4.1. Português - Teoria - Livro 4

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    FRENTE 2 Literatura

    1. JORGE DE LIMA (Unio, AL,1895 Rio de Janeiro, 1953)

    Vida

    Estudou Humanidades em Macei

    e Medicina em Salvador e no Rio de

    Janeiro. Interessou-se pelas artes pls -

    ticas, foi professor de Literatura na

    Universidade do Brasil e ingressou na

    poltica como deputado estadual. Em

    1925, entrou em contato com o Mo-

    dernismo, divulgando-o no Nordeste,

    com os livros Poemas (1927) e Novos

    Poemas(1929).

    Em 1930, mudou-se para o Rio de

    Janeiro, onde exerceu a profisso de

    mdico. Seu consultrio tornou-se um

    ponto de encontro de artistas e intelec-

    tuais. Em 1935, converteu-se ao cato-

    licismo. Alm de poeta, foi pintor,

    fotgrafo, ensasta, bigrafo, historiador

    e prosador.

    Obras e caractersticas Estreia em 1914 com XIV Ale-

    xandrinos, livro ainda preso aos moldes

    parnasianos e simbolistas, lavra-

    do em versos longos e constitudo de

    sonetos, entre os quais o conhecido

    O Acendedor de Lampies. O livro

    seguinte, O Mundo do Menino Impos-

    svel, retoma essa linha.

    Em Poemas Negros, nota-se a

    influncia dos grupos regionalistas

    nordestinos (Gilberto Freyre, JosLins do Rego, Rachel de Queirs).

    Realiza uma poesia apoiada nas recor-

    daes da infncia, de menino de

    engenho, e nas sugestes do

    folclore africano. Nos Poemas Ne-

    gros se descortinam as mltiplas di-

    rees que o poeta ir trilhar: a poesia

    social, o catolicismo militante, a poesia

    onrica, surreal, tudo transfundido naprpria afetividade e vazado numa

    linguagem mltipla e poderosa.

    A partir de Tempo e Eternidade

    (1935), que escreveu com Murilo

    Mendes, e em A Tnica Inconstil (1938)

    e Anunciao e Encontro de Mira-Celi,

    incorpora sua temtica a poe sia

    mstica e catlica, alm de novos

    processos construtivos.

    Apoiado nos arqutipos bblicos,

    na simbologia das escrituras,

    associa esses elementos barrocos

    viso surrealista e alucinat-

    ria, o que resulta em uma poesia de

    grande complexidade de for ma e

    contedo. As sugestes bblicas e as

    idealizaes surrealistas alimentam

    uma poesia densa e figurativa, na qual

    constante a simbologia marinha

    (peixes, algas, flo res aquticas, medu-

    sas), associada a sugestes de assas-

    sinatos, afogamentos, extermnios,

    numa viso apocalptica decondenao do mundo e banimento

    total.

    Em Livro de Sonetos(1949) e In-

    veno de Orfeu (1952), a noo es-

    tetizante da poesia (vista como ofcio de

    tratar com palavras) opera uma barro-

    quizao da vertente surrealista,

    que se manifesta pelo emprego das

    formas fixas (soneto, oitava-rima, sexti-

    nas), modulando a atmosfera aluci-

    natria e surreal.

    Inveno de Orfeu (1952)

    Inveno de Orfeurealiza uma es-

    tranha e bizarra pardia de Os Lus-

    adas, jogando com alguns motivos

    recorrentes: a viagem, o descobrimento

    da ilha, a profundeza da vida e do ins-

    tinto, os crculos do inferno e do paraso,Orfeu, a Musa amada (Beatriz, Ins),

    Dante Alighieri e Cames.

    Prope uma espcie de teodisseia

    (= odisseia para Deus), centrada na

    busca, pelo homem, de uma plenitude

    sensvel e espiritual. Ressalta a comple-

    xidade do estilo, vazado num imenso

    leque de metros, ritmos e estrofaes e

    em formas de difcil elaborao: oita vas

    clssicas, tercetos, sextinas etc.

    Observe, no fragmento, a aluso

    parodstica a Os Lusadas (Ins de

    Castro), os decasslabos, a oitava-rima:

    CANTO SEGUNDO

    SUBSOLO E SUPERSOLOXIX

    Estavas linda Ins posta em repousomas aparentemente bela Ins;

    pois de teus olhos lindos j no ousofitar o torvelinho que no vs,o suceder dos rostos cobiosopassando sem descanso sob a tez;

    que eram tudo memrias fugidias,mscaras sotopostas que no vias.

    (...)

    Poesia nordestinaDe Poemas Negros(poesia nordes-

    tina folclrica, afro-pernambucana ememorialista), destacamos os fragmen-tos de:

    BANGU1

    Cad voc meu pas do Nordeste

    que eu no vi nessa Usina Central Leo de[minha terra?Ah! Usina, voc engoliu os banguezinhos do

    [pas das Alagoas!Voc grande, Usina Leo!Voc forte, Usina Leo!

    As suas turbinas tm o diabo no corpo!

    (...)

    Vocabulrio1 Bangu: engenho.

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    MDULO 49 Jorge de Lima, Murilo Mendes e Ceclia Meireles

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    ESSA NEGRA FUL

    Ora, se deu que chegou

    (isso j faz muito tempo)

    no bangu dum meu av

    uma negra bonitinha

    chamada negra Ful.

    Essa negra Ful!

    Essa negra Ful!

    Ful! Ful!

    (Era a fala da Sinh)

    Vai forrar a minha cama,

    pentear os meus cabelos,

    vem ajudar a tirar

    a minha roupa, Ful!

    Essa negra Ful!

    Essa negrinha Ful

    ficou logo pra mucama,para vigiar a Sinh

    pra engomar pro Sinh!

    (...)

    Poesia mstica

    De Tempo e Eternidade, A Tnica

    Inconstil e Anunciao e Encontro de

    Mira-Celi (poesia mstica, surreal, apo-

    calptica), destacamos:POEMA DO CRISTO

    Porque o sangue de Cristo

    jorrou sobre os meus olhos,

    a minha viso universal

    e tem dimenses que ningum sabe.

    Os milnios passados e os futuros

    no me aturdem, porque naso e nascerei,

    porque sou uno com todas as criaturas,

    com todos os seres, com todas as coisas

    que eu decomponho e absorvo com os sentidos

    e compreendo com a inteligncia

    transfigurada em Cristo.

    (...)

    A DIVISO DE CRISTO

    Dividamos o Mundo em duas partes iguais:

    uma para portugueses, outra para es panhis.

    Vm quinhentos mil escravos no bojo das

    [naus:

    a metade morreu na viagem do oceano.

    Dividamos o Mundo entre as ptrias.

    Vm quinhentos mil escravos no bojo das

    [guerras:

    a metade morreu nos campos de batalha.

    Dividamos o mundo entre as mquinas:

    Vm quinhentos mil escravos no bojo das

    [fbricas,

    a metade morreu na escurido, sem ar.

    No dividamos o mundo.

    Dividamos Cristo:todos ressuscitaro iguais.

    De A Tnica Inconstil, o poema

    O Grande Circo Mstico, saga da dinas-

    tia circense dos Knieps, que inspirou o

    musical homnimo de Chico Buarque,

    Edu Lobo e Naum Alves de Sousa.

    2. MURILO MENDES (Juiz de

    Fora, MG, 1901 Estoril,

    Portugal, 1975)

    Vida

    Estudou na sua cidade e em Nite-

    ri, comeou o curso de Direito, mas

    logo o interrompeu. Foi sempre um

    homem inquieto passando por ati-

    vidades dspares: auxiliar de gua rda-

    livros, prtico de dentista, telegrafista

    aprendiz e, em melhores dias, notrio e

    Inspetor Federal de Ensino. No menosrica de experincia foi a sua vida

    espiritual e literria: tendo estreado em

    revistas do Modernismo, Terra Roxa e

    Outras Terras e Antropofagia,

    conheceu de perto a potica pri-

    mitivista e surrealista que as animava;

    em 1934, converteu-se ao catolicismo,

    partilhando com o pintor Ismael Nery o

    fervor por uma arte que transmitisse

    contedos religiosos em cdigos

    radicalmente novos. (...) A partir de1953 viveu quase exclusivamente na

    Europa e, desde 57, em Roma, onde

    ensinou Literatura Brasileira. Em todos

    esses anos, M. Mendes revelou-se um

    dos nossos escritores mais afins van-

    guarda artstica eu ropeia, o que, no

    entanto, no o apartou das imagens e

    dos sentimentos que o prendiam s

    suas origens brasileiras e, estritamen-

    te, mineiras.

    (BOSI, Alfredo. Histria Concisa da

    Literatura Brasileira. So Paulo:

    Cultrix, 1994. p. 446.)

    ObrasConsiderado um poeta difcil, pela

    liberdade criadora, pela multiplicidade

    de temas que versou e pela densidade

    que impregna sua viso de mundo,

    autor, entre outros, dos livros: Histria

    do Brasil(1932), Tempo e Eternidade

    (em parceria com Jorge de Lima, 1935),

    A Poesia em Pnico (1938), O Visionrio

    (1941), As Metamorfoses (1944), Mun-

    do Enigma (1945), Poesia Liberdade

    (1947), Janela do Caos, Contemplaode Ouro Preto (1954), alm de Transs-

    tor, A Idade do Serrote (prosa, 1969) e

    de vrios inditos.

    Evoluo e caractersticas

    Iniciou-se realizando uma poesia

    influenciada pelo esprito de demo-

    lio dos modernistas de 1922

    (Mrio e Oswald), por meio de pardias

    de textos consagrados e de denncia

    da colonizao fsica e cultural doBrasil. Na Cano do Exlio, observe a

    proximidade com a atitude irreverente

    dos movimentos Pau-Brasil e Antropof-

    gico:

    Minha terra tem macieiras da Califrnia

    onde cantam gaturamos1 de Veneza.

    Os poetas da minha terra

    so pretos que vivem em torres de ametista,

    os sargentos do exrcito so monistas2,

    [cubistas,

    os filsofos so polacos vendendo a prestaes.A gente no pode dormir

    com os oradores e os pernilongos.

    (...)

    Vocabulrio

    1 Gaturamo: designao comum a vrias

    espcies de aves.

    2 Monista: que cr na doutrina monista,

    segundo a qual tudo pode ser reduzido

    unidade.

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    Em Tempo e Eternidade, busca,

    convertido ao catolicismo, res-

    taurar a poesia em Cristo, inte-

    grando, com Jorge de Lima, Isma el

    Nery, Otvio de Faria, Tasso da

    Silveira, Augusto Frederico

    Schmidt, a corrente dos poetas cat-

    licos, marcados pela influncia dos au-

    tores franceses (Pguy, Claudel,

    Bernanos, Maritain) e pela atuao

    de Jackson de Figueiredo e Alceu de

    Amoroso Lima (Tristo de Atade),

    pensadores catlicos que aglutinaram

    em torno de si esse renascimento da

    viso mstica e do catolicismo mi litante.

    De sua vertente surrealista, des-

    tacamos:

    O PASTOR PIANISTA

    Soltaram os pianos na plancie deserta

    Onde as sombras dos pssaros vm beber.

    Eu sou o pastor pianista,

    Vejo ao longe com alegria meus pianos

    Recortarem os vultos monumentais

    Contra a lua.

    Acompanhado pelas rosas migradoras

    Apascento1 os pianos que gritam

    E transmitem o antigo clamor do homem

    Que reclamando a contemplao

    Sonha e provoca a harmonia,Trabalha mesmo fora,

    E pelo vento nas folhagens,

    Pelos planetas, pelo andar das mulheres,

    Pelo amor e seus contrastes,

    Comunica-se com os deuses.

    Vocabulrio

    1 Apascentar: pastorear.

    Depois de 1950, em livros como

    Tempo Espanhol(1959) e Convergn-

    cia (1970), sua poesia tende obje-tividade e ao descarnamento da escrita,

    aproximando-se da poesia experi-

    mental da poca (o concretismo). elo-

    quente o seguinte depoimento de Joo

    Cabral de Melo Neto: a poesia de

    Murilo me foi sempre maestra, pela

    plasticidade e novidade da imagem.

    Sobretudo foi ela quem me ensinou a

    dar precedncia imagem sobre a

    mensagem, ao plstico sobre o discur-

    sivo. Um exemplo dessa vertente o

    poema que integra o ciclo A Lua de

    Ouro Preto:

    Lua, luar,

    No confundamos:Estou mandando

    A Lua luar.

    Luar verbo,

    Quase no

    Substantivo.

    (...)

    E tu s cclica,

    nica, onrica,

    Envolvernica,

    Musa lunar.

    (...)

    Lua humanada,

    Violantelua,

    Lua mafalda

    Lua adelaide

    Lua exilanda

    (...)

    METADE PSSARO

    A mulher do fim do mundo

    D de comer s roseiras,

    D de beber s esttuas,

    D de sonhar aos poetas.

    A mulher do fim do mundo

    Chama a luz com um assobio,

    Faz a virgem virar pedra,

    Cura a tempestade,

    Desvia o curso dos sonhos,

    Escreve cartas ao rio,

    Me puxa do sono eterno

    Para os seus braos que cantam.

    A MARCHA DA HISTRIA

    Eu me encontrei no marco do horizonte

    Onde as nuvens falam,

    Onde os sonhos tm mos e ps

    E o mar seduzido pelas sereias.

    Eu me encontrei onde o real fbula,

    Onde o sol recebe a luz da lua,

    Onde a msica po de todo dia

    E a criana aconselha-se com as flores,

    Onde o homem e a mulher so um,

    Onde espadas e granadas

    Transformaram-se em charruas1,

    E onde se fundem verbo e ao.

    Vocabulrio

    1 Charrua: instrumento usado no cultivo do solo.

    O PROFETA

    A Virgem dever gerar o Filho

    Que seu Pai desde toda a eternidade.

    A sombra de Deus se alastrar pelas eras

    [futuras.

    O homem caminhar guiado por uma estrela

    [de fogo.

    Haver msica para o pobre e aoites para o

    [rico.

    Os poetas celebraro suas relaes com o

    [Eterno.

    Muitos mecnicos sentiro nostalgia do Egito.

    A serpente de asas ser desterrada na lua.

    A ltima mulher ser igual a Eva.

    E o Julgador, arrastando na sua marcha as

    [constelaes,

    Reverter todas as coisas ao seu princpio.

    3. CECLIA MEIRELES

    (Rio de Janeiro, 1901-1964)

    Vida

    Passou a infncia no Rio junto

    av materna, aoriana. Formando-seprofessora primria, dedicou-se por

    longos anos ao magistrio (...). No

    incio da sua carreira literria, aproxi-

    mou-se do grupo de Festa, dirigido

    por Tasso da Silveira. Anos depois,

    preferiria trilhar caminhos pessoais,

    mais modernos. Ensinou Literatura

    Brasileira nas Universidades do Dis-

    trito Federal (1936-38) e do Texas

    (1940). Viajou longamente pelos pa-

    ses de sua predileo, Mxico, ndiae sobretudo Portugal, onde viu reco-

    nhecido o seu mrito antes mesmo

    de consagrar-se no Brasil como uma

    das maiores vozes poticas da ln-

    gua portuguesa contempornea.

    (Alfredo Bosi, Histria Concisa

    da Literatura Brasileira)

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    Obras

    Espectros (1919), Nunca Mais

    e Poema dosPoemas (1923),Baladas

    para El-Rei (1925), livros mais

    marcados por ressonncias parnasia-

    nas e simbolistas.

    Viagem (1939), premiado pela

    Academia Brasileira de Letras, marca

    a consagrao da poeta e a sua ade-

    so modernidade, sem o radicalis-

    mo experimentalista dos modernistas

    da gerao de 1922, numa poesia que

    harmoniza, com dico moderna, os

    velhos clssicos, passando pelos ro-

    mnticos, pelos parnasianos e espe-

    cialmente pelos simbolistas, do que

    resulta a variedade de tcnicas e

    temas e a universalidade. VagaMsica (1942), Mar Absoluto (1945) e

    Retrato Natural (1949) so desdobra-

    mentos dessa proposta.

    Doze Noturnos da Holanda,

    Romanceiro da Inconfidncia, Metal

    Rosicler, Poemas Escritos na ndia,

    Solombra, Ou Isto ou Aquilo so

    alguns dos ttulos que publi cou entre

    1952 e 1965.

    Deixou ainda: prosa de fic-

    o Olhinhos de Gato; prosapotica Girofl, Girofl; crnica,

    teatro e poesia infanto-juvenil

    Ou Isto ou Aquilo.

    Caractersticas

    a representante mais carac-

    terstica da vertente espiritualis-

    ta ou intimista do Modernismo.

    Ceclia parte de um certo distancia-

    mento do real imediato e dirige os

    processos imagticos para a som-bra, o indefinido, o sentimento

    da ausncia e do nada. Nas pa-

    lavras da prpria Ceclia: a poesia

    grito, mas transfigurado. A transfigu-

    rao faz-se no plano da expresso.

    herdeira do Simbolis-

    mo, retomando aspectos temticos

    e formais dos simbolistas ( sensvel

    a aproximao a Alphonsus de

    Guimaraens). uma poesia de de-

    sencanto e renncia, nostalgia do

    Alm e mstica ansiedade. A fuga,

    a fluidez, a melancolia, a sereni-

    dade, os tons fumarentos de ne-

    bulosidade impregnam toda a sua

    obra, marcada pelo sentido da

    transitoriedade, oscilando entre

    o efmero e o eterno, segundo

    afirma a prpria escritora: Nasci

    aqui mesmo no Rio de Janeiro, trs

    meses depois da morte de meu pai,

    e perdi minha me antes dos trs

    anos. Essas e outras mortes ocor-

    ridas na famlia acarretaram muitos

    contratempos materiais, mas, ao

    mesmo tempo, me deram, desdepequena, uma tal intimidade com a

    Morte que docemente aprendi essas

    relaes entre o Efmero e o Eterno.

    (...) A noo ou sentimento da

    transitoriedade de tudo o fun-

    damento mesmo da minha perso-

    nalidade.

    (MEIRELES, Ceclia.

    Literatura Comentada. So Paulo:

    Abril Educao, 1982. p. 6.)

    H trs constantes funda men-

    tais: o oceano, o espao e a soli-

    do. Trabalhando elementos mveis

    e etreos, povoados de fantasias

    forma, som e cor , a poeta projeta a

    desintegrao de si mesma ou busca

    seu prprio reconhecimento.

    A rigor, no pertenceu a

    nenhuma corrente literria,

    mas sua poesia de cunho universa-lista e espiritualista identifica-se com

    a vertente dos poetas catlicos

    (Vincius de Moraes, Jorge de Lima,

    Augusto Frederico Schmidt e o

    Grupo Festa, do Rio de Janeiro),

    opondo-se ao nacionalismo

    verde-amarelista ou antropofgico da

    Gerao de 1922.

    Expressa uma viso prpria do

    mundo, por meio de um intenso cro -

    matismo, de associaes sensoriais (o

    visual-auditivo = sinestesia), da

    musicalidade, do misticismo lri-

    co, do culto da beleza imaterial e da

    preferncia pela abstrao.

    Vale-se, de preferncia, do versocurto, de ritmo leve e ligeiro, que a-

    companha a fluncia das impresses

    vagas, esbatidas. A musicalidade de

    sua poesia apoia-se em ritmos naturais

    (redondilhas), marcados por estribilhos,

    que acentuam o carter cantante.

    Essa aliana entre a poesia e a msica

    j se expressa no ttulo de vrias com-

    posies, como Msica, Serenata,

    A ltima Cantiga, Cano, Can-

    tiguinha, Som, Guitarra, Noturno,

    Pausa, Valsa, Realejo, Cantar,

    Cantiga, Marcha, Assovio (No

    Tenho Inveja s Cigarras: Tambm Vou

    Morrer de Cantar).

    MOTIVO

    Eu canto porque o instante existe

    e a minha vida est completa.

    No sou alegre nem sou triste:

    sou poeta.

    Irmo das coisas fugidias1,

    no sinto gozo nem tormento.

    Atravesso noites e dias

    no vento.

    Se desmorono ou se edifico,

    se permaneo ou me desfao,

    no sei, no sei. No sei se ficoou passo.

    Sei que canto. E a cano tudo.

    Tem sangue eterno a asa ritmada.

    E um dia sei que estarei mudo:

    mais nada.

    (Viagem)

    Vocabulrio

    1 Fugidias: que fogem.

    TEXTO I

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    RETRATO

    Eu no tinha este rosto de hoje,

    assim calmo, assim triste, assim magro

    nem estes olhos to vazios,

    nem o lbio amargo.

    Eu no tinha estas mos sem fora,

    to paradas e frias e mortas;

    eu no tinha este corao

    que nem se mostra.

    Eu no dei por esta mudana,

    to simples, to certa, to fcil:

    Em que espelho ficou perdida

    a minha face?

    (Viagem)

    1.oMOTIVO DA ROSA

    Vejo-te em seda e ncar1,

    e to de orvalho trmula,

    que penso ver, efmera,

    toda a Beleza em lgrimas

    por ser bela e ser frgil.

    Meus olhos te ofereo:

    espelho para a face

    que ters, no meu verso,

    quando, depois que passes,

    jamais ningum te esquea.

    Ento, da seda e ncar,

    toda de orvalho trmula,

    sers eterna. E efmero

    o rosto meu, nas lgrimas

    do teu orvalho... E frgil.

    (Mar Absoluto)

    Vocabulrio1 Ncar: tom rosado ou carmim (vermelho)

    O LTIMO ANDAR

    No ltimo andar mais bonito:

    do ltimo andar se v o mar.

    l que eu quero morar.

    O ltimo andar muito longe:

    custa-se muito a chegar.

    Mas l que eu quero morar:

    (...)

    De l se avista o mundo inteiro:

    tudo parece perto, no ar.

    l que eu quero morar:

    no ltimo andar.

    (Ou Isto ou Aquilo)

    Romanceiro da

    InconfidnciaNo Romanceiro da Inconfidncia,

    publicado em 1953, Ceclia Mei relescria uma poesia social a partir de umfato histrico, pesquisado minuciosa-mente. A Inconfidncia Mineira evo-cada com suas lendas e tradies,com seus enforcados, suicidas e des-terrados, na atmosfera misteriosa doscenrios mineiros do sculo XVIII.

    Para esta obra, Ceclia empregoudiversos tipos de versos, tetrassla-

    bos, redondilhos menores e maiores,hexasslabos, octosslabos, decass-labos, tudo em variado arranjo estr-fico, que resulta em uma narrativa gile matizada. Essa diversidade permite,ao mesmo tempo, que a autora con-fira sua prpria subjetividade, seuprprio lirismo, aos fatos que narra,realizando uma homenagem, muitasvezes intertextual, poesia e aos poe-tas inconfidentes de Minas.

    O poema divide-se em roman-

    ces, aqui entendidos como os poe-mas pico-lricos da tradiomedieval, e desenvolve-se em cincopartes:I) a descrio do ambiente em que

    se vai dar a ao (do romance Iao XIX);

    II) o desenvolvimento da trama e adescoberta dos planos (do ro-mance XX ao XLVII);

    III) a morte de Cludio Manuel daCosta e de Tiradentes (do roman-ce XLVIII ao LXIV);

    IV) o destino de Toms Antnio Gon-zaga e Alvarenga Peixoto (do ro-mance LXV ao LXXX);

    V) a presena, no Brasil, da rainhaD. Maria, responsvel pelaconfirmao das penas dosinconfidentes (do romance LXXXIao LXXXV).

    Na abertura, no final e entre as

    partes, h poemas intercalados, que

    a autora chama de falas. Tambm

    entre cada parte e, por vezes, no inte-

    rior delas, h outros poemas, desig-

    nados como cenrios.

    Romanceiro daInconfidncia

    FALA INICIAL

    No posso mover meus passos

    por esse atroz1 labirinto

    de esquecimento e cegueira

    em que amores e dios vo:

    pois sinto bater os sinos,

    percebo o roar das rezas,

    vejo o arrepio da morte,

    voz da condenao; avisto a negra masmorra2

    e a sombra do carcereiro

    que transita sobre angstias,

    com chaves no corao;

    descubro as altas madeiras

    do excessivo cadafalso3

    e, por muros e janelas,

    o pasmo da multido.

    Batem patas de cavalo.

    Suam soldados imveis.

    Na frente dos oratrios,

    que vale mais a orao?

    Vale a voz do Brigadeiro

    sobre o povo e sobre a tropa,

    louvando a augusta Rainha,

    j louca e fora do trono

    na sua proclamao.

    meio-dia confuso,

    vinte-e-um de abril sinistro,

    que intrigas de ouro e de sonho

    houve em tua formao?

    Quem ordena, julga e pune?

    Quem culpado e inocente?

    Na mesma cova do tempoCai o castigo e o perdo.

    Morre a tinta das sentenas

    e o sangue dos enforcados...

    liras, espadas e cruzes

    pura cinza agora so.

    Na mesma cova, as palavras,

    o secreto pensamento,

    as coroas e os machados,

    mentira e verdade esto.

    TEXTO IV

    TEXTO II

    TEXTO III

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    Aqui, alm, pelo mundo,

    ossos, nomes, letras, poeira...

    Onde, os rostos? onde, as almas?

    Nem os herdeiros recordam

    rastro nenhum pelo cho.

    (...)

    Vocabulrio1 Atroz: cruel.

    2 Masmorra: cela de cadeia.

    3 Cadafalso: forca.

    Da Primeira Parte

    ROMANCE I

    OU

    DA REVELAO DO OURO

    Nos sertes americanos,

    anda um povo desgrenhado1:

    gritam pssaros em fuga

    sobre fugitivos riachos;

    desenrolam-se os novelos

    das cobras, sarapintados;

    espreitam, de olhos luzentes,

    os satricos macacos.

    Sbito, brilha um cho de ouro:

    corre-se luz sobre um charco.

    (...)

    E, atrs deles, filhos, netos,

    seguindo os antepassados,vm deixar a sua vida,

    caindo nos mesmos laos,

    perdidos na mesma sede,

    teimosos, desesperados,

    por minas de prata e de ouro

    curtindo destino ingrato,

    emaranhando seus nomes

    para a glria e o desbarato2,

    quando, dos perigos de hoje,

    outros nascerem, mais altos.

    Que a sede de ouro sem cura,

    e, por ela subjugados,

    os homens matam-se e morrem,

    ficam mortos, mas no fartos.

    (Ai, Ouro Preto, Ouro Preto,

    e assim foste revelado!)

    (Romanceiro da Inconfidncia)

    Vocabulrio

    1 Desgrenhado: desordenado, confuso.

    2 Desbarato: runa.

    Da Segunda Parte

    ROMANCE XXIV

    OU

    DA BANDEIRA DA INCONFIDNCIA

    Atravs de grossas portas,

    sentem-se luzes acesas,

    e h indagaes minuciosas

    dentro das casas fronteiras:

    olhos colados aos vidros,

    mulheres e homens espreita,

    caras disformes de insnia,

    vigiando as aes alheias.

    (...)

    Atrs de portas fechadas,

    luz de velas acesas,

    entre sigilo e espionagem,acontece a Inconfidncia.

    (...)

    DOS ILUSTRES ASSASSINOS

    grandes oportunistas,

    sobre o papel debruados,

    que calculais mundo e vida

    em contos, doblas, cruzados,

    que traais vastas rubricas

    e sinais entrelaados,

    com altas penas esguias

    embebidas em pecados!

    personagens solenes

    que arrastais os apelidoscomo paves auriverdes

    seus rutilantes vestidos,

    todo esse poder que tendes

    confunde os vossos sentidos:

    a glria, que amais, desses

    que por vs so perseguidos.

    Levantai-vos dessas mesas,

    sa das vossas molduras,

    vede que masmorras negras,

    que fortalezas seguras,

    que duro peso de algemas,

    que profundas sepulturas

    nascidas de vossas penas,

    de vossas assinaturas!

    Considerai no mistrio

    dos humanos desatinos

    e no polo sempre incerto

    dos homens e dos destinos!

    Por sentenas, por decretos

    parecereis divinos:

    e hoje sois, no tempo eterno,

    como ilustres assassinos.

    soberbos titulares

    to desdenhosos e altivos!

    Por fictcia austeridade,

    vs razes, falsos motivos,

    inutilmente matastes:

    vossos mortos so mais vivos;

    e, sobre vs, de longe abrem

    grandes olhos pensativos.

    MDULO 50 Vincius de Moraes

    1. VINCIUS DE MORAES(Rio de Janeiro, 1913-1981)

    VidaFormou-se em Letras e em Direi-

    to. Foi censor e crtico cinematogrfi-co e estudou Literatura Inglesa emOxford. Em 1943, ingressou na carrei-ra diplomtica, servindo nos Estados

    Unidos, na Espanha, no Uruguai e naFrana, mas sem nunca perder o con -tato com a vida literria e artstica doRio de Janeiro. No final da dcada de1950, passou a compor letras paracanes populares, consagrando-secomo um dos fundadores do movi-mento musical conhecido por BossaNova.

    Obras PoesiaO Caminho para a Distncia (1933)Forma e Exegese (1935)Ariana, a Mulher (1936)Novos Poemas (1938)Cinco Elegias (1943)Poemas, Sonetos e Baladas (1946)Ptria Minha (1949)

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    Livro de Sonetos (1956)O Mergulhador (1965)A Arca de No (infantil, 1970) TeatroOrfeu da Conceio(tragdia ca -rioca em trs atos, escrita em ver -sos, 1954)Pobre Menina Rica(comdia mu-sicada, 1962) ProsaO Amor dos Homens (crnicas,1960)Para Viver um Grande Amor(cr-nicas, 1962)Para uma Menina com uma Flor(crnicas, 1966)

    Evoluo ecaractersticas Os primeiros livros, at Cinco

    Elegias, marcam-se pela aproxima-o com a poesia catlica francesa,com o simbolismo mstico e,como em Augusto Frederico Schmidt,pelo uso do versculo bblico, pelogosto do poema longo, de tom gravee exaltado, cheio de ressonncias.

    A partir de Cinco Elegias, aadeso modernidade prenuncia-da pela conteno formal, pelaliberdade temtica e de ex-presso, pela incorporao po-

    tica do cotidiano e da expe-rincia direta da vida, que subs-tituem a busca do transcendente, dosublime, e a tendncia mstica e me -tafsica da primeira fase.

    Poemas, Sonetos e Baladas(1946) considerado o livro mais ex-pressivo de sua obra, impregnado deternura, de humor, de ironia, numapoesia de grande comunicabilidade,em que convivem a linguagemclssica, nos sonetos de feiocamoniana (Sonetos: da Separa-o, da Fidelidade, do Amor Totaletc.); os versos curtos incisivose a intensidade da viso l-rica/realista do amor, que retomaelementos trovadorescos e romn-ticos, acrescidos da concepo doamor como experincia-limite (o amorlouco dos surrealistas).

    Alm de ser um lrico excepcio-nal, Vincius versou tambm sobre atemtica social (O Operrio emConstruo, A Rosa de Hiroshima, ABomba), sobre o cotidiano; fezpoesia infantil (A Arca de No), almdos poemas que o cancioneiro popularconsagrou: Serenata do Adeus,Marcha da Quarta-Feira de Cinzas,Se Todos Fossem I guais a Voc etc.

    SONETO DE SEPARAO

    De repente do riso fez-se o prantoSilencioso e branco como a brumaE das bocas unidas fez-se a espumaE das mos espalmadas fez-se o espanto.

    De repente da calma fez-se o ventoQue dos olhos desfez a ltima chamaE da paixo fez-se o pressentimentoE do momento imvel fez-se o drama.

    De repente, no mais que de repenteFez-se de triste o que se fez amanteE de sozinho o que se fez contente.

    Fez-se do amigo prximo o distanteFez-se da vida uma aventura erranteDe repente, no mais que de re pente.

    (Oceano Atlntico, a bordo doHighland Patriot, a caminho da Inglaterra,

    09.1938)

    SONETO DO MAIOR AMOR

    Maior amor nem mais estranho existeQue o meu, que no sossega a coisa amadaE quando a sente alegre, fica tristeE se a v descontente, d risada.

    E que s fica em paz se lhe resisteO amado corao, e que se agradaMais da eterna aventura em que persisteQue de uma vida mal-aventurada.

    Louco amor meu, que quando toca, fere

    E quando fere, vibra, mas prefereFerir a fenecer e vive a esmo.

    Fiel sua lei de cada instanteDesassombrado, doido, deliranteNuma paixo de tudo e de si mesmo.

    (Oxford, 1938)

    A ROSA DE HIROSHIMA

    Pensem nas crianasMudas telepticas

    Pensem nas meninasCegas inexatasPensem nas mulheresRotas alteradasPensem nas feridasComo rosas clidasMas oh no se esqueamDa rosa da rosaDa rosa de Hiroshima

    A rosa hereditriaA rosa radioativaEstpida e invlidaA rosa com cirroseA antirrosa atmicaSem cor sem perfumeSem rosa sem nada

    O OPERRIO EM CONSTRUO

    (...)

    E um grande silncio fez-seDentro do seu coraoUm silncio de martrios

    Um silncio de priso.Um silncio povoadoDe pedidos de perdoUm silncio apavoradoCom o medo em solido.Um silncio de torturasE gritos de maldioUm silncio de fraturasA se arrastarem no cho.E o operrio ouviu a vozDe todos os seus irmosOs seus irmos que morreramPor outros que vivero.Uma esperana sinceraCresceu no seu corao

    E dentro da tarde mansaAgigantou-se a razoDe um homem pobre e esquecidoRazo porm que fizeraEm operrio construdoO operrio em construo.

    POTICA

    De manh escureoDe dia tardoDe tarde anoiteoDe noite ardo.

    A oeste a morteContra quem vivoDo sul cativoO este meu norte.

    Outros que contemPasso por passo:Eu morro ontem

    Naso amanhAndo onde h espao: Meu tempo quando.

    TEXTOS

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    O CICLO NORDESTINO OREALISMO REGIONALISTA

    Ainda no primeiro tempo moder-

    nista, enquanto no Sul as querelas lite-rrias cindiam os modernistas (nacio-nalismo x primitivismo, revoluoesttica x revoluo social, futurismo,cubismo, dadasmo, surrealismo), noNordeste, Gilberto Freyre, Jos Linsdo Rego e Jos Amrico de Almeidaorganizavam, em 1926, o Congres-so Regionalista do Recife, cujaproposta era a de uma literatura com-prometida com a problemtica nor-destina (o latifndio; a seca; as

    instituies arcaicas= sobrevi-vncias coloniais; a explora-o da mo de obra; a violn-cia social =jaguncismo, canga-ceirismo, misticismo fanatizan-te; a famlia patriarcal e asconsequncias de sua desa-gregao; a corrupo e o co-ronelismo; os contrastessociais o sertanejo e o ho-mem daZonada Mata,ascasas-grandes e as senzalas).

    Propunha-se uma literatura empe-nhada e realista na denncia dos en-traves culturais. Nessa proposta,incluem-se: Jos Amrico de Almei-da, Jos Lins do Rego, GracilianoRamos, Rachel de Queirs e JorgeAmado.

    1. JOS AMRICO DEALMEIDA (Areia, PB, 1887 Joo Pessoa, PB,1980)

    Autor de A Bagaceira, 1928, mar-co inicial do romance nordestinomodernista, deixou tambm OBoqueiro e Coiteiros.

    Sua obra tematiza o retiranteda seca e lana sementes dociclo da cana-de-acar, funda-do por Jos Lins do Rego.

    A Bagaceira

    Conta a saga dos retirantes Va-lentim Pereira, sua filha Soledade eseu afilhado Pirunga, que, tangidos

    pela seca, abandonam a zona do ser-to e vo para a regio dos engenhos,no brejo, onde so acolhidos pelo En-genho de Marzago, de propriedadede Dagoberto Marau e seu filhoLcio. A ao decorre entre doisperodos da seca, o de 1898 e o de1915, centrando-se na violncia e naopresso.

    A Bagaceiraconcretiza os prop-sitos do Primeiro Congresso deRegionalistas do Recife (1926).

    Quanto linguagem, aproxima-se daprosa elptica, incisiva e epigramticade Oswald de Andrade. Realizacortes frequentes na narrativa, dandoigual importncia ao humano e aosocial. Nesse sentido, afastou-se docarter de depoimento e da ho-rizontalidade prprios dos autoresnordestinos que o precederam.

    Tem inteno de crtica social,descambando, s vezes, para opanfletrio, para o enftico demag-

    gico. O ttulo do romance alude aolocal onde, no engenho, se juntam osbagaos de cana. Figuradamente,aproxima o bagao da cana con-dio miservel do sertanejo.

    O romance procura confrontar,em termos de relaes humanas e decontrastes sociais, o homem doserto e o homem do brejo (dosengenhos). Aproximando o serta-nejo e o brejeiro, na paisagemnordestina, o autor condiciona os ele-

    mentos dramticos aos ciclos peri-dicos da seca, os quais delimitam aprpria existncia do sertanejo.

    Quanto ao estilo, ao lado de res-sonncias naturalistas, h aproxima-es com o Modernismo de 1922,sem o radicalismo experimentalista. Afrase enxuta, os perodos curtoscoordenados ou justapostos e as

    expresses nominais de extremaespecificao da cor local modulamum expressionismo descritivo vigoro-so e uma expresso musical cuja

    fora e aspereza remetem o leitor melopeia (= propriedade musical som, ritmo que orienta o significadodas palavras) de Euclides da Cunha.

    H alguma discrepncia entre oregistro da fala dos sertanejos (diale-tal, folclrica) e a linguagem do escri-tor e dos seus narradores (culta esentenciosa). indispensvel o esfor-o do escritor (nem sempre bem-sucedido) de no se afastar emdemasia da linguagem das persona-

    gens. (A adequao da fala do nar-rador das personagens um dosproblemas compositivos centrais detodo o regionalismo brasileiro.)

    2. JORGE AMADO(Itabuna, BA, 1912 Salvador, BA, 2001)

    Obra

    RomanceO Pas do Carnaval(1931)

    Cacau(1933)

    Suor(1934)

    Jubiab(1935)

    Mar Morto(1936)

    Capites da Areia(1937)

    Terras do sem Fim(1943)

    So Jorge de Ilhus(1944)

    Seara Vermelha(1946)

    Gabriela, Cravo e Canela (1958)

    Os Subterrneos da Liberdade(3vols.: Os speros Tempos, Agonia

    da Noite e A Luz e o Tnel 1967)

    Dona Flor e seus Dois Maridos

    (1967)

    Tenda dos Milagres(1970)

    Teresa Batista Cansada de Guerra

    (1973)

    Tieta do Agreste(1977)

    MDULO 51 Regionalismo

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    Farda, Fardo, Camisola de Dor-mir(1979)Tocaia Grande(1984)O Sumio da Santa(1988)A Descoberta da Amrica pelosTurcos(1994)O Compadre de Ogum(1995)

    NovelaOs Velhos Marinheiros(1961)Os Pastores da Noite(1964)

    Escreveu ainda biografias, mem-rias e um Guia Turstico da Bahia.

    Os romances de Jorge Amadoso habitualmente divididos em doisgrupos:

    1) os de tema social, roman-

    ces proletrios, voltados para adenncia da explorao do latifndiodo cacau, para a crtica burguesiahipcrita e reacionria e para os he -ris e lderes populares, que, roman -ticamente, se elevam de marinheiros,camponeses, vagabundos, bomiosa lderes de grande conscinciasocial e poltica;

    2) os de tema lrico, ou ascrnicas de costumes, que, a

    partir de Gabriela, Cravo e Canela,trazem um aprimoramento das tcni -cas narrativas e o predomnio do pla -no lrico, anedtico ou picarescosobre o realismo socialista dos ro -mances engajados da primeira fase.

    Usualmente, distinguem-se emsua obra:

    romances proletrios, ins-pirados na vida baiana, rural e cita di-na (Cacau, Suor, Pas do Carnaval);

    depoimentos lricos, compredominncia do elemento senti-mental, sobre rixas e amores de mari -nheiros (Jubiab, Mar Morto,Capites da Areia);

    escritos depregao par-tidria (O Cavaleiro da Esperana,O Mundo da Paz);

    afrescos da regio docacau, evidenciando as lutas entrecoronis e exportadores (Terras dosem Fim, So Jorge de Ilhus);

    crnicas amaneiradas decostumes provincianos (Gabrie-

    la, Cravo e Canela, Dona Flor e SeusDois Maridos, Teresa Batista Cansadade Guerra, Tenda dos Milagres e Tietado Agreste).

    Jorge Amado apoia-se na nar-rativa oral, na tcnica do conta dorde casos, aproximando-se da estrutu-ra do folhetim romntico, pela profu-so de peripcias, intrigas, inciden-tes, anedotas, aventuras, nem semprecosturados dentro do razovel ou do

    verossmil.

    3. RACHEL DE QUEIRS(Fortaleza, CE, 1910 Rio de Janeiro, 2003)

    Obra

    Romance

    O Quinze(1930)

    Joo Miguel(1932)

    Caminho de Pedras(1937)

    As Trs Marias(1939)

    O Galo de Ouro (1985), folhetim

    no jornal O Cruzeiro(1950)

    Obra Reunida(1989)

    Memorial de Maria Moura(1992)

    Teatro

    Lampio(1953)

    A Beata Maria do Egito(1958)

    Teatro(1995)

    A Sereia Voadora(indita)O Padrezinho Santo(indita)

    Crnica

    A Donzela e a Moura Torta(1948)

    Cem Crnicas Escolhidas(1958)

    O Brasileiro Perplexo Histrias

    e Crnicas(1963)

    etc.

    Literatura infantilO Menino Mgico(1969)Cafute & Pena-de-Prata(1986)Andira(1992)Cenas Brasileiras Para Gostarde Ler 17

    ApreciaoOs quatro romances editados em

    livro exprimem intensa preocupaosocial. Mas a romancista se apoia naanlise psicolgica dos personagens,sobretudo na natureza do homemnordestino, sob a presso das forasatvicas e a aceitao fatalista dodestino, como o caso dos doisprimeiros O Quinzee Joo Miguel.() Estes romances apresentam umanova tomada de posio na temtica

    do romance nordestino da seca, docoronelismo e dos impulsos pas-sionais em que o psicolgico seharmoniza com o social.

    (inCANDIDO, A. e CASTELLO, J. A.Presena da Literatura Brasileira,vol. III Modernismo. So Paulo:

    DIFEL, 1983. pp. 236-7.)

    O Quinze(1930), romance publi-

    cado quando Rachel de Queirs tinhaapenas 19 anos, tem parte da aodecorrida em Fortaleza e parte noserto cearense. Apresenta simul-taneamente a histria de trs famliasque habitam fazendas do serto: a daav de Conceio, jovem professora,a de Vicente, primo dela, e de ChicoBento, vaqueiro da terceira fazenda.Despedido do trabalho e despojadode tudo, Chico parte com sua famliapara outras terras. A narrativa focalizasua trgica condio de retirante, aomesmo tempo em que descreve avida de Conceio e da av naCapital, para onde Chico agora sedirige, fugindo da seca. Enquantoisso, o narrador acompanha a luta deVicente, que permaneceu no serto,lutando obstinadamente contra aque-la natureza hostil.

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    1. JOS LINS DO REGO

    (Engenho Corredor, PB,

    1901 Rio de Janeiro, 1957)

    VidaPassou a infncia no engenho do

    av materno. Fez os estudos secun-

    drios em ltabaiana e na Paraba (atual

    Joo Pessoa) e Direito no Recife. Aqui

    se aproxima de intelectuais que

    seriam os responsveis pelo clima

    modernista-regionalista do Nordeste:

    Jos Amrico de Almeida, Olvio

    Montenegro e, sobretudo, Gilberto

    Freyre, de quem receberia estmulo

    para dedicar-se arte de razes lo-

    cais. Poucos anos depois liga-se, em

    Macei, a Jorge de Lima e a Graci-

    liano Ramos. Transferiu-se, em 1935,

    para o Rio de Janeiro, onde participou

    ativamente da vida literria, defenden-

    do com vigor polmico o tipo do

    escritor voltado para a regio de onde

    proveio.

    (Alfredo Bosi)

    Obra

    Romance

    I Ciclo da cana-de-acar

    Menino de Engenho(1932)

    Doidinho(1933)

    Bangu(1934)

    Usina(1936)

    Fogo Morto(1943)

    II Ciclo do cangao, misti-

    cismo e seca

    Pedra Bonita(1938)

    Cangaceiros(1953)

    III Obras independentes

    Com implicao nos dois ciclos

    indicados:

    O Moleque Ricardo(1934)

    Pureza(1937)

    Riacho Doce(1939)

    Desligados desses ciclos:

    gua-Me(1941)

    Eurdice(1947)

    Memrias

    Meus Verdes Anos(1956). Elabo-

    rada como uma narrativa memorialis-

    ta, a obra tem por base as

    recordaes da infncia do autor no

    Engenho Santa Rosa, a figura mtica

    de seu av, coronel Z Paulino, as

    histrias contadas pelas escravas e

    amas-de-leite, compondo um amplo

    painel do mundo rural do Nordeste,

    mais especificamente da regio cana-

    vieira da Paraba e de Pernambuco.

    O ciclo da cana-de-acar,

    formado por Menino de Engenho,

    Doidinho, Bangu, Usinae Fogo Morto,

    , segundo o autor, a histria de uma

    decadncia e de uma ascenso: a

    decadncia do engenho e a ascenso

    da usina. Como afirma o crtico Otto

    Maria Carpeaux, o grande valor liter-rio da obra de Jos Lins do Rego resi-

    de nisto: o seu assunto e o seu estilo

    correspondem decadncia do pa-

    triarcalismo no Nordeste do Brasil, com

    as suas inmeras tragdias e misrias

    humanas e uns raros raios de graa e

    de humor.

    O escritor inspirou-se nos can-

    tadores de feira, os quais apontou

    como fontes de sua arte narrativa.

    Da a linguagem de forte e potica

    oralidade e a grande carga afetiva,

    que a revivescncia dos verdes anos

    provoca. um escritor espontneo e

    intuitivo.

    Os cegos cantadores, amados e

    ouvidos pelo povo, porque tinham o

    que contar. Dizia-lhes ento: quando

    imagino meus romances, tomo sempre

    como modo de orientao o dizer as

    coisas como elas surgem na

    memria, com o jeito e as maneiras

    simples dos cegos poetas () gostoque me chamem de telrico e muito

    me alegra que descubram em todas

    as minhas atividades literrias foras

    que dizem de puro instinto.

    Menino de Engenho, narrado

    na primeira pessoa, por Carlos

    Melo, focaliza a infncia do narrador,

    dos 4 aos 12 anos, detendo-se na

    vida do engenho, na paisagem, nos

    escravos, nos tipos regionais (os

    bandidos, os cangaceiros) e nas rela-

    es do menino com o universo da

    cana-de-acar.

    A figura central o coronel Z

    Paulino, av de Carlos Melo, tpico

    patriarca dos engenhos.

    Doidinho, narrado tambm

    pela personagem Carlos Melo,

    focaliza a sua experincia num col-

    gio interno, de onde foge, voltando

    para o Engenho Santa Rosa.

    Bangu, narrado ainda por

    Carlos Melo, que, formado em

    Direito, dez anos aps deixar o

    Santa Rosa, retorna ao engenho,

    onde, melancolicamente, rememora

    a infncia e assiste decadncia do

    coronel Z Paulino e do Engenho,

    ameaado pela Usina So Flix.

    Usina: na primeira parte, retoma

    a histria do Moleque Ricardo, a partir

    de sua priso como grevista e de seu

    regresso ao engenho. Na segunda

    parte, enfoca a decadncia do Santa

    Rosa, que se transforma na Usina

    Bom Jesus, por fim incorporada

    MDULO 52 Jos Lins do Rego

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    Usina So Flix. Uma enchente

    do Paraba destri a antiga

    propriedade do engenho Santa Rosa,

    simbolizando o fim do ciclo. Os pro-

    blemas sociais decorrentes da revo-

    luo industrial so o centro da

    narrativa, agora em terceira pessoa.

    Fogo Morto

    Fogo Morto considerado a

    obra-prima de Jos Lins do Rego. Es-

    pcie de sntese de toda a sua obra

    ficcional, o romance retoma a ascen-

    so e queda de um engenho, agora

    o Santa F, por meio de trs persona-

    gens cujos destinos se entrecruzam

    na decadncia da economia cana-

    vieira nordestina. O romance des-dobra-se em trs partes:

    Na primeira parte O Mestre

    Jos Amaro surge a figura do

    velho seleiro, Jos Amaro, homem

    frustrado que mora com a mulher e

    a filha em terras do Engenho Santa

    F. O dono do Santa F, Lula de

    Holanda, ordena que Jos Amaro

    abandone o engenho. O romance

    retrata, pois, as brigas com o senhor

    de engenho e as desiluses doseleiro com sua profisso, com a

    vida familiar e com sua filha solteira.

    A segunda parte O Engenho

    de Seu Lula trata da histria do

    Engenho Santa F, que prosperou

    com seu primeiro dono, capito

    Toms Cabral de Melo, mas decaiu

    nas mos do genro Lus Csar de

    Holanda Chacon, seu Lula, casado

    com D. Amlia.

    A terceira parte O Capito

    Vitorino enfoca a figura do compa-

    dre de Jos Amaro, espcie de heri

    que vive lutando e brigando por

    justia e igualdade, defendendo os

    humildes contra os poderosos da

    terra; , por isso, ridicularizado. a

    nica personagem que se mantm

    firme at o fim, j que o mestre Z

    Amaro se suicida e o coronel Lula,

    doente, fica entrevado.

    Cada uma das trs personagens

    representa ou sintetiza uma classe

    da populao. Jos Amaro, o seleiro,

    simboliza o trabalhador, o mundo do

    trabalho. E vibra com o cangao ().

    Lula a nobreza arruinada, a deca-

    dente aristocracia rural. Mergulha no

    passado e num certo misticismo, isto

    , na sua interioridade. () E Vitorino

    o opositor, o quixotesco, o tagarela,

    mistura de povo e nobreza, admi rvelde coragem e generosidade militan-

    te. (Antonio Carlos Villaa)

    III PARTE

    CAPITO VITORINO

    A velha deixou o quarto e saiu para o fundo

    da casa. Vitorino fechou os olhos, mas estava

    muito bem acordado com os pensamentosvoltados para a vida dos outros. Ele muito tinha

    que fazer ainda. Ele tinha o Pilar para tomar

    conta, ele tinha o seu eleitorado, os seus adver-

    srios. Tudo isso precisava de seus cuidados, da

    fora do seu brao, de seu tino. () A sua velha

    Adriana quisera abandon-lo para correr atrs do

    filho. Desistiu para ficar ali com uma pobre. Podia

    ter ido. Ele, Vitorino Carneiro da Cunha, no

    precisava de ningum para viver. Se lhe

    tomassem a casa onde morava, armaria a sua

    rede por debaixo dum p de pau. No temia a

    desgraa, no queria a riqueza. () Um dia to-maria conta do municpio.

    () A vila do Pilar teria calamento,

    cemitrio novo, jardim, tudo que ltabaiana tinha

    com o novo Prefeito. () A levantou-se. (...)

    Ele, chefe poltico do Pilar, no teria inveja do

    Dr. Herclito de ltabaiana. Todos pagariam

    impostos. Por que Jos Paulino no queria pa-

    gar impostos? Ele prprio iria com os fiscais

    cobrar os dzimos no Santa Rosa. Queria ver o

    ricao espernear. Ah! Dava gritos.

    Tem que pagar, primo Jos Paulino,

    tem que pagar, sou eu o Prefeito Vitorino que

    estou aqui para cumprir a lei. Tem que pagar!

    E gritou na sala com toda a fora.

    Apareceu a velha Adriana, assustada.

    O que h, Vitorino?

    E quando viu que no havia ningum na

    sala:

    Estavas sonhando?

    Que sonhando, que coisa nenhuma.

    Vai para a tua cozinha e me deixa na sala. ()

    Levantou-se outra vez e saiu para a fren-

    te da casa. ()

    Entra para dentro, Vitorino, est muito

    frio. A friagem da lua te faz mal.Ele no respondeu. No outro dia sairia

    pelo mundo para trabalhar pelo povo. ()

    Quando ent rasse na casa da Cmara sa cu-

    diriam flores em cima dele. Dariam vivas,

    gritando pelo chefe que tomava a direo do

    municpio. Mandaria abrir as portas da cadeia.

    Todos ficariam contentes com o seu triunfo. ()

    Ah, com ele no havia grandes mandando em

    pequenos. Ele de cima quebraria a goga1 dos

    parentes que pensavam que a vila fosse

    bagaceira de engenho.

    Vitorino, vem dormir. J vou.

    E, escorado no portal da casa de taipa,

    de cho de barro, de paredes pretas, Vitorino

    era dono do mundo que via, da terra que a lua

    branqueava, do povo que precisava de sua

    proteo.

    Tem cuidado com o sereno.

    Cala esta boca, vaca velha. J ouvi.

    Depois, com as portas fechadas, estirado

    na rede, com o corpo dodo, continuou a fazer

    e a desfazer as coisas, a comprar, a levantar, a

    destruir com as mos trmulas, com o seu

    corao puro.

    (Fogo Morto)

    Vocabulrio

    1 Goga: fanfarronice, farra.

    TEXTO

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    1. GRACILIANO RAMOS(Quebrngulo, AL,1892 Rio de Janeiro, 1953)

    Vida

    Fez estudos secundrios emMacei, mas no cursou nenhumafaculdade. Em 1910 estabeleceu-seem Palmeira dos ndios, onde o paivivia de comrcio. Aps uma breveestada no Rio de Janeiro, como revi-sor do Correio da Manhe de A Tarde(1914), regressou a Palmeira dosndios. Passa a fazer jornalismo epoltica, exercendo a prefeitura dacidadezinha entre 1928 e 1930. Atambm redige, a partir de 1925, seuprimeiro romance, Caets. De 30 a 36viveu quase todo o tempo em Macei,onde dirigiu a Imprensa Oficial doEstado. Data desse perodo a suaamizade com escrito res que forma-vam a vanguarda da literatura nor-destina: Jos Lins do Rego, Rachel deQueirs, Jorge Amado, WaldemarCavalcanti; tambm a poca emque redige So Bernardo e VidasSecas. Em maro de 1936 presocomo subversivo. Embora sem pro-vas de acusao, levam-no a

    diversos presdios, sujeitam-no a maisde um vexame e s o liberam emjaneiro do ano seguinte: as Memriasdo Crceresero o depoimento exatodessa experincia. () Em 1945 in-gressou no Partido Comunista Brasi-leiro. Em 1951, foi eleito presidente daAssociao Brasileira de Escritores;no ano seguinte viajou para a Rssia eos pases socialistas, relatando o queviu em Viagem. Graciliano faleceu noRio aos sessenta anos de idade.

    (Alfredo Bosi) Obras

    RomanceCaets (1933)

    So Bernardo (1934)

    Angstia (1936)

    Vidas Secas (1938)

    ContoInsnia(1947)

    Obra memorialsticaInfncia (1945)

    Memrias do Crcere (1953)

    Viagem (ChecoslovquiaURSS

    1954)

    Linhas Tortas (Crnicas, 1962)

    Viventes das Alagoas(Quadros e

    costumes do Nordeste 1962)

    Literatura infantilHistrias de Alexandre(1944)

    Dois Dedos(1945)

    Histrias Incompletas(1946)

    Caractersticas Pode-se dividir a obra de Gra-

    ciliano Ramos em trs sries:

    a srie dos romances escri-tos em 1.a pessoa Caets,So Bernardo, Angstia queconstituem uma progressivaanlise psicolgica da almahumana;

    a srie das narrativas es-critas em 3.a pessoa Vidas Secas, os contos deInsnia em que o autor sefixa nas condies de existn-cia das personagens;

    a srie das obras autobio-

    grficas lnfncia, Memriasdo Crcere nas quais oautor expressa a sua subjetivi-dade, dispensando a fantasia.

    Isto permite supor que houve neleuma rotao de atitude literria, tendoa necessidade de inventar cedido opasso, em certo momento, neces-sidade de depor. E o mais interes-sante que a transio no seapresenta como ruptura, mas como

    consequncia natural, sendo que nosdois planos a sua arte conseguiutransmitir vises igualmente vlidasda vida e do mundo.

    (Antonio Candido)

    O realismo de Graciliano Ramostem sempre carter crtico. Oheri sempre problem-tico e no aceita o mundo, nem

    os outros, nem a si mesmo. No h predomnio do regiona-

    lismo, da paisagem. Esses as-pectos s interessam na medidaem que interagem com o ele-

    mento humano. Os traos mais caractersticos do

    estilo de Graciliano Ramos so aeconomia vocabular, a palavraincisiva, que corta como faca;o uso restrito do adjetivo e a sin-taxe clssica que o aproxima deMachado de Assis e o distan-cia do vontade dos modernis-tas, quanto ao aspecto gramatical.

    Graciliano situa-se no polo opos-to do populismo dos autores

    que exploram a vitalidade dohomem simples na busca dopitoresco e do melodramtico.Sua opo pelo despojamento,pelo tenso e profundo. Sua mo-dernidade pouco deve aos mo-dernistas e s modas literrias,perante as quais foi visto comoinatual e conservador.

    Obras centrais CaetsNarrado em primeira pessoa, por

    Joo Valrio, a ao desenvolve-seem Palmeira dos ndios. JooValrio, a personagem principal,introvertida e fantasiosa, apaixona-sepor Lusa, mulher de Adrio, donoda firma comercial onde trabalha. Ocaso amoroso denunciado por umacarta annima, levando o marido tradoao suicdio.

    Arrependido, e arrefecidos ossentimentos, Joo Valrio afasta-se deLusa, continuando, porm, como

    scio da firma.O ttulo do livro, Caets, a apro-

    ximao que faz o autor com oselvagem caet, que devorou obispo Sardinha (1602-1656), numacorrespondncia simblica com aantropofagia social de Joo Valrio,que devora Adrio, o rival.

    Joo Valrio , ao mesmo tempo,homem e selvagem:

    MDULO 53 Graciliano Ramos I

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    No ser selvagem! Que sou euseno um selvagem, ligeiramente poli-do, com uma tnue camada de vernizpor fora? Quatrocentos anos de civili-zao, outras raas, outros costumes.E eu disse que no sabia o que sepassava na alma de um caet! Pro-vavelmente o que se passa na minha

    com algumas diferenas.

    AngstiaTecnicamente, o romance mais

    complexo de Graciliano Ramos.O livro a histria de um frus-

    trado, Lus da Silva, homem tmidoe solitrio que vive entre dois mundoscom os quais no se identifica.Produto de uma sociedade rural emdecadncia, Lus da Silva alimentaum nojo impotente dos outros e de si

    mesmo. Apaixona-se por uma vizi-nha, Marina, pede-a em casamentoe lhe entrega as parcas economiaspara um enxoval hipottico. SurgeJulio Tavares, que tem tudo oque falta a Lus: ousadia, dinheiro eposio social, euforia e uma tran-quila inconscincia. A ftil Marina sedeixa seduzir sem dificuldades, eLus, amargurado, vai nutrindo osimpulsos de assassino que o levam,de fato, a estrangular o rival.

    Em certo sentido, a morte deJulio Tavares representa para Lusda Silva a desforra que tira contratodos, mas que em seguida perde oaparente significado de vitria.

    So BernardoPublicado em 1934, So Bernardo

    representa a maturidade literria deGraciliano Ramos.

    Sobre esta obra, escreveu Anto -nio Candido:

    Acompanhando a natureza do

    personagem, tudo em So Bernardo seco, bruto e cortante. Talvez nohaja em nossa literatura outro livro toreduzido ao essencial, capaz de expri-mir tanta coisa em resumo to estrei-to. Por isso inesgotvel o seu fascnio,pois poucos daro, quanto ele, seme-lhante ideia de perfeio de ajusteideal entre os elementos que com-pem um romance. (Tese e Anttese)

    O narradorO livro narrado em primeira

    pessoa pelo protagonista PauloHonrio, que, movido por uma impo-sio psicolgica, busca uma jus-tificativa para o desmoronamento davida e de seu fracassado casamentocom Madalena.

    A narrao, o dilogo (que no sur-

    ge como conversa, mas como duelo) e

    o monlogo interior fundem-se na

    unidade dos 36 captulos da obra.

    Em seu primeiro romance, Cae ts,Graciliano Ramos seguiu os ditamesda esttica naturalista, situando a per-sonagem em seu contexto social. Ago-ra, em So Bernardo, todo o contextosocial submetido ao drama ntimodo protagonista Paulo Honrio.

    A tcnica da narrativa em primei-

    ra pessoa faz com que todos os fatos,personagens e coisas sejam apre-sentados de acordo com a viso pes-soal do narrador.

    O enredo a histria de um enjeitado,

    Paulo Honrio, dotado de vontade in-teiria e da ambio de se tornar fa-zendeiro. Depois de uma vida de lutase brutalidade, atinge o alvo, as-senhoreando-se da propriedade ondefora trabalhador de enxada, e que dnome ao livro. Aos quarenta e cincoanos casa com uma mulher boa epura, mas, como est habituado srelaes de domnio e v em tudo,quase obsessivamente, a resistnciada presa ao apresador, no percebe adignidade da esposa nem a essnciade seu prprio sentimento. Tiraniza-asob a forma de um cime agressivo edegradante. Madalena se suicida,cansada de lutar, deixando-o s e,tarde demais, clarividente. Corrodo

    pelo sentimento de frustrao, sentea inutilidade da sua vida, orientadaexclusivamente para coisas exterio-res, e procura se equilibrar escreven-do a narrativa da tragdia conjugal.

    (Antonio Candido, Tese e Anttese)

    No livro, ao mesmo tempo em quefaz o balano de uma vida dedicada

    construo da Fazenda So Bernar-do, o narrador se desnuda em seucarter incompreensivo e destrutivo:

    Conheci que Madalena era boaem demasia, mas no conheci tudoduma vez. Ela se revelou pouco a pou-co, e nunca se revelou inteiramente.A culpa foi minha, ou antes, a culpa

    foi desta vida agreste, que me deuuma alma agreste.

    O estiloSendo um romance de senti-

    mentos fortes, So Bernardo tam-bm um romance forte como estruturapsicolgica e literria.

    Dois movimentos o integram: um,a violncia do protagonista contrahomens e coisas; outro, a violnciacontra ele prprio. Da primeira, resul-

    ta S. Bernardo-fazenda, que se incor-pora ao seu prprio ser, como atributopenosamente elaborado; da segunda,resulta S. Bernardo-livro-de-recor-daes, que assinala a desintegraoda sua pujana. De ambos, nasce aderrota, o traado da incapacidadeafetiva.

    O prprio estilo, graas secura eviolncia dos perodos curtos, em quea expresso densa e cortante peno-samente obtida, parece indicar essapassagem da vontade de cons truir vontade de analisar, resultando umlivro direto e sem subterfgio, hones-to ao modo de um caderno de notas.

    Caso elucidativo o da paisa-gem. No h em So Bernardoumanica descrio, no sentido romnticoe naturalista, em que o escritorprocura fazer efeito, encaixando notexto, periodicamente, vises ouarrolamentos da natureza e dascoisas. No entanto, surgem a cadapasso a terra vermelha, em lama ou

    poeira; o verde das plantas; o relevo,as estaes; as obras do trabalhohumano: e tudo forma enquadramen-to constante, discretamente referido,incorporando o ambiente ao ritmo psi-colgico da narrativa. Esse livro brevee severo deixa no leitor impressesadmirveis.

    (Antonio Candido, Fico e Confisso)

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    1. VIDAS SECAS:SNTESE DO ROMANCE

    Vidas Secas a histria de umafamlia de retirantes, que, paradoxal-

    mente, no chega a constituir propria-mente uma histria. A dura andana,sob a implacabilidade da se ca, decerta forma justifica a inutilidade dacomunicao entre os membros dafamlia, o fato de os meninos noapresentarem nome, as dificuldadeslingusticas de Fabiano, a inquietaoconstante. E tambm justifica osacrifcio do papagaio, que tinhaacompanhado a famlia, e que veio atransformar-se em alimento pro-

    videncial. Como se no bastassemtais infortnios, Fabiano vem a serpreso pelo soldado amarelo, smbolodo autoritarismo local. Ao contrrio deFabiano, que se mostra matuto emtudo, Sinha Vitria apresenta sinais deter vindo de um meio social menosduro. Baleia, a cachorra, conseguesentir e reagir com intelignciasuperior mdia dos animais. Suahumanizao progressiva acompa-nha a tambm progressiva animali-zao dos membros da famlia.

    Fabiano teve de sacrificar a cachorra,por suspeitar que ela estivesse pade-cendo de raiva. Embora se revoltecontra as contas do patro, Fabianotem de aceit-las, para no perder oemprego. Seu reencontro com o sol-dado amarelo, depois, em plena caa-tinga, faz-lhe reconhecer sua prpriasuperioridade. Acaba perdoando, en-sinando ao soldado o caminho devolta. Mas a temida seca enfim estchegando. As rvores se enchem deaves de arribao. Fabiano recomeaa analisar sua vida. Quem lhe dnimo Sinha Vitria. Os retirantesdeixam a casa da fazenda, e retomamo caminho de sempre. No pensamentode Fabiano brilha uma certa esperan-a, materializada pelas promessas dechegar ao sul do pas. Mas a pers-pectiva que vem do narrador a dacontnua andana, sem definio esem destino certo.

    Vejamos agora como se distri-buem os principais acidentes dentrode cada captulo:

    Mudana

    Este primeiro captulo j supetoda uma narrativa anterior, sobre aqual paira o silncio, e cujas carac-tersticas podemos adivinhar: Os in-felizes tinham caminhado o diainteiro, estavam cansados e famin-tos. Vinham tocados pela seca.Chegam ao ptio de uma fazen daabandonada. Fabiano arruma uma fo-gueira. Baleia traz nos dentes umpre. Levantaram-se todos gritando.

    O menino mais velho esfregou as pl-pebras, afastando pedaos desonho. Sinha Vitria beijava o focinhode Baleia, e como o focinho estavaensanguentado, lambia o sangue etirava proveito do beijo. Fabianoenche-se de alegria com a promessade chuvas no poente. J se anuncianeste captulo a compreensvel ru-deza de Fabiano com os filhos,resultado da inco municabilidade.Podemos dizer que este primeirocaptulo apresenta as regras gerais

    do jogo, ou seja, o conjunto deprincpios e situaes que no se vomudar substancialmente. dessetabuleiro inicial que se podemescolher algumas peas para dar-lhesdesenvolvimento particular em cadaum dos captulos seguintes. Dos tre-ze captulos do livro, apenas trsfogem um pouco a esse esquema etrazem cena alguma coisa ines-perada: Cadeia, Festa e O Sol-dado Amarelo. No nos deve admiraro fato de que esses trs captulos soos que estabelecem uma mnimarelao da famlia com a periferia dasociedade, e denunciam, por issomesmo, uma crise da comunicao eda receptibilidade.

    Fabiano

    Apossara-se da casa porqueno tinha onde cair morto, passara

    uns dias mastigando raiz de imbu esementes de mucun. Viera a tro voa-da. E, com ela, o fazendeiro, que oexpulsara. Fabiano fizera-se desen-tendido e oferecera os seus prs-

    timos, resmungando, coando oscotovelos, sorrindo aflito. O jeito quetinha era ficar. E o patro aceitara-o,entregara-lhe as marcas de ferro.

    Agora Fabiano era vaqueiro, eningum o tiraria dali. Aparecera comoum bicho, entocara-se como um bicho,mas criara razes, estava plantado.Contente, dizia a si mesmo: Voc umbicho, Fabiano. Sua vida era com osbrutos, sua linguagem era deficiente:Admirava as palavras compridas e

    difceis da gente da cidade, tentavareproduzir algumas, em vo, mas sabiaque elas eram inteis e talvez perigo-sas. Lembrava-se sempre de seuToms da bolandeira. Aquele, sim, que falava bem. Seu Toms liademais.

    O patro mostra autoridade. Fabia-no obedece, pois se preocupa com ofuturo, com a educao dos filhos.

    Note-se como a presena do pa-tro obedece a um movimento circu-lar. Ele j despedira Fabiano antes.Reencontra Fabiano e, a pedido deste,deixa-o ficar. Depois, despede-o denovo. A famlia ento que deveretomar o crculo da andana.

    Cadeia

    Na feira da cidade, Fabiano convidado por um soldado amarelopara jogar trinta e um. Perde, e sai. Osoldado o insulta por ter sado sem sedespedir. Fabiano levado para a

    cadeia e apanha.Obviamente o soldado no prende

    Fabiano por uma antipatia pessoal, queo vaqueiro lhe inspirasse. Prende-o,porque, afinal, ele deve exercer a auto-ridade com algum. Para o soldadoamarelo, Fabiano apenas um tipo, otipo social contra quem ele podeexercer sua discriminao e seuautoritarismo.

    MDULO 54 Graciliano Ramos II

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    Sinha Vitria

    Sinha Vitria d um pontap emBaleia. Fabiano criticara seus sapa-tos de verniz, caros e inteis. Ela querj h mais de um ano uma cama delastro de couro, igual cama do seuToms da bolandeira. Vm-lhe as

    recordaes da viagem, a morte dopapagaio. Tem medo da seca. Mas apresena do marido a deixa segura.

    A figura de seu Toms da bolan-deira funciona como um modelo, umparadigma de gente culta, que a fam-lia pde conhecer. importante veri-ficar como Graciliano, atento talvez lio machadiana, faz a mulher ocu-par um plano psicologicamente dis-tinto do plano masculino. Dizemalguns antroplogos que a mulher

    tem uma relao mais ntima com anatureza do que o homem. Entre-tanto, Graciliano parece inverter esseprincpio, pois Sinha Vitria est maisprxima da cultura do que Fabiano.Portanto, sua animalizao menor.

    O Menino mais Novo

    Quer ser igual ao pai, e por issodeseja realizar algo notvel, paradespertar a admirao do irmo e dacachorra. Queria amansar uma gua

    e mont-la, como o pai fizera. Tentamontar no bode, e cai, sob risadas doirmo e a desaprovao de Baleia.

    Aqui tambm notamos umaresistncia brutalizao, pois omenino continua com seus sonhos demenino, tal como sua me, quecontinua a sonhar com uma cama delastro de couro.

    O Menino mais Velho

    Sente imensa curiosidade pelapalavra inferno. No obtendo expli-cao do pai, recorre me, quefala em espetos quentes e fo gueiras.Ao perguntar me se ela tinha vistotudo isso, Sinha Vitria lhe d umcocorote. Indignado, o menino seesconde. Fica abraado com a ca-chorrinha. Seu ideal ter um amigo.Todos o abandonavam, a cadelinhaera o nico vivente que lhe mostrava

    simpatia.Ao contrrio de seu irmo, o me-

    nino mais velho j comea a apre-sentar sinais de mais efetiva (e maisdolorosa) imitao paterna. O desejode saber o que significava infernoea lio recebida da me jconstituem, por si ss, maneiras de

    evidenciar como a linguagem notem boa acolhida no contexto dosretirantes. Isso tambm explicariaum pouco as dificuldades lingus-ticas de Fabiano, que no parecemde origem patolgica, mas resultamde inadaptao cultural. E, por outrolado, no plano da construo daobra, o desejo de saber o que inferno no passa de uma discreta(mas intensa) ironia, pois todosestavam, afinal, submetidos ao infer-

    no do sol.

    Inverno

    A famlia se rene ao p do fogo.Fabiano inventa uma histria, mas afamlia no entende, nem ele a sabeexprimir direito. Todos temem a violn-cia ameaadora da chuva. Tambmtemem a seca, que vir depois.

    Esta imagem da famlia reunida,a ouvir uma histria contada pelo pai,pode, de certa forma, parecer-nos ex-

    cessiva. Porque ns, leitores, coloca-dos num plano existencialmentesuperior ao das personagens, estra-nhamos que elas ainda tenham tem-po para se preocupar com algosuprfluo, tanto mais que a situaodelas era de completa apertura. Maseste modo de ler seria incorreto, por-que as situaes de angstia prolon-gada conhecem tambm um movi-mento de vaivm, entre a angstia e adistrao. Graciliano conhecia muito

    bem este fenmeno.

    Festa

    Festa de natal na cidade. As rou-pas da famlia ficaram apertadas. Osmeninos estranham tudo em volta.Comparando-se aos tipos da cida-de, Fabiano reconhecia-se inferior.Depois da missa, convida a mulher eos filhos para os cavalinhos. Quer ir

    s barracas de jogo, mas sinha Vitriadesaprova. Bebe em demasia, ficavalente. Mas acaba pegando no sonona calada. Fabiano sonha commuitos soldados amarelos que lhepisavam os ps e ameaavam comfaces terrveis. Este captulo pro curaexprimir o sentimento de inferio ridade

    da famlia. Mas no fica nisso. Porquea obedincia forada muitas vezespulverizada pela revolta repentina.Isso, alis, tpico do comportamentosertanejo, pelo menos no que esttestemunhado pela fico regionalis-ta. H um sentimento de dignidadehumana, que mais cedo ou mais tardese vem a manifestar.

    Baleia

    Baleia no estava bem. Fabianocalcula que era raiva (hidrofobia) eresolve matar o animal. Sinha Vitriatem de conter os meninos. Desconfia-da, Baleia tenta esconder-se. Feridana perna, Baleia foge, mas no con-segue alcanar os juazeiros. Baleiano conseguia entender o que estavaacontecendo. Baleia queria dormir.Acordaria feliz, num mundo cheio depres. E lamberia as mos de Fabia-no, um Fabiano enorme.

    Pode-se dizer que o realismo con-

    tnuo de Graciliano Ramos encontraem Baleia seu ponto de inverso. Defato, o carinho, a ternura com que onarrador se transfere para dentro doanimal, a sabedoria com que soubepreparar a cena pattica, o clmax dehumanizao do bichinho antes damorte, tudo isto nos mostra repentina-mente um Graciliano muito prximodos modos sublimes da literaturanarrativa, o que contrasta com a pai-sagem constante do livro. Digamos

    que esse um momento de poesiatrgica de Vidas Secas.

    Contas

    O patro rouba Fabiano nas contas.Os bezerros e cabritos que lhe ca biam,como paga pelo trabalho, Fabiano ostem de vender ao patro. Fabianoreclama, pois as contas do patro noconferem com as feitas por sinha Vitria.

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    O patro lhe aconselha a procurarservio noutra fazen da. Fabiano sedesculpa. Fabiano depois recorda ainjustia que sofreu de um fiscal daprefeitura por ter ten tado vender umporco. O pai vivera assim, o av tam-bm. E para trs no existia famlia.Cortar mandacaru, ensebar ltegos

    aquilo estava no sangue. Conformava-se, no pretendia mais nada.

    O Soldado Amarelo

    E eis que Fabiano encontra nacaatinga o soldado amarelo que olevara para a cadeia. O soldado, aco-vardado, fica merc de Fabiano, quevacila em sua inteno de vingana, eacaba ensinando ao soldado o cami-nho do retorno.

    Este um dos momentos degrande ironia, pois o soldado a apa-rece naquilo que ele pessoal esocialmente, no mais naquilo que ainstituio o fazia parecer ser. E ele ,enfim, e sob vrios aspectos, inferior aFabiano. Existe uma proporo entreambos. Fabiano tanto mais fortequanto mais prximo da caatinga. Osoldado tanto mais forte quantomais acobertado pelas instituies. Afora de Fabiano vem dele prprio; opoder do soldado, o autoritarismo que

    exerce sobre os outros, ao contrrio,no vem dele, mas da orga nizao aque pertence.

    O Mundo Coberto de Penas

    A seca est voltando. o queanunciam as aves de arribao. SinhaVitria adverte: as aves estotomando a gua que mantm vivos osoutros animais. Fabiano se admira dainteligncia de sua mulher, e procura

    matar vrias aves com a espingarda.Serviro de alimento. Fabiano noconsegue esquecer Baleia. Erapreciso sair dali. Novamente se vaiprecipitar a andana.

    Fuga

    Preparam a viagem, partem de ma-drugada. Fabiano mata o bezerro que

    possuem e salga a carne. Sinha Vitriafala de seus sonhos ao marido. Estese enche de esperana. E andavampara o sul, metidos naquele sonho.Uma cidade grande, cheia de pes-soas fortes. Os meninos em escolas,aprendendo coisas difceis e neces-srias. Eles dois velhinhos, acaban-

    do-se como uns cachorros, inteis,acabando-se como Baleia. Que iriamfazer? Retardaram-se te merosos. Che-gariam a uma terra desconhecida ecivilizada, ficariam presos nela. E o ser-to continuaria a mandar gente paral. O serto mandaria para a cidadehomens fortes, brutos, como Fabiano,sinha Vitria e os dois meninos.

    Este final, se no representa nemde longe um final feliz, , pelo me-nos, uma porta aberta para sair-se do

    contnuo giro circular. um final im -portantssimo para a soluo doromance, pois introduz uma pequenaabertura para a utopia das grandesmetrpoles, e reproduz, com verossi-milhana, aquilo que de fato acontecena cena brasileira.

    2. A ESTRUTURADO ROMANCE

    Um dos elementos mais aguarda-dos, num romance regionalista, oenredo, a intriga, ou seja, a forma queno romance assume a sociedade. Jse v que Vidas Secasno pde con-tar com uma intriga slida, complexa.Enfim, a obra Vidas Secasno temuma histria, no sentido romancsticodo termo, pois, para que haja umahistria substancial, necessrio quea sociedade se manifeste. Ora, as rela-es sociais, em Vidas Secas, soapenas vislumbradas de longe, ousinalizadas em circunstncias muito

    rpidas e muito fortuitas. A famlia projetada para o mbito agressivo danatureza. Portanto, a fisionomia he -roica da famlia se vai formar na lutacontra a hostilidade natural, na orga-nizao mnima do instinto de sobre-vivncia. A sociedade reaparece aquiou ali, mas tensa e vigilante, como osguardas de uma fronteira. Isso, por

    reflexo, acaba apontando uma socie-dade dividida entre grandes proprie-trios rurais e seus trabalhadores, querepresentam apenas disponibilidadeeventual de fora de trabalho.

    Do ponto de vista do narrador, quese manifesta em terceira pessoa e onisciente, a discrio ttica sensvel.Graciliano certamente achou que apintura dos quadros bastava para daro perfil ideolgico do romance. Noobstante a misria e o quadro de ironiasocial, as pinturas de Graciliano alcan-am o nvel de rara execuo artstica,demonstrada no s no desenho con-ciso e na frase enxuta, mas no modode organizao dos episdios.Repare-se que os captulos lembramverdadeiras tomadas flmicas. Socenas colocadas umas ao lado das

    outras, com pouca continuidadenarrativa, embora apresentadas emconstante movimentao. Da que amaioria dos captulos possa ser lidacomo contos autnomos. E, de fato, ainteno primeira de Graciliano Ramosfoi a de escrever um conto. Sua securano vinha de um projeto de concisoabertamente defendido, como foi o pro-jeto de modernidade apresentado porOswald de Andrade ou M rio de An-drade. A secura de Graciliano Ramos

    tinha principalmente duas fontes. Umaera o carter do homem, um cartercoeso e determinado, que o fazia sen-tir como despudor todo excessoverbal, sobretudo se fosse romntico,expansivo. A outra fonte era a prprianecessidade de harmonizar a lin-guagem ao panorama seco e inspitoque estava descrevendo. No fundo,isso revela necessidade de adequaoimitativa adequao entre arealidade representada e o estilo de

    represen tao , fundamental para oneorrealismo regionalista.

    A prosa de Graciliano Ramos cor-responde a um esforo de anlise dosdramas sociais. E Graciliano foi, emsua gerao, a chamada geraoregionalista dos anos 30, aquele quemelhor soube casar a denncia com aelaborao artstica.

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    MDULO 55 Guimares Rosa I

    1. A LITERATURADO PS-GUERRA

    O perodo do ps-guerra vai prio-rizar a prosa de fico em vez da

    poesia. Tal fato se explica por sero gnero narrativo o mais ade-quado expanso da necessida-de de comunicao direta e olugar mais amplo para a apresen-tao do homem em todas assuas dimenses.

    As perspectivas abertas pelo ro-mance neonaturalista norte-ame-ricano e pelo neo-realismo italianoprosseguem, dando-se mais impor-tncia realidade social do que individual.Nos anos 50, o romance, que sefunde no experimentalismo, rom-pendo com a tradio do gnero,reaparece no Nouveau Romanfrancs, aprofundando as inova-es trazidas por escritores comoJames Joyce e Virginia Woolf.

    Desaparecem os limites entre ro-mance, conto e novela, e a ficotorna-se mais complexa e frag-mentada, modificando, ou mesmofazendo desaparecer, os elemen-tos tradicionais, como narrador,personagem, tempo, espao. Em

    alguns romances, tenta-se mes-mo anular esses elementos.Despreza-se o enredo, problema-tiza-se a personagem, fragmenta-seo tempo.

    2. A FICOBRASILEIRA PS-1945

    O romance experimentalA Gerao de 45 vai abrir cami-

    nho para novas representaes derealidade, que se fazem a partir detrs tendncias distintas: a permanncia realista do teste-

    munho humano; a atrao pelo transreal, numa

    tentativa de justificar a condiohumana por sua projeo no mun-do mtico da arte;

    a redescoberta da linguagem, co-mo elemento de comunicao ecomo elemento que instaura oreal.

    A partir das descobertas trazidaspela Lingustica a palavra cria arealidade , define-se melhor o fen-meno fico. O romance deixa deser uma simples representao da

    realidade para ter valor em si. nessa linha da pesquisa da lin-

    guagem, de reinveno do cdigo lin-gustico, que se situam as duas prin-cipais figuras da fico ps-45: JooGuimares Rosa e Clarice Lispector.

    Alm da preocupao com a lin-guagem, h outros pontos que aproxi-mam Guimares Rosa e ClariceLispector: a busca de universalizaodo romance nacional, por meio dasondagem do mundo interior de per-sonagens.

    Contudo, em Guimares Rosa hainda a preocupao em manter o en-redo e o suspense. J Clarice Lispec-tor abandona totalmente a noo detrama romanesca para mergulhar naprpria conscincia das persona-gens, relatando, de dentro, suasoperaes mentais ou registrando aincomunicabilidade do ser humano,preso a um cotidiano montono esufocante.

    3. GUIMARES ROSA(Cordisburgo, MG,1908 Rio de Janeiro, 1967)

    VidaMdico, diplomata, s obteve re-

    conhecimento geral como escritor apartir de 1956, quando publicou Gran-de Serto: Veredase Corpo de Baile.

    Admitido solenemente Acade-mia Brasileira de Letras, faleceu trsdias aps sua posse. quase unani -memente reconhecido, no Brasil, co-

    mo a maior expresso de nossafico no sculo XX. Obras

    Sagarana(1946)Corpo de Baile(1956)Grande Serto: Veredas(1956)Primeiras Estrias(1962)Tutameia Terceiras Estrias(1967)Estas Estrias(1969)Ave, Palavra(1970)

    Observao: Corpo de Baile, apartir da 3.a edio, tripartiu-se emvolumes autnomos. Manuelzo e Miguilim (Campo

    Geral e Uma Estria de Llio e

    Lina); No Urubuquaqu, no Pinhm(O

    Recado do Morro, Cara deBronze e A Estria de Llio e Li-na);

    Noites do Serto(Lo-Dalalo eBuriti).

    O regionalismo universa-lista o serto o mundo

    Extraindo sua matria do sertomineiro espao marginal civili-zao moderna , onde o gado

    campeia, Guimares Rosa toma oserto como uma forma de apren-dizado sobre a vida, no apenasdo sertanejo, mas do homem. Osgrandes temas da literatura uni-versal so projetados no serto: obem e o mal, Deus e o Diabo, avida e a morte, o amor e o dio.

    O gado, fonte de subsistncia dosertanejo, integra a obra comocomponente potico da narrativa,e a natureza, alm de cenrio, um elemento ativo, participante,

    diretamente ligada aos destinosdo homem. A flora, a fauna e apaisagem so recriadas mtica epoeticamente, oferecendo mate-rial para a reinveno da lingua-gem, por meio de comparaes,imagens, metforas, metonmiase pela explorao intensiva dosrecursos poticos: ritmo, rima, ali-teraes, cortes e deslocamentosde sintaxe, vocabulrio inslito,erudito e arcaico, neologismos,tudo isso modulado pela cadn-

    cia da fala do sertanejo:

    O senhor tolere, isto o serto.Uns querem que no seja: que situa-do serto por os campos-gerais afora a dentro, eles dizem, fim de ru -mo, terras altas, demais do Urucuia.Toleima. Para os do Corinto e do Cur-velo, ento, o aqui no dito serto?Ah, que tem maior! Lugar serto sedivulga: onde os pastos carecem

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    de fechos; onde um pode torar dez,quinze lguas, sem topar com casade morador; onde criminoso vive seucristo-jesus, arredado do arrocho deautoridade (...).

    Esses gerais so sem tamanho.Enfim, cada um o que quer aprova, osenhor sabe: po ou pes, questo

    de opinies... O serto est em toda aparte.

    (Grande Serto: Veredas)

    A reinveno da linguagem O que se altera na fico brasi-

    leira com a produo de Guima-res Rosa o modo de lidar coma palavra, a maneira de conside-rar a linguagem.

    A tendncia regionalista acabaassumindo a caracterstica de ex-perincia esttica universal, com-

    preendendo a fuso entre o real eo mgico, de forma a radicalizaros processos mentais e verbaisinerentes ao contexto fornecedorde matria-prima. O folclrico, opitoresco e o documental cedemlugar a uma maneira nova derepensar as dimenses da cul-tura, flagrada em suas articula-es no mundo da linguagem.

    Alm da capacidade criadora doautor, a linguagem rosiana funda-

    se no profundo domnio do por-tugus arcaico e contempor-neo, no conhecimento de outraslnguas e nos caderninhos queacompanhavam Rosa em suasandanas pelo serto, onde ano-tava a maneira de falar do povobrasileiro, utilizada, no como re-gistro de superfcie, mas comoexpresso verbal que se aproxi-ma da metfora potica dos gran-des escritores universais.

    As experincias semnticas de

    Rosa apoiam-se num profundoconhecimento da musicalidadeda fala sertaneja, numa melopeiacheia de cadncias populares emedievais.

    Erudita e popular, a linguagem deRosa funde narrativa e lrica, pormeio de recursos poticos: clulasrtmicas, aliteraes, onomatopeias,rimas internas, ousa dias mrficas,

    elipses, cortes e deslo camentossintticos, vocabulrio inslito (ar-casmos e neologismos), associa-es raras, metforas, anforas,metonmias, fuso de estilos etc.

    Por meio de elementos mitopoti-cos, Rosa trabalha as dimenses

    pr-conscientes do homem, entre oreal e o surreal, nutrindo-se de velhastradies, como as que inspiravam,nas canes de gesta e novelas decavalaria dos guerreiros medievais, oconvvio entre o sagrado e o demo-naco.

    Em suas narrativas, a prosa apro-xima-se da poesia, como se podenotar no seguinte trecho, que mime-tiza, pela explorao da musicalidade,o movimento de uma boiada:

    As ancas balanam, e as vagasde dorsos, das vacas e touros, baten-do com as caudas, mugindo no meio,na massa embolada, com atritos decouros, estralos de guampas, estron-dos e baques, e o berro queixoso dogado junqueira, de chifres imen sos,com muita tristeza, saudade doscampos, querncia dos pastos de ldo serto...

    Um boi preto, um boi pintado,cada um tem sua cor.

    Cada corao um jeitode mostrar o seu amor.

    Boi bem bravo, bate baixo, botababa, boi berrando... Dana doido,d de duro, d de dentro, d direito...Vai, vem, volta, vem na vara, vai novolta, vai varando...

    (in Sagarana, O Burrinho Pedrs)

    Grande Serto: Veredas

    o nico romance escrito porRosa, publicado no mesmo ano que

    Corpo de Baile(1956). Obra-prima, tra-duzida para muitas lnguas, uma nar-rativa em que experincias de vida ede texto se fundem numa obra fasci-nante, permanentemente desafiadora.

    O romance se constri como umalonga narrativa oral, espcie de mo-nlogo infinito, posto em forma dedilogo. Riobaldo, um velho fazen-deiro, ex-jaguno, conta sua expe-

    rincia de vida a um interlocutor (umdoutor da cidade, de visita no serto),que jamais tem a palavra e cuja fala apenas sugerida.

    As histrias vo sendo emenda-das, articulando-se com a preocupa-o do narrador em discutir aexistncia ou no do diabo, do que

    depende a salvao de sua alma.Ocorre que, em sua juventude,

    para vencer seu grande inimigo, Her-mgenes, Riobaldo parece ter feitoum pacto com o diabo. Embora emmuitos momentos isso parea eviden-te, a existncia ou no do pacto ficapor conta das interpretaes do leitor.

    A problemtica demonaca rela-ciona-se com o amor proibido deRiobaldo por seu amigo Reinaldo,apelidado Diadorim. Ao final da aven-tura, a morte do amigo revela aRiobaldo que Diadorim era, na ver-dade, a moa Maria Deodorina, dis-farada em homem o que leva opersonagem-narrador a uma constan-te indagao sobre a mistura entre ocerto e o errado, o ser e a aparncia,a vida e a fico, e que se traduz nafrase repetida por todo o romance:Viver muito perigoso.

    Campo Geral a histria dainfncia de Miguilim, em quem alguns

    crticos identificam elementos da pr-pria vida de Guimares Rosa. Emboraa novela seja escrita em terceirapessoa, toda a narrativa feita a partirda viso do menino: o mundo infantil o primeiro plano de toda a ao e,dessa maneira, os outros eventos,como o drama dos adultos e a difcilvida no serto, so filtrados pelolirismo do olhar da criana.

    O tema central da novela a ideiade travessia, tema recorrente na obrade Guimares Rosa, e que aqui se

    traduz na passagem do tempo (dainfncia para a vida adulta) e namudana do espao (do serto paraa cidade).

    Publicada em 1956, a novelaCampo Geral abria o livro Corpo deBaile, que tem como ltima narrativaa novela Buriti, na qual se narra avolta de Miguel (o Miguilim adulto),formado em Veterinria, ao serto.

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    Miguilim e Dito dormiam no mesmocatre, perto da caminha de Tomezinho.Drelina e Chica dormiam no quarto de Paie Me.

    Dito, eu fiz promessa, para Pai e TioTerz voltarem quando passar a chuva, e

    no brigarem, nunca mais... Pai volta.Tio Terz volta no, Como que vocsabe, Dito? Sei no. Eu sei. Miguilim,voc gosta de tio Terz, mas eu no gosto. pecado? , mas eu no sei. Eutambm no gosto de Vov Izidra. Dela,faz tempo que eu no gosto. Voc achaque a gente devia de fazer promessa aos

    santos, para ficar gostando dos paren-tes? Quando a gente crescer, a gentegosta de todos. Mas, Dito, quando eucrescer, vai ter algum menino pequeno,assim como eu, que no vai gostar demim, e eu no vou poder saber?

    (Campo Geral)

    TEXTO

    59

    MDULO 56 Guimares Rosa II

    1. SAGARANA

    Em sua primeira verso, os con-tos de Sagarana foram escritos em1937 e submetidos a um concursoliterrio (o Prmio Graa Aranha,institudo pela Editora Jos Olympio)em que no obtiveram premiao,

    apesar de Graciliano Ramos, membrodo jri, ter advogado para o livro deGuimares Rosa (sob o pseudnimode Viator) o primeiro lugar (ficou emsegundo). Viator, em latim, significaviandante, pseudnimo que cabecom justeza ao homem que foi umviajante(tomada a palavra em sentidoprprio e figurado) do serto e domundo.

    Guimares Rosa deixou o livroindito e o foi depurando (enxugan-do) at 1945, ano em que promoveunele as profundas alteraes daverso que veio luz em 1946 (defi -nitiva), reduzindo-o das 500 pginasoriginais para cerca de 300.

    O ttulo do livro, Sagarana, reme-te-nos a um dos processos de inven -o de palavras mais caractersticosde Rosa o hibridismo. Saga ra-dical de origem germnica e significacanto heroico, lenda; ranavem delngua indgena e quer dizer ma -neira de ou espcie de.

    As histrias desembocam semprenuma alegoria, e o desenrolar dos fa -tos prende-se a um sentido ou mo-ral, maneira das fbulas. Asepgrafes que encabeam cada contocondensam sugestivamente a narrati-va e so tomadas da tradio mineira,dos provrbios e cantigas do serto.

    O livro principia por uma epgra-fe, extrada de uma quadra de desa-

    fio, que sintetiza os elementos cen-trais da obra Minas Gerais, serto,bois, vaqueiros e jagunos, o bem eo mal:

    L em cima daquela serra,passa boi, passa boiada,passa gente ruim e boa,passa a minha namorada.

    Sagarana compe-se de novecontos:

    1. O Burrinho Pedrs2. A Volta do Marido Prdigo3. Sarapalha4. Duelo5. Minha Gente6. So Marcos7. Corpo Fechado8. Conversa de Bois9. A Hora e Vez de Augusto

    Matraga

    O Burrinho PedrsPea no profana, mas sugerida

    por um acontecimento real, passadoem minha terra, h muitos anos: oafogamento de um grupo de vaquei-ros, num crrego cheio.

    (Guimares Rosa)

    FragmentoEra um burrinho pedrs, mido e

    resignado, vindo de Passa-Tempo,Conceio do Serro, ou no sei ondeno serto. Chamava-se Sete-de-Ouros,e j fora to bom, como outro noexistiu e nem pode haver igual.

    Agora, porm, estava idoso, mui-to idoso. Tanto, que nem seria precisoabaixar-lhe a maxila teimosa, para es -piar os cantos dos dentes. Era decr-pito mesmo a distncia: no algodobruto do pelo sementinhas escurasem rama rala e encardida; nos olhos

    remelentos, cor de bismuto, com pl-pebras rosadas, quase sempre oclu-sas, em constante semissono; e nalinha, fatigada e respeitvel umahorizontal perfeita, do comeo datesta raiz da cauda em pnduloamplo, para c, para l, tangendo asmoscas.

    Na mocidade, muitas coisas lhehaviam acontecido. Fora comprado,dado, trocado e revendido