemplo, de um problema de concordncia de nmero para aproveitar e explicar todos os casos de concordncia, mas explicar exaustivamente, naquele caso especfico, as razes da concordncia. Quando sugerimos um trabalho de ensino da lngua portuguesa a partir do texto, no estamos nos preocupando em cumprir uma regra da moda. Esta sugesto apresenta uma srie de razes bem fundamentadas. Porm, para que o professor efetivamente tire proveito desse tipo de trabalho, ex-

65

Alfabetizao e Letramento

traindo dele todas as vantagens possveis, necessrio que ele conhea as razes de uma opo pelo texto. Se ele desconhece essas razes, vai, no mximo, desenvolver um trabalho que inverte o processo tradicional, indo do texto letra, mas mantendo, na sua essncia, os mesmos procedimentos dos mtodos tradicionais, que, como j sabemos, tendiam a desenvolver um processo que ia dos menores aos maiores elementos da lngua: da letra slaba, palavra, frase, at, finalmente, chegar ao perodo ou ao texto. Esse desconhecimento tambm pode levar o professor no intuito de fugir de um procedimento tradicional a entusiasmar-se pela produo de textos e restringir o trabalho pedaggico escrita de redaes sem, no entanto, desenvolver nenhum trabalho mais aprofundado dessas atividades de anlise da funo social da escrita e do contedo do discurso, anlise lingstica e sistematizao do cdigo. A alfabetizao fundada no texto no apenas uma opo de partir do texto. Para acontecer, de fato, ela implica a compreenso do que significa, verdadeiramente, a escrita; implica a compreenso do que texto, da funo social dos diversos tipos de texto, a anlise das relaes intratextuais e, finalmente, implica desenvolver um processo sistematizado de estudo dessas relaes envolvendo tanto a gramtica textual quanto o domnio do cdigo. Quando os professores alfabetizavam lanando mo de metodologias tradicionais, eles operavam apenas com um aspecto da escrita: as relaes letra/fonema. Esse trabalho, em que pese sua eficincia do ponto de vista da decodificao, isto , da memorizao das letras e slabas, exclua do ensino da escrita outros aspectos igualmente importantes para a clareza do texto: a funo social do texto, enquanto objeto veiculador de idias, concepes, informaes, valores etc., as relaes intervocabulares, ou seja, os elementos de coeso, argumentao, ordem, direo da escrita etc., que juntamente com elementos do cdigo, permitem a construo do discurso. Os textos da cartilha, embora graficamente corretos, so textos falsos, pobres, pois neles faltam muitos elementos ou recursos importantes da escrita, to importantes quanto as letras, a segmentao, acentuao, entre outros. A impossibilidade de utilizar tais recursos permite que o autor redija frases soltas, mas o impede de expressar as idias que, na vida prtica, precisa comunicar. por esta razo que os textos da cartilha so to estereoti66

Produo de textos

pados e praticamente sem sentido, no tendo nenhuma semelhana com o discurso oral realmente existente na prtica cotidiana. Os problemas formais desse tipo de texto, ao inviabilizarem a formulao de idias, esvaziam esse material de qualquer sentido de uso real,