4. Patrimônio cultural e sustentabilidades na cidade do ... · entender, o antídoto natural para...
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4. Patrimônio cultural e sustentabilidades na cidade do Rio de Janeiro: por uma gestão territorial baseada na relação cultura–desenvolvimento
Para nós, não se trata de um conceito acabado, definido a priori. Ao contrário,
devemos considerá-lo como algo a ser construído, transformado, em movimento
(tal como o desenvolvimento), no qual cada sociedade deveria estabelecer os
parâmetros de sustentabilidade das relações com a natureza e intra-sociedade,
integrados à mesma lógica (...). Teríamos, assim, uma ampliação do alcançe do
termo sustentabilidade, abrangendo a ciência, a Ecologia, a Economia Política, a
Geografia e o desenvolvimento (territorial) como elementos básicos para a sua
definição.É nesse sentido mais amplo que falamos de sustentabilidades, da
mesma maneira que falamos em desenvolvimentos, produtos de embates
políticos-ideológicos e econômicos-sociais particulares, na busca de saberes
(científicos / formais ou não) sobre a natureza (RUA, 2007, p.172-173)
(...) trabalhar com resgate de valores éticos e culturais para a partir deles, re-
conceituar a discussão sobre desenvolvimento sustentável, significa encontrar as
estreitas vielas deixadas pelas práticas sistemáticas de enfraquecimento mútuo
para, através delas, fazer avançar a construção de identidades culturais
poderosas e transformadoras que permitam encaminhar uma nova racionalidade –
na vida e na utopia. Trata-se de buscar os valores para os domínios
desenvolvimento, cultura e sustentabilidade que transformem definitivamente
desenvolvimento sustentável em uma relação de congruência. (FONSECA,
2005, p.10 – grifos de FONSECA)
As citações acima são bastante representativas do que se pretende alcançar
nessa última etapa da dissertação. Será realizada, nesse momento, uma tentativa
de inserir os bares e botequins tradicionais, patrimônio cultural imaterial da cidade
do Rio de Janeiro, em um projeto de gestão cujas políticas públicas
implementadas caminhem rumo à efetivação de um desenvolvimento autêntico
baseado numa sustentabilidade espacial que abarque aquilo que Rua (2007)
denomina de “sustentabilidades”; onde a diversidade cultural e a valorização e
preservação das tradições e identidades apareça como garantia de qualidade de
vida da população da cidade do Rio de Janeiro. Em se tratando da gestão do
patrimônio cultural, Santos (2001) acrescenta que um dos maiores desafios dessa
gestão, nos dias de hoje, “é definir conceitualmente e legalmente novas formas de
acautelamento compatíveis com sua abrangência, cada vez maior, e com o
exercício dos direitos culturais do cidadão, reconhecidos na Constituição de 1988
(...)” (p.43).
151
No que diz respeito à assimilação e gestão do simbólico, do intangível que o
patrimônio carrega, perpassa e territorializa Fonseca (2005) afirma que:
“Estamos convencidos de que o patrimônio imaterial das comunidades – ético e
cultural – pode constituir o pilar sobre o qual se apoie o desenvolvimento
sustentável” (p.2). A cidade do Rio de Janeiro é imaterial, repleta de “carioquices
clássicas” que se dissipam pelo ar, sotaque, encontros, sociabilidades, culto ao
corpo, na musicalidade, sabores e etc. Assim sendo os bares e botequins cariocas
são lugares onde “reina” a sociabilidade, sua maior tradição, que vem sendo
transmitida, independente de cor, credo ou posição social daqueles que vivenciam
esses estabelecimentos desde o século XIX.
De acordo com Pelegrini (2006a), muitos são os desafios ao inserir a
gestão do patrimônio cultural, sua valorização, preservação e proteção nas
discussões das cidades, seu espaço e desenvolvimento urbano, onde a população
seja capaz de dar valor ao seu patrimônio, à sua cultura e perceber-se como tal. As
identidades criadas pelas coletividades e representadas pela ferramenta patrimônio
devem servir como luta política e são essenciais para a formação da cidadania.
Patrimônio cultural é política, faz parte do espaço e da esfera pública, dessa
forma, para com ele, todos temos direitos e deveres. Todavia, segue a autora
A necessidade de modernizar os projetos de preservação do patrimônio cultural
aliando-os ao desenvolvimento urbano das cidades parece constituir uma
demanda que não pode mais ser postergada. As políticas de desenvolvimento
devem permitir o incremento territorial e socioeconômico culturalmente renovado
e ecologicamente justo. Definitivamente, existe urgência na articulação da
política cultural com as demais políticas de educação, desenvolvimento urbano,
meio ambiente e turismo, entre outras. (Idem, 2006a, p. 130).
Para Santos (2001), o patrimônio cultural, considerado em toda a sua
amplitude e complexidade, começa a se impor como um dos principais
componentes no processo de planejamento e ordenação da dinâmica de
crescimento das cidades e como também um dos itens estratégicos na afirmação
de identidades de grupos e comunidades. Por conseguinte, o patrimônio, ainda
recorrendo a mesma autora, não pode ser dissociado do planejamento das cidades,
visto somente sob o enfoque do desenvolvimento econômico ou então,
simplesmente, ignorado (p.45), mas deve ser visto uma das matrizes discursivas
da sustentabilidade urbana se apoia no que ele denomina de “modelo de
patrimônio”. (ACSELRAD, 2001)
152
Ademais, ao recordar uma das contribuições do Prof. João Luiz de
Figueiredo Silva130
, se torna imprescindível reconhecer que o capitalismo no
século XXI tem como uma de suas sustentações a cultura, onde a criação do
simbólico gera valor, onde há os condicionamentos mercadológicos e, por fim, o
consumo cultural. Além do que as cidades são espaços de criação e,
especificamente, na cidade do Rio de Janeiro essa criação é extremamente
significativa, já que ela não é e nunca foi, por exemplo, uma cidade industrial sob
uma perspectiva clássica. Diz Fonseca (2005) que estamos em tempos do
capitalismo cultural ou bio-capitalismo (p.8) e que os gestores desse sistema
produtivo já perceberam que “são os nossos valores éticos e culturais, ou seja, o
imaterial imponderável da nossa subjetividade, o bem mais poderoso a ser
acumulado” (Idem, 2005, p.8).
Ainda assim, por mais que estejamos presos a lógicas produtivistas regidas
pela globalização, ressalta-se que se torna importante “fugir” da discussão
obsessiva em torno do patrimônio cultural enquanto puro objeto mercadológico
que acaba por abafar outras abordagens tão essenciais no entendimento do espaço
geográfico: as suas abordagens políticas, sociais e culturais. “Passa a ser
necessário pensar o novo cenário distinguindo-se a dinâmica cultural e seus
efeitos sociais sob os mencionados condicionamentos mercadológicos ou sem
eles”. (DURAND, 2001, p.68). Afinal, lembra Fonseca (2005), se é do imaterial
da nossa cultura a “novidade” a ser apropriada,
(...) se é disso que advém o lucro – e consequentemente a exploração -, bem pode
ser desse mesmo repositório que derivem as nossas melhores referências para
uma nova concepção de desenvolvimento sustentável. (FONSECA, 2005, p.8)
A partir do exposto, torna-se importante compreender como o bar e
botequim tradicional, patrimônio cultural imaterial, pode vir a ser parte da
construção das sustentabilidades na cidade do Rio de Janeiro.
130
Professor Adjunto do Departamento de Geografia da PUC-Rio.
153
4.1. Sustentabilidades espaciais, a partir da assimilação da cultura.
De um lado, há que se avançar na construção de uma percepção de cultura mais
pluralista, afastando-nos o mais rápido possível das dicotomias tais como,
canônico/folclórico, letrado/popular, global/local, nacional/regional, até a mais
recente clássica/alternativa, entre outras, todas elas formas de construção e
consolidação de uma hierarquia de valorização/desvalorização das culturas e das
suas expressões, cuja finalidade é transformar diferenças em desigualdades,
discriminar e segregar criadores, expropriar apropriar a criação. Ainda na linha do
rompimento com simplismos, quem sabe fosse útil pensarmos em
desenvolvimento a partir de uma outra racionalidade, menos técnica e ligada a
resultados – naturalmente mensuráveis e comparáveis, o que permite dividir as
nações entre desenvolvidas e em desenvolvimento - ; que fragmenta os saberes
em busca de resultados imediatos e acaba por enfrentar apenas as situações
pontuais. Quem sabe seja chegada a hora de utilizarmos uma lógica mais
holística, com base de uma racionalidade axiológica, para definirmos outros
valores para desenvolvimento, que o reaproximem da sua natural identidade com
cultura (FONSECA, 2005, p.2-3, grifos da autora).
Ao encontro de Rua (2007), da relação entre o espaço e seus
desenvolvimentos na busca por sustentabilidades Fonseca (2005) mostra que é
preciso congruência131
entre desenvolvimento e cultura, ou seja, não há como se
pensar em sustentabilidades sem se levar em consideração a cultura e toda a
complexidade que ela abarca. Para a mesma autora, a cultura define a visão de
desenvolvimento enquanto um processo que pode ser entendido como o próprio
desenvolvimento social de uma comunidade – e vice-versa – independente da sua
escala ou conteúdos (Idem, 2005, p. 1-2). Portanto, continua ela, para que a
equação entre cultura, desenvolvimento e sustentabilidade seja efetivada, é preciso
a definição de valores para estes termos, caminhando-se para uma harmonização
entre meios e finalidades (Idem, p.2). Dualizar ou incompatibilizar, assim como
vem sendo majoritariamente feito em termos de gestão espacial e políticas
públicas, dois termos que por essência são construídos na vida em sociedade e
pressupõem cooperação, além de se relacionarem com a produção e conhecimento
que visam o progresso, não pode ser mais aceito (Idem, 2005, p.2).
Mais do que complexos, desenvolvimento e cultura são complementares,
ou seja, é preciso trazer a cultura para o centro da questão do desenvolvimento132
.
Do mesmo modo, a cultura precisa aparecer como um dos eixos centrais em torno
131
Fonseca (2005) utiliza-se de dicionários para explicar que congruência é a harmonia duma coisa
com o fim a que se destina; coerência. 132
Schech e Haggis (2000)
154
dos quais os projetos de desenvolvimento devem ser pensados (FONSECA,
2005). A partir do momento em que a cultura tiver esse “poder” nas políticas
públicas de planejamento físico-territorial e dos planos de gestão municipal vai
(...) evitar a produção de mimetizações culturais já que estamos imersos em uma
sociedade globalizada e conectada por redes de informações, que facilmente
submetem valores éticos e culturas locais a padrões específicos. No nosso
entender, o antídoto natural para este contágio é o resgate, a valorização e re-
significação das identidades culturais locais, assumindo seus valores como
referência para a construção da idéia de sustentabilidade e conferindo concretude
aos ideais teóricos da ética sócio-ambiental mundial. (Idem, 2005, p.7)
Como bem diz Durand (2001), não é que nada seja feito para se ampliar
públicos para a cultura no Brasil, mas, o pouco que se faz é desarticulado de uma
visão mais abrangente “incapaz de dimensionar necessidades no tempo e no
espaço, e de articulá-las as diretrizes de política de educação, de cooperação
internacional, de lazer e turismo, de fomento de artesanato, de desenvolvimento
regional e etc.” (Idem, 2001, p.68).
No Brasil sequer se sabe quantas prefeituras possuem secretarias de cultura e, por
conseguinte, em quantas os assuntos culturais são tratados através de secretarias
de educação, esporte e turismo, ou outra qualquer. O fato de haver uma secretaria
autônoma para a cultura nos organogramas estadual e municipal não significa
necessariamente que nos locais onde isso ocorre o trato da área seja mais
eficiente, ágil e substantivamente melhor. (...) A par disso, é indispensável notar
como é tênue e casuístico o relacionamento dos três níveis de governo nessa área,
nos poucos casos em que algum intercâmbio existe. (...) Ademais cada gênero
cultural tem seus “gargalos” próprios que só uma visão atenta e preocupada com
interdependências pode detectar e superar (Idem, 2001, p.67).
Mesmo que a discussão a repeito da inserção da cultura e do patrimônio
cultural na construção de sociedades sustentáveis - a relação da cultura com o
desenvolvimento econômico e social - seja recente (SANTOS, 2001, p.46), ela se
torna crucial tanto para criticar a construção histórica de desenvolvimento
associado ao progresso econômico e da técnica (cuja base é a tríade modernidade
– ocidente – capitalismo) quanto para se repensar a regeneração desse conceito
fortalecido pela autonomia e liberdade dos lugares ou localidades, criando
resistências à tríade anteriormente citada. Multidimensionalidades e
multiescalaridades do espaço devem ser valorizadas para que se reconheçam as
diferenças culturais assim como propõe Rua (2007). A escala do local se torna
extremamente significativa nesse pensamento, pois, as ações concretas e
sustentáveis vividas no local passam a ser referenciais importantes para o
155
rompimento e superação de dualismos (FONSECA, 2005). Além da superação de
desigualdades, injustiças, violências urbanas e etc. É importante ressaltar que o
espaço social da cidade e sua segregação devem ser tomados como uma forma de
violência urbana no sentido, inclusive, da exclusão cultural. Segundo Russef et al
(2002), assim como ressalta a maioria dos autores que trabalham com cultura e
desenvolvimento, conhecer a identidade cultural é premissa para se admitir um
desenvolvimento autêntico, principalmente, quando esse reconhecimento é
exercido pela comunidade local. Para ele, se a comunidade se autoidentifica
culturalmente ela passa a ser protagonista do seu próprio processo de
desenvolvimento.
A reflexão realizada nesse capítulo busca criticar o desenvolvimento
baseado na tríade dialética citada anteriormente, possibilitando abrir novos
horizontes de pensamento em uma hegemonia que se tornou universal e nociva às
localidades seja nas práticas sociais como no que diz respeito a uma centralidade
teórica. Rua (2007) ao longo de seu trabalho, critica o pensamento Ocidental
acerca do que é concebido como desenvolvimento, questionando o modelo de
desenvolvimento mercadológico que une o crescimento econômico à
modernização tecnológica e impõe tal “receita” hegemonicamente para ser
seguido nas políticas de desenvolvimento. Para esse autor, o desenvolvimento vai
muito além do viés econômico e da apropriação do espaço por parte das técnicas;
ele vai de encontro ao social, cultural e antropológico. São trocas constantes entre
as escalas, entre o local e o global, saindo do homogêneo em direção ao particular
e singular e vice-e-versa.
Por mais que não se configure como interesse, nesse momento, ficar preso
aos questionamentos desse desenvolvimento associado ao progresso econômico,
avanço técnico, racionalidade, heteronomia, discurso de superioridade, domínio
material, etnocentrismo (superioridade racial e cultural), negação das diversidades
e etc. que permeiam a produção teórico – filosófica; entender sua configuração
(“cimentada” por todos os elementos listados acima e outros mais) e o poder que a
mesmo apresenta sobre todos nós é necessário para possibilitar, assim, iniciativas
e tentativas da regeneração desse conceito e alcançar “novos desenvolvimentos”
156
abertos a mudanças, engajados no solo cultural dos lugares e que levem em
consideração, inclusive, as tradições desses lugares.
Para Rua (2007), desenvolvimento e progresso estão intimamente ligados
ao processo de modernização, que é a visão mais operacional da época moderna
advinda com o Iluminismo; a dicotomia entre o tradicional como algo ruim e o
moderno, como positivo, é legitimada. O projeto de desenvolvimento ocidental a
partir daí, evolui via, principalmente, concretização do capitalismo como sistema
socioeconômico vigente que viu e vê nas suas crises, como demonstra Soja
(1983), a possibilidade de se recriar. Em pleno século XXI, para Fonseca (2005),
uma das bases fortalecedoras dessa “recriação” é a cultura, sua pluralidade, suas
especificidades, suas tradições, identidades e etc.
Foi somente a partir da modernidade, diz Rua (2007), que o
desenvolvimento foi tomado como intenção por parte do Ocidente, portanto,
concluí-se que o desenvolvimento é anterior à modernidade e aos seus ideais
impostos, ou seja, desenvolvimento não é algo “criado”. Assim, os lugares
possuem a capacidade de realizar seu desenvolvimento baseado nas autonomias,
liberdades e culturas locais. Da mesma maneira que o desenvolvimento precede a
modernidade, a relação existente entre desenvolvimento e cultura também, como
demonstram Schech e Haggis (2000). As autoras afirmam que desde antes da
Modernidade é possível se pensar em tal relação a partir das definições desses
conceitos ao longo da história, onde no conjunto cultura estão as tradições. De
forma bastante sucinta Schech e Haggis (2000) ainda trazem a relação existente
entre cultura e poder, a partir da qual a cultura é tida como um componente ativo
na produção e reprodução da vida social (terreno de disputas) e de onde se origina
um sistema de representações que envolve o conhecimento e o discurso.
Nessa relação entre desenvolvimento, cultura e poder, o conceito de
território é o que melhor permite compreender as relações sociais e seus reflexos
espaciais por ser constituído de relações de poder, simbólicas e materiais
(HAESBAERT, 2005). Fragmentado e contraditório, o território também deve ser
percebido a partir dos sistemas simbólicos de significados, construídos por meio
de práticas culturais tradicionais. Diante das territorialidades múltiplas e
superpostas do local e seus lugares, se torna primordial o questionamento sobre o
157
que deva ser um modelo de desenvolvimento. Para Haesbaert (2005), somente
pela compreensão dos conceitos de território e territorialidades as identidades-
territoriais de um grupo podem ser desvendadas. Já Rua (2007) afirma que os
lugares e suas relações de poder influenciam na formação de tais territorialidades.
Transformar o espaço em território, ou seja, territorializar-se pode ocorrer tanto
pela apropriação quanto pela dominação, significa participar de conflitos que
expressam mudanças, transformações, movimentos e, portanto, desenvolvimentos
e, consequentes, sustentabilidades.
A partir do momento em que o desenvolvimento continuar a ser tomado
como intenção baseada em um sistema de representações por parte de
determinados atores sociais, em uma lógica puramente mercadológica, ele
permanecerá eliminando as diversidades culturais tão ricas dos lugares.
Fortalecida nas suas identidades territoriais, se apresenta como possibilidade de
resistência a esse desenvolvimento modernizador ocidental e capitalista.
Toda vez que o sentido da vida for contestado, os africanos recorrerão aos marcos
tradicionais de sua cultura. Ela, que não pode ser acusado de uma atitude de
apego ao passado, reconhece, assim, a força e a persistência da tradição
(VERHLEST, 1992, p.54).
Segundo esse mesmo pensamento reafirma-se que a valorização da escala
do local pela gestão e suas políticas públicas são cruciais para um
desenvolvimento autêntico, pois, a partir do momento que as localidades
adquirem autonomia, e os valores sociais e os anseios dos grupos nessa escala se
territorializam, existe a possibilidade de contrariar a hegemonia advinda do
desenvolvimento econômico modernizador. E é essa autonomia, por parte dos
lugares e suas comunidades, que o autor considera como base para a realização
daquilo que denomina de sustentabilidades. Desse modo, uma abordagem
inovadora do desenvolvimento deve partir de uma ressignificação do que seja esse
processo, entendendo que não pode existir um único modelo que dê conta das
múltiplas realidades, a fim de que cada grupo possa construir uma condição
autônoma, capaz de diminuir ou eliminar as desigualdades através do respeito às
diferenças. O desenvolvimento local, como bem debate Rua (2007), não pode ser
teórica e conceitualmente dissociado do contexto das outras escalas, já que o local
158
só possui sentido enquanto problemática da articulação entre várias escalas (Idem,
2007).
Essa preocupação, inevitavelmente, insere a discussão a respeito dos bares
e botequins tradicionais da nossa cidade - e suas tradições - na relação dialética
entre o global e o local, ou seja, a multiescalaridade das ações políticas em torno
desses símbolos, que são particularidades locais.
Considerando os processos de globalização e de localização/regionalização em
curso como não dicotômicos e indissociados, assoma que é a diversidade de
lugares, regiões, paisagens, territórios em suas dinâmicas, e a impulsão das
demandas sociais que proporcionam uma realidade global fragmentada e com
muitas possibilidades de articulações. Pulverizado por particularismos e
singularidades, mas em conexão com o social mais amplo, o lugar recebe
determinações externas e as combina às narrativas locais. Assim as gestações de
novas configurações sócio-espaciais são prenhes do mundo e do lugar
(FROEHLICH E HEBERTON ., 2007, p.68)
Torna-se cabível se pensar em como as tradições dos lugares podem ser
incorporadas a um desenvolvimento socioespacial ou, como afirma Souza (1996),
sócio-espacial, por mais que não supere o desenvolvimento capitalista. A teoria do
desenvolvimento sócio-espacial de Souza (1996) vai ao encontro do que o próprio
autor chama de “paradigma da complexidade” (SOUZA, 1997), pois para ele o
desenvolvimento sócio-espacial é um fenômeno (e um desafio) complexo por
excelência e a sua formulação perpassa por questões epistemológicas de geração
do conhecimento, ou seja, rompendo com a centralização teórica, excludente e
simplificadora baseada nos saberes coloniais e eurocêntricos, fundadores dos
pressupostos dos conhecimentos sociais modernos, que dominam as ciências
sociais. Assim, para Souza (1997) é preciso que um cientista social, e no caso o
geógrafo, para o qual o espaço é objeto de estudo, não se incline a
monodimensalidade, separação simplista entre endógeno e exógeno, a abordagens
monoescalares ou fracamente multiescalares, a negligência para com o espaço e
ao caráter fechado, absoluto, etnocêntrico e fechado das teorias.
Infelizmente, a produção de conhecimentos foi associada à lógica do poder
econômico da modernidade e disseminou, dessa forma, as diversidades culturais e
os seus saberes tradicionais. Se não foram disseminadas, estão sob seu domínio e
por ele vem sendo apropriadas e ressignificadas nessa integração do tradicional ao
159
moderno. Eis aí uma grande problemática: a resistência ou não133
, por parte de tais
tradições, dos bares e botequins tradicionais já que, quando cooptadas pela
modernização eles tendem a serem manipuladas a seu favor.
As origens da concepção de patrimônio cultural possuem inúmeras raízes, e todas
se firmam na idéia de preservação da memória coletiva por meio de critério
valorativos, estéticos, históricos, culturais, sempre em atenção aos riscos que a
modernidade impõe as tradições (PAES, 2009, p.2)
Para que a sustentabilidade não fique meramente reduzida a um discurso
técnico, autores como Guimarães (1997a), Sachs (1993) e Acselrad (2001) vêm
somar a Rua (2007). Tais autores delineiam algumas dimensões de
sustentabilidade, e dentre elas afirmam ser necessário alcançar uma
sustentabilidade urbana e cultural (na verdade, todas as dimensões da
sustentabilidade proposta por ambos precisam estar conectadas) para a qualidade
de vida dos e nos lugares.
Dentre as oito dimensões propostas por Guimarães (1997a) no intuito de
superar o debate retrógrado e dominante relativo ao termo sustentabilidade, a
dimensão cultural é a que mais se associa à presente temática. Para o autor essa
dimensão dá “prioridade á diversidade cultural, reconhecendo que a base do
desenvolvimento está na manutenção dessa diversidade, além de defender os
direitos constitucionais das minorias” (Idem, 1997ª, p.35-36). Todavia, outras
duas dimensões não podem deixar de serem lembradas nesse momento134
: a
social, que busca a melhoria da qualidade de vida135
a partir da justiça social e, a
política, que afirma que a democratização e a construção da cidadania do
indivíduo só são efetivadas a partir da incorporação desse mesmo indivíduo ao
processo de desenvolvimento. Essa dimensão ainda supõe “o fortalecimento das
múltiplas forças sociais, tendo o Estado um papel privilegiado como mediador na
defesa dos interesses coletivos” (Idem, p.36-39).
A complementar, Sachs (1993) defende que o desenvolvimento é a
efetivação universal do conjunto dos direitos humanos passando pelos direitos
econômicos, sociais e culturais, e terminando nos direitos ditos coletivos. Para ele
133
Já que Giddens (2003) afirma que todas as tradições são inventadas, criações da modernidade e
que, por isso, merecem cuidado na sua análise. 134
Discussões passadas e outras que virão mais adiante abarcam, também, essas dimensões.
160
são cinco as dimensões de sustentabilidade, dentre as quais, ao se pensar nos bares
e botequins patrimonializados, ressalto a dimensão cultura, a qual inclui
a procura de raízes endógenas de processos de modernização e de sistemas
agrícolas integrados, processos que busquem mudanças dentro da continuidade
cultural e que traduzam o conceito normativo de ecodesenvolvimento em um
conjunto de soluções específicas para o local o ecossistema, a cultura e a área
(Idem, 1993, p.38)
O conceito de ecodesenvolvimento urbano de Sachs (1993) é muito
interessante. Para o autor as cidades são ecossistemas detentores de potenciais
recursos que precisam ser bem utilizados, pois as cidades são como pessoas: cada
uma possui sua própria personalidade e, o Rio de Janeiro com os seus botequins e
bares tradicionais tem, com certeza, uma marca singular que a identifica com seu
habitante, o carioca.
A resposta ao desafio urbano deve levar em conta as configurações especificas
dos fatores naturais, culturais e sócio-políticos, do passado histórico e das
tradições de cada cidade. Em lugar de se propor soluções homogeneizadoras, a
sua diversidade deve ser considerada como um valor cultural de grande
importância (Idem, 1993, p.41)
Para Acselrad (2001), a noção de sustentabilidade urbana está submetida à
lógica das práticas, articulando-se a efeitos sociais desejados e a funções práticas
que o discurso, nas suas pretensões, quer tornar realidade objetiva. Diz o autor que
a sustentabilidade, por estar submetida a essa lógica, “nos remete a processos de
legitimação / deslegitimação de práticas e atores sociais” (p.29). Ou seja, observa-
se que, por essência, o autor considera a sustentabilidade um processo político,
assim como Guimarães (1997).
A associação da noção de sustentabilidade com o debate sobre o desenvolvimento
das cidades tem origem nas rearticulações políticas pelas quais certo número de
atores envolvidos na produção do espaço urbano procuram dar legitimidade às
suas perspectivas, evidenciando a compatibilidade das mesmas com o propósito
de dar durabilidade ao desenvolvimento (...) (ACSELRAD, 2001, p.37)
Segundo Acselrad (2001), várias são as articulações lógicas entre a
reprodução das estruturas urbanas e sua base material no debate contemporâneo,
sendo que o mesmo destaca três matrizes discursivas do que ele defende como
161
sustentabilidade urbana136
: 1. a representação técnico-material (que engloba o
modelo de racionalidade eco-energética e o modelo de equilíbrio metabólico); 2. a
cidade como espaço da qualidade de vida (dentro da qual estão os modelos da
pureza, da cidadania e do patrimônio); e 3. a cidade como espaço de legitimação
das políticas públicas urbanas (matriz constituída pelo modelo da eficiência e
modelo da equidade) (p.36-37). Como componente da matriz cidade enquanto
qualidade de vida, o autor tem um olhar especial para a questão do patrimônio.
Mais a frente veremos que a qualidade de vida da população depende também da
asseguração e afirmação das suas tradições e identidades, e os patrimônios
culturais, como vem se demonstrando ao longo dessa pesquisa, são instrumentos
capazes de realizar essa afirmação identitária.
É muito claro que o patrimônio cultural consegue ser encaixado nas
dimensões propostas por Guimarães (1997) e Sachs (1993) - e não somente na
cultural137
-; todavia, Acselrad (2001) é ainda mais preciso ao conectar a
imaterialidade desse conceito à sustentabilidade das cidades, corroborando para a
presente dissertação. Para ele,
uma noção de sustentabilidade associada à categoria patrimônio refere-se não só a
materialidade das cidades, mas a seu caráter e suas identidades, a valores e
heranças contribuídos ao longo do tempo. A perspectiva de fazer durar a
existência simbólica de sítios construídos ou sítios naturais significados,
eventualmente “naturalizados”, pode inscrever-se tanto em estratégias de
fortalecimento do sentimento de pertencimento dos habitantes a suas cidades,
como de promoção de uma imagem que marque a cidade por seu patrimônio
biofísico, estético ou cultural em sentido amplo, de modo a atrair capitais na
competição global, realizando aquilo que alguns descrevem como um processo de
promoção da “economia da beleza em nome da beleza da economia” (Idem,
2001, p.44)
Nas políticas públicas (como nas de patrimônio) de planejamento e gestão
da cidade do Rio de Janeiro as práticas de planejamento, gestão e
sustentabilidades precisam estar em congruência. A matriz discursiva a cidade
como espaço de legitimação das políticas públicas urbanas de Acselrad (2001) se
torna fundamental nessa ideia de sustentabilidade que é aplicada às condições de
reprodução da legitimidade das políticas urbanas. Por esse viés, segue o autor, a
insustentabilidade “exprime, assim, a incapacidade de as políticas urbanas
136
O autor explica detalhadamente cada uma dessas matrizes ao longo do seu texto, todavia, as
esquematiza em um quadro na página 48 do seu trabalho. 137
Ir aos autores para ver quais são as outras dimensões.
162
adaptarem a oferta de serviços urbanos à quantidade e a qualidade das demandas
sociais (...)” (Idem, 2001, p.46), o que designa um processo de instabilização das
bases de legitimidade dos responsáveis pelas políticas urbanas. Dentre as palavras
e pensamentos que o autor dedica à conclusão do seu trabalho (que as conjuga
com o conceito de patrimônio cultural), merece ser ressaltado que:
A noção de “cidade sustentável” instaura uma nova cena de enunciação, onde
uma trama de múltiplos personagens e falas entrecruzadas reelabora as
representações da cidade. Desencadeia-se um jogo lendário de singularização das
cidades, de ligação entre seu passado, presente e futuro através de uma ordem
linear, de sua transformação em um quase- personagem dotado de um corpo /
território e uma alma / cultura citadina. Três procedimentos simbólicos são
acionados: o da refiguração do espaço através de uma imagem que articula os
campos semânticos distintos da natureza e da cidade; o da reproblematização da
ação através da aplicação de uma racionalidade cientifica ecológica ao urbano; o
da reinstituição do tempo por novas formas de duração – patrimonais – das coisas
(Idem, 2001, p.49)
Sem embargo, a análise do discurso das cidades que se apresentam como
candidatas a protagonizar a sustentabilidade urbana sugere que as mesmas pretendem
inserir-se em uma continuidade temporal e espacial através dos procedimentos de
descentralização (pela legitimação do não-humano, das gerações futuras, dos parceiros
inertes ou virtuais), de restauração (pela reciclagem de recursos naturais, bairros, rios,
ofícios, saberes, imagens e instituições) e de interação dos fenômenos urbanos (o ar da
cidade com o ar do planeta, a ocupação do solo com o abastecimento d’água, atividades
presentes e valores herdados, agências de urbanismo com instâncias de concertação). A
inclusão da periferia via descentralização, da memória via restauração e dos atores sociais
via interação, constituem, assim, procedimentos discursivos de expansão simbólica da
base da legitimação das políticas urbanas (...) (Idem, 2001, p.51).
Com base nas reflexões realizadas até esse momento, torna-se mais do que
necessária a reconstrução do conceito de desenvolvimento, destacando a sua
importância do entendimento das práticas culturais, sociais, econômicas, políticas,
religiosas e etc. e suas respectivas sustentabilidades, fundamentais na construção
de um espaço carioca diferenciado, mas que, não deve ser desigual; afinal como
bem lembra Oliveira (2008), a cidade do Rio de Janeiro contém muitas cidades.
Para Fonseca (2005), mesmo entre todos os avanços que aconteceram em relação
ao conceito de desenvolvimento sustentável, sendo que as dimensões e matrizes
expostas anteriormente são representativas “desse passo à frente” que vem sendo
dado, permanece sem discussão os valores éticos, culturais e ambientais que
163
poderiam, ou melhor, deveriam ser associados ao conceito. Esses valores, ainda
negligenciados, continua a autora, “(...) seriam norteadores de uma nova
racionalidade, verdadeiramente transformadora dos nossos ethos (costumes) e das
nossas práxis (ações)” (Idem, 2005, p.6). Somente a partir de pensamentos como
esse que as sustentabilidades de Rua (2007) podem ser efetivadas.
4.1.1. A necessidade de uma gestão da cidade do Rio de Janeiro que a torne arena cultural138 plural, em busca das sustentabilidades.
(...) há que se romper com a visão fracionada das políticas públicas que tratam o
urbano sem observá-lo em sua globalidade e, simultaneamente, sem perceber as
peculiaridades dos seus elementos culturais. Há que se investigar novos padrões
de preservação que não reduzam a conjunção das áreas de saneamento básico,
transporte e habilitação. Faz-se necessário investigar perspectivas de interação
físico-espacial das áreas urbanas, admitindo-se suas características e a aplicação
de procedimentos particularizados, não restritos a métodos homogêneos para o
trato das áreas urbanas que em essência se mostram desiguais. Talvez a
coordenação de esforços nessa direção pode gerar os instrumentos apropriados à
gestão e acionar articulação entre as diversas esferas político-administrativas do
Estado e da sociedade, de modo a criarem espaços de discussão e debate (...) A
focalização das políticas publicas, em síntese, pode apresentar um conjunto de
medidas assentadas no tripé fundamental, qual seja a recuperação física da área
degradada, a revitalização funcional urbana e a otimização da gestão ambiental
local. Dessa maneira, torna-se viável a promoção do desenvolvimento sustentável
e inclusão da população, a quem de direito pertence o patrimônio cultural e
natural. (PELEGRINI, 2006a, p.130)
Pensar em sustentabilidades do/no espaço carioca para um cientista social
é trabalhar em prol da sociedade, sua coletividade e a qualidade de vida139
da
mesma; é fazer com que a cidadania aconteça e seja legitimada, promovendo a
democracia. Portanto, é necessário, para essa pesquisa, relacionar os bares e
botequins tradicionais, parte dessa arena cultural plural carioca, às discussões
138
Aproprio-me de Oliveira (2008) ao utilizar a expressão “arena cultural”. 139
Cabe aqui uma pequena pausa para ressaltar que o conceito qualidade de vida por si só é muito
complexo, de difícil manejo e conteúdo ambíguo, cuja história esteve sempre associada à de outros
como meio ambiente e desenvolvimento, o que resulta num caráter subjetivo e qualitativo. Não há
como negar a subjetividade intrínseca a esse conceito, principalmente, a partir do momento que
envolve ética e juízos de valor (valores esses não materiais como amor, felicidade, participação na
sociedade e etc.). Cada ser humano, devido aos seus anseios pessoais, considera o que seja melhor,
mais ético, para a sua vida na sua escala individual, ainda que suas vontades se “concretizem” nas
ações realizadas pelos mesmos e, consequentemente, em todas as suas relações (com pessoas, o
espaço, a cidade. e etc.). Esses mesmos anseios pessoais são influenciados pela cultura e educação
e, quando somados a realidades socioespaciais dos diferentes grupos acabam por fomentar
inúmeras maneiras de se conceber o que seja a qualidade de vida.
164
acerca das sustentabilidades da cidade, tendo como ponto de partida o fato de que
vinte e seis desses serem patrimônio cultural imaterial.
A patrimonialização dos espaços cariocas (material e imaterial) como
política pública urbana nos leva a pensar na gestão da cidade do Rio de Janeiro,
sua administração, seus instrumentos (dentre eles a própria legislação municipal),
escalas de atuação, os limites da sua abrangência ou não, a sua eficácia ou não,
seu caráter democrático, social e etc. Além da importância da gestão municipal
em si e dos seus atores sociais. A presente pesquisa, baseada nas referências
bibliográficas lidas, elenca como temas importantes para travar discussões que
abarquem a relação existente entre patrimônio cultural (seus bares e botequins
tradicionais) e o espaço urbano carioca, os desenvolvimentos e sustentabilidades:
a gestão social, a educação patrimonial da comunidade e no ambiente escolar140
, o
turismo cultural (e não o puramente mercadológico), o conceito de paisagem, o
fortalecimento das identidades culturais, o “perceber-se” como parte da esfera
pública (direitos e deveres por parte de todos), o desenvolvimento local e regional
e etc.
Como todos esses fatores elencados são complementares e necessários
para o pleno desenvolvimento da pesquisa, eles serão valorizados a partir das
propostas advindas do questionário (anexo 7.3) proposto aos donos / gerentes /
administradores / sócios / funcionários mais antigos / colaboradores141
dos bares e
botequins patrimônio cultural da cidade.
De acordo com o que se identificou no capítulo anterior, o conceito de
patrimônio cultural vem sofrendo transformações, passando reconsiderações
desde o século XX e, o que ele atualmente abarca e que interessa a esta pesquisa é
a idéia de pertencer ao dia a dia / cotidiano da sociedade, tornando-se bens
simbólicos da sociedade carioca. Ou seja, se são bens públicos, pertencem a todos
e devem ser preservados e gerenciados (as regras e leis são instrumentos
necessários). A preservação do patrimônio é, assim, uma forma de estruturação da
esfera pública (BOTREL ET AL, 2011). Paralelamente, ainda que sejam de
direito de todos persistem algumas dificuldades no que diz respeito ao exercício
140
A educação patrimonial tem muito a dialogar com a educação ambiental. 141
O que denomino de “colaboradores” são amigos frequentadores fiéis desses lugares.
165
dos direitos culturais dos cidadãos, direitos esses reconhecidos no artigo 215 da
Constituição de 1988 (artigo esse utilizado no capítulo anterior) e fortalecidos pela
Lei Complementar n°111, que, como já visto, se baseia em alguns princípios,
dentre eles a democracia participativa a fim de promover ampla participação
social; e no que diz respeito as suas políticas publicas setoriais do patrimônio,
possui como duas de suas diretrizes: “promover e divulgar o patrimônio cultural
da cidade” e “incentivar a participação da sociedade através das suas diversas
formas de organização na formação de parcerias para a realização dos objetivos da
Política do Patrimônio Cultural” (Art.198,
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=zbLIuk7Nhig,
acesso em 30 de abril de 2013).
Como diz Pelegrini (2006a), “a partir do momento em que a sociedade se
dispõe a preservar e divulgar os seus bens culturais dá-se inicio ao processo
denominado ‘construção do ethos cultural e da sua cidadania’” (p.118). Cerqueira
(2005), dentro do contexto do estudo que propõe, afirma que a maioria dos jovens,
por exemplo, não percebe o patrimônio como um bem público, ou seja, conclui
ele que esses mesmos jovens não incluem o patrimônio numa identidade da qual
façam parte (p.102). Quando a comunidade se afirma através das suas identidades
locais, ressaltam Froehlich e Alves (2007), eis aí uma importante estratégia de
desenvolvimento, pois
(...) é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos
sentido aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. (...) Em outras
palavras, a afirmação das identidades não tem somente o poder de reafirmar um
passado ou constatar o presente, a afirmação das identidades pode sugerir
possíveis futuros (Idem, 2007, p.81)
Para Botrel et al (2011), quando se trata da questão dos bens culturais
brasileiros, incluso aí o patrimônio cultural, é mais adequado se falar em gestão
social do que gestão pública, pois a gestão social inclui de forma mais efetiva a
sociedade, porque ela estimula a participação cívica dos cidadãos na preservação
do patrimônio e legitima as representações culturais da população (p.43). A gestão
social estaria cada vez mais sendo utilizada na contemporaneidade, segue Botrel
et al (2011), mesmo que o conceito ganhe amplitude e, simultaneamente, gere
dúvidas e controvérsias.
166
Fortalecer e utilizar-se da gestão social significa investir em processos com ampla
participação da sociedade civil e dos diferentes níveis de governo e das
organizações de forma geral, discutindo, articulando e realizando o controle
social das políticas públicas utilizando-se de múltiplos espaços institucionais e de
instrumentos e metodologias participativas de formação, planejamento,
supervisão e avaliação (...). Nesse sentido, a gestão social é entendida como uma
ferramenta usada para proporcionar o benefício de grupos de indivíduos, grupos
sociais, organizações de todos os tipos e relações econômicas, políticas, culturais,
ou seja, a sociedade como um todo. No que tange a preservação dos bens
culturais, a gestão social pode ser de grande valia para a salvaguarda e percepção
dos mesmos, pois depois de uma trajetória de 72 anos, o patrimônio começa a ser
visto como riqueza coletiva de grande importância para a democracia cultural.
Dessa forma, deve ser gerenciado utilizando-se os preceitos da gestão social, na
qual o outro deve ser incluído e deve sobressair o diálogo, ou seja, o coletivo.
(Idem, 2011, p.45)
Sendo assim, a gestão social constitui a forma mais adequada para a gestão de
bens culturais e apresenta as melhores perspectivas no contexto democrático de
consolidação da democracia brasileira, porque a preservação do patrimônio
cultural expressa interesse público, envolve a formação de uma coletividade (rede
de indivíduos, organizações publicas estatais e não estatais) representada pela
esfera pública, estabelece relações democráticas ao valorizar a diversidade
cultural e respeitar os direitos dos cidadãos, bem como estimula o
desenvolvimento local por meio do turismo (Idem, 2011, p.52)
Com o intuito não de contestar o pensamento de Botrel et al (2011), mas
de retificá-lo, Tenório (2007) afirma que, na verdade, a gestão social é uma
característica singular e louvável da gestão pública, desde os anos de 1990. Assim,
para ele, gestão social seria uma adjetivação da gestão pública, não o seu
substituto. Dessa forma, continua o autor, mais importante do que diferenciar
gestão pública da gestão social é resgatar a função básica da administração
pública que se configura em atender os interesses da sociedade como um todo.
Nesse resgate, é imprescindível ficar atento aos gestores públicos, aqueles que, de
forma legal, foram delegados pela sociedade para tomarem decisões que afetam as
vidas dessa mesma sociedade, empregando os recursos públicos (Idem, 2007,
p.111-112).
Ainda para Tenório (2007), a gestão social se aproxima de um processo
onde a hegemonia das ações é intersubjetiva, ou seja, onde os interessados tanto
na decisão, na ação e no interesse público são efetivamente participativos do
processo decisório.
167
A gestão social é a substituição da “gestão tecnoburocrática, monológica, por um
gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório é
exercido por meio de diferentes sujeitos sociais” (...). A gestão social é uma
gestão pública (vale a redundância) voltada ao interesse público, onde todos têm
o direito a fala. (Idem, 2007, p.128).
Nesse sentido, ainda recorrendo a Tenório (2007), a qualificação da gestão
social agrega valores democráticos à gestão pública já que aquela legitima as
representações da sociedade, ou seja, a população tem que estar totalmente
envolvida na tomada de decisões, “(...) as ações precisam estar concertadas com a
cidadania de modo dialógico (...)” (Idem, 2007, p.129). Pensamento esse em total
acordo com Botrel et al (2011).
A gestão social não deve, portanto, ser apenas a prática de uma gestão pública
voltada para a solução de problemas sociais, como muitos idealizam, mas uma
prática gerencial que incorpore a participação da sociedade no processo de
planejamento e implementação de políticas públicas. Não basta agir para o social,
mas agir com o social. Gestão pública é o fim e gestão social, o meio.
(TENÓRIO, 2007, p.129)
Fica claro com base em Botrel et al (2011) e Tenório (2007) que a gestão
social é fundamental para a efetivação de políticas publicas democráticas no
território, ou talvez seja melhor dizer efetivação de sustentabilidades. Todavia, por
mais que a participação da sociedade seja crucial ao processo de planejamento,
implementação e gestão das políticas públicas, muito falta a ser contemplado e
realizado nesse sentido, inclusive, no que tange a atividade da população nas
políticas públicas de patrimônio cultural. Casos recentes relacionados ao
patrimônio cultural na cidade do Rio de Janeiro (Maracanã, Marina da Glória e o
antigo Museu do Índio) mostram que os processos decisórios por parte do Estado
e de iniciativas privadas não levam em consideração a participação da população.
Ou seja, em se tratando da relação entre patrimônio cultural e políticas públicas
não há uma gestão pública de qualidade no espaço carioca já que, como fora
exposto anteriormente, a efetiva participação da sociedade e consequente
consolidação da cidadania não ocorre sem a participação da população na gestão
social dos patrimônios.
Em se tratando dos bares e botequins pude comprovar, desde a
oficialização do primeiro decreto, em dezembro de 2011, que os próprios cariocas
não souberam que a patrimonialização ocorreria, ou melhor, muitos continuam
168
sem saber da existência dos mesmos, inclusive aqueles que conhecem e / ou
frequentem os vinte e seis bares e botequins agora patrimônio patrimonializados.
Primeiramente, ao relembrar minha ida a vinte e quatro bares e botequins, por
exemplo, alguns no Centro da cidade e pedir informações, quando eu citava o
nome do patrimônio no qual gostaria de chegar eram raras as situações onde as
pessoas que circulavam por aquela região sabiam me dar alguma orientação por
desconhecer a existência desses estabelecimentos. Se, por outro lado, eu citava
essa ou aquela rua, a informação melhorava.
Todavia, o que mais me chamou a atenção foi perceber que nenhum dos
bares e botequins onde obtive retorno do questionário (o anexo 7.4 mostra quais
estabelecimentos devolveram o questionário) participou, ativamente, do processo
de patrimonialização do seu estabelecimento. Segundo os próprios donos
/gerentes ou eles ficaram sabendo que eram patrimônio cultural da cidade no dia
em que a prefeitura os comunicou sobre o ato ou então por alguma matéria
jornalística, mesmo que para um ou outro dono / administrador essa
patrimonialização seja algo “natural”. Parece, portanto, pelo menos ao levar em
consideração o retorno de mais de 50% dos questionários, que a Prefeitura do Rio
de Janeiro não foi ao encontro da população no momento da escolha desses
patrimônios culturais já que, por exemplo, todos os donos / gerentes não
participaram ativamente do processo de patrimonialização dos seus
estabelecimentos.
Sabe-se que a presença de estudiosos e pesquisadores é muito importante
nesse processo; entretanto, ao se pensar em bares e botequins, lugares de essência
e sociabilidade do povo, descartar a população na definição dessa política pública
é, minimamente, controverso. É válido relembrar que ocorreram mudanças do
primeiro para o segundo decreto, principalmente no que diz respeito a inserção de
estabelecimentos da zona Norte da cidade. Dessa forma é possível cogitar que
algum tipo de pressão tenha ocorrido em contraposição a escolha dos primeiros
doze (concentrados na região Central somados a dois da zona Sul da cidade).
Além de não participarem do processo de patrimonialização dos seus
estabelecimentos, muitos dos donos / administradores / gerentes / funcionários
não sabem o que representa ser oficialmente declarado como patrimônio imaterial
169
da cidade. Através dos questionários percebeu-se, ainda, que eles confundem
isenção de IPTU com tombamento, por exemplo. Ou seja, esses lugares são
patrimônios culturais imateriais da cidade, mas parte expressiva das pessoas que
neles realizam suas vidas sequer sabem o significado e importância disso. Assim,
ao assumir tais considerações, fica evidente a ausência de uma educação
patrimonial na cidade do Rio de Janeiro, educação essa crucial ao se pensar na
construção da cidadania e autonomia da população. Para as pessoas que com os
bares e botequins tradicionais criam vínculos reais, a patrimonialização pode
afirmar suas identidades e configurar um meio de defesa desses espaços, além de
instrumento de luta política e de potencialidades desse conceito e título. A
educação patrimonial se relaciona diretamente ao turismo cultural (diferente
daquele puramente mercadológico que incita o fetiche do patrimônio), ao estudo e
reconhecimento da paisagem, ao desenvolvimento local e regional e etc. E ambos
se configuram como possibilidades de alcançar as sustentabilidades preconizadas
por Acselrad (2001).
Para Cerqueira (2005), falar em educação patrimonial implica falar em
dois fatores: o lugar da educação patrimonial na formação de cidadãos e o lugar
pedagógico da educação patrimonial entre as atividades curriculares e
extracurriculares. De acordo com o autor, portanto, a educação patrimonial precisa
ter dois focos de ação, a educação da comunidade escolar e a educação da
comunidade em geral. Em se tratando da educação da comunidade em geral,
segue ele, dentre as várias formas que pode ser realizada destaca-se o turismo
cultural o qual não deve ser tomado, somente, como uma atividade lúdica, mas
também como uma atividade pedagógica no momento da formação dos cidadãos.
Essa formação deve ser diferenciada para possibilitar o diálogo entre o local e o
global (multi e transescalar), pois, o alvo da educação patrimonial não é
exclusivamente o turista local, mas, sobretudo, precisa abarcar os turistas
advindos de outras regiões do país e os estrangeiros (Idem, 2005, p.99). Por esse
viés, o turismo aparece como multi e transescalar já que por mais que sua
efetivação se dê nas escalas regional e local ele é, para Cerqueira (2005), uma
atividade educadora em escala planetária que colabora para “o desenvolvimento
da consciência das políticas e das ações públicas para a preservação do patrimônio
cultural e ambiental” (Idem, 2005, p.99).
170
Nas duas décadas do século XX, a educação patrimonial cresceu como uma
importante dimensão da formação dos cidadãos da democracia moderna, uma vez
que estimula o fortalecimento da consciência do caráter público do patrimônio e a
identificação e manutenção dos laços de memória como significantes coletivos
portadores das memórias sociais dos diferentes grupos que compõem a sociedade.
Por meio da educação patrimonial busca-se sensibilizar as comunidades sobre a
importância de preservar a sua memória; mais que isso, busca se gerar uma
reflexão sobre as memórias dos diferentes grupos sociais, de modo que se perceba
que patrimônio não é somente o monumento belo e notável que fala do passado
de algumas elites, mas que patrimônio é, outrossim, todo símbolo de memória
coletiva, do terreiro à igreja, do sobrado à senzala, das praças públicas aos
prédios das escolas, dos antigos armazéns de bairro aos grandes teatro, das
canchas retas aos estádios de futebol. A escola em decorrência da constatação da
importância social da educação patrimonial, chamou para si também essa
responsabilidade. (Idem, 2005, p.99-100)
Também não alongando a discussão em torno da educação patrimonial no
ambiente escolar volto a recorrer a Cerqueira (2005). Conforme traz o autor, a
educação patrimonial escolar deve ser objeto de políticas públicas específicas
advindas de um planejamento com base conceitual definida está inserida em
ordens de reflexão que perpassam por questões como:
- a indissociabilidade entre o patrimônio humano e natural na conceituação de
patrimônio cultural, de modo que as pesquisas, intervenções e políticas publicas
sejam pensadas de forma integrada;
- as especificidades e interfaces que marcam as diferentes relações entre o
patrimônio tangível (material) e intangível (imaterial);
- o abandono da conceituação elitista de patrimônio, que o identificava com a
visão hegemônica de grupos dominadores do passado, em favor de uma visão
plural que dê conta da diversidade sociocultural existente nas sociedades do
passado, assim como do presente. Patrimônio que não é mais visto como
excepcionalidade de erudição, mas que, sem deixar de ser isto, passa a ser visto
também como o registro do comum, como memória da expressão cultural do
homem comum e sua vida corriqueira. (Idem, 2005, p.107)
A educação patrimonial escolar, portanto, felizmente avança paralelamente
ao próprio conceito de patrimônio cultural. E o desenvolvimento dessa educação
relaciona-se a formação da cidadania com qualidade por preocupar-se “com o
fortalecimento da identidade cultural sustentada na memória das expressões
culturais dos diferentes grupos que compõem e compuseram a sociedade” (Idem,
2005, p.108). E para se trabalhar com educação patrimonial o profissional precisa
ter um conhecimento a respeito da legislação que envolve o conceito, dessa forma,
não há como ignorar os dois decretos que patrimonializaram os bares e botequins
tradicionais no Rio de Janeiro. Ainda nesse tipo de educação se torna importante
171
conhecer as estruturas administrativas responsáveis pela preservação do
patrimônio nas mais diferenciadas escalas (Idem, 2005).
No que diz respeito à Lei Complementar n°111, dentre as suas diretrizes
da política de patrimônio (figura 4 na pág.89) está: “incentivar a participação da
sociedade através das suas diversas formas de organização na formação de
parcerias para a realização dos objetivos da Política do Patrimônio Cultural”; e
quanto às ações estruturantes dessa política a lei cita que é preciso
articular, em conjunto com a Secretaria Municipal de Educação e demais órgãos
vinculados ao Patrimônio Cultural das demais esferas governamentais, ações de
estímulo à proteção e à valorização do Patrimônio Cultural, incluindo disciplina
relativa ao tema no currículo do ensino básico
(http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c23032
56bc30052cb1c/cdd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument, acesso
02 de abril de 2013).
A não desintegração do conceito patrimônio cultural é muito válida para se
trabalhar com outro conceito, o de paisagem. O conceito de paisagem há muito
vem sido debatido dentro da ciência geográfica e ao longo desse debate sofreu
alterações de acordo com as respectivas correntes geográficas. O importante,
nesse momento, é destacar que o conceito paisagem evoluiu e se distanciou
daquele pensamento que a considerava mero como enquadramento de um cenário,
estática e objetiva; até culminar, lá pela década de 1970, no que Claval (2004)
denominado de “outras leituras geográficas da paisagem” (p.43). Para o autor a
paisagem é dinâmica e quanto maior for o número de pontos de vista do geógrafo
tanto melhor para a análise da paisagem por integrar a soma dos olhares
horizontais e verticais. Por essa perspectiva geográfica se fortalece a relação da
paisagem com a Geografia Cultural, muito bem abordada por Berque (1998)
quando ele fala de Paisagem – Marca e Paisagem – Matriz.
como manifestação concreta, a paisagem está naturalmente exposta a objetivação
analítica do tipo positivista; mas, ela existe em primeiro lugar, na sua relação com
um sujeito coletivo: a sociedade que a produziu, que a reproduz e a transforma
em função de uma certa lógica. Procurar definir essa lógica para tentar
compreender o sentido da paisagem é o ponto de vista cultural que se indicou
acima (Idem, 1998, p.84).
Assim, a paisagem multidimensional de Berque (1998) é marca, pois,
revela seu passado, as relações e materializações das ações das civilizações e
172
sociedades ao longo do tempo no espaço, ou seja, “(..) implica toda uma cadeia de
processos físicos, mentais e sociais (...)” (BERQUE, 1998, p.88) e é matriz, por
ser o conjunto que nos envolve, ou seja, com as marcas que nos apresenta aguça
nossa percepção, nosso entendimento acerca daquela paisagem e nossas possíveis
ações para com essa mesma paisagem. Nesse momento a subjetividade por parte
do cientista, observador, sujeito é extremamente importante.
Lembra-nos Ribeiro (2010) que vivemos um momento no qual a categoria
da paisagem apresenta uma força incomum, seja pelos inúmeros estudos que vem
sendo realizados ou porque nas diferentes esferas de atuação do governo esforços
têm sido feitos com o intuito de transformar a paisagem numa categoria
identificadora do patrimônio cultural e formuladora de políticas públicas.
Num mundo em que o patrimônio cultural ganha cada vez mais atenção e valor, e
em que seu crescimento em importância, para alguns, pode gerar uma
banalização, espetacularização e homogeneização dos espaços (...) a categoria de
paisagem é capaz de se transformar em importante instrumento para políticas
públicas e para gestão da organização espacial através da cultura. Entretanto, é
necessário que seja utilizada de maneira coerente e dentro das potencialidades
que a paisagem comporta, evitando também a sua banalização. (Idem, 2010,
p.4105 – 4106)
Para evitar seu uso de maneira equivocada Ribeiro (2010) atenta aos
pesquisadores que a paisagem não é meramente visual / cênica; que a paisagem
não é dada, mas sim um constructo; que a paisagem também tem seus aspectos
subjetivos; que a paisagem é sim fruto de construção histórica; todavia a paisagem
não é só história; que a paisagem não é só cultural; e, por fim, de que tudo não é
paisagem. Ambas as ressalvas apresentadas por Siqueira (2010) são relevantes e
complementares, porém, devido a presente pesquisa estar trabalhando com
intangibilidades a consideração do subjetivo por parte desse conceito possibilita a
relação do mesmo com o patrimônio cultural.
Analisar aquilo que cada indivíduo ou grupo de indivíduos identifica como
paisagem é um caminho que tem sido explorado por algumas correntes e que
pode ser um foco importante para relacionar paisagem e patrimônio. (Idem, 2010,
p.4111).
E essa relação é fundamental na formulação de políticas publicas e
espaciais de sustentabilidades que levem em conta a cultura. Sem a paisagem não
há patrimônio e sem patrimônio não há a possibilidade de proteção da paisagem.
173
Dessa forma, retomamos a Ribeiro (2010), já que para o autor apesar de todos os
problemas que envolvem a captura da categoria paisagem, os quais não podem ser
negligenciados, ela é essencialmente integradora e, portanto, deve ser inserida na
discussão em torno das sustentabilidades.
A categoria de paisagem obviamente tem suas limitações, ressalta algumas
características, responde algumas questões, mas esconde outras. O caráter
integrador de diferentes aspectos, até hoje vistos de maneira separada, é
sem dúvida um dos seus grandes trunfos. (Idem, 2010, p.4115).
A paisagem dos bares e botequins é caracterizada pela relação desses
estabelecimentos privados com o “de fora”, tornando-se, assim, uma das essências
da cidade do Rio de Janeiro (sua sociabilidade e relações afetivas, happy hour e
etc.). Dessa forma, a beleza cênica em si (e só ela) que circunda, por exemplo, o
Bar Urca e o Bar Lagoa, não deve ser tomada como definição de paisagem para a
temática, pois, se assim for feito, a paisagem acaba sendo confundida com
cenário142
.
A paisagem e a paisagem cultural (já que como fora colocado
anteriormente, a paisagem não é só cultural) também são abarcadas pela Lei
Complementar n°111. Dentre os instrumentos de gestão do patrimônio cultural
elencados pela própria lei, que fazem parte do conjunto dos instrumentos da
política urbana da cidade, está a Declaração e Registro de Sítio Cultural e de
Paisagem Cultural (Art.140). Para esse artigo por sítio cultural entende-se
o espaço da cidade, de domínio público ou privado, que por suas características
sócio-espaciais e por sua história constitua-se em relevante referência a respeito do
modo de vida carioca, ou trate-se de local de significativas manifestações culturais,
ou possua bens imateriais que contribuam para perpetuar sua memória
(http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c230325
6bc30052cb1c/cdd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument, visitado em
03 de abril de 2013).
142
A reportagem do anexo 7.8 antecede a escolha da cidade do Rio de Janeiro como Paisagem
Cultural da Humanidade. Nessa reportagem, a murada da Urca, que serve como “as mesas e
cadeiras” do Bar Urca, é considerada como parte formadora dessa paisagem cultural.
174
E por paisagem cultural a
porção do território onde a cultura humana imprimiu marcas significativas no
ambiente natural, propiciando a aparição de obras combinadas de cultura e
natureza, que conferem à paisagem identidade e valores singulares (Idem).
A paisagem, por sua vez, está inserida dentro das políticas públicas
setoriais e no capítulo da política de meio ambiente (figura 4). Para a lei, ela é a
interação entre o ambiente natural e a cultura, expressa na configuração espacial
resultante da relação entre elementos naturais, sociais e culturais, e nas marcas das
ações, manifestações e formas de expressão humanas; sendo que a paisagem do
Rio de Janeiro representa o mais valioso bem da cidade, responsável pela sua
consagração como um ícone mundial e por sua inserção na economia turística do
país, gerando emprego e renda. E integram o patrimônio paisagístico do Rio de
Janeiro tanto as paisagens com atributos excepcionais, como as paisagens
decorrentes das manifestações e expressões populares, ou seja, o conjunto dos
seus bens materiais e imateriais. (Idem, visitado em 03 de abril de 2013). Sendo
assim, os bares e botequins podem ser considerados símbolos culturais cariocas
imateriais e estão dentro do que a lei classifica como sítio cultural, paisagem
cultural e paisagem.
De acordo com o Art.166 dessa lei, da responsabilidade conjunta dos
órgãos vinculados ao sistema de planejamento e gestão ambiental no que diz
respeito à proteção da paisagem está incluso: a “ação de fomentar a preservação
do patrimônio cultural e ambiental urbano” (Idem). Quanto às ações estruturantes
dessa proteção destaco: 1. planejar e executar ações de conservação,
monitoramento e manutenção dos traços significativos ou característicos da
paisagem; 2. estabelecer processos de negociação para mediar os diferentes
interesses e valores dos grupos sociais que vivenciam e interagem na configuração
da paisagem; 3. estabelecer procedimentos para a participação da sociedade e de
representantes de entidades, instituições e órgãos públicos das diferentes
instâncias de governo interessados na definição e implementação das políticas de
proteção da paisagem; e realizar ações permanentes de educação ambiental143
,
através da promoção de campanhas de esclarecimento público para a proteção e a
valorização da paisagem urbana.
143
Mais uma vez ressalta-se que a educação ambiental e a educação patrimonial devem dialogar.
175
Em relação aos objetivos da política municipal da paisagem elencados por
ela, aquele que considero mais relevante é: “fortalecer uma identidade urbana,
promovendo a preservação do patrimônio cultural e ambiental urbano” (Idem,
2013, acesso em 03 de abril de 2013). Por fim, a política de paisagem apresenta
algumas diretrizes, e ainda que todas sejam importantes, se pensando nos bares e
botequins patrimônios culturais e a relação deles com a paisagem da cidade, são
claramente significativos: 1. favorecer a preservação do patrimônio cultural e
ambiental urbano; promover a participação da comunidade na identificação,
valorização, preservação e conservação dos elementos significativos da paisagem;
e conscientizar a população a respeito da valorização da paisagem como fator de
melhoria da qualidade de vida, por meio de programas de educação ambiental e
cultural.
A questão do turismo cultural enquanto instrumento fundamental da
promoção do desenvolvimento, principalmente, do desenvolvimento regional e
local, também é essencial. Pensar o turismo dissociado do caráter puramente
mercadológico que para ele, em grande parte, é voltado, se configura como tarefa
difícil, até porque o turismo é uma atividade econômica por essência; todavia,
necessária ao se falar de sustentabilidades espaciais e numa sustentabilidade
cultural baseada nas identidades das sociedades. Paes (2009) indica que o
planejamento territorial contém intencionalidades afeitas à preservação do
patrimônio cultural e ao uso turístico, o que implica em um novo conjunto
normativo referente ao espaço em que essa relação se dá. Afirma ainda a autora
que essa é uma equação difícil144
, pois a valorização turística incorpora novos
usos ao território, e os patrimônios culturais acabam por potencializar essa mesma
valorização e são incorporados á lógica do consumo cultural.
Nesse duelo entre a preservação e a modernização, o uso público e o uso privado,
a identidade e a diversidade, as forças de mercado e os interesses sociais, estes
sítios históricos – objetos do imaginário cultural do nosso tempo – rendem-se à
economia política da cidade (Idem, 2009, p.5)
Dessa forma vê-se a necessidade de, nessa inevitável lógica
mercadológica, a qual cada vez mais toma o imaterial / subjetivo como bem
144
Por mais que no contexto da autora ela se refira aos patrimônios materiais e passíveis de serem
tombados eu associo seu pensamento à discussão em torno dos bens imateriais.
176
poderoso a ser acumulado, que o turismo cultural, como se denomina em oposição
ao turismo mercadológico, não deixe as identidades e os sentimentos de
pertencimento ao lugar se diluírem em um consumo cultural vazio que prioriza a
valorização estética (Idem, 2009, p.8). No sentido de evitar mimetizações
culturais Fonseca (2005) afirma que o antídoto natural para este contágio é
justamente o “resgate, revalorização e re-significação das identidades culturais
locais assumindo seus valores como referência para a construção da ideia de
sustentabilidade (...)” (p.7).
Uma das perguntas do questionário (anexo 7.3) era “Para você qual o
futuro dos bares e botequins da nossa cidade?”. Inevitavelmente, essa questão
deve ser colocada aqui no debate das sustentabilidades, não há como pensar, por
exemplo, na tão característica sociabilidade desses lugares (fora suas tradições e
identidades) se eles não mais existirem. E as respostas á essa pergunta estão no
gráfico abaixo.
Gráfico 2: Qual o futuro dos bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro?
Fonte: Elaborado pela autora com base nas respostas do questionário (anexo 7.3)
A preocupação dos donos no que diz respeito ao futuro dos seus
estabelecimentos é bastante significativa. Somente um dos quatorze botequins
onde obtive retorno disse que o futuro é crescer, enquanto que para os demais o
cenário é diferente. Outros dois afirmaram que mesmo concorrendo com as
poderosas redes dos bares e botequins simulacros / forjados sempre existirão os
177
bares e botequins tradicionais e familiares, aqueles em que você se sente em casa.
Todavia, 35% desses estabelecimentos tendem a crer que se for para pensar em
futuro, só se for um futuro bem próximo, ou melhor, não há como ter a garantia da
próxima geração no comando, pois, as dificuldades encontradas para manter a
administração familiar são muitas. Essa participação efetiva dos herdeiros, para
eles é crucial, uma das grandes tradições mantenedoras da existência dos mesmos.
Em casos como o Bar Urca, Bar da Amendoeira e Café Lamas, por exemplo,
observa-se que essa participação familiar ainda permanecerá por um bom tempo
devido a vontade e idade dos atuais administradores.
Fora isso, a qualificação profissional dos demais funcionários também se
configura como outra importante preocupação, e tal preocupação foi associada por
um dos estabelecimentos ao futuro do mesmo, no caso, o Bar Luiz. Em muitos
dos vinte e quatro bares e botequins tradicionais que visitei percebe-se que os
garçons são homens mais velhos, muitos deles idosos, inclusive. Os atuais
administradores sabem que se não houver incentivos será complicado assegurar a
próxima geração de garçons e funcionários; afinal, grande parte dos jovens, frente
as maiores possibilidades de crescimento pessoal e profissional, não possuem
como objetivo de vida tornarem-se garçons, por exemplo.
Para o Cervantes, o futuro é a necessidade de avaliação e modernização
tanto com as necessidades sanitárias e segurança alimentar quanto ás de
automoção sem perder as tradições. Já para o Nova Capela, imaginar esse mesmo
futuro não é algo positivo devido aos bares e botequins estarem na contramão do
mercado, além do que, do ponto de vista financeiro, há os impostos, alugueis e
custos de mão de obra. E para a Casa Villarino, o futuro não deve ser diferente do
que ocorre até o momento a menos que ações e movimentos significativos sejam
adotados.
Nesses variados discursos dos bares e botequins tradicionais sobre o futuro
fica evidente serem necessárias políticas de incentivo para a permanência desses
estabelecimentos. A partir do momento em que as famílias percebam que esse é
um negócio (pois os bares e botequins são estabelecimentos comerciais) que vale
a pena investir a partir da compreensão que eles têm importância simbólica para a
cidade do Rio de Janeiro; possam herdar esses espaços de sociabilidades sem que
178
eles se tornem fardos. Mas, para isso há de haver educação patrimonial para os
patrimonializados. A necessidade da qualificação profissional e da realização de
novas ações e movimentos tanto por parte das esferas públicas e privadas parece,
também, serem urgentes.
Como bem ressaltou Thiago de Mello em entrevista a Revista História da
Biblioteca Nacional145
, o melhor para os bares e botequins seria oferecer
condições para o bom funcionamento dos mesmos, se possível reduzindo os
custos para as casas. Dessa forma, como não pensar em políticas públicas que
potencializem a relevância dos bares e botequins tradicionais para a cidade do Rio
de Janeiro sem a redução dos ônus econômicos para os seus donos? Ainda no que
diz respeito á questão da patrimonialização, por si só, não sobreviverão. (Cristina
Lodi, superintendente do Iphan, numa entrevista a Revista o Globo do dia 16 de
julho de 2012)
4.2. Resultados das visitas aos bares e botequins tradicionais
Sem muito me alongar na apresentação dessa etapa da dissertação, creio
que o mais interessante está por vir logo adiante, as visitas feitas á vinte e quatro
dos vinte e seis bares declarados patrimônio cultural imaterial da cidade do Rio de
Janeiro. Só se é capaz de perceber o que esses lugares guardam e representam a
partir do momento em que você os adentra e “sente” a história, e o espaço
material e imaterial. São ambientes muito diferentes, mas se assemelham em
vários pontos, outros encantam mais, alguns nem tanto, levando-se em
consideração a percepção e olhar de quem está a observá-los. Notar os detalhes da
ambiência, as peculiaridades de cada um, enfim, é preciso ir aos bares e botequins
e conhecê-los.
Ir à rua, eis aí outra grande lição que tiro dessa experiência, pois caminhei
muito pela cidade, indo, inclusive, a lugares que talvez eu não fosse se não
estivesse com a temática que me propus a pesquisar, como, por exemplo, o bairro
145
Entrevista essa já citada por essa dissertação e que se encontra disponibilizada no site
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/chope-oficial.
179
de Maria da Graça. Pelo metrô nunca tinha ido alem da estação Maracanã. Andei
muito pelo centro da cidade, e se até pouco tempo eu ficava insegura em alguns
locais dessa região, depois de tanto me locomover por lá (fazia tudo a pé, com
exceção da subida até Santa Teresa), aprendi, tracei caminhos, sou capaz de fazer
associações pelos “símbolos” que defini como pontos de localização e etc. Até
mesmo o bairro de Copacabana, onde já trabalhei e muito me desloquei a partir de
novas caminhadas muita coisa foi assimilada pela primeira vez. Já tinha passado
por diversas vezes em frente à praça onde está situado o bar Bip Bip, por exemplo,
mas não sabia nem da existência desse estabelecimento.
Além de conhecer lugares de sociabilidades surpreendentes, entrei em
contato com pessoas incríveis, seja dentro dos estabelecimentos ou a caminho
deles, nos pontos de ônibus ou ao pedir informações. Quanto às informações, em
vários momentos, no centro da cidade, ao invés de citar o nome da rua que
desejava chegar perguntava pelo bar e botequim, e muito me surpreendeu ver que
a maioria das pessoas não faz ideia da existência desses lugares.
Aprendi que a vergonha é algo que não combina com bares e botequins,
até porque dependendo da pessoa com quem você se depara para explicar suas
intenções quanto à pesquisa é preciso ganhar confiança, ter paciência ou então se
adaptar ao que eles oferecem. Fora a existência daqueles mais saidinhos, e é
preciso saber lidar com isso, faz parte da sociabilidade desses lugares, sem dúvida,
receber algumas cantadas. No fundo, dava muitas risadas e muito me diverti.
Dos vinte e quatro bares e botequins tradicionais que fui obtive retorno de
quatorze deles (anexo 7.4). Em alguns dos botequins desde a primeira visita tive a
percepção que não teria o questionário de volta. Nesses fui uma segunda vez,
liguei, procurei e mesmo assim o retorno foi negativo. Em outros realizei duas
idas na tentativa de encontrar a pessoa indicada a me atender, no caso, os donos,
mas, infelizmente também não tive êxito. Quanto ao Café e Bar Brotinho e Bar
Adônis, esses dois são os únicos em que não estive pessoalmente.
Optei em encaminhar o questionário (anexo 7.3) aos donos / gerentes /
administradores / funcionários mais antigos, ou melhor, aqueles que
“internamente” vivenciam esses estabelecimentos no seu dia-a-dia, que enfrentam
180
de perto as dificuldades de manter esses símbolos cariocas, dificuldades essas bem
maiores para o Restaurante 28 e o Bar do Jóia, por exemplo (como pude perceber
durante as visitas e pelo questionário). As pessoas as quais destinei minhas
perguntas são fundamentais na manutenção desses espaços de sociabilidade e suas
tradições. Não me arrependo dessa escolha metodológica, ainda que eu não tenha
tido um retorno que considere satisfatório a respeito dos questionários (63%146
).
Todavia, poder conversar pessoalmente com eles e em alguns casos ter a
oportunidade de um papo alongado foi muito válido. Sendo assim, segue abaixo o
relato das minhas idas aos bares e botequins tradicionais, agora patrimônio
cultural imaterial da cidade do Rio de Janeiro, somadas as respostas obtidas pelos
questionários.
Quanto aos donos / gerentes / administradores / funcionários /
“contribuidores” com os quais eu conversava e realizava a proposta dos
questionários uns eram mais simpáticos e solícitos; outros simpáticos e devedores
(já que não me deram retorno do questionário), outros desconfiados, mas, que se
soltavam; outros antipáticos. No Pavão Azul, por exemplo, quem respondeu foi
uma antiga frequentadora que já ia ao bar antes da chegada de Dona Vera e sua
irmã. Na Adega Flor de Coimbra, a dona encarregou ao funcionário mais antigo o
papel de me ajudar; já no Bar Luiz quem o fez foi um gerente contratado a 16
anos pelo estabelecimento. Por sua vez, no Bar do Jóia quem respondeu foi um
homem que, por mais que seja só um cliente ou sócio (o que não tenho certeza), é
muito mais que isso, é um grande amigo da dona, a senhora Alayde. Na verdade
eu sabia desde a minha participação no Comida di Buteco que lidar com essas
pessoas responsáveis pela administração / vivência diária dos botequins é algo
extremamente complicado, até porque, pelo que percebi e ouvi, é um ramo
comercial que dá bastante trabalho, dependendo da organização, porte do
estabelecimento, financiamentos, apoio ou não de outras pessoas. Dois dos que
responderam os questionários, por exemplo, estão “tecnologicamente avançados”,
encaminharam as respostas por email. Com exceção do Pavão Azul, Bar da
Amendoeira e Casa Villarino todas as pessoas que responderam ao questionário
são do sexo masculino.
146
63% em relação ao total de 24 estabelecimentos visitados. Sendo que não deixei o questionário
em todos esses bares.
181
Com o intuito de ajudar na pesquisa em termos de organização, após as
idas aos bares e botequins realizei anotações que resultaram no que denomino de
Diário das idas aos bares e botequins tradicionais. Através desse diário, trago
todas as percepções que assimilei desses lugares de sociabilidade durante o tempo
de permanência nos mesmos ou, por exemplo, nos casos em que fui mais de uma
vez ao lugar na medida do possível falo das diferenças dessas visitas (dia da
semana, horário, frequência e etc.). Foram pouquíssimos os bares cujos registros
fotográficos não são meus (feitos pelo celular), se não me engano três dos vinte e
quatro. Portanto, em relação a esses três recorri a imagens do Google Imagens.
Quanto às fotos do arquivo pessoal trago aquelas que mais me agradaram, levando
em consideração, também, o foco e qualidade das mesmas. A seguir, portanto,
segue o diário composto de descrições e ilustrações. O leitor perceberá através do
diário as minhas preferências enquanto sujeito dessa pesquisa; afinal, é válido
relembrar que a observação e a assimilação vão ao encontro das minhas
percepções pessoais e investigativas.
4.2.1. Diário das idas aos bares e botequins tradicionais
Cervantes (Copacabana)
Cheguei às 13h30min de uma sexta-feira. Falei com o dono/ gerente Juan,
um homem que deve ter por volta de 40 anos e foi super solícito, mas, como ele
estava ocupado, me pediu para ou voltar de tarde ou no dia seguinte. Já que eu ia
ainda andar muito por Copacabana, pois o Cervantes era o primeiro dos quatro
patrimônios em Copacabana, optei em retornar mais tarde. Voltei
aproximadamente às 16h. As 13h30min o restaurante estava lotado, não me
recordo se vi mulher almoçando lá tamanha a quantidade de homens (homens
mais novos e vestidos de roupa social em sua grande maioria), já o bar estava
vazio (na parte bar não há mesas nem cadeiras, só o balcão mesmo, lugar é
pequeno e estreito – figura 9). Quando retornei o bar já possuía alguns clientes,
mas como o espaço físico do bar é bem pequeno, a presença de poucos clientes já
se faz significativa para o lugar. Não há ali como colocar mesas e cadeiras, as
pessoas ficam sociabilizando em pé. Disse-me Juan que a entrada do restaurante é
182
a original (figura 7). O Cervantes da Prado Júnior, ou seja, o original eu não
conhecia. Todavia quando criança ia muito com meus pais a uma filial, na época,
no shopping Via Parque na Barra da Tijuca e, atualmente ainda existe a filial da
Barra, em outra localização do bairro (o que pode ser confirmado no site do
estabelecimento). A grande lembrança que tenho do Cervantes é que íamos para lá
na busca dos seus deliciosos sanduíches acompanhados por abacaxi. E esses
mesmos sanduíches de carnes (presuntos, pernis e afins) com abacaxi foram
destacados pelo gerente, em uma das suas repostas ao questionário. Quando li essa
resposta voltei há muitos anos atrás! Essas carnes que recheiam os tradicionais
sanduiches, vendidos há mais de cinquenta anos pelo Cervantes, estão expostas na
vitrine de vidro do especo destinado ao botequim, como pode ser visto na figura 8.
Grandes pedaços de carne ficam expostos para os clientes. O Cervantes foi o
primeiro bar que fui deixar o questionário. Depois das visitas que realizei aos
demais, percebi que poderia ter notado mais os seus detalhes e admito que foi um
erro, assim, se der volto lá com mais calma e a ele dedico mais o meu tempo e
aguço mais as minhas percepções.
Figura 7: A fachada mais antiga do Figura 8: Carnes no balcão do Cervantes
Cervantes
183
Figura 9: O ambiente bar do Cervantes
Pavão Azul (Copacabana)
Cheguei por volta das 14h de uma sexta feira e encontrei dona Vera (que já
conhecia do Comida di Buteco). Ela fica no turno da manhã/tarde e a irmã no
turno tarde/noite. Como sempre super solícita e simpática para com todos os seus
clientes, tanto aos mais conhecidos quanto aos que ali vão pela primeira vez.
Percebe-se que ela é muito participativa nos afazeres do próprio botequim, ora
está na cozinha, ora recebendo pagamento e etc. O bar estava muito cheio
(homens e mulheres), única mesa vazia era a que sentei, Possui muitos garçons,
reparei em uns cinco enquanto estava por lá. Os pratos do dia variavam entre
R$17,00 (bife acebolado e a milanesa) e R$30,00 (risoto de camarão), como pode
ser percebido pela figura 10. Tirando o risoto, pelo que eu percebi dos outros
pedidos, todos os pratos do dia vinham com acompanhamento de arroz, feijão e
batata-frita. Ambos muito bem servidos em quantidade (duas pessoas comem
bem). Como eu já havia notado, está sempre a vista pelo balcão uma caixa com
doces portugueses, e toda vez que vou lá acabo devorando um. A higiene do
botequim não é assim um primor (parte dessa característica é visualizada na figura
11)! O Pavão Azul está entre um pé-sujo e um pé-limpo, se eu tivesse que
qualificá-lo nesse sentido! Não é grande nem pequeno, tem um tamanho bom.
Não percebi a presença da placa azul da prefeitura, também, só passei a notar
essas placas no segundo dia de visita aos bares. Dediquei o primeiro dia de visitas
184
ao grupo dos quatro bares e botequins de Copacabana, sendo que no Bip Bip tive
que retornar outro dia, já que ele só abre a noite. Um fato interessante do Pavão
Azul é que o boteco se expande para o outro lado da rua, ou seja, logo em frente
ao primeiro estabelecimento, ao atravessar a rua Hilário de Gouveia, há a
continuidade do Pavão Azul. Segundo um amigo meu, cuja família ,disse ele,
frequenta o Pavão Azul há muito tempo, a loja logo ao lado do Pavão Azul tinha
feito uma proposta ao estabelecimento, para que ele aumentasse o seu espaço.
Essa proposta, entretanto, teria sido muito cara e o Pavão azul optou, então, em
crescer “além do outro lado da rua”. Deixei o questionário, pois ela não podia
responder no momento, mas, no fim das contas quem respondeu foi uma cliente
muito antiga que conhece tudo de boteco é frequentadora do Pavão antes da D.
Vera ir pra lá.
Figura 10: O cardápio do dia Figura 11: Produtos expostos no
do Pavão Azul balcão do Pavão Azul
185
Figura 12: Interior do Pavão Azul
Adega Pérola (Copacabana)
Cheguei por volta das 15h de uma sexta-feira e também pude falar com o
dono/administrador, que já conhecia do Comida di Buteco. Também foi super
solícito quanto ao questionário. O bar estava cheio, pois, tirando minha mesa
todas as demais tinham clientes, além do que, não é um botequim tão grande
(figura 13). Como sempre, fico encantada com o botequim, acho o bar Adega
Pérola muito bacana, seu balcão apresentando aos fregueses os mais diversos
acepipes, sendo que todos parecem ser bem temperados, é lindo, tudo muito
colorido (figura 15)! E eu adoro cor. O local estava bem limpo. As porções dos
seus petiscos vão desde R$6,00 até a faixa dos R$25 / 30,00. Exemplos dos seus
acepipes: alho no azeite, linguiça de avestruz, gorgonzolas aos pedaços,
mexilhões, bacalhau, coração alado (coração de galinha). Percebi que havia entre
três e quatro garçons. O chope custa R$5,00. Mesas de madeira compridas e de
tonalidade escura que ficam encostadas e enfileiradas na parede oposta ao balcão
(figura 13). O bar tinha uns três garçons. Um casal de pessoas mais velhas e
moradoras de Copacabana veio falar comigo quando me ouviram falar da temática
da dissertação para o dono. O homem desse casal veio me dizer que, apesar de
morador de Copacabana há um bom tempo, não conhecia a Adega Pérola. Ficou
encantado com o lugar. Conversei um pouco com o dono (na verdade, acho que é
um dos dois donos, me recordo por conta do Comida di Buteco), ele citou outros
bares e botequins (de donos que conhecia e / ou frequentava). Falou do Adega da
Velha em Botafogo, para citar um exemplo, já que disse que o seu Chico (dono do
186
Adega da Velha) comprou o bar de um casal de portugueses e que, o Adega da
Velha, como é hoje, tem, aproximadamente, 15 anos. Para o dono da Adega
Pérola 15 anos é muito pouco tempo para ser tomado como tradicional. Disse
também que o primeiro decreto isentou os bares e botequins de IPTU, quando
falou isso fui procurar por essa informação. Pelo que li em algumas reportagens
(já apresentadas nesse capítulo), os bares e botequins dos dois decretos têm direito
sim a isenção de IPTU. Provavelmente, ele não sabe disso. O Adega Pérola, na
minha opinião, é sim, dentro de tudo o que eu conheço da cidade, um lugar único.
Merecedor de ser declarado patrimônio.
Figura 13: Interior da Adega Pérola Figura 14: Interior da Adega Pérola
Figura 15: Exemplos dos acepipes da Adega Pérola
187
Adega da Velha (Botafogo)
Cheguei por volta de 17h50min de uma sexta-feira. No letreiro do
botequim está escrito: Adega da Velha, O Bar do Chico, Rei da carne de sol. Ou
seja, a comida nordestina é um dos seus pontos fortes, senão o principal, além da
feijoada de sexta, pelo que o próprio Chico (o dono) me disse. Ele sentou a mesa
comigo, não é de muitas palavras, com todo o preconceito, me parecia uma pessoa
menos instruída em comparação aos outros, talvez porque é um pouco mais
bronco rs, mas percebe-se que vai se soltando. No horário o bar estava vazio, e,
segundo seu Chico, a culpa era do dia chuvoso; todavia, ainda estava cedo, disse
ele. Depois da lotação no horário de almoço ele retorna a ficar cheio lá pelas
20h30min. Seu Chico disse que já tinha tido em torno de 51 bares, mas,
atualmente, só estava com o bar Adega da Velha, uma “padaria” ao lado da
mesma e uma “lanchonete” na esquina da rua do próprio Adega. Comentei com
ele sobre um bar da moda que fica ali perto, o Alpha Bar, na Rua Sorocaba, que
vive cheio de jovens e é um boteco, pelo menos hoje em dia, bem conhecido em
Botafogo. Todavia, na hora seu Chico falou (não necessariamente com essas
palavras): pra mim o bar ficar lotado não é o que mais importa, na verdade, não
tenho mais muito saco para esse tipo de coisa. Gosto é da minha clientela mais
fixa, de ver famílias reunidas aqui. Voltando a feijoada de sexta, ele ressalta que a
sua feijoada é muito boa, que hoje, em um dia com menos movimento, vendeu em
torno de 200 feijoadas. Mas, por conta da chuva, as mesas da calçada não
puderam ser ocupadas, se tivessem sido a venda da feijoada seria muito maior. Ao
lado do botequim há o espaço dedicado ao restaurante (figura 17), onde fica nítido
o lado botafoguense do dono (figura 16). Esse espaço tem um bom tamanho, com
muitas mesas e cadeiras. Suas paredes possuem muita informação, quadros
variados com reportagens, prêmios e afins, fora a parte dedicada ao clube do
Botafogo, com seus grandes pôsteres também enquadrados. Já o espaço do
botequim, esse também não é pequeno, além do balcão, é composto por umas três
mesas com cadeiras, se não me engano. É mais no estilo pé sujo, assim como o
Pavão Azul. Percebi que os preços do Adega da Velha não são salgados, o que eu
acho, particularmente, que tem tudo a ver com verdadeiros botequins. O que mais
chama a atenção desse espaço é seu teto, o qual possui um “pergulado” com
folhas secas penduradas. Como eu não consegui distinguir que folhas eram essas
188
fui até a internet procurar sobre e descobri que são cabaças e folhas de louro
penduradas (figura 18). Ah, me disse seu Chico que mora na Tijuca (só para
constar). Lá o chope custa R$5,50. Voltei em uma terça-feira, acompanhada,
inclusive, da minha sobrinha, na tentativa de conseguir o questionário preenchido.
Não foi dessa vez e tenho certeza que não conseguirei o questionário do seu
Chico. Na verdade eu desde a época em que trabalhei no Comida di Buteco já
sabia o quão difícil é lidar com alguns donos de botequins, seu Chico é um desses,
pelo menos parece.
Figura 16: Parede “do futebol” na Adega da Velha
Figura 17: Restaurante da Adega Figura 18: Bar da Adega da Velha
da Velha
189
Adega Flor de Coimbra (Lapa)
Cheguei por volta de 13h45min de um sábado. Seu interior estava lotado,
um lugar pequeno, mas, muito agradável, com uma ambiência diferenciada. Se eu
fosse direcionar, diria que tende mais a restaurante do que um botequim/boteco,
pois não há, por exemplo, um balcão como o do Cervantes. Percebi a presença de
uns três garçons. A mulher/administradora que estava atrás do balcão, no
momento, não podia responder o questionário e, no fim, quem ficou de responder
foi o funcionário mais antigo de lá, chamado Zé, um garçom com 20 anos de casa
(o que me deixou feliz). O bar fica muito perto da famosa escada de Selarón, na
Lapa, dessa forma há ali uma grande movimentação de gente, inclusive de muitos
turistas estrangeiros. Esse bar é todo português, “É uma casa portuguesa com
certeza”, diz um letreiro em frente a sua adega. É português em toda a sua
ambiência, desde as suas cores, até as figuras na parede, a prateleira de vidro
(composta por vinhos, galos, latas de sardinha, pratos e etc. - figura 21), as cores
do folder que apresenta os pratos do lado de fora (figura 20); tudo remete a
Portugal, inclusive os aventais dos garçons. Voltei uma quinta lá pelas 14h para
buscar o questionário, Zé tinha respondido! A casa estava com uma mesa grande
de clientes e outra com duas pessoas, e percebi que muitos dos que estavam ali
bebiam uma limonada, ou seja, também resolvi experimentar. Uma delícia, além
de ser servida em uma caneca de vidro grande, daquele estilo antigo que
ressaltava que o bar era patrimônio cultural. Outra mulher estava lá, juntamente
com a que tinha me recebido na primeira vez, e não me deixou pagar a limonada,
além de ter me dado dois cupons com uma gratuidade em relação a algo da casa
(taça de vinho, limonada ou bolinho de bacalhau), para mim e um acompanhante.
Como a limonada está nesse cupom imagino que, realmente, seja uma das
tradições da casa. O cupom ainda diz “Pratos saborosos a partir de R$21,90”. Ou
seja, considerando os preços da cidade do Rio de Janeiro como um todo e de
outros bares e botequins patrimônio cultural, esse valor mínimo não é caro.
190
Figura 19: Entrada da Adega Flor de Figura 20: Folder cardápio da Adega Flor
Coimbra de Coimbra
Figura 21: Prateleira “portuguesa”
da Adega Flor de Coimbra
Cosmopolita (Centro)
Cheguei lá por volta das 14h de um sábado, é muito perto do Adega Flor
de Coimbra. O bar estava completamente vazio, o que me causou muita
estranheza, afinal, tinha acabado de sair de um muito perto que estava lotado. Um
homem mais velho que estava sentado me chamou a atenção, logo pensei que
fosse o dono, era o gerente. Um português de mais ou menos uns 60 anos que era
gerente do estabelecimento há uns 20 anos. No início ele se mostrou muito arredio
191
a minha intenção da entrevista, disse que não responderia a questionário (se
tivesse que escrever) e não permitiria fotos, essa idéia não lhe agradava.
Perguntou, então, se havia a possibilidade de eu ler as questões e ele responder,
dessa forma ele iria tentar responder o que conseguisse. Aos poucos ele foi se
soltando, mas, eu não podia, sem querer, o chamar de dono, logo ele recrutava:
“gerente”. No final da entrevista voltou atrás e disse que, por eu ser muito
simpática, poderia tirar fotos do que eu quisesse, acho que o conquistei rs. E
depois que eu falei muito rapidamente da minha vida e de futuras pretensões,
comentou que eu deveria continuar meus estudos voltados para os bares e
botequim assim que acabasse esse em andamento. Segundo esse mesmo
português, a grande tradição do Cosmopolita é o Filé Oswaldo Aranha, cujo nome
foi dado em homenagem ao senador Oswaldo Aranha, representado no lugar por
um quadro que fica no interior do bar (figura 23). Notei a presença de dois
garçons lá dentro e, quando cheguei no bar, tinha um sentado/”jogado” em uma
das mesas do lado de fora. Também é um lugar com todo o jeito de restaurante.
Figura 22: Ambiente externo do Figura 23: O senador Oswaldo Aranha
Cosmopolita
192
Figura 24: Prateleira de bebidas em cima do balcão
no Cosmopolita
OBS: Nesse momento posso, talvez, afirmar, que a escada de Selarón e a recente
morte do artista acabam por influenciar o público ao redor do Adega Flor de
Coimbra, já que este estabelecimento encontra-se na rua que leva a subida da
escada. Ou seja, a escada de Selarón, outro símbolo da cidade, movimenta o bar
que está bem ao seu lado, todavia, o outro há 100 metros – Cosmopolita, por sua
vez, se encontra vazio no mesmo horário.
Café Lamas (Flamengo)
Cheguei lá por volta das 15h de sábado. Lá resolvi almoçar com um
amigo. Sua entrada é relativamente estreita, mas, o estabelecimento se
“aprofunda” de forma significativa, e mais ao fundo fica o restaurante. A parte do
bar, que dá para a calçada, é a sua lanchonete e seu boteco, se assim posso dizer.
Possui umas três mesas na calçada, achei interessante um casal que comia com o
poodle praticamente sentado a mesa. Entre a lanchonete e o restaurante há um
pequeno ambiente, onde ficam os dois caixas (do restaurante e da lanchonete,
cada um mais próximo ao seu respectivo) e lá estão penduradas todos os “títulos”
ganhos pelo estabelecimento, revistas, guias e etc. Indo da lanchonete em direção
ao restaurante, ou seja, também nesse ambiente, há um portal que,
particularmente, me chamou a atenção por conta dos seus azulejos (disse meu
amigo que eles parecem ser portugueses – esse meu amigo morou dois anos em
Portugal – figura 27). Nesse portal há a frase: “Café Lamas, 139 anos de tradição.
193
Eu e meu amigo fomos para o restaurante, estava muito cheio, tinha umas
três mesas vazias – o restaurante é grande, bem grande e subdividi-se em duas
parte, sendo a menor com ar-condicionado (foi o que me pareceu). Todos os
garçons, que eram muitos, vestiam um terno branco. Eu e meu amigo pedimos um
contra filé acompanhado a francesa, na verdade, meu amigo pediu, pois,
primeiramente, ele fez questão de escolher e, depois, pelo preço eu não pediria,
admito. O prato, que foi acompanhado por uma entrada de cinco bolinhos de
bacalhau mais quatro chopes sai R$130, 40. Voltei em uma sexta-feira às
13h30min na esperança de pegar o questionário, tinha combinado com Milton, já
que o mesmo não pode me atender naquele sábado movimentado. Cheguei e
Milton estava almoçando, ele pediu para que o esperasse acabar. O lugar estava
bem cheio, afinal, era hora de almoço. Fui conversar com Milton, muitíssimo
solícito por sinal, e ele foi preenchendo o questionário junto comigo, digo isso por
que ele me perguntava o que eu achava a respeito das respostas dele antes de
escrevê-las. Mas, foi muito bom, já que papeamos por volta de uns 30 / 40
minutos. Milton me disse que é filho do dono que adquiriu o Lamas em 1950, ou
seja, sua família já está ali há 63 anos, muito tempo (mais tempo, inclusive, do
que alguns dos bares e botequins patrimônio cultural). Já que a família de Milton
está com o estabelecimento desde 1950, foram eles os responsáveis em levar o
Lamas para o Flamengo, pois vale lembrar que em 1974 o Lamas saiu do Largo
do Machado por conta das obras do metrô. De acordo com Milton, se no Largo do
Machado a frente do botequim era dedicada à venda de frutas (tipo um pequeno
armazém), com a mudança para o Flamengo a família optou em, ao invés da
venda de frutas, contruir a lanchonete. Depois da conversa, Milton me mostrou
uma foto emoldurada (a qual estava lá atrás do restaurante – figura 26) do
primeiro Lamas e o atual foi feito para ser igual, na medida do possível, em
termos de ambiência, à aquele. As paredes espelhadas já tinham me chamado a
atenção, assim como imagino que aconteça com todo mundo, mas, ao olhar essa
foto percebi que, realmente, é tudo muito parecido. Até a disposição das mesas em
frente às paredes espelhadas, isso, Milton fez questão de ressaltar. Fora essa
materialidade, ele citou o cardápio, a tradição desse e, principalmente, dois pratos
que tem mais de 70 anos: Filé a Francesa e Filé Oswaldo Aranha (lembremos que
o português que conversou comigo no Cosmopolita disse que foi no seu bar que
esse prato surgiu. Milton disse que não tem muita certeza disso). O cardápio do
194
Lamas impressiona tamanha a sua variedade, é enorme. Possui pratos / refeições
caríssimas, a exemplo do valor do meu almoço no sábado, até porções, sanduíches
e petiscos mais em conta, R$11,00 / 15,00 / 20,00 / 30,00. Algumas meias porções
também apresentam esse valor. Ah, dentre todo o papo que batemos, citei que
tinha lido em reportagens que os bares e botequins patrimônio tinham direito a
isenção de IPTU, e ele disse não saber disso, mas, que seria muito interessante ao
bar já que pagam trinta e cinco mil de IPTU anuais. Como bem argumentou
Milton, o Lamas pode até não ser o restaurante mais bonito, porém, sem dúvida é
um dos mais tradicionais da cidade. Pelo menos, o mais antigo ele é. É a
manutenção dessas tradições que ele julga ser fundamental para a permanência do
Lamas. Ah, dizia a placa da prefeitura, em relação ao Lamas; “Mais antigo bar da
cidade, aberto em 1974 com vida e peso na história do largo do Machado.
Tradicional ponto de encontro de intelectuais, políticos, escritores e músicos”.
Figura 25: Lamas atual Figura 26: Foto do Lamas original
195
Figura 27: Passagem da lanchonete para
o ambiente do restaurante no Lamas
Armazém Cardosão (Laranjeiras)
Cheguei por volta das 16h / 16h15min de sábado. Não conhecia o lugar,
foi uma grande surpresa. É bar, é botequim e é armazém, é um lugar único em
relação a todos os bares e botequins que eu conheci. Fica numa rua “escondida”
de Laranjeiras e, sendo assim, é passível de se entender quando as pessoas falam
“não, nunca ouvi falar” ou então “não, nunca fui lá”. Tendo a crer que o bairro de
Laranjeiras seja realmente seu maior conhecedor. Meu amigo seguiu comigo do
Lamas rumo ao Cardosão, e ele, como morador de Laranjeiras, desde criança,
ainda acrescentou que aquele “pedaço” de Laranjeiras tem ares mesmo de uma
comunidade! Estava cheio o estabelecimento, aliás, o armazém fica situado em
um local muito agradável, uma das suas laterais está em uma rua sem saída, que
mais lembra uma vila (figura 29). Pelo que percebi, sábado é dia de feijoada,
muitos dos presentes lá a pediam, esse meu amigo já tinha me alertado desse fato!
Outra amiga de Laranjeiras, por outro lado, assim que soube que o Cardosão era
patrimônio disse: “ele tem as melhores empadas”. É um lugar muito acolhedor, a
dinâmica interna dele é bem interessante por ele ainda ser um armazém. Os seus
três donos / sócios (duas mulheres e um homem) estavam atrás do balcão, dava
pra notar que participavam ativamente, uma delas, quando fui entregar o
questionário, lavava os copos de cerveja. A gerente, uma mulher mais nova,
196
ficava na circulação entre lado de fora (no meio das mesas) e atrás do balcão.
Havia lá uns dois ou três garçons, mas, a gerente também ajudava nessa atividade.
O banheiro, muito simples, estava absolutamente limpo. As mesas (umas 10, se
não me engano), ficam todas localizadas do lado de fora (figura 29). Seu interior é
composto pelo balcão, dois conjuntos de prateleiras mais as geladeiras / freezers e
os banheiros (esse conjunto pode ser visto na figura 26), fora uma dispensa (notei
muitas bebidas nela) ao lado dos banheiros. De maneira geral, todo o
estabelecimento em si me encantou, ele é todo muito colorido, mas, o seu caráter
ainda de armazém, sem dúvida, foi o que mais me chamou a atenção (figura 30).
Como bem disse o meu amigo, que estava comigo lá, é muito compreensível se
entender a declaração do Armazém Cardosão enquanto patrimônio cultural da
cidade do Rio de janeiro. Tudo bem que isso é a opinião dele, mas, depois que
conheci o lugar, tendo a concordar.
Figura 28: Interior do Armazém Figura 29: ambiente externo do Armazém
Cardosão Cardosão
197
Figura 30: Prateleiras características de um armazém
no Armazém Cardosão
Restaurante 28 (Centro – perto do Morro da Conceição)
Cheguei as 12h53min de uma segunda-feira. , a localização do Restaurante
28 é muito ruim, o local onde ele se encontra, perto da Central e do Morro da
Conceição, está super abandonado, mal tratado; além de ser perigoso, ainda mais
dependendo da hora a ser visitado. Em minha opinião, é difícil alguém ter o
interesse de passear por aquela região da cidade. O estabelecimento estava vazio,
com aproximadamente três mesas ocupadas, sendo que o mesmo é grande (figura
33). Também segue o estilo restaurante. Por dentro, em termos da sua ambiência,
não achei nada demais, dentre todos que vi, acho que é o único que desgostei por
não ter me cativado (figura 33). Pela “placa” da prefeitura, esse lugar, aberto em
1910, foi ponto de encontro de estivadores que aguardavam a chegada dos navios
do cais. Segundo a pessoa com a qual deixei o questionário, materialmente
falando, a grande tradição do bar é a tabela de preços que tem mais de 50 anos
(figura 31). Todavia, na entrada do bar, no vidro que dá para a rua, está escrito:
Restaurante 28, o rei do cabrito (figura 30). Ou seja, eis aí sua outra grande
tradição! Voltei em uma quinta, por volta de 12h, para pegar o questionário que
ainda não tinha sido preenchido, e essa quinta foi muito mais proveitosa.
Conversei com os dois irmãos, que estão ali todo os dias a frente do negócio. Um
parece ser mais administrador (segundo o irmão está ali há 55 anos) e o outro
198
parece ter como função principal ajudar como garçom (trabalha lá há mais de 40
anos e tem sotaque de português muito mais forte que o outro, pelo menos assim
percebi, já que ele fala mais e ficou conversando comigo). Com esse último,
consegui preencher o questionário do jeito dele, ou melhor, aos poucos, com
respostas curtas, ainda assim, ele é uma pessoa muito simpática! Mais uma vez o
restaurante se encontrava bastante vazio, somente uma mesa ocupada. Fui
convidada pelos dois a voltar para almoçar.
Figura 31: A tabela de preços do Figura 32: Entrada do Restaurante 28
Restaurante 28
Figura 33: Interior do Restaurante 28
199
Bar do Jóia (Centro)
Cheguei era por volta de 13h55 de segunda-feira, admito que me perdi em
meio a tantas ruas ali pela Uruguaiana, em torno da Central. Estava vazio, tinha
uma mesa composta por cinco homens, dentre eles o atual administrador. Logo
que entrei, me deparei com uma senhora, que, depois, fui descobrir se chamava
dona Alayde (um amor de senhora, muito simples). Assim que entrei, à dona
Alayde fui explicar as minhas pretensões, nesse momento, a mesa toda que estava
reunida parou, todos se interessaram. Pronto, fiquei por muito tempo com todos
eles. Bacana era o assunto principal da mesa (que tinha desde um grande
“contribuidor”, um advogado, dois amigos e, posteriormente, foi aumentada com
a chegada de um senhor fofo, que parecia um daqueles fregueses de todo o
sempre, todos o conheciam): a festa de São Jorge que estava sendo organizada por
um “desses amigos” (no fundo, todos ali eram amigos, isso ficou muito claro), um
Agente da Fazenda do governo do estado do Rio de Janeiro (sei da sua profissão,
pois, o próprio deixou um cartão comigo). Foi esse mesmo homem, inclusive,
que fez questão de me pagar almoço. Dona Alayde é a única atendente do
botequim, se assim posso dizer. Ele não possui garçom (como fazia questão de
ressaltar o administrador) e, fora ela, há duas cozinheiras de uma cozinha tão
simples assim como todo o restante do bar. Diziam os homens da mesa: “esse é o
único bar que toca música clássica” (e é verdade, pelo menos naquele momento
era esse o som ambiente). As mesas do Jóia são todas iguais e de madeira, já suas
cadeiras, algumas de madeira outras de plástico; não há preocupação com essa
combinação mesa/cadeira (figura 35). Do seu chão, que parece ser o original, há
pouca coisa (figura 36) e suas paredes de tijolos expostos chamam a atenção. Seu
cardápio é um dos mais simples que vi, pelo menos, em se tratando prato do dia,
onde os preços não chegavam a R$20,00 já se contando a bebida. Ah, é um bar de
admiradores do time Botafogo e de mulheres, uma das suas paredes mescla um
pôster do time com vários outros de mulheres nuas! (figura 34) Em outra parede
está a pintura do verdadeiro Jóia, assim desconfio. Lá comi arroz, feijão, frango e
batata cozida (R$14,00) como pode ser visto na figura 37 e, o advogado outra
mesa, prestei atenção quando ele falou, optou pela carne assada (R$17,00). Soube
que ele era advogado, pois o dono me deu um cd de samba de autoria do próprio
(inclusive as letras), e quando ele me deu esse presente a mesa interia retrucou que
200
ninguém dali havia ganhado tal mimo (amigos do dia-a-dia do Bar do Jóia). Nesse
momento um dos homens da mesa disse, que o advogado presente podia me
defender caso eu achasse que estava sofrendo assédio! Estava eu ali, com uma
mesa cheia de homem, que bebiam desde cerveja a vinho, que falavam palavrão,
decidiam a festa de São Jorge e, me tratavam da melhor maneira possível. Posso
dizer que eu estava muito a vontade. Toda essa simplicidade, em todos os
sentidos, desse estabelecimento aberto em 1909, me encantou. Quando
inaugurado se chamava Café e Bar do Paiva, adotando na década de 1980 o atual
nome, Bar do Jóia. O Bar do Jóia é uma mistura intensa de simplicidade com
“desorganização” e nenhuma vontade de deixar de assim ser, e isso que me
encantou. De lá, peguei carona com o organizador da festa de São Jorge e outro
“amigo” da mesa em direção ao Armazém do Senado. O próximo destino também
era de interesse do tal Agente da Fazenda, lá ele deixaria camisas da festa para
serem vendidas (a minha, assim como o cd por parte do outro, foi presente, na
verdade, tanto a camisa quanto a entrada para a festa). Voltei ao Jóia em uma
quinta para pegar o questionário, não tive sucesso, Marcio ficou de me mandar por
email. Mais uma vez, por lá almocei, o lugar estava cheio, com rotatividade.
Rotatividade essa de fregueses fixos, isso fica claro. Há ali uma intimidade entre
fregueses, dona Alayde e os dois “contribuidores” (hoje estava lá mais um, que
chegou na hora do almoço para ajudar, ele vestia uma camisa de firma de
informática, ou seja, acredito que ele realize dupla função – Bar do Jóia e outro
emprego). Dessa vez lá havia um homem / freguês que quando eu cheguei me
ofereceu uma bebida. Esse mesmo homem chamava a cozinheira e roía o osso da
galinha velha ao molho pardo que comia para mostrar o quanto estava bom. Sim,
ele falava galinha velha e não frango. Depois disso lambia os dedos, literalmente.
Dizia ainda para o outro “contribuidor” que que traria azeite de casa para
complementar o frasco de pimentas, foi quando o dono respondeu: “pode trazer,
eu chego aqui e não tenho tempo para isso”. Dona Alayde, mais uma vez, estava
lá super dedicada naquilo que podia fazer fisicamente. Lá os fregueses ajudam a
arrumar a mesa, levam os pratos e potes sujos depois da refeição até a “janela”
que dá para a cozinha, coisas do tipo! Depois que obtive a resposta de um desses
“contribuidores” soube que dona Alayde á viúva do Sr. Jóia e vem mantendo a
casa com muita dificuldade. Por ter descoberto que dona Alayde é a pessoa central
do Bar do Jóia de uns anos para cá, voltei a este relato e utilizei a palavra
201
“contribuidores”, pois me parece que os dois são os que mais ajudam dona
Alayde, todavia, não sei nada além disso!
Figura 34: Variados pôsteres no Bar do Jóia Figura 35: Do interior para a rua - Bar
do Jóia
Figura 36: Os azulejos do chão do Jóia Figura 37: Comida simples e gostosa no Jóia
Armazém do Senado (Centro)
Chegamos (eu e meus amigos do bar do Jóia) no Armazém do Senado lá
pelas 15h05min da mesma segunda-feira. Que lugar incrível, uma outra surpresa
tão agradável. Também não estava cheio, havia uns seis / sete homens mais velhos
espalhados pelo estabelecimento, a mesa que estava bem abaixo de São Jorge era
a que aglomerava três pessoas! Todos os homens que ali estavam também tinham
toda a cara de clientes fixos, aqueles de sempre. Os meus acompanhantes do Bar
202
do Jóia conheciam tudo e todos, também eram íntimos desse botequim. Fui, por
eles, apresentada ao Henrique (estava atrás do balcão), atual administrador, com o
qual deixei o questionário para pegar dois dias depois. Todavia, e considero esse o
momento mais incrível de todas as visitas, fui levada até seu Antônio, o herdeiro
mais antigo desse estabelecimento. Um português de quase 90 anos que fica
sentado no sentido oposto de São Jorge, sua cadeira, pelo menos, nesse dia, tinha
vista direta para o santo. Seu Antõnio não é um senhor de muitas palavras, não sei
se agora por conta da idade, mas, nele dei dois beijinhos e com ele tirei uma foto;
dei sorte, pois, ele ainda está lá tomando conta do seu lindo armazém (figura 41).
Até quando? Acho que não por muito tempo! Como ele não era de muitas
palavras e tinha um ar de cansaço, não insisti em um bate-papo. Quanto à foto,
bem, não fui eu e seu Antônio somente. Meu novo amigo, organizador da festa de
São Jorge, fez questão de marcar presença no registro que, por sinal, ficou ótimo.
Será uma ótima recordação que terei dessa experiência. O Armazém do Senado,
com seu teto todo de madeira, suporte de duas bandeiras – Brasil e Portugal
(figura 38), ainda é um armazém. Nele pode ser encontrado desde produtos de
limpeza, chinelo Havainas (não desses estilos mais modernosos, frisa um dos
meus amigos do Jóia, mas sim aquele primeiro modelo mais simples de
trabalhador rs), biscoitos, azeites, óleo de cozinha, enlatados e etc (figura 39).
Sem contar as suas prateleiras compostas de bebidas, inclusive, aqueles “galões”
de vinho, também para a venda. Por esse lugar também fiquei encantada e,
principalmente, pelo seu Antõnio. Voltei lá numa quinta, por volta de 11h. O
questionário estava prontinho, Henrique me entregou! O lugar estava bem vazio,
mas, seu Antônio estava lá na sua cadeira olhando finanças / contas, pelo menos
foi o que pareceu. Somente percebi a presença de fregueses na mesa em baixo de
São Jorge (figura 40).
203
Figura 38: Conexão Brasil – Portugal no Armazém Figura 39: Parte armazém do
do Senado Armazém do Senado
Figura 40: Destaque para São Jorge Figura 41: O Melhor momento de todas
no Armazém do Senado as visitas aos bares
Nova Capela (Centro)
Cheguei lá pelas 16h de segunda-feira. Contei da minha intenção para o
homem que recepcionava na porta (pelo qual fui muito bem atendida), todavia, ele
ficou de repassar o questionário para o Aires Filho, atual dono / administrador do
Nova Capela. E assim o fez, pois, no dia em que retornei, encontrei o Aires Filho
204
e ele havia respondido! O bar estava vazio, duas mesas ocupadas, contanto, que
não tinha nenhum garçom circulando pelo ambiente, todavia, bem notei um
sentado lendo o jornal, todo pomposo no seu terno branco. Aliás, em alguns
desses bares e botequins tradicionais (a exemplo do Lamas, Nova Capela, Bar
Brasil, Bar Luiz), o terno branco, com suas especificidades e diferenciações de um
bar para o outro, é a vestimenta dos garçons. Também com ares de restaurante, é
um espaço grande, de muitas mesas, por sinal, muito bem arrumadas (figura 42).
Nesse sentido, eis aí a diferença no quesito organização (e higiene) em relação,
por exemplo, ao Bar do Jóia. É outro lugar lindo, sendo que seus azulejos,
presentes em todas as paredes, chamam muito a atenção, destoam (figura 43).
Outra coisa muito diferente são uns círculos cor de cerâmica que ficam grudados
no teto, na verdade, são bem estranhos (figura 42). Assim como a grande maioria,
possui quadros com as conquistas do estabelecimento no contexto da cidade do
Rio de Janeiro. Seu balcão é enorme, em formato da letra ele. Suas prateleiras,
com as mais diversas bebidas, também são marcantes, inclusive, elas são
espelhadas! A vitrine do balcão abriga grandes pedaços de carne, fora frutas e
mais bebidas (figura 44). Segundo a placa da prefeitura, na porta de entrada do
restaurante, sua origem remete ao antigo Capela (na Lapa) que fora destruído por
um incêndio em 1903, sendo reinaugurado, já com o nome Nova Capela em outro
lugar da Lapa, na rua Mem de Sá (figura 45). Quando retornei para buscar o
questionário, numa terça-feira lá pelas 10h45min lá estava Aires Filho e um
senhor, que parecia ser seu pai, de idade já bem avançada, mas, que ainda estava
ali a participar do dia a dia do seu estabelecimento.
205
Figura 42: Interior do Nova Capela Figura 43: Os azulejos do Nova
Capela
Figura 44: Um dos balcões do Nova Capela Figura 45: A entrada do Nova Capela
Bar Luiz (Centro)
Quando cheguei estava vazio, era em torno de 16h30min de uma segunda-
feira. Em termos de idade, um grande clássico, já que foi fundado em 1887 (figura
46). É um bar de origem alemã. Um lugar bem grande também com ares de
restaurante. Mesas e cadeiras de madeira muito bem organizadas, paredes com a
exposição dos seus quadros (figura 47). Diz a placa da prefeitura que lá foi o
primeiro lugar a servir chope, aliás, a história do chope na cidade do Rio de
Janeiro possui vínculo direto com esse estabelecimento, conforme me contou
206
Emerson, que está no dia a dia do bar há 16 anos, mas, não faz ele parte da quarta
geração da família que deu origem ao Bar Luiz. Pelo que entendi, Emerson já
morou e trabalhou na Europa nesse ramo, não exatamente o mesmo que exerce
atualmente, e então foi contratado pelos donos da casa. Durante minha conversa
com Emerson, muito solicito por sinal (sentou a mesa comigo e papeamos até que
por um bom tempo, até por que ele gosta de falar), ele faz questão de mencionar a
qualidade do serviço alemão. E um ponto é de extrema relevância: de acordo com
ele a tradição da casa não está na herança familiar, mas sim, na herança dos
funcionários. Ou seja, ali está a quarta geração de funcionários, geração essa, que
para Emerson, não passa dos próximos dez anos; pois, os filhos dos atuais
funcionários já não querem trabalhar nesse ramo, ou então, querem estudar. Fora
que tais familiares não se deslocam mais de outros estados para trabalharem como
garçons e afins, assim como fizeram seus pais, tios, avós e etc. A não “herança”
dos funcionários pode levar, dessa forma, a perda de uma das principais tradições
do bar. Ainda segundo Emerson, o prato mais tradicional é o Alemão Completo,
fora a salada de batata e o rosbife; ambos fizeram a casa chegar ao que ela é hoje,
sendo que esses pratos são diferenciais, são identidades do Bar Luiz, afirmou ele.
Como não poderiam deixar de aderir a outros sabores, o bolinho de bacalhau
também ganha destaque na fala de Emerson. Voltando ao chope, Emerson
ressaltou que sim, eis aí outro ponto que não pode ser esquecido ao falar do bar
Luiz, sendo o chope escuro outra identidade do estabelecimento. Emerson disse
que o Bar Luiz foi o primeiro a ter o barril de carvalho de 100 liltos, que ali
estagiaram funcionários da Brahma. Ah, não resisti e fotografei o banheiro. Pelo
menos no feminino, apesar do mal cheiro, azulejos e pia se destacam, são bem
bonitos; assim como o hall dos banheiros feminino e masculino (figura 49). O
interior do Bar Luiz, em termos de ambiência, é menos chamativo, menos
colorido, sendo seu balcão também nesses “moldes” (figura 48). Não notei, por
exemplo, as prateleiras de garrafas, típicas dos bares e botequins tradicionais;
como, lembrando agora, também não vi no Restaurante 28. Enfim, é um lugar de
muita história, que merece ser conhecido e visitado. Todavia, ainda prefiro
aqueles como Armazém Cardosão, Adega Pérola, Bar do Jóia, Armazém do
Senado, Casa Paladino, ou seja, mais coloridos. Emerson ficou de mandar o
questionário por email
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Figura 46: Placa na porta de entrada Figura 47: Interior do Bar Luiz
do Bar Luiz
Figura 48: O único balcão do Bar Luiz Figura 49: Hall dos banheiros no Bar Luiz
Casa Villarino (Centro)
Cheguei eram 17h30min de segunda-feira. Assim que você entra tem a
sensação de que não há lugar parecido no Rio de Janeiro, diria que é o bar e
botequim tradicional mais sofisticado de todos. Organização e higiene impecável.
Sua ambiência, composta pelas milhares de garrafas nas prateleiras e muitos
quadros pelas paredes (que contam toda a história do bar através das suas fotos,
pôsteres, recordações materiais como contratos e poesias), é única. É lindo, apesar
de, para mim, ser extremamente chique para ser chamado de botequim (parte
dessa ambiência está na figura 53). Pode ser um bar / restaurante, mas, se eu fosse
208
qualificá-lo, diria que é um armazém de muito luxo, uma delicatessen de classe A.
Um armazém muitíssimo organizado que vende comidas, quitutes e bebidas os
quais parecem ser bem caros (nacionais e internacionais), não olhei o cardápio.
Fui muito bem recebida por Torres, um funcionário com 33 anos de casa. Disse-
me ele que não poderia responder minhas perguntas, que preferia que um dos seus
donos (herdeiros familiares do lugar) o fizesse e, um pouco antes de eu ir embora
chegou a esposa de um desses donos, que pelo visto fica ali a partir das 11h da
manhã, foi o que a mesma me disse. Ela ficou encarregada de responder o
questionário. Quando cheguei, o bar tinha somente um homem mais velho
bebendo no balcão, mas não pense você que é qualquer balcão, é uma coisa linda.
Só vendo pessoalmente. O balcão da para a rua, o bar está localizado em uma
esquina, assim, há duas entradas que te levam ao balcão. A parte composta pelas
mesas é em outro ambiente. Todas as mesas de madeira, pé fino e tampo de
mármore branco e, suas cadeiras, de madeira com acento e encosto vermelho
(figuras 51 e 53). Da metade para baixo as paredes são de madeira bem escura. O
chão, disse Torres, é original e não pode ser trocado. A Casa Villarino também
carrega consigo a história da cidade do Rio de Janeiro: a história dos seus
intelectuais (figura 52), tanto dos grandes artistas nacionais e internacionais,
quanto dos políticos cariocas e nacionais, quanto de funcionários de empresas do
alto escalão (a exemplo de Vale, Globo), quanto advogados mais prestigiados da
cidade; é esse o tipo de frequentador (trabalhadores da justiça e economia).
Contanto que disse Torres que quinta e sexta são os dias de maiores movimentos,
“nesses dias da semana os advogados estão fechando seus processos, a cidade
está, nesse sentido, sua semana”, frisou ele (não exatamente com essas palavras).
Como diz uma reportagem enquadrada pela casa e exposta em uma de suas
parede: “Casa Villarino, ponto de encontro de intelectuais”. Torres me mostrou
todas as fotos enquadradas e espalhadas pela parede, e são muitas. Sabia ele o
nome de todas as pessoas em cada foto, se esqueceu um ou dois, foi muito. A cada
foto se percebe o nível do público desse lugar. Foi na Casa Villarino Tom Jobim
foi apresentado a Vinicius de Moraes para musicar a peça Orfeu da Conceição,
desse fato o lugar se apropria com todo o orgulho (figura 50). A única parede que
não possui quadros é a que, em toda sua dimensão, contém uma foto de Vinicius
de Moraes sentado à mesa com amigos e seu filho (pelo que me recordo). Era ali
que ele gostava de ficar sentado, ali era sua mesa (figura 51), disse Torres.
209
Observa-se que na foto não há comida na mesa e, segundo Torres,Vinicius de
Moraes assim não o permitia, se tivesse comida era a mesma coisa que ofender o
diabo. Diz-se que foi nesse lugar, que pela primeira vez, se ouviu o termo Bossa
Nova. O bar expõe, por exemplo, um poema escrito por um de seus intelectuais ao
lugar dedicado e o primeiro (ou um dos primeiros) contratos do estabelecimento.
Quanto ao contrato, Torres me fez perceber que o nome dos funcionários (quatro
no total, sendo dois espanhóis) apareciam antes do nome dos donos. Para ele isso
é muito representativo, pois, normalmente o oposto é feito. Esse fato simboliza
sim a importância dos funcionários na época da sua fundação, em 1953. Ou seja,
se comparado a outros dos botequins, como Bar Luiz, Restaurante 28, Bar do Jóia,
Café Lamas, é um “moço bar”. Voltei para pegar o questionário em uma quinta-
feira, lá pelas 14h45min. Ao atravessar a rua observei que um grupo de homens
novos e super engravatados saiam de lá. Ainda estava no almoço dos grandes
executivos, advogados e afins. Consegui as respostas
Figura 50: O encontro de Vinicius de Figura 51: O lugar cativo de Vinicius de
Moraes e Tom Jobim Moraes
210
Figura 52: Uma das muitas reportagens Figura 53: Interior da Casa Villarino
sobre a Casa Villarino
OBS: Se no Restaurante 28, por exemplo, os estivadores / trabalhadores do porto
se sociabilizavam, na Casa Villarino a sociabilidade se dava pela nata da
sociedade. Um estabelecimento não é melhor que o outro, o que quero ressaltar é
que ambos fazem parte da cidade do Rio de Janeiro, seja pela história dos seus
trabalhadores, seja pela história dos seus intelectuais. Afinal, nossa cidade é
constituída de todas as classes e os bares e botequins tradicionais, historicamente,
atenderam todas elas.
Bar Bip Bip (Copacabana)
Cheguei ao bar eram 20h30min de uma terça-feira.. O bar não dá
diretamente para nenhuma das famosas ruas de Copacabana (Nossa Senhora de
Copacabana e Barata Ribeiro), estando ele situado em um local “menos a mostra”,
que, talvez, possa ser chamado de praça. O Bip Bip é um bar muito pequeno
(menor que ele só a Casa da Cachaça). Assim que cheguei me deparei com um
grupo de sete pessoas (homens e mulheres, de idades variadas) tocando samba147
/
chorinho dentro do estabelecimento, que ocupavam a única única mesa do interior
147
Bar e samba que ganham destaque na reportagem do anexo 7.6.
211
do estabelecimento Parecia um grupo de amigos que ali se reunia para tocar /
ensaiar, pois, logo depois que eu cheguei um homem sentou-se a mesa, foi o
último músico que eu vi a adentrar o grupo (não posso dizer se depois chegou
mais algum). O som estava muito bom, foi bem bacana poder presenciar esse
momento. Fora a mesa de músicos de dentro, duas mesas eram ocupadas do lado
de fora, uma delas pelo dono do bar e amigos. Um homem que estava em pé ao
meu lado me falou que Alfredo, o dono (um senhor com seus 60 anos e pouco, me
pareceu), estava naquela mesa. Quando olhei reparei que ao lado do Alfredo havia
uma mesinha com um telefone (no qual ele falava quando cheguei) e muitas
notinhas, assim me pareceu. Percebi também que na mesa em que ele estava
sentado, tinha um bloco onde ele fazia anotações, realizava contas, também foi o
que me pareceu. Nessa mesma mesa havia tinha um pote com muitas moedas. O
bar não aceita pagamento em cartão, somente dinheiro, desta forma, naquele
pequeno pote, Alfredo deve reunir as moedas que recebe pelo que vende. Não tem
garçom (não vi nenhum pelo menos) e, pelo que percebi, cada pessoa que está no
bar acaba incorporando tal função, já que os clientes vão até o fundo do
estabelecimento, pegam a bebida que desejam, por exemplo, e na volta mostram
para seu Alfredo. Todas as mesas do bar são de madeira com uma toalha azul, as
cadeiras também são de madeira. Percebe-se que todo mundo que chega vai dar
um beijo / abraço no dono do bar. Das três pessoas que observei chegando, todos
foram até Alfredo e lhe deram um beijo. Incrivelmente o bar estava silencioso,
pois, as pessoas estavam ali a admirar o som que vinha lá de dentro. Alguns
transeuntes paravam também para ouvir. Enquanto estive por lá, passaram dois
tipos de ambulantes, um vendendo aquele famoso amendoim tostado enrolado no
papel branco e outro carregando seu painel com pulseiras e afins. Papéis
pendurados na entrada e no interior do estabelecimento informavam os petiscos
oferecidos pelo bar: salame / quibe / queijo / azeitona / bolinho de bacalhau.
Quanto ao seu interior, não há dúvida que esse, também, é um bar de
botafoguenses (pôster, símbolos do clube, faixa pendurada). Assim como reparei a
presença de imagens de Dilma e Lula, uma foto de cada, ou seja, deve ser petista.
A plaquinha da prefeitura afirmava a data da sua fundação, 1968, e afirmava,
também, que ali era um dos berços do samba carioca, da antiga e da nova geração
(a figura 54 ilustra esse apreço pelo samba). Duas outras placas me chamaram a
atenção, respectivamente, elas diziam: “44 anos a serviço do porre e da amizade”
212
e “Fundado em 13-12-1968 em homenagem á mocidade brasileira”. Nas suas duas
paredes laterais há, além dos símbolos botafoguenses, muitos quadrinhos
pendurados (figuras 54 e 55). Para refrescar, nos dias mais quentes, o
estabelecimento possui dois pequenos ventiladores daqueles que se coloca em
cima de mesa. Infelizmente, percebi que não conseguiria ter acesso ao dono
Alfredo nessa terça-feira, ele estava lá ocupado com suas pendências e entretido
com a mesa. Também infelizmente, a bateria do meu celular tinha acabado e não
pude tirar fotos, portanto, recorro aqui à fotos da internet..
Figura 54: Google Imagens, Bar Bip Bip Figura 55: Google Imagens, Bar Bip Bip
(acesso em 20 de abril de 2013) (acesso em 20 de abril de 2013)
Casa Paladino (Centro)
Cheguei antes das 10h da manhã de uma quinta-feira. Já tinha ido outro dia
à tarde, mas, me falaram que Ricardo, o dono / administrador, só está lá pela
manhã. A manhã de quinta que eu escolhi retornar o Ricardo decidiu não escolher
para estar lá, infelizmente. Segunda ida sem conseguir contato com ele, e no Bar
do Jóia “meus amigos” falaram que ele é uma pessoa super tranquila e solícita.
Bem, depois de duas tentativas de um primeiro contato com o dono, desisti de
voltar lá. Na segunda visita, pelo menos, tirei fotos da Casa Paladino. O lugar
estava vazio. O bom de você encontrar o lugar vazio é poder vê-lo como um todo,
e a Casa Paladino é ainda, também, um armazém. “Um dos lugares mais antigos
da cidade, no mesmo local desde sua fundação em 1908. Aqui, permanece o
ambiente do botequim em sua origem, junto a um armazém”, diz a placa azul
arredondada da prefeitura. O estabelecimento é lindo, muito bonito mesmo, único!
213
Metade da casa é destinada a venda de produtos (figuras 56 e 58 e a outra a mesas
e cadeiras (figura 57). Por todo o bar há milhares de garrafas de bebidas muito
bem arrumadas tanto atrás do balcão na prateleira de madeira escura de bebidas
(ainda protegidas por vidro e que encanta), quanto na parte dedicada ao armazém.
As prateleiras de chão do armazém, além das muitas bebidas, oferecem,
principalmente, comida. Assim como percebi na Casa Villarino, a Casa Paladino
destina grande parte das suas prateleiras e venda de vinhos. As paredes, quando
não possuem nenhuma prateleira, são compostas por azulejos de tom claro (bege,
amarelo talvez, perto dessas tonalidades). As mesas e cadeiras também são de
madeira escura, sendo as mesas cobertas por toalhas amarelas (assim considero
aquela cor). Acaba que as toalhas combinam com os azulejos. Mais voltado para
uma das calçadas estão expostos os produtos refrigerados, naqueles balcões de aço
com vidro à frente. Mais uma vez, noto a presença de muitos salames e presuntos
inteiros, por exemplo (figura 59). Sem dúvida, a Casa Paladino merece ser um
patrimônio cultural da cidade.
Figura 56: Bebidas e comidas no balcão Figura 57: Parte das mesas e cadeiras
da Casa Paladino na Casa Paladino
214
Figura 58: Parte Interior da Casa Figura 59: Parte do balcão que dá
Paladino para a rua – Casa Paladino
Bar Brasil (Lapa)
Cheguei eram 10h30min de uma quinta-feira. Estavam arrumando a casa
quando bati na porta. Falei com um dos funcionários, expliquei a situação e ele
me deixou entrar, e me apresentou a seu José, um dos donos (eu já tinha ido ao
Bar Brasil em uma segunda-feira a tarde e tinha sido atendida por um garçom de
bastante idade, penso que já devia trabalhar lá a tempos. Todavia, esse mesmo
garçom pediu para que eu voltasse outro dia de manhã, já que a pessoa que ficava
lá no período da tarde não era de muitas palavras). Fora o funcionário que me
atendeu, havia mais dois ajudando na arrumação, enquanto seu José verificava
contas (eu acho). Todos estavam se camisa, inclusive, seu José. O que falar de seu
José? Uma pessoa muito simpática e solicita (que já deve ter os seus setenta e
poucos anos), ainda bem que eu retornei no período da manhã! Disse ele que
entendia minha necessidade da pesquisa, pois o filho que o ajuda no Bar Brasil é
formado (segundo ele, iria dar o questionário para o filho responder, por isso
pediu que eu retornasse outro dia para buscá-lo). Não sei eu, porém, se é esse filho
que fica na parte da tarde, o tal que não gosta de muito falar. Só sei que seu José
adora um bate-papo, se eu tivesse mais tempo ficaria ali papeando mais com ele.
Seu José disse que estava no dia a dia do Bar Brasil há 56 anos. “Tenho certeza
que o tempo que estou aqui é mais velho que seu pai”, ressaltou. E sim, é verdade!
215
Quando citei que o Bar da Cachaça, ali ao lado, logo depois do Nova capela,
também era patrimônio, ele lembrou do primeiro dono do Bar da Cachaça, o qual
chamou de doidão: “minha filha, ele comprava cachaça por todo esse Brasil”,
lembrou Seu José. O Bar Brasil é também muito bonito, tem um espaço grande
com duas entradas (uma para a rua Mem de Sá – figura 61 - e outra para a rua do
Lavradio) e tende mais a restaurante (figura 61). Seu balcão é um lindo balcão de
madeira. Na vitrine do balcão, onde ficam expostas as comidas que precisam de
refrigeração, havia salames, presuntos, queijos, enlatados (figura 63). O balcão e
“seus fundos” formam um conjunto bonito, aquela tradição mesmo de botequim
com prateleiras de garrafas atrás cheias de bebidas (bem enfileiradas – figura 62).
Logo acima dessa prateleira, a parede é toda preenchida por quadros que mostram
os títulos do estabelecimento. Enquanto essa parede situada atrás do balcão
concentra os títulos do bar, as outras apresentam quadros grandes com ilustrações
do Rio antigo. Suas mesas e cadeiras são de madeira escura e todas as mesas
forradas por uma toalha de pano branco, sendo que essa tolha, pelo menos para
seu José, é algo muito tradicional. Fora que ele dizia que não tinha jeito da mesa
não ser forrada, já que o barulho dos pratos e talheres na mesa é horrível. Além do
balcão, outro móvel me chamou a atenção, não consegui distinguir se era uma
antiga geladeira de madeira ou um armário de madeira. Parece-me ser uma antiga
geladeira. Assim como o Bar Luiz, o Bar Brasil é de origem alemã, uma das suas
paredes possui um folder pendurado afirmando que ali é vendido um crocante
croquete alemão. No dia em que retornei para buscar o questionário, uma terça de
manhã (um pouco depois das 10h), lá estava seu José sem camisa ajudando na
organização do Bar Brasil e, juntamente com ele, seu filho Gustavo (um homem
que parecia ter seus trinta, trinta e poucos anos). Foi Gustavo que respondeu as
perguntas! Nesse dia, seu José logo apontou para a primeira resposta onde o filho
disse que o Bar Brasil, por ser um bar de família, representa tudo o que a família
viveu até hoje, ou melhor, a história da família está diretamente ligada ao bar.
Nesse momento, seu José disse que começou a trabalhar no Bar Brasil quando
tinha dezoito anos como faxineiro, isso lá na década de 1950 (hoje é dono e tem
seu filho como sócio). Como o bar era de uma família alemã, lá aprendeu o
idioma, assim como fizeram as duas negras que trabalhavam como cozinheiras e
eram analfabetas, mas, que dominavam o alemão como os próprios originários de
lá.
216
Figura 60: A “geladeira” do Bar Brasil Figura 61: Interior do Bar Brasil que dá
para a rua Mem de Sá
Figura 62: O balcão do Bar Brasil Figura 63: As comidas refrigeradas no
balcão do Bar Brasil
Armazém São Thiago (antigo Bar do Gomes) (Santa Teresa)
Cheguei eram 14h de uma quinta-feira. O dono, Ricardo (que possui outro
estabelecimento logo à frente do Armazém São Thiago, do outro lado da rua), não
estava lá. Pelo que entendi de uma mulher que desceu de ônibus comigo, Ricardo
é filho de Jesus, que juntamente ao Gomes, tomavam conta do antigo Bar do
Gomes. Expliquei minha situação á um dos dois funcionários que estava atrás do
balcão e ele falou que entregaria o questionário ao Ricardo. Falando em balcão,
217
que belo balcão possui o Armazém São Thiago. O bar, que é grande, estava com
três mesas ocupadas e mais uns três ou quatro homens bebendo no balcão. A placa
da prefeitura ressalta que ele se chamava Bar do Gomes, que foi inaugurado em
1919 e, que ainda, o local mantém a ambiência dos antigos botequins, junto à um
armazém. Sim, posso dizer que apesar das diferenças grandes entre eles há uma
similaridade entre o Armazém São Thiago, a Casa Paladino, o Armazém do
Senado e a Casa Villarino, pois, esses realmente misturam o bar/botequim ao
armazém, onde os móveis são de madeira escura, onde as estantes de bebidas
chamam muito a atenção e ocupam paredes inteiras, seja no seu comprimento
quanto na sua altura (figura 67). As mesas do Armazém são Thiago possuem
tampo de mármore e não são forradas por tolhas. O chão do estabelecimento é
muito bacana, chamou a minha atenção. A ida ao banheiro, cujo hall também é
belíssimo, é realizada por uma pequena escada também de madeira, um charme!
(figura 65). Atrás do balcão de madeira, que é muito grande e coberto por
mármore, está uma das suas duas lindas estantes a expor as bebidas (figura 66).
Fora a geladeira de madeira que não passa despercebida e está a pleno uso (e, por
isso, penso que o móvel do Bar Brasil que fiquei admirando também seja uma
geladeira). Uma das paredes do estabelecimento, localizada acima de um
aconchegante “recoado” dentro do bar, é repleta de quadros (figura 64). Fora as
mesas internas, o bar oferece pequeninas mesas altas e redondas do lado de fora,
para se ficar em pé. Lá presenciei curtos momentos muito divertidos entre uma
mulher e um homem (cego). Acho que eles se conheciam, parecia que sim. Ela
sempre a encher o copo dele, ele bem mais velho que ela, os dois eram duas
figuras. Eu não conseguiria aqui dizer dos dois quem era o mais engraçado. A
conversa perpassava por todos os assuntos, e eu como estava ali a esperar o ônibus
(o ponto é bem em frente ao botequim, em uma das calçadas onde ele coloca as
mesas redondas), fui sendo cooptada pela mesma, na verdade, não tive muita
opção rs. Mas, no fundo, me diverti, ri um bocado. Acho, realmente, que esse tipo
sociabilidade é única do botequim, estranhos em menos de cinco minutos rindo
juntos, eu já a falar da temática da minha dissertação para a tal mulher, que
achava, até eu começar a falar, que eu era francesa. O Armazém São Thiago fora
sua beleza e ambiência, está situado em Santa Teresa e, por conta da sua
localização, não tenho dúvida que a relação entre estabelecimento e bairro só dá
218
mais charme ao estabelecimento. Até porque, quem mora no Rio e conhece o
bairro, sabe que ele também é muito diferente de todos os outros.
Figura 64: O recuado do Armazém Figura 65: Interior do botequim, as escadas
São Thiago levam aos banheiros
Figura 66: O belíssimo balcão do Figura 67: As lindas prateleiras de madeira
Armazém São Thiago do Armazém São Thiago
Bar e Restaurante Jobi (Leblon)
Cheguei ao Jobi por volta de 11h30min de uma sexta-feira. Está situado
em um dos pontos mais nobres de toda a cidade do Rio de Janeiro, o bairro do
Leblon. Estava vazio, havia lá dois senhores sentados na última mesa do bar antes
desse alcançar a calçada, e esses senhores liam jornal e bebiam chope (tinham
toda a cara de serem aqueles fregueses fixos, de todo ou quase todo dia – figura
219
70). Fora eles, havia outro homem, também no espaço interior, que tomava um
caldinho de feijão. Seu Pires e outros dois funcionários almoçavam. Já conhecia
seu Pires da outra visita e tentativa que tinha feito, em uma quarta-feira. Depois
que expliquei o que queria no Jobi, disse-me seu Pires que ele era o único que
podia responder as minhas perguntas. Mas, caso eu queira o questionário de volta,
disse-me ele que eu terei que retornar outro dia, ou seja, numa terceira tentativa, a
qual, muito provavelmente, poderá ser em vão. Contando já com os funcionários
que almoçavam com seu Pires, percebi que o lugar possuía uns quatro garçons,
fora um outro homem que ficava atrás do balcão e no caixa (nada simpático por
sinal). Não é um bar / botequim grande, suas mesas e cadeiras são de madeira,
sendo as mesas cobertas por toalhas quadriculadas ora em vermelho e branco ora
em verde e branco (em cima dessas toalhas eles colocam uma outra pequena
toalha branca. Particularmente gostei bastante das toalhas quadriculadas, dão cor
ao ambiente). Aliás, para bom observador, na verdade, essa mistura de vermelho e
verde das tolhas combina com o restante do lugar, várias coisas da sua ambiência
são nas tonalidades vermelha e verde, inclusive, o letreiro do bar que dá para a
rua, além das madeiras que fazem parte das paredes e do “cercado“ que separa o
bar da calçada. O balcão é bonito, um típico balcão de botequim mais pé-limpo.
Sim, o Jobi é muito organizado e limpo. A parede em frente ao balcão possui um
painel enorme, na verdade, a parede se configura pelo painel mais uma prateleira
com bebidas logo acima do painel (figura 69). O painel é muito bonito e ganha
destaque na placa azul da prefeitura, que diz: “Inaugurado em 1956, matem suas
portas abertas durante a madrugada, Possui um painel de Milton Bravo, artista
plástico que enfeitou botequins por toda a cidade na década de 1960” (figura 68).
Logo ao lado da placa da prefeitura um papel com algumas palavras chamou
muito a minha atenção, “É proibido cantar, batucar nas mesas, tocar instrumentos
musicais ou aparelhos sonoros dentro do bar”. Um tanto quanto regrado em
termos de barulho o Jobi, ou seja, o oposto de um Bip Bip, por exemplo. Assim
como todo botequim, possui quadros pelas suas paredes. O Jobi é um lugar bonito,
mas, para mim Ana, parece ser cheio de não me toques, muito organizado demais.
Essa organização em demasiado combina mais com o Villarino, por exemplo.
Prefiro ambientes mais descolados. Tudo bem que estive em um Jobi vazio, já que
o mesmo funciona de madrugada e, portanto, imagino que de madrugada, depois
de muitas bebidas por parte dos seus frequentadores, as regras como as do papel
220
em relação ao barulho não sejam cumpridas à risca. Assim espero, fica tudo mais
divertido. Ah, resolvi no Jobi tomar um café expresso duplo, somente isso. Foi o
jeito que arrumei para ficar uns minutos ali, já que não tinha conseguido meu
questionário. Quando fui pagar minha conta de R$7,00 eu só tinha cartão (tenho a
péssima mania de andar com a carteira vazia). Enfim, fui até o antipático do caixa
e disse que pagaria em débito, ai ele retrucou que lá só se aceita cartão a partir dos
R$30,00; quando eu “devolvi” falando que não tinha dinheiro vivo, infelizmente.
Com a cara muito feia ele aceitou meu pagamento. Não sei afirmar direito, mas, o
Jobi não me agradou, apesar de ser um lugar fisicamente interessante.
Figura 68: A placa da prefeitura no Jobi Figura 69: O painel de Milton Bravo
Figura 70: O Jobi visto da rua Figura 71: Quadro / cardápio do Jobi
221
Bar e Restaurante Urca (Urca)
Cheguei ao Bar Urca numa sexta-feira lá pelas 15h30min. Admito que só
de ir para o bairro da Urca estava feliz, sou apaixonada por aquele lugar. Da zona
sul, Urca, Jardim Botânico e Horto me encantam. E nesse encanto de bairro está
localizado o Bar Urca (assim comumente conhecido). O Bar e Restaurante Urca é
dividido em dois ambiente: botequim em baixo e o restaurante em cima. O espaço
do botequim estava vazio, tinha umas duas pessoas ali na frente do balcão. Fora
uns três funcionários atrás desse. Todavia, em relação ao Bar Urca, deve se medir
seu movimento olhando para a mureta da Urca, localizada logo a frente do
estabelecimento (figura 72). Como ainda era meio da tarde, a quantidade de
pessoas na mureta também era pequena, isso porque já fui em outros momentos
em que a mureta estava lotada, com pessoas ao longo de grande extensão da
mureta. Os que chegam primeiro tendem a ficar na parte da mureta mais próxima
ao bar, por isso, que quando o “bar está lotado” as pessoas tendem a sentar longe
do estabelecimento. O botequim não é grande e é do tipo pé-sujo, não possui
mesas nem cadeira, a mureta da Urca assume esse papel (figura 72). Sem dúvida,
isso é algo único desse bar, é uma das suas tradições, se assim posso falar. O
balcão do botequim expõe todas as suas delicias: empadas, pastéis, bolinhos
(figura 74). Em abril ainda estava havendo a venda de dois petiscos, servidos
numa quantidade boa (como uma porção de batata frita): camarões fritos e lulas
(não me recordo se fritas também). Quando uma bandejinha de camarão passou na
minha frente no balcão, enquanto eu esperava o Manuel, admito que perdi o foco
rs. Como eu não estava com muita fome, pois tinha acabado de comer um
sanduíche no Lamas, mas, não queria sair do Bar Urca sem ter comido algo, optei
pelo pastel. Comi dois pastéis de queijo, paguei R$ 4,50 por eles, ou seja, os
preços do botequim, dos seus petiscos, não são salgados. A própria porção de
camarão que me deixou com água na boca, se não me engano, custava R$30,00.
Deve se considerar que camarão não é algo barato e que a porção não era mínima.
Na parede do botequim que leva aos banheiros estão pendurados alguns quadros
sobre o bar – reportagens e afins. Manuel, um dos funcionários do botequim
chamou, foi quem me atendeu. O Manuel é quem está abaixo do Armando pai e
Armando filho, os donos do Bar Urca (assim como já foi o pai do Armando pai).
Disse-me Manuel que Armando pai estava em casa e Armando filho tinha ido
222
viajar naquele dia. Sendo assim Manuel disse que ou ele responderia, ou então,
entregaria a um dos “Armandos”. Perguntei para Manuel se eu podia ir ao
restaurante, no segundo andar, para conhecer e tirar algumas fotos. Eu já fui
muitas vezes ao Bar Urca, mas, nunca tinha visto como era o ambiente do
restaurante por dentro. Logo na porta destinada a entrada do restaurante está
enquadrado o seu cardápio e, também, pelos preços que consultei, não é um
restaurante barato. As paredes de fundo branco da escada que levam ao segundo
andar formam um ambiente / hall muito bacana. Logo na subida, em frente, há um
desenho (auto-retrato) do mais antigo dos “Armandos”, seu Armando Gomes.
Nessa mesma parede, estão enquadrados muitas reportagens e títulos ganhos pelo
Bar Urca, entre eles, um da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e
outro da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, sendo que nesse último, logo após
o nome do seu Armando Gomes aparece entre aspas “Seu Gomes”. Assim,
portanto, ele devia ser conhecido e chamado. A outra parede é toda ela composta
de recados enquadrados destinados ao Bar Urca e/ou Seu Gomes. Todos os
quadros têm a mesma moldura, o mesmo fundo branco (onde estão os recados)
juntamente a uma foto / figura daqueles que deixaram suas palavras. A quantidade
desses quadros é bastante significativa. Quando você entra no restaurante uma
caricatura gigante dos três “Armandos” juntos logo chama a atenção (figura 75),
essa figura ocupa grande parte da parede em direção oposta a porta de entrada do
restaurante, assim, não há como não notá-la. E é muito representativa, pois,
demonstra que ali a administração e participação familiar é uma grande tradição.
O restaurante tem um tamanho bom, é comprido e estreito e seu interior é muito
branco, paredes combinando com o teto e as toalhas de mesa. Fora as cadeiras de
madeira, cujos encostos também são brancos. Algumas de suas paredes também
são recheadas dos “famosos quadros”, “famosos” no sentido de corriqueiros. A
parede que dá para á vista da Urca (de lá se observa todo o movimento da mureta)
é toda ela composta de grandes janelas, ou seja, o lugar é muito bem iluminado
pela luz do sol. Talvez seja por essa razão que o ambiente é muito branco. Ah, o
ambiente é todo refrigerado por ar-condicionado. O balcão do restaurante não é
grande, e a parede de fundo do balcão é a única que destoa em termos de
coloração, sendo vinho. Essa mesma parede possui poucas prateleiras com suas
enfileiradas bebidas. O restaurante não estava lotado, mas, muito bem
movimentado, afinal eram quase 16h da tarde. Ah, o Bar Urca ainda não recebeu a
223
placa azul da prefeitura. Pelo menos procurei e não encontrei nem no botequim
nem no restaurante. O que acho mais impressionante do Bar Urca é a vista que o
mesmo possui, uma das mais belas vistas de toda a cidade do Rio de Janeiro
(figuras 72 e 73). Não há como não lembrar dessa vista quando se fala e/ou
lembra do Bar Urca. Eu nunca comi no restaurante, já petisquei muito no
botequim e posso dizer que o que nele se serve é bem bom, fora nunca ter bebido
cerveja quente por lá; todavia, acho que a maior tradição do Bar Urca, em minha
opinião, é sentar na mureta da Urca e ficar ali a olhar aquela maravilha,
independente da hora do dia e independente, também, por exemplo, das baratas
que por ela passeiam. O vai e vem dos pescadores (no momento em que eu estava
por lá chegava um pequeno barco que além da pessoa, dele descia um cachorro
todo molhado, imagino eu que ele deva ter aproveitado bastante o passeio, a cara
do bichano era de pura satisfação), logo ao ali ao lado a entrada do forte da Urca,
enfim, tudo se completa. Quando são somados à vista os quitutes, cerveja e aquele
burburinho da mureta (com muita gente bonita) dá-se algo único. Só indo
pessoalmente para saber o que é aquele lugar.
Figura 72: A mureta da Urca Figura 73: A vista da mureta
224
Figura 74: Os petiscos do bar no Bar Urca Figura 75: Os “Armandos” do Bar Urca
Bar e Café Lisbela (Bar da Amendoeira) (Maria da Graça)
Escolhi um sábado para ir até Maria da Graça, bairro onde está localizado
o Bar da Amendoeira. Era tudo novidade, nunca tinha ido a Maria da Graça. Nem
sabia, por exemplo, que tinha metrô para lá, não havia reparado a fundo nos
desenhos das linhas do metrô. Vou muito à ao Maracanã, e Maria da Graça é “ali
do lado”. Ou seja, meu limite de metrô, até então, era a estação Maracanã. Assim
que você sai do metrô se depara com uma paisagem não muito bonita (figura 76).
Na verdade, bonita é a palavra que eu uso de acordo com meu gosto e minha
vivência. O bairro estava muito vazio, um silêncio, com pouco movimento de
carro e de pedestres pela rua. Isso, pelo menos no percurso que fiz entre o metrô e
o Bar da Amendoeira. E saindo do metrô, seguindo à direita, já se é a rua do
botequim, e andando reto por uns 10 minutos, lá você está. O bar fica numa
esquina, em frente a um posto de gasolina (figura 78). Quando cheguei no
estabelecimento era por volta de 13h. Pela quantidade de carros, a procurar
parecia ser alta. E sim, o bar estava muito cheio, todas as mesas de dentro
ocupadas e todas as mesinhas de fora (daquelas mais altas, para se ficar em pé),
também. É um botequim grande com toda a cara de botequim. Ele não tem ares de
restaurante, na minha opinião. A quantidade de mesas dentro do estabelecimento
não é grande. Digo isso, por que há espaços para se circular bem entre as mesas
(figura 77), ainda que tal circulação não seja assim tão boa entre a mesa mais
próxima do balcão e o balcão. Mesas e cadeiras de madeira, sendo as mesas
forradas com uma toalha azul de cor forte. Azul, por sinal, todavia em tonalidade
225
mais clara, é a cor da parede que “coleciona” os quadros dos títulos do botequim,
assim como as paredes da parte de fora e os azulejos que ocupam outras partes do
botequim, principalmente o hall dos banheiros. Ah, o toldo também é azul,
escuro! (figuras 77 e 78) O balcão, que é grande em extensão, estava cheio. E
atrás dele duas jovens mulheres (que depois descobri serem as atuais
donas/administradoras), assumiam os trabalhos, ou seja, botequim não é só lugar
de homem! No balcão estavam expostos assadeiras / tabuleiros com aquelas
comidas bem típicas de botequim, aquelas que na maioria das vezes, pelo menos
eu, não tenho muita vontade de experimentar por conta da aparência! Mas, que lá
no fundo, devem ser gostosas (ou não rs) (figura 79). Atrás do balcão está a
prateleira com bebidas, prateleira essa espelhada. Prateleiras de madeira escura ou
espelhadas são as que vi nos botequins visitados. Apesar de eu achar mais brega a
espelhada, elas chamam a atenção, impactam pelo brilho que causam. Não percebi
a presença da placa redonda azul da prefeitura. É um botequim bem grande,
também ali entre pé-sujo e pé-limpo. Deixei o questionário com a mais nova das
mulheres atrás do balcão, pelo menos parecia ser a mais nova. Ela foi super
solícita. Saiu do “barulho” do balcão para me ouvir e logo se propôs a preencher o
questionário, mas disse ela que naquele momento seria impossível, como a própria
afirmou, e é notável, sábado o movimento é bastante intenso. Fiquei de retornar
terça para pegá-lo Gostei bastante do Bar da Amendoeira, também é bem diferente
dos outros que visitei, inclusive daqueles que colocaria no mesmo patamar, a
exemplo do Pavão Azul. Não posso dizer ao certo, mais os vasos amarelos que o
decoram, a sua combinação / “descombinação” de azulejos da parede com o piso
do chão, por exemplo, tudo isso é muito diferente dos outros que vi. Pretendo
voltar assim que puder, adorei o Bar da Amendoeira.
226
Figura 76: Metrô de Maria da Graça Figura 77: Interior do Bar da Amendoeira
Figura 78: Bar da Amendoeira visto de fora Figura 79: Comida exposta no balcão do
Bar da Amendoeira
Casa da Cachaça (Lapa)
Como a Casa da Cachaça só abre a noite (pelo menos nas duas vezes que
passei lá no período da tarde, ela ainda não estava aberta. Desconfio, portanto, que
ela abra lá pelas 18/19h), cheguei lá por volta das 21h de um sábado, mesmo com
chuva. Relutei muito até decidir encarar a Lapa com chuva, admito, mas fui!
Aproveitei que duas amigas minhas estavam na Lapa para ir a um show e fui
encontrá-las. Eu, infelizmente, não pude ir ao show, fiquei com elas somente em
um dos mais novos patrimônios culturais da cidade. Posso dizer, sem dúvida, que
227
a Casa da Cachaça é o mais pé-sujo de todos os declarados patrimônios. É bem
“root”. Ah, o banheiro, que nunca tem papel e, raramente água, é unissex, imagine
isso! (figura 82). Um pé-sujo incrível, um ícone da Lapa. Difícil alguém que vá e
conheça a Lapa não saber ou nunca ter ido à Casa da Cachaça. E ouso dizer mais,
difícil alguém ir lá e não procurar ou pedir a Cachaça de Gengibre. Pela sua
“fama”, creio que ela possa ser, talvez, considerada a maior tradição desse
botequim. E sim, essa cachaça é uma delícia! Apesar do nome do bar, lá também
se vende cerveja. Ou seja, imagine as consequências quando seus frequentadores
misturam cachaça e cerveja rs! Sinceramente, não reparei se lá havia algum
cardápio de comida, mas, desconfio que não, apesar de não dar certeza disso.
Posso dizer que, eu Ana, não comeria ali, só se a fome já estivesse em um nível
insuportável. Apesar de pequeno, possui muita informação, sua ambiência é única
com aquelas “infinitas” garrafas penduradas (figuras 80 e 81). Você se perde em
meio à tantas garrafas. Fica a curiosidade de saber a procedência de tantas
garrafas, pois como tinha dito o seu José, do Bar Brasil, o fundador da Casa da
Cachaça era um “louco” que comprava cachaça por todo o Brasil. Imagino, pela
quantidade de garrafas, o quanto ele não deva, então, ter andado por esse país! As
mesas e cadeiras do bar, de plástico, ocupam as calçadas da rua Mem de Sá.
Ainda que o bar seja muito pequeno, comporta algumas pessoas em pé no seu
interior. Esse tamanho diminuto, na minha opinião, promove uma grande
sociabilidade no botequim, as pessoas ficam “espremidas” á sua frente e,
querendo ou não, sociabilizam sem saber, ou sabendo, dependendo das intenções.
Assim aconteceu sábado, com a chuva as poucas pessoas que ali estavam ficaram
ainda aglomeradas, e quando eu e minhas amigas percebemos, estávamos
dividindo uma mesa com desconhecidos, agora conhecidos. Isso é bem boteco!
Fora os donos / administradores que notei lá nesse dia (um homem e uma mulher),
percebi a presença de no máximo dois garçons. Por uns cinco minutos consegui
explicar minha pesquisa ao “dono”, mas, ele disse que responder algo ali seria
muito difícil por conta do movimento do bar e, sinceramente, percebi que seria
praticamente impossível ter meu questionário de volta e respondido se eu tivesse
dado à ele. Por isso, optei em captar o lugar somente através das fotos que fiz.
Acho que ele já diz muita coisa ao leitor, como vocês poderão perceber. O
botequim ainda não recebeu a placa azul da prefeitura. Quem não conhece a Lapa
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e passa em frente da Casa da Cachaça, imagino eu que não desconfie mesmo que
aquele lugar, agora, é patrimônio cultural carioca. Mas ele é!
Figura 80: Interior da Casa da Cachaça Figura 81: Interior da Casa da Cachaça
Figura 82: Entrada do banheiro Figura 83: Elementos da decoração da
na Casa da Cachaça da Casa da Cachaça
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Bar Lagoa (Lagoa)
Fui ao Bar Lagoa duas vezes, nos mesmos dias que fui ao Jobi.
Aproveitava a proximidade física entre eles para ir andando. Na primeira ida ele
estava fechado, era uma quarta de manhã. Fui saber só lá, por um quadro, que o
bar, durante a semana, só abre depois das 18h. Todavia, fiquei espiando através da
porta, uma porta de ferro vazada. A área interna do lugar é muito grande (figuras
86 e 87), e a varanda coberta por toldo também possui um tamanho muito bom.
Mas não consegui tirar fotos do interior, estava escuro. Retornei então em uma
sexta, ás 17h30min, com intuito de conseguir falar com alguém antes de começar
o movimento. Quando cheguei os garçons estavam arrumando as mesas,
colocando as toalhas brancas, guardanapos e outros itens. Um garçom idoso veio
até mim, expliquei o que ali pretendia e ele me disse para esperar uns 15 minutos,
que a pessoa com a qual eu poderia falar chegaria. Passaram-se uns dois minutos,
no máximo, ele me chamou (eu estava encostada em um bicicletário que tem em
frente ao bar) e disse que naquele dia essa tal pessoa só chegaria às 21h. Não dava
para esperar. Percebi que os garçons não simpatizavam muito com a idéia de
conversar comigo, o que me atendeu, então, muito menos. Entendo também que
eles estavam ali preparando o estabelecimento para a abertura. Sinceramente, não
insisti na tentativa de entrar e tirar fotos, sendo assim, fotografei, somente, sua
entrada, que, por sinal, é sinalizada por uma placa de mármore bem chique, em
comparação ao letreiro dos outros bares e botequins que fui (figura 84). Na
verdade, alguns nem esse letreiro tinham. Como não consegui fazer meus registros
da ambiência interna do Bar Lagoa, trago duas fotos da internet (figuras 86 e 87).
Posso dizer que o que levei de melhor do Bar Lagoa foi o registro da beleza logo a
sua frente, a Lagoa Rodrigo de Freitas somada ao Cristo Redentor (figura 85),
uma das mais belas vistas da cidade do Rio de Janeiro, pelo menos, para mim.
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Figura 84: A placa de entrada do Bar Lagoa Figura 85: A vista do Bar Lagoa
Figura 86: Google Imagens, Bar Lagoa Figura 87: Google Imagens, Bar Lagoa
(acesso em 20 de abril de 2013) (acesso em 20 de abril de 2013)
Restaurante Salete (Tijuca)
Cheguei ao Salete eram 12h de um sábado. Nunca tinha ido até lá. O lugar
estava começando a encher, acho que ainda estava cedo para um sábado. Gostei
da fachada do bar, ainda mais os portais de ferro logo acima da porta (figura 86).
Assim que entrei no lugar, o que mais me chamou a atenção foram os azulejos
“geométricos”, das paredes e do chão (figuras 89 e 90). Imagino que não há como
não ser atraído por eles. Enquanto os do chão são pretos e brancos, os das paredes
são azuis claros e brancos. Posso falar que a combinação do preto, azul e branco
muito me agradou. Tantos azulejos dão um charme ao bar. Uma amiga minha que
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mora perto do botequim, assim que eu disse que iria ao Salete por ele ser um dos
bares e botequins agora patrimônio cultural, logo citou a questão dos azulejos (e
essa amiga minha não é frequentadora de botequins). Penso, dessa forma, que por
ser conhecido também pelos seus azulejos, os azulejos devem configurar uma das
tradições do Salete. O Salete tem um espaço bom, é bastante organizado e limpo.
Cadeiras e mesas de madeira, sendo as mesas forradas por uma toalha preta, que
não cobre todo o tampo dessas (figura 89). Outra coisa que chamou minha atenção
foi, mais uma vez, as prateleiras de espelho atrás do balcão (figura 91). A maior
parte das prateleiras era composta por garrafas também bem organizadas, porém,
em uma parte da prateleira se notava a presença de enlatados e vidros de palmito.
O letreiro do estabelecimento por dentro dizia “Restaurante Salete, a melhor
empada da cidade”, além de trazer a data de fundação que é 1957 e, por fora
afirmava “Restaurante Salete, o melhor risoto do Rio” também acompanhado da
data 1957. Falei com o funcionário que estava acima dos garçons naquele dia, em
termos de administração do lugar. Ele foi muito solícito, mas, pediu para eu
retornar outro dia, lá por volta das 11h da manhã de segunda a sexta. Nesse
horário eu encontraria a pessoa que poderia me ajudar, disse ele. Voltei então em
uma terça-feira, lá pelas 13h20min, já que não pude ir no tal horário
recomendado. O mesmo homem que me atendeu disse que o dono estava lá, mas,
não conseguiria falar comigo. Bem, como eu estava morrendo de fome, resolvi
por ali comer. Ou eu provaria o tal risoto ou então as empadas. Particularmente,
minha fome era de risoto, todavia, meu dinheiro só permitiu empada. O risoto era
muito caro, em torno de R$70,00. Na verdade o Salete é um botequim caro,
peguei o cardápio para dar uma olhada e os preços eram 95% acima dos R$30,00.
As tais melhores empadas da cidade, que são de três sabores (frango, palmito e
camarão), custavam cada uma R$4,00 / R$4,20 reais. Experimentei uma de cada,
e posso dizer que são empadas gostosas, mas, nada que não se experimente
melhor por aí. Dessa vez o lugar estava lotado, a única mesa livre era a minha,
aquela bem ao lado da entrada do banheiro (fundos da figura 89). De todas as
pessoas que lá estavam, cinco eram mulheres, já contando comigo. De resto, eram,
aproximadamente, uns trinta homens. Outra coisa que me chamou a atenção foi
que nas duas vezes em que lá estive na mesma mesa do lado de fora do bar estava
sentado o mesmo homem (o da figura 88, à direita). Eu tinha reparado na figura
dele no sábado e não tive como não notar na terça de novo. Este deve ser um
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típico freguês fixo da casa. O Salete é bastante pé-limpo e está mais para
restaurante.
Figura 88 : Fachada do Restaurante Figura 89: O interior e seus azulejos -
Salete Restaurante Salete
Figura 90: Azulejos e quadros no Salete Figura 91: A prateleira de vidro atrás do
balcão no Restaurante Salete