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7 Às vezes me parece que gosto dele, mas isso não é sempre. Algumas coisas em meu irmão me irritam muito. Quando ele sai, por exemplo, faz questão de sair sozinho. E me chama de pirralho, o que me dá raiva. Pen- sando bem, acho que nem conheço o Maurí- cio direito. A gente nunca está junto. Princi- palmente agora, que ele terminou a quinta série. De manhã, fica na escola até o meio- dia. À tarde, tem judô, inglês, natação e não sei mais o quê. De noite, que a gente podia conversar um pouquinho, ele faz os deveres da escola e quando termina já está na hora de dormir. Nós dormimos no mesmo quarto como se cada um morasse num país diferente. Eu, além da escola, não faço mais nada. Quer

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Às vezes me parece que gosto dele, masisso não é sempre. Algumas coisas em meuirmão me irritam muito. Quando ele sai, porexemplo, faz questão de sair sozinho. E mechama de pirralho, o que me dá raiva. Pen-sando bem, acho que nem conheço o Maurí-cio direito. A gente nunca está junto. Princi-palmente agora, que ele terminou a quintasérie. De manhã, fica na escola até o meio-dia. À tarde, tem judô, inglês, natação e nãosei mais o quê. De noite, que a gente podiaconversar um pouquinho, ele faz os deveresda escola e quando termina já está na hora dedormir. Nós dormimos no mesmo quartocomo se cada um morasse num país diferente.Eu, além da escola, não faço mais nada. Quer

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dizer, faço minhas lições, assisto a algum pro-grama na televisão, escovo os dentes, tomobanho, troco de roupa e como. Gosto muitode comer. E, nas férias passadas, aprendi que,apesar de tudo, gosto muito também doMaurício.

Era nossa última semana de férias e eu játinha certeza de que nunca tinha comidotanto na minha vida. Além disso, que tornavanossas férias o melhor período do ano, oMaurício passava os dias inteiros comigo.Até tarde da noite, nós dois, muito irmão umdo outro, ficávamos conversando sobre asexperiências vividas durante o dia ou sobrenossa vida comum, do apartamento. De

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longe, ali na casa da vovó, deu pra ver que avida nem era tão comum assim.

Sentados num banco largo e branco deripas de madeira, no alpendre, o Maurícioapontava alguma estrela e dizia seu nome,contava uma história qualquer. Eu achavaaquilo uma chatice muito grande, mas nãopodia perder a oportunidade de ficar pertodo meu irmão. A claridade da sala invadianossa noite por duas janelas abertas, ilumi-nando dois trechos do alpendre. A genteestava bem longe da luz, lá onde termina afrente da casa. Eu não sabia se prestava aten-ção na conversa do Maurício ou nas históriasengraçadas que alguém contava na sala.

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Meus avós e meus pais e mais um tio do interiorconversavam alto e soltavam gargalhadas.

De repente, o Maurício parou de olharpara cima e o que ele disse me tirou todo o in-teresse pelo que se passava dentro da sala.

— Você está vendo como o céu está es-trelado?

— Claro.— É sinal de bom tempo. Você quer pes-

car comigo amanhã no Rio das Pedras?— Mas não é muito longe?— É um pouquinho, mas eu conheço um

atalho que passa por dentro da fazenda do tioVirgílio.

— Então eu quero, sim.— Mas a gente tem de sair antes do Sol

nascer.— Ainda escuro?— Com o céu ainda cheio de estrelas.— Não faz mal. Eu quero assim mesmo. Foi uma noite difícil. A ansiedade me

acordou de hora em hora. Tínhamos deixado

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tudo pronto, com a ajuda de meu avô. Ma-tula, tralha, tudo pendurado desde a vésperana parede do alpendre.

Acordei com o Maurício sacudindo meusombros. Abri os olhos, abri bem os dois, mascontinuei sem enxergar coisa nenhuma, nem oMaurício. Só sabia que era ele porque ele falouqualquer coisa e eu reconheci aquela voz.

— Mas ainda está de noite, Maurício. — Vamos logo, pirralho. Você disse que

levantava. Quando ele puxou o lençol que me cobria

e me chamou de pirralho, mesmo sem vernada, eu dei um pulo da cama. Não gosto queme descubram assim de repente, sem eu estarpreparado. E gosto menos ainda que me cha-mem de pirralho. Já vou entrar na terceirasérie e sei um monte de coisas que antes,quando eu era pirralho, não sabia.

— Precisa acender a luz? — ele perguntou.— Não acho minha roupa.

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Eu tinha tropeçado numa cadeira e bati-do com o joelho no estrado duro da cama.

— Fala mais baixo que os outros estãodormindo.

— Não acho minha roupa — tive de repe-tir, com raiva, porque não encontrava minharoupa e porque o joelho estava doendo muito.

Então, de repente, o quarto apareceu to-do iluminado e eu consegui ver que a portaestava do lado direito e não do esquerdo. E aminha roupa estava dobrada justamente emcima do espaldar daquela maldita cadeiraque tinha se atravessado no meu caminho. Omeu joelho ainda estava dormente da batida,latejando um pouco, por isso me vesti comcara de choro.

— Quer desistir? O Maurício usa sempre desses recursos

desonestos quando quer me dobrar logo. Elesabia que eu não ia desistir por nada do mun-do. Então parei de fazer cena e até nem sentimais o joelho latejando.

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