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4. Patrimônio cultural e sustentabilidades na cidade do Rio de Janeiro: por uma gestão territorial baseada na relação culturadesenvolvimento Para nós, não se trata de um conceito acabado, definido a priori. Ao contrário, devemos considerá-lo como algo a ser construído, transformado, em movimento (tal como o desenvolvimento), no qual cada sociedade deveria estabelecer os parâmetros de sustentabilidade das relações com a natureza e intra-sociedade, integrados à mesma lógica (...). Teríamos, assim, uma ampliação do alcançe do termo sustentabilidade, abrangendo a ciência, a Ecologia, a Economia Política, a Geografia e o desenvolvimento (territorial) como elementos básicos para a sua definição.É nesse sentido mais amplo que falamos de sustentabilidades, da mesma maneira que falamos em desenvolvimentos, produtos de embates políticos-ideológicos e econômicos-sociais particulares, na busca de saberes (científicos / formais ou não) sobre a natureza (RUA, 2007, p.172-173) (...) trabalhar com resgate de valores éticos e culturais para a partir deles, re- conceituar a discussão sobre desenvolvimento sustentável, significa encontrar as estreitas vielas deixadas pelas práticas sistemáticas de enfraquecimento mútuo para, através delas, fazer avançar a construção de identidades culturais poderosas e transformadoras que permitam encaminhar uma nova racionalidade na vida e na utopia. Trata-se de buscar os valores para os domínios desenvolvimento, cultura e sustentabilidade que transformem definitivamente desenvolvimento sustentável em uma relação de congruência. (FONSECA, 2005, p.10 grifos de FONSECA) As citações acima são bastante representativas do que se pretende alcançar nessa última etapa da dissertação. Será realizada, nesse momento, uma tentativa de inserir os bares e botequins tradicionais, patrimônio cultural imaterial da cidade do Rio de Janeiro, em um projeto de gestão cujas políticas públicas implementadas caminhem rumo à efetivação de um desenvolvimento autêntico baseado numa sustentabilidade espacial que abarque aquilo que Rua (2007) denomina de “sustentabilidades”; onde a diversidade cultural e a valorização e preservação das tradições e identidades apareça como garantia de qualidade de vida da população da cidade do Rio de Janeiro. Em se tratando da gestão do patrimônio cultural, Santos (2001) acrescenta que um dos maiores desafios dessa gestão, nos dias de hoje, “é definir conceitualmente e legalmente novas formas de acautelamento compatíveis com sua abrangência, cada vez maior, e com o exercício dos direitos culturais do cidadão, reconhecidos na Constituição de 1988 (...)” (p.43).

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4. Patrimônio cultural e sustentabilidades na cidade do Rio de Janeiro: por uma gestão territorial baseada na relação cultura–desenvolvimento

Para nós, não se trata de um conceito acabado, definido a priori. Ao contrário,

devemos considerá-lo como algo a ser construído, transformado, em movimento

(tal como o desenvolvimento), no qual cada sociedade deveria estabelecer os

parâmetros de sustentabilidade das relações com a natureza e intra-sociedade,

integrados à mesma lógica (...). Teríamos, assim, uma ampliação do alcançe do

termo sustentabilidade, abrangendo a ciência, a Ecologia, a Economia Política, a

Geografia e o desenvolvimento (territorial) como elementos básicos para a sua

definição.É nesse sentido mais amplo que falamos de sustentabilidades, da

mesma maneira que falamos em desenvolvimentos, produtos de embates

políticos-ideológicos e econômicos-sociais particulares, na busca de saberes

(científicos / formais ou não) sobre a natureza (RUA, 2007, p.172-173)

(...) trabalhar com resgate de valores éticos e culturais para a partir deles, re-

conceituar a discussão sobre desenvolvimento sustentável, significa encontrar as

estreitas vielas deixadas pelas práticas sistemáticas de enfraquecimento mútuo

para, através delas, fazer avançar a construção de identidades culturais

poderosas e transformadoras que permitam encaminhar uma nova racionalidade –

na vida e na utopia. Trata-se de buscar os valores para os domínios

desenvolvimento, cultura e sustentabilidade que transformem definitivamente

desenvolvimento sustentável em uma relação de congruência. (FONSECA,

2005, p.10 – grifos de FONSECA)

As citações acima são bastante representativas do que se pretende alcançar

nessa última etapa da dissertação. Será realizada, nesse momento, uma tentativa

de inserir os bares e botequins tradicionais, patrimônio cultural imaterial da cidade

do Rio de Janeiro, em um projeto de gestão cujas políticas públicas

implementadas caminhem rumo à efetivação de um desenvolvimento autêntico

baseado numa sustentabilidade espacial que abarque aquilo que Rua (2007)

denomina de “sustentabilidades”; onde a diversidade cultural e a valorização e

preservação das tradições e identidades apareça como garantia de qualidade de

vida da população da cidade do Rio de Janeiro. Em se tratando da gestão do

patrimônio cultural, Santos (2001) acrescenta que um dos maiores desafios dessa

gestão, nos dias de hoje, “é definir conceitualmente e legalmente novas formas de

acautelamento compatíveis com sua abrangência, cada vez maior, e com o

exercício dos direitos culturais do cidadão, reconhecidos na Constituição de 1988

(...)” (p.43).

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No que diz respeito à assimilação e gestão do simbólico, do intangível que o

patrimônio carrega, perpassa e territorializa Fonseca (2005) afirma que:

“Estamos convencidos de que o patrimônio imaterial das comunidades – ético e

cultural – pode constituir o pilar sobre o qual se apoie o desenvolvimento

sustentável” (p.2). A cidade do Rio de Janeiro é imaterial, repleta de “carioquices

clássicas” que se dissipam pelo ar, sotaque, encontros, sociabilidades, culto ao

corpo, na musicalidade, sabores e etc. Assim sendo os bares e botequins cariocas

são lugares onde “reina” a sociabilidade, sua maior tradição, que vem sendo

transmitida, independente de cor, credo ou posição social daqueles que vivenciam

esses estabelecimentos desde o século XIX.

De acordo com Pelegrini (2006a), muitos são os desafios ao inserir a

gestão do patrimônio cultural, sua valorização, preservação e proteção nas

discussões das cidades, seu espaço e desenvolvimento urbano, onde a população

seja capaz de dar valor ao seu patrimônio, à sua cultura e perceber-se como tal. As

identidades criadas pelas coletividades e representadas pela ferramenta patrimônio

devem servir como luta política e são essenciais para a formação da cidadania.

Patrimônio cultural é política, faz parte do espaço e da esfera pública, dessa

forma, para com ele, todos temos direitos e deveres. Todavia, segue a autora

A necessidade de modernizar os projetos de preservação do patrimônio cultural

aliando-os ao desenvolvimento urbano das cidades parece constituir uma

demanda que não pode mais ser postergada. As políticas de desenvolvimento

devem permitir o incremento territorial e socioeconômico culturalmente renovado

e ecologicamente justo. Definitivamente, existe urgência na articulação da

política cultural com as demais políticas de educação, desenvolvimento urbano,

meio ambiente e turismo, entre outras. (Idem, 2006a, p. 130).

Para Santos (2001), o patrimônio cultural, considerado em toda a sua

amplitude e complexidade, começa a se impor como um dos principais

componentes no processo de planejamento e ordenação da dinâmica de

crescimento das cidades e como também um dos itens estratégicos na afirmação

de identidades de grupos e comunidades. Por conseguinte, o patrimônio, ainda

recorrendo a mesma autora, não pode ser dissociado do planejamento das cidades,

visto somente sob o enfoque do desenvolvimento econômico ou então,

simplesmente, ignorado (p.45), mas deve ser visto uma das matrizes discursivas

da sustentabilidade urbana se apoia no que ele denomina de “modelo de

patrimônio”. (ACSELRAD, 2001)

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Ademais, ao recordar uma das contribuições do Prof. João Luiz de

Figueiredo Silva130

, se torna imprescindível reconhecer que o capitalismo no

século XXI tem como uma de suas sustentações a cultura, onde a criação do

simbólico gera valor, onde há os condicionamentos mercadológicos e, por fim, o

consumo cultural. Além do que as cidades são espaços de criação e,

especificamente, na cidade do Rio de Janeiro essa criação é extremamente

significativa, já que ela não é e nunca foi, por exemplo, uma cidade industrial sob

uma perspectiva clássica. Diz Fonseca (2005) que estamos em tempos do

capitalismo cultural ou bio-capitalismo (p.8) e que os gestores desse sistema

produtivo já perceberam que “são os nossos valores éticos e culturais, ou seja, o

imaterial imponderável da nossa subjetividade, o bem mais poderoso a ser

acumulado” (Idem, 2005, p.8).

Ainda assim, por mais que estejamos presos a lógicas produtivistas regidas

pela globalização, ressalta-se que se torna importante “fugir” da discussão

obsessiva em torno do patrimônio cultural enquanto puro objeto mercadológico

que acaba por abafar outras abordagens tão essenciais no entendimento do espaço

geográfico: as suas abordagens políticas, sociais e culturais. “Passa a ser

necessário pensar o novo cenário distinguindo-se a dinâmica cultural e seus

efeitos sociais sob os mencionados condicionamentos mercadológicos ou sem

eles”. (DURAND, 2001, p.68). Afinal, lembra Fonseca (2005), se é do imaterial

da nossa cultura a “novidade” a ser apropriada,

(...) se é disso que advém o lucro – e consequentemente a exploração -, bem pode

ser desse mesmo repositório que derivem as nossas melhores referências para

uma nova concepção de desenvolvimento sustentável. (FONSECA, 2005, p.8)

A partir do exposto, torna-se importante compreender como o bar e

botequim tradicional, patrimônio cultural imaterial, pode vir a ser parte da

construção das sustentabilidades na cidade do Rio de Janeiro.

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Professor Adjunto do Departamento de Geografia da PUC-Rio.

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4.1. Sustentabilidades espaciais, a partir da assimilação da cultura.

De um lado, há que se avançar na construção de uma percepção de cultura mais

pluralista, afastando-nos o mais rápido possível das dicotomias tais como,

canônico/folclórico, letrado/popular, global/local, nacional/regional, até a mais

recente clássica/alternativa, entre outras, todas elas formas de construção e

consolidação de uma hierarquia de valorização/desvalorização das culturas e das

suas expressões, cuja finalidade é transformar diferenças em desigualdades,

discriminar e segregar criadores, expropriar apropriar a criação. Ainda na linha do

rompimento com simplismos, quem sabe fosse útil pensarmos em

desenvolvimento a partir de uma outra racionalidade, menos técnica e ligada a

resultados – naturalmente mensuráveis e comparáveis, o que permite dividir as

nações entre desenvolvidas e em desenvolvimento - ; que fragmenta os saberes

em busca de resultados imediatos e acaba por enfrentar apenas as situações

pontuais. Quem sabe seja chegada a hora de utilizarmos uma lógica mais

holística, com base de uma racionalidade axiológica, para definirmos outros

valores para desenvolvimento, que o reaproximem da sua natural identidade com

cultura (FONSECA, 2005, p.2-3, grifos da autora).

Ao encontro de Rua (2007), da relação entre o espaço e seus

desenvolvimentos na busca por sustentabilidades Fonseca (2005) mostra que é

preciso congruência131

entre desenvolvimento e cultura, ou seja, não há como se

pensar em sustentabilidades sem se levar em consideração a cultura e toda a

complexidade que ela abarca. Para a mesma autora, a cultura define a visão de

desenvolvimento enquanto um processo que pode ser entendido como o próprio

desenvolvimento social de uma comunidade – e vice-versa – independente da sua

escala ou conteúdos (Idem, 2005, p. 1-2). Portanto, continua ela, para que a

equação entre cultura, desenvolvimento e sustentabilidade seja efetivada, é preciso

a definição de valores para estes termos, caminhando-se para uma harmonização

entre meios e finalidades (Idem, p.2). Dualizar ou incompatibilizar, assim como

vem sendo majoritariamente feito em termos de gestão espacial e políticas

públicas, dois termos que por essência são construídos na vida em sociedade e

pressupõem cooperação, além de se relacionarem com a produção e conhecimento

que visam o progresso, não pode ser mais aceito (Idem, 2005, p.2).

Mais do que complexos, desenvolvimento e cultura são complementares,

ou seja, é preciso trazer a cultura para o centro da questão do desenvolvimento132

.

Do mesmo modo, a cultura precisa aparecer como um dos eixos centrais em torno

131

Fonseca (2005) utiliza-se de dicionários para explicar que congruência é a harmonia duma coisa

com o fim a que se destina; coerência. 132

Schech e Haggis (2000)

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dos quais os projetos de desenvolvimento devem ser pensados (FONSECA,

2005). A partir do momento em que a cultura tiver esse “poder” nas políticas

públicas de planejamento físico-territorial e dos planos de gestão municipal vai

(...) evitar a produção de mimetizações culturais já que estamos imersos em uma

sociedade globalizada e conectada por redes de informações, que facilmente

submetem valores éticos e culturas locais a padrões específicos. No nosso

entender, o antídoto natural para este contágio é o resgate, a valorização e re-

significação das identidades culturais locais, assumindo seus valores como

referência para a construção da idéia de sustentabilidade e conferindo concretude

aos ideais teóricos da ética sócio-ambiental mundial. (Idem, 2005, p.7)

Como bem diz Durand (2001), não é que nada seja feito para se ampliar

públicos para a cultura no Brasil, mas, o pouco que se faz é desarticulado de uma

visão mais abrangente “incapaz de dimensionar necessidades no tempo e no

espaço, e de articulá-las as diretrizes de política de educação, de cooperação

internacional, de lazer e turismo, de fomento de artesanato, de desenvolvimento

regional e etc.” (Idem, 2001, p.68).

No Brasil sequer se sabe quantas prefeituras possuem secretarias de cultura e, por

conseguinte, em quantas os assuntos culturais são tratados através de secretarias

de educação, esporte e turismo, ou outra qualquer. O fato de haver uma secretaria

autônoma para a cultura nos organogramas estadual e municipal não significa

necessariamente que nos locais onde isso ocorre o trato da área seja mais

eficiente, ágil e substantivamente melhor. (...) A par disso, é indispensável notar

como é tênue e casuístico o relacionamento dos três níveis de governo nessa área,

nos poucos casos em que algum intercâmbio existe. (...) Ademais cada gênero

cultural tem seus “gargalos” próprios que só uma visão atenta e preocupada com

interdependências pode detectar e superar (Idem, 2001, p.67).

Mesmo que a discussão a repeito da inserção da cultura e do patrimônio

cultural na construção de sociedades sustentáveis - a relação da cultura com o

desenvolvimento econômico e social - seja recente (SANTOS, 2001, p.46), ela se

torna crucial tanto para criticar a construção histórica de desenvolvimento

associado ao progresso econômico e da técnica (cuja base é a tríade modernidade

– ocidente – capitalismo) quanto para se repensar a regeneração desse conceito

fortalecido pela autonomia e liberdade dos lugares ou localidades, criando

resistências à tríade anteriormente citada. Multidimensionalidades e

multiescalaridades do espaço devem ser valorizadas para que se reconheçam as

diferenças culturais assim como propõe Rua (2007). A escala do local se torna

extremamente significativa nesse pensamento, pois, as ações concretas e

sustentáveis vividas no local passam a ser referenciais importantes para o

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rompimento e superação de dualismos (FONSECA, 2005). Além da superação de

desigualdades, injustiças, violências urbanas e etc. É importante ressaltar que o

espaço social da cidade e sua segregação devem ser tomados como uma forma de

violência urbana no sentido, inclusive, da exclusão cultural. Segundo Russef et al

(2002), assim como ressalta a maioria dos autores que trabalham com cultura e

desenvolvimento, conhecer a identidade cultural é premissa para se admitir um

desenvolvimento autêntico, principalmente, quando esse reconhecimento é

exercido pela comunidade local. Para ele, se a comunidade se autoidentifica

culturalmente ela passa a ser protagonista do seu próprio processo de

desenvolvimento.

A reflexão realizada nesse capítulo busca criticar o desenvolvimento

baseado na tríade dialética citada anteriormente, possibilitando abrir novos

horizontes de pensamento em uma hegemonia que se tornou universal e nociva às

localidades seja nas práticas sociais como no que diz respeito a uma centralidade

teórica. Rua (2007) ao longo de seu trabalho, critica o pensamento Ocidental

acerca do que é concebido como desenvolvimento, questionando o modelo de

desenvolvimento mercadológico que une o crescimento econômico à

modernização tecnológica e impõe tal “receita” hegemonicamente para ser

seguido nas políticas de desenvolvimento. Para esse autor, o desenvolvimento vai

muito além do viés econômico e da apropriação do espaço por parte das técnicas;

ele vai de encontro ao social, cultural e antropológico. São trocas constantes entre

as escalas, entre o local e o global, saindo do homogêneo em direção ao particular

e singular e vice-e-versa.

Por mais que não se configure como interesse, nesse momento, ficar preso

aos questionamentos desse desenvolvimento associado ao progresso econômico,

avanço técnico, racionalidade, heteronomia, discurso de superioridade, domínio

material, etnocentrismo (superioridade racial e cultural), negação das diversidades

e etc. que permeiam a produção teórico – filosófica; entender sua configuração

(“cimentada” por todos os elementos listados acima e outros mais) e o poder que a

mesmo apresenta sobre todos nós é necessário para possibilitar, assim, iniciativas

e tentativas da regeneração desse conceito e alcançar “novos desenvolvimentos”

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abertos a mudanças, engajados no solo cultural dos lugares e que levem em

consideração, inclusive, as tradições desses lugares.

Para Rua (2007), desenvolvimento e progresso estão intimamente ligados

ao processo de modernização, que é a visão mais operacional da época moderna

advinda com o Iluminismo; a dicotomia entre o tradicional como algo ruim e o

moderno, como positivo, é legitimada. O projeto de desenvolvimento ocidental a

partir daí, evolui via, principalmente, concretização do capitalismo como sistema

socioeconômico vigente que viu e vê nas suas crises, como demonstra Soja

(1983), a possibilidade de se recriar. Em pleno século XXI, para Fonseca (2005),

uma das bases fortalecedoras dessa “recriação” é a cultura, sua pluralidade, suas

especificidades, suas tradições, identidades e etc.

Foi somente a partir da modernidade, diz Rua (2007), que o

desenvolvimento foi tomado como intenção por parte do Ocidente, portanto,

concluí-se que o desenvolvimento é anterior à modernidade e aos seus ideais

impostos, ou seja, desenvolvimento não é algo “criado”. Assim, os lugares

possuem a capacidade de realizar seu desenvolvimento baseado nas autonomias,

liberdades e culturas locais. Da mesma maneira que o desenvolvimento precede a

modernidade, a relação existente entre desenvolvimento e cultura também, como

demonstram Schech e Haggis (2000). As autoras afirmam que desde antes da

Modernidade é possível se pensar em tal relação a partir das definições desses

conceitos ao longo da história, onde no conjunto cultura estão as tradições. De

forma bastante sucinta Schech e Haggis (2000) ainda trazem a relação existente

entre cultura e poder, a partir da qual a cultura é tida como um componente ativo

na produção e reprodução da vida social (terreno de disputas) e de onde se origina

um sistema de representações que envolve o conhecimento e o discurso.

Nessa relação entre desenvolvimento, cultura e poder, o conceito de

território é o que melhor permite compreender as relações sociais e seus reflexos

espaciais por ser constituído de relações de poder, simbólicas e materiais

(HAESBAERT, 2005). Fragmentado e contraditório, o território também deve ser

percebido a partir dos sistemas simbólicos de significados, construídos por meio

de práticas culturais tradicionais. Diante das territorialidades múltiplas e

superpostas do local e seus lugares, se torna primordial o questionamento sobre o

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que deva ser um modelo de desenvolvimento. Para Haesbaert (2005), somente

pela compreensão dos conceitos de território e territorialidades as identidades-

territoriais de um grupo podem ser desvendadas. Já Rua (2007) afirma que os

lugares e suas relações de poder influenciam na formação de tais territorialidades.

Transformar o espaço em território, ou seja, territorializar-se pode ocorrer tanto

pela apropriação quanto pela dominação, significa participar de conflitos que

expressam mudanças, transformações, movimentos e, portanto, desenvolvimentos

e, consequentes, sustentabilidades.

A partir do momento em que o desenvolvimento continuar a ser tomado

como intenção baseada em um sistema de representações por parte de

determinados atores sociais, em uma lógica puramente mercadológica, ele

permanecerá eliminando as diversidades culturais tão ricas dos lugares.

Fortalecida nas suas identidades territoriais, se apresenta como possibilidade de

resistência a esse desenvolvimento modernizador ocidental e capitalista.

Toda vez que o sentido da vida for contestado, os africanos recorrerão aos marcos

tradicionais de sua cultura. Ela, que não pode ser acusado de uma atitude de

apego ao passado, reconhece, assim, a força e a persistência da tradição

(VERHLEST, 1992, p.54).

Segundo esse mesmo pensamento reafirma-se que a valorização da escala

do local pela gestão e suas políticas públicas são cruciais para um

desenvolvimento autêntico, pois, a partir do momento que as localidades

adquirem autonomia, e os valores sociais e os anseios dos grupos nessa escala se

territorializam, existe a possibilidade de contrariar a hegemonia advinda do

desenvolvimento econômico modernizador. E é essa autonomia, por parte dos

lugares e suas comunidades, que o autor considera como base para a realização

daquilo que denomina de sustentabilidades. Desse modo, uma abordagem

inovadora do desenvolvimento deve partir de uma ressignificação do que seja esse

processo, entendendo que não pode existir um único modelo que dê conta das

múltiplas realidades, a fim de que cada grupo possa construir uma condição

autônoma, capaz de diminuir ou eliminar as desigualdades através do respeito às

diferenças. O desenvolvimento local, como bem debate Rua (2007), não pode ser

teórica e conceitualmente dissociado do contexto das outras escalas, já que o local

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só possui sentido enquanto problemática da articulação entre várias escalas (Idem,

2007).

Essa preocupação, inevitavelmente, insere a discussão a respeito dos bares

e botequins tradicionais da nossa cidade - e suas tradições - na relação dialética

entre o global e o local, ou seja, a multiescalaridade das ações políticas em torno

desses símbolos, que são particularidades locais.

Considerando os processos de globalização e de localização/regionalização em

curso como não dicotômicos e indissociados, assoma que é a diversidade de

lugares, regiões, paisagens, territórios em suas dinâmicas, e a impulsão das

demandas sociais que proporcionam uma realidade global fragmentada e com

muitas possibilidades de articulações. Pulverizado por particularismos e

singularidades, mas em conexão com o social mais amplo, o lugar recebe

determinações externas e as combina às narrativas locais. Assim as gestações de

novas configurações sócio-espaciais são prenhes do mundo e do lugar

(FROEHLICH E HEBERTON ., 2007, p.68)

Torna-se cabível se pensar em como as tradições dos lugares podem ser

incorporadas a um desenvolvimento socioespacial ou, como afirma Souza (1996),

sócio-espacial, por mais que não supere o desenvolvimento capitalista. A teoria do

desenvolvimento sócio-espacial de Souza (1996) vai ao encontro do que o próprio

autor chama de “paradigma da complexidade” (SOUZA, 1997), pois para ele o

desenvolvimento sócio-espacial é um fenômeno (e um desafio) complexo por

excelência e a sua formulação perpassa por questões epistemológicas de geração

do conhecimento, ou seja, rompendo com a centralização teórica, excludente e

simplificadora baseada nos saberes coloniais e eurocêntricos, fundadores dos

pressupostos dos conhecimentos sociais modernos, que dominam as ciências

sociais. Assim, para Souza (1997) é preciso que um cientista social, e no caso o

geógrafo, para o qual o espaço é objeto de estudo, não se incline a

monodimensalidade, separação simplista entre endógeno e exógeno, a abordagens

monoescalares ou fracamente multiescalares, a negligência para com o espaço e

ao caráter fechado, absoluto, etnocêntrico e fechado das teorias.

Infelizmente, a produção de conhecimentos foi associada à lógica do poder

econômico da modernidade e disseminou, dessa forma, as diversidades culturais e

os seus saberes tradicionais. Se não foram disseminadas, estão sob seu domínio e

por ele vem sendo apropriadas e ressignificadas nessa integração do tradicional ao

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moderno. Eis aí uma grande problemática: a resistência ou não133

, por parte de tais

tradições, dos bares e botequins tradicionais já que, quando cooptadas pela

modernização eles tendem a serem manipuladas a seu favor.

As origens da concepção de patrimônio cultural possuem inúmeras raízes, e todas

se firmam na idéia de preservação da memória coletiva por meio de critério

valorativos, estéticos, históricos, culturais, sempre em atenção aos riscos que a

modernidade impõe as tradições (PAES, 2009, p.2)

Para que a sustentabilidade não fique meramente reduzida a um discurso

técnico, autores como Guimarães (1997a), Sachs (1993) e Acselrad (2001) vêm

somar a Rua (2007). Tais autores delineiam algumas dimensões de

sustentabilidade, e dentre elas afirmam ser necessário alcançar uma

sustentabilidade urbana e cultural (na verdade, todas as dimensões da

sustentabilidade proposta por ambos precisam estar conectadas) para a qualidade

de vida dos e nos lugares.

Dentre as oito dimensões propostas por Guimarães (1997a) no intuito de

superar o debate retrógrado e dominante relativo ao termo sustentabilidade, a

dimensão cultural é a que mais se associa à presente temática. Para o autor essa

dimensão dá “prioridade á diversidade cultural, reconhecendo que a base do

desenvolvimento está na manutenção dessa diversidade, além de defender os

direitos constitucionais das minorias” (Idem, 1997ª, p.35-36). Todavia, outras

duas dimensões não podem deixar de serem lembradas nesse momento134

: a

social, que busca a melhoria da qualidade de vida135

a partir da justiça social e, a

política, que afirma que a democratização e a construção da cidadania do

indivíduo só são efetivadas a partir da incorporação desse mesmo indivíduo ao

processo de desenvolvimento. Essa dimensão ainda supõe “o fortalecimento das

múltiplas forças sociais, tendo o Estado um papel privilegiado como mediador na

defesa dos interesses coletivos” (Idem, p.36-39).

A complementar, Sachs (1993) defende que o desenvolvimento é a

efetivação universal do conjunto dos direitos humanos passando pelos direitos

econômicos, sociais e culturais, e terminando nos direitos ditos coletivos. Para ele

133

Já que Giddens (2003) afirma que todas as tradições são inventadas, criações da modernidade e

que, por isso, merecem cuidado na sua análise. 134

Discussões passadas e outras que virão mais adiante abarcam, também, essas dimensões.

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são cinco as dimensões de sustentabilidade, dentre as quais, ao se pensar nos bares

e botequins patrimonializados, ressalto a dimensão cultura, a qual inclui

a procura de raízes endógenas de processos de modernização e de sistemas

agrícolas integrados, processos que busquem mudanças dentro da continuidade

cultural e que traduzam o conceito normativo de ecodesenvolvimento em um

conjunto de soluções específicas para o local o ecossistema, a cultura e a área

(Idem, 1993, p.38)

O conceito de ecodesenvolvimento urbano de Sachs (1993) é muito

interessante. Para o autor as cidades são ecossistemas detentores de potenciais

recursos que precisam ser bem utilizados, pois as cidades são como pessoas: cada

uma possui sua própria personalidade e, o Rio de Janeiro com os seus botequins e

bares tradicionais tem, com certeza, uma marca singular que a identifica com seu

habitante, o carioca.

A resposta ao desafio urbano deve levar em conta as configurações especificas

dos fatores naturais, culturais e sócio-políticos, do passado histórico e das

tradições de cada cidade. Em lugar de se propor soluções homogeneizadoras, a

sua diversidade deve ser considerada como um valor cultural de grande

importância (Idem, 1993, p.41)

Para Acselrad (2001), a noção de sustentabilidade urbana está submetida à

lógica das práticas, articulando-se a efeitos sociais desejados e a funções práticas

que o discurso, nas suas pretensões, quer tornar realidade objetiva. Diz o autor que

a sustentabilidade, por estar submetida a essa lógica, “nos remete a processos de

legitimação / deslegitimação de práticas e atores sociais” (p.29). Ou seja, observa-

se que, por essência, o autor considera a sustentabilidade um processo político,

assim como Guimarães (1997).

A associação da noção de sustentabilidade com o debate sobre o desenvolvimento

das cidades tem origem nas rearticulações políticas pelas quais certo número de

atores envolvidos na produção do espaço urbano procuram dar legitimidade às

suas perspectivas, evidenciando a compatibilidade das mesmas com o propósito

de dar durabilidade ao desenvolvimento (...) (ACSELRAD, 2001, p.37)

Segundo Acselrad (2001), várias são as articulações lógicas entre a

reprodução das estruturas urbanas e sua base material no debate contemporâneo,

sendo que o mesmo destaca três matrizes discursivas do que ele defende como

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161

sustentabilidade urbana136

: 1. a representação técnico-material (que engloba o

modelo de racionalidade eco-energética e o modelo de equilíbrio metabólico); 2. a

cidade como espaço da qualidade de vida (dentro da qual estão os modelos da

pureza, da cidadania e do patrimônio); e 3. a cidade como espaço de legitimação

das políticas públicas urbanas (matriz constituída pelo modelo da eficiência e

modelo da equidade) (p.36-37). Como componente da matriz cidade enquanto

qualidade de vida, o autor tem um olhar especial para a questão do patrimônio.

Mais a frente veremos que a qualidade de vida da população depende também da

asseguração e afirmação das suas tradições e identidades, e os patrimônios

culturais, como vem se demonstrando ao longo dessa pesquisa, são instrumentos

capazes de realizar essa afirmação identitária.

É muito claro que o patrimônio cultural consegue ser encaixado nas

dimensões propostas por Guimarães (1997) e Sachs (1993) - e não somente na

cultural137

-; todavia, Acselrad (2001) é ainda mais preciso ao conectar a

imaterialidade desse conceito à sustentabilidade das cidades, corroborando para a

presente dissertação. Para ele,

uma noção de sustentabilidade associada à categoria patrimônio refere-se não só a

materialidade das cidades, mas a seu caráter e suas identidades, a valores e

heranças contribuídos ao longo do tempo. A perspectiva de fazer durar a

existência simbólica de sítios construídos ou sítios naturais significados,

eventualmente “naturalizados”, pode inscrever-se tanto em estratégias de

fortalecimento do sentimento de pertencimento dos habitantes a suas cidades,

como de promoção de uma imagem que marque a cidade por seu patrimônio

biofísico, estético ou cultural em sentido amplo, de modo a atrair capitais na

competição global, realizando aquilo que alguns descrevem como um processo de

promoção da “economia da beleza em nome da beleza da economia” (Idem,

2001, p.44)

Nas políticas públicas (como nas de patrimônio) de planejamento e gestão

da cidade do Rio de Janeiro as práticas de planejamento, gestão e

sustentabilidades precisam estar em congruência. A matriz discursiva a cidade

como espaço de legitimação das políticas públicas urbanas de Acselrad (2001) se

torna fundamental nessa ideia de sustentabilidade que é aplicada às condições de

reprodução da legitimidade das políticas urbanas. Por esse viés, segue o autor, a

insustentabilidade “exprime, assim, a incapacidade de as políticas urbanas

136

O autor explica detalhadamente cada uma dessas matrizes ao longo do seu texto, todavia, as

esquematiza em um quadro na página 48 do seu trabalho. 137

Ir aos autores para ver quais são as outras dimensões.

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adaptarem a oferta de serviços urbanos à quantidade e a qualidade das demandas

sociais (...)” (Idem, 2001, p.46), o que designa um processo de instabilização das

bases de legitimidade dos responsáveis pelas políticas urbanas. Dentre as palavras

e pensamentos que o autor dedica à conclusão do seu trabalho (que as conjuga

com o conceito de patrimônio cultural), merece ser ressaltado que:

A noção de “cidade sustentável” instaura uma nova cena de enunciação, onde

uma trama de múltiplos personagens e falas entrecruzadas reelabora as

representações da cidade. Desencadeia-se um jogo lendário de singularização das

cidades, de ligação entre seu passado, presente e futuro através de uma ordem

linear, de sua transformação em um quase- personagem dotado de um corpo /

território e uma alma / cultura citadina. Três procedimentos simbólicos são

acionados: o da refiguração do espaço através de uma imagem que articula os

campos semânticos distintos da natureza e da cidade; o da reproblematização da

ação através da aplicação de uma racionalidade cientifica ecológica ao urbano; o

da reinstituição do tempo por novas formas de duração – patrimonais – das coisas

(Idem, 2001, p.49)

Sem embargo, a análise do discurso das cidades que se apresentam como

candidatas a protagonizar a sustentabilidade urbana sugere que as mesmas pretendem

inserir-se em uma continuidade temporal e espacial através dos procedimentos de

descentralização (pela legitimação do não-humano, das gerações futuras, dos parceiros

inertes ou virtuais), de restauração (pela reciclagem de recursos naturais, bairros, rios,

ofícios, saberes, imagens e instituições) e de interação dos fenômenos urbanos (o ar da

cidade com o ar do planeta, a ocupação do solo com o abastecimento d’água, atividades

presentes e valores herdados, agências de urbanismo com instâncias de concertação). A

inclusão da periferia via descentralização, da memória via restauração e dos atores sociais

via interação, constituem, assim, procedimentos discursivos de expansão simbólica da

base da legitimação das políticas urbanas (...) (Idem, 2001, p.51).

Com base nas reflexões realizadas até esse momento, torna-se mais do que

necessária a reconstrução do conceito de desenvolvimento, destacando a sua

importância do entendimento das práticas culturais, sociais, econômicas, políticas,

religiosas e etc. e suas respectivas sustentabilidades, fundamentais na construção

de um espaço carioca diferenciado, mas que, não deve ser desigual; afinal como

bem lembra Oliveira (2008), a cidade do Rio de Janeiro contém muitas cidades.

Para Fonseca (2005), mesmo entre todos os avanços que aconteceram em relação

ao conceito de desenvolvimento sustentável, sendo que as dimensões e matrizes

expostas anteriormente são representativas “desse passo à frente” que vem sendo

dado, permanece sem discussão os valores éticos, culturais e ambientais que

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poderiam, ou melhor, deveriam ser associados ao conceito. Esses valores, ainda

negligenciados, continua a autora, “(...) seriam norteadores de uma nova

racionalidade, verdadeiramente transformadora dos nossos ethos (costumes) e das

nossas práxis (ações)” (Idem, 2005, p.6). Somente a partir de pensamentos como

esse que as sustentabilidades de Rua (2007) podem ser efetivadas.

4.1.1. A necessidade de uma gestão da cidade do Rio de Janeiro que a torne arena cultural138 plural, em busca das sustentabilidades.

(...) há que se romper com a visão fracionada das políticas públicas que tratam o

urbano sem observá-lo em sua globalidade e, simultaneamente, sem perceber as

peculiaridades dos seus elementos culturais. Há que se investigar novos padrões

de preservação que não reduzam a conjunção das áreas de saneamento básico,

transporte e habilitação. Faz-se necessário investigar perspectivas de interação

físico-espacial das áreas urbanas, admitindo-se suas características e a aplicação

de procedimentos particularizados, não restritos a métodos homogêneos para o

trato das áreas urbanas que em essência se mostram desiguais. Talvez a

coordenação de esforços nessa direção pode gerar os instrumentos apropriados à

gestão e acionar articulação entre as diversas esferas político-administrativas do

Estado e da sociedade, de modo a criarem espaços de discussão e debate (...) A

focalização das políticas publicas, em síntese, pode apresentar um conjunto de

medidas assentadas no tripé fundamental, qual seja a recuperação física da área

degradada, a revitalização funcional urbana e a otimização da gestão ambiental

local. Dessa maneira, torna-se viável a promoção do desenvolvimento sustentável

e inclusão da população, a quem de direito pertence o patrimônio cultural e

natural. (PELEGRINI, 2006a, p.130)

Pensar em sustentabilidades do/no espaço carioca para um cientista social

é trabalhar em prol da sociedade, sua coletividade e a qualidade de vida139

da

mesma; é fazer com que a cidadania aconteça e seja legitimada, promovendo a

democracia. Portanto, é necessário, para essa pesquisa, relacionar os bares e

botequins tradicionais, parte dessa arena cultural plural carioca, às discussões

138

Aproprio-me de Oliveira (2008) ao utilizar a expressão “arena cultural”. 139

Cabe aqui uma pequena pausa para ressaltar que o conceito qualidade de vida por si só é muito

complexo, de difícil manejo e conteúdo ambíguo, cuja história esteve sempre associada à de outros

como meio ambiente e desenvolvimento, o que resulta num caráter subjetivo e qualitativo. Não há

como negar a subjetividade intrínseca a esse conceito, principalmente, a partir do momento que

envolve ética e juízos de valor (valores esses não materiais como amor, felicidade, participação na

sociedade e etc.). Cada ser humano, devido aos seus anseios pessoais, considera o que seja melhor,

mais ético, para a sua vida na sua escala individual, ainda que suas vontades se “concretizem” nas

ações realizadas pelos mesmos e, consequentemente, em todas as suas relações (com pessoas, o

espaço, a cidade. e etc.). Esses mesmos anseios pessoais são influenciados pela cultura e educação

e, quando somados a realidades socioespaciais dos diferentes grupos acabam por fomentar

inúmeras maneiras de se conceber o que seja a qualidade de vida.

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acerca das sustentabilidades da cidade, tendo como ponto de partida o fato de que

vinte e seis desses serem patrimônio cultural imaterial.

A patrimonialização dos espaços cariocas (material e imaterial) como

política pública urbana nos leva a pensar na gestão da cidade do Rio de Janeiro,

sua administração, seus instrumentos (dentre eles a própria legislação municipal),

escalas de atuação, os limites da sua abrangência ou não, a sua eficácia ou não,

seu caráter democrático, social e etc. Além da importância da gestão municipal

em si e dos seus atores sociais. A presente pesquisa, baseada nas referências

bibliográficas lidas, elenca como temas importantes para travar discussões que

abarquem a relação existente entre patrimônio cultural (seus bares e botequins

tradicionais) e o espaço urbano carioca, os desenvolvimentos e sustentabilidades:

a gestão social, a educação patrimonial da comunidade e no ambiente escolar140

, o

turismo cultural (e não o puramente mercadológico), o conceito de paisagem, o

fortalecimento das identidades culturais, o “perceber-se” como parte da esfera

pública (direitos e deveres por parte de todos), o desenvolvimento local e regional

e etc.

Como todos esses fatores elencados são complementares e necessários

para o pleno desenvolvimento da pesquisa, eles serão valorizados a partir das

propostas advindas do questionário (anexo 7.3) proposto aos donos / gerentes /

administradores / sócios / funcionários mais antigos / colaboradores141

dos bares e

botequins patrimônio cultural da cidade.

De acordo com o que se identificou no capítulo anterior, o conceito de

patrimônio cultural vem sofrendo transformações, passando reconsiderações

desde o século XX e, o que ele atualmente abarca e que interessa a esta pesquisa é

a idéia de pertencer ao dia a dia / cotidiano da sociedade, tornando-se bens

simbólicos da sociedade carioca. Ou seja, se são bens públicos, pertencem a todos

e devem ser preservados e gerenciados (as regras e leis são instrumentos

necessários). A preservação do patrimônio é, assim, uma forma de estruturação da

esfera pública (BOTREL ET AL, 2011). Paralelamente, ainda que sejam de

direito de todos persistem algumas dificuldades no que diz respeito ao exercício

140

A educação patrimonial tem muito a dialogar com a educação ambiental. 141

O que denomino de “colaboradores” são amigos frequentadores fiéis desses lugares.

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dos direitos culturais dos cidadãos, direitos esses reconhecidos no artigo 215 da

Constituição de 1988 (artigo esse utilizado no capítulo anterior) e fortalecidos pela

Lei Complementar n°111, que, como já visto, se baseia em alguns princípios,

dentre eles a democracia participativa a fim de promover ampla participação

social; e no que diz respeito as suas políticas publicas setoriais do patrimônio,

possui como duas de suas diretrizes: “promover e divulgar o patrimônio cultural

da cidade” e “incentivar a participação da sociedade através das suas diversas

formas de organização na formação de parcerias para a realização dos objetivos da

Política do Patrimônio Cultural” (Art.198,

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=zbLIuk7Nhig,

acesso em 30 de abril de 2013).

Como diz Pelegrini (2006a), “a partir do momento em que a sociedade se

dispõe a preservar e divulgar os seus bens culturais dá-se inicio ao processo

denominado ‘construção do ethos cultural e da sua cidadania’” (p.118). Cerqueira

(2005), dentro do contexto do estudo que propõe, afirma que a maioria dos jovens,

por exemplo, não percebe o patrimônio como um bem público, ou seja, conclui

ele que esses mesmos jovens não incluem o patrimônio numa identidade da qual

façam parte (p.102). Quando a comunidade se afirma através das suas identidades

locais, ressaltam Froehlich e Alves (2007), eis aí uma importante estratégia de

desenvolvimento, pois

(...) é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos

sentido aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. (...) Em outras

palavras, a afirmação das identidades não tem somente o poder de reafirmar um

passado ou constatar o presente, a afirmação das identidades pode sugerir

possíveis futuros (Idem, 2007, p.81)

Para Botrel et al (2011), quando se trata da questão dos bens culturais

brasileiros, incluso aí o patrimônio cultural, é mais adequado se falar em gestão

social do que gestão pública, pois a gestão social inclui de forma mais efetiva a

sociedade, porque ela estimula a participação cívica dos cidadãos na preservação

do patrimônio e legitima as representações culturais da população (p.43). A gestão

social estaria cada vez mais sendo utilizada na contemporaneidade, segue Botrel

et al (2011), mesmo que o conceito ganhe amplitude e, simultaneamente, gere

dúvidas e controvérsias.

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Fortalecer e utilizar-se da gestão social significa investir em processos com ampla

participação da sociedade civil e dos diferentes níveis de governo e das

organizações de forma geral, discutindo, articulando e realizando o controle

social das políticas públicas utilizando-se de múltiplos espaços institucionais e de

instrumentos e metodologias participativas de formação, planejamento,

supervisão e avaliação (...). Nesse sentido, a gestão social é entendida como uma

ferramenta usada para proporcionar o benefício de grupos de indivíduos, grupos

sociais, organizações de todos os tipos e relações econômicas, políticas, culturais,

ou seja, a sociedade como um todo. No que tange a preservação dos bens

culturais, a gestão social pode ser de grande valia para a salvaguarda e percepção

dos mesmos, pois depois de uma trajetória de 72 anos, o patrimônio começa a ser

visto como riqueza coletiva de grande importância para a democracia cultural.

Dessa forma, deve ser gerenciado utilizando-se os preceitos da gestão social, na

qual o outro deve ser incluído e deve sobressair o diálogo, ou seja, o coletivo.

(Idem, 2011, p.45)

Sendo assim, a gestão social constitui a forma mais adequada para a gestão de

bens culturais e apresenta as melhores perspectivas no contexto democrático de

consolidação da democracia brasileira, porque a preservação do patrimônio

cultural expressa interesse público, envolve a formação de uma coletividade (rede

de indivíduos, organizações publicas estatais e não estatais) representada pela

esfera pública, estabelece relações democráticas ao valorizar a diversidade

cultural e respeitar os direitos dos cidadãos, bem como estimula o

desenvolvimento local por meio do turismo (Idem, 2011, p.52)

Com o intuito não de contestar o pensamento de Botrel et al (2011), mas

de retificá-lo, Tenório (2007) afirma que, na verdade, a gestão social é uma

característica singular e louvável da gestão pública, desde os anos de 1990. Assim,

para ele, gestão social seria uma adjetivação da gestão pública, não o seu

substituto. Dessa forma, continua o autor, mais importante do que diferenciar

gestão pública da gestão social é resgatar a função básica da administração

pública que se configura em atender os interesses da sociedade como um todo.

Nesse resgate, é imprescindível ficar atento aos gestores públicos, aqueles que, de

forma legal, foram delegados pela sociedade para tomarem decisões que afetam as

vidas dessa mesma sociedade, empregando os recursos públicos (Idem, 2007,

p.111-112).

Ainda para Tenório (2007), a gestão social se aproxima de um processo

onde a hegemonia das ações é intersubjetiva, ou seja, onde os interessados tanto

na decisão, na ação e no interesse público são efetivamente participativos do

processo decisório.

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A gestão social é a substituição da “gestão tecnoburocrática, monológica, por um

gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório é

exercido por meio de diferentes sujeitos sociais” (...). A gestão social é uma

gestão pública (vale a redundância) voltada ao interesse público, onde todos têm

o direito a fala. (Idem, 2007, p.128).

Nesse sentido, ainda recorrendo a Tenório (2007), a qualificação da gestão

social agrega valores democráticos à gestão pública já que aquela legitima as

representações da sociedade, ou seja, a população tem que estar totalmente

envolvida na tomada de decisões, “(...) as ações precisam estar concertadas com a

cidadania de modo dialógico (...)” (Idem, 2007, p.129). Pensamento esse em total

acordo com Botrel et al (2011).

A gestão social não deve, portanto, ser apenas a prática de uma gestão pública

voltada para a solução de problemas sociais, como muitos idealizam, mas uma

prática gerencial que incorpore a participação da sociedade no processo de

planejamento e implementação de políticas públicas. Não basta agir para o social,

mas agir com o social. Gestão pública é o fim e gestão social, o meio.

(TENÓRIO, 2007, p.129)

Fica claro com base em Botrel et al (2011) e Tenório (2007) que a gestão

social é fundamental para a efetivação de políticas publicas democráticas no

território, ou talvez seja melhor dizer efetivação de sustentabilidades. Todavia, por

mais que a participação da sociedade seja crucial ao processo de planejamento,

implementação e gestão das políticas públicas, muito falta a ser contemplado e

realizado nesse sentido, inclusive, no que tange a atividade da população nas

políticas públicas de patrimônio cultural. Casos recentes relacionados ao

patrimônio cultural na cidade do Rio de Janeiro (Maracanã, Marina da Glória e o

antigo Museu do Índio) mostram que os processos decisórios por parte do Estado

e de iniciativas privadas não levam em consideração a participação da população.

Ou seja, em se tratando da relação entre patrimônio cultural e políticas públicas

não há uma gestão pública de qualidade no espaço carioca já que, como fora

exposto anteriormente, a efetiva participação da sociedade e consequente

consolidação da cidadania não ocorre sem a participação da população na gestão

social dos patrimônios.

Em se tratando dos bares e botequins pude comprovar, desde a

oficialização do primeiro decreto, em dezembro de 2011, que os próprios cariocas

não souberam que a patrimonialização ocorreria, ou melhor, muitos continuam

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sem saber da existência dos mesmos, inclusive aqueles que conhecem e / ou

frequentem os vinte e seis bares e botequins agora patrimônio patrimonializados.

Primeiramente, ao relembrar minha ida a vinte e quatro bares e botequins, por

exemplo, alguns no Centro da cidade e pedir informações, quando eu citava o

nome do patrimônio no qual gostaria de chegar eram raras as situações onde as

pessoas que circulavam por aquela região sabiam me dar alguma orientação por

desconhecer a existência desses estabelecimentos. Se, por outro lado, eu citava

essa ou aquela rua, a informação melhorava.

Todavia, o que mais me chamou a atenção foi perceber que nenhum dos

bares e botequins onde obtive retorno do questionário (o anexo 7.4 mostra quais

estabelecimentos devolveram o questionário) participou, ativamente, do processo

de patrimonialização do seu estabelecimento. Segundo os próprios donos

/gerentes ou eles ficaram sabendo que eram patrimônio cultural da cidade no dia

em que a prefeitura os comunicou sobre o ato ou então por alguma matéria

jornalística, mesmo que para um ou outro dono / administrador essa

patrimonialização seja algo “natural”. Parece, portanto, pelo menos ao levar em

consideração o retorno de mais de 50% dos questionários, que a Prefeitura do Rio

de Janeiro não foi ao encontro da população no momento da escolha desses

patrimônios culturais já que, por exemplo, todos os donos / gerentes não

participaram ativamente do processo de patrimonialização dos seus

estabelecimentos.

Sabe-se que a presença de estudiosos e pesquisadores é muito importante

nesse processo; entretanto, ao se pensar em bares e botequins, lugares de essência

e sociabilidade do povo, descartar a população na definição dessa política pública

é, minimamente, controverso. É válido relembrar que ocorreram mudanças do

primeiro para o segundo decreto, principalmente no que diz respeito a inserção de

estabelecimentos da zona Norte da cidade. Dessa forma é possível cogitar que

algum tipo de pressão tenha ocorrido em contraposição a escolha dos primeiros

doze (concentrados na região Central somados a dois da zona Sul da cidade).

Além de não participarem do processo de patrimonialização dos seus

estabelecimentos, muitos dos donos / administradores / gerentes / funcionários

não sabem o que representa ser oficialmente declarado como patrimônio imaterial

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da cidade. Através dos questionários percebeu-se, ainda, que eles confundem

isenção de IPTU com tombamento, por exemplo. Ou seja, esses lugares são

patrimônios culturais imateriais da cidade, mas parte expressiva das pessoas que

neles realizam suas vidas sequer sabem o significado e importância disso. Assim,

ao assumir tais considerações, fica evidente a ausência de uma educação

patrimonial na cidade do Rio de Janeiro, educação essa crucial ao se pensar na

construção da cidadania e autonomia da população. Para as pessoas que com os

bares e botequins tradicionais criam vínculos reais, a patrimonialização pode

afirmar suas identidades e configurar um meio de defesa desses espaços, além de

instrumento de luta política e de potencialidades desse conceito e título. A

educação patrimonial se relaciona diretamente ao turismo cultural (diferente

daquele puramente mercadológico que incita o fetiche do patrimônio), ao estudo e

reconhecimento da paisagem, ao desenvolvimento local e regional e etc. E ambos

se configuram como possibilidades de alcançar as sustentabilidades preconizadas

por Acselrad (2001).

Para Cerqueira (2005), falar em educação patrimonial implica falar em

dois fatores: o lugar da educação patrimonial na formação de cidadãos e o lugar

pedagógico da educação patrimonial entre as atividades curriculares e

extracurriculares. De acordo com o autor, portanto, a educação patrimonial precisa

ter dois focos de ação, a educação da comunidade escolar e a educação da

comunidade em geral. Em se tratando da educação da comunidade em geral,

segue ele, dentre as várias formas que pode ser realizada destaca-se o turismo

cultural o qual não deve ser tomado, somente, como uma atividade lúdica, mas

também como uma atividade pedagógica no momento da formação dos cidadãos.

Essa formação deve ser diferenciada para possibilitar o diálogo entre o local e o

global (multi e transescalar), pois, o alvo da educação patrimonial não é

exclusivamente o turista local, mas, sobretudo, precisa abarcar os turistas

advindos de outras regiões do país e os estrangeiros (Idem, 2005, p.99). Por esse

viés, o turismo aparece como multi e transescalar já que por mais que sua

efetivação se dê nas escalas regional e local ele é, para Cerqueira (2005), uma

atividade educadora em escala planetária que colabora para “o desenvolvimento

da consciência das políticas e das ações públicas para a preservação do patrimônio

cultural e ambiental” (Idem, 2005, p.99).

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Nas duas décadas do século XX, a educação patrimonial cresceu como uma

importante dimensão da formação dos cidadãos da democracia moderna, uma vez

que estimula o fortalecimento da consciência do caráter público do patrimônio e a

identificação e manutenção dos laços de memória como significantes coletivos

portadores das memórias sociais dos diferentes grupos que compõem a sociedade.

Por meio da educação patrimonial busca-se sensibilizar as comunidades sobre a

importância de preservar a sua memória; mais que isso, busca se gerar uma

reflexão sobre as memórias dos diferentes grupos sociais, de modo que se perceba

que patrimônio não é somente o monumento belo e notável que fala do passado

de algumas elites, mas que patrimônio é, outrossim, todo símbolo de memória

coletiva, do terreiro à igreja, do sobrado à senzala, das praças públicas aos

prédios das escolas, dos antigos armazéns de bairro aos grandes teatro, das

canchas retas aos estádios de futebol. A escola em decorrência da constatação da

importância social da educação patrimonial, chamou para si também essa

responsabilidade. (Idem, 2005, p.99-100)

Também não alongando a discussão em torno da educação patrimonial no

ambiente escolar volto a recorrer a Cerqueira (2005). Conforme traz o autor, a

educação patrimonial escolar deve ser objeto de políticas públicas específicas

advindas de um planejamento com base conceitual definida está inserida em

ordens de reflexão que perpassam por questões como:

- a indissociabilidade entre o patrimônio humano e natural na conceituação de

patrimônio cultural, de modo que as pesquisas, intervenções e políticas publicas

sejam pensadas de forma integrada;

- as especificidades e interfaces que marcam as diferentes relações entre o

patrimônio tangível (material) e intangível (imaterial);

- o abandono da conceituação elitista de patrimônio, que o identificava com a

visão hegemônica de grupos dominadores do passado, em favor de uma visão

plural que dê conta da diversidade sociocultural existente nas sociedades do

passado, assim como do presente. Patrimônio que não é mais visto como

excepcionalidade de erudição, mas que, sem deixar de ser isto, passa a ser visto

também como o registro do comum, como memória da expressão cultural do

homem comum e sua vida corriqueira. (Idem, 2005, p.107)

A educação patrimonial escolar, portanto, felizmente avança paralelamente

ao próprio conceito de patrimônio cultural. E o desenvolvimento dessa educação

relaciona-se a formação da cidadania com qualidade por preocupar-se “com o

fortalecimento da identidade cultural sustentada na memória das expressões

culturais dos diferentes grupos que compõem e compuseram a sociedade” (Idem,

2005, p.108). E para se trabalhar com educação patrimonial o profissional precisa

ter um conhecimento a respeito da legislação que envolve o conceito, dessa forma,

não há como ignorar os dois decretos que patrimonializaram os bares e botequins

tradicionais no Rio de Janeiro. Ainda nesse tipo de educação se torna importante

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conhecer as estruturas administrativas responsáveis pela preservação do

patrimônio nas mais diferenciadas escalas (Idem, 2005).

No que diz respeito à Lei Complementar n°111, dentre as suas diretrizes

da política de patrimônio (figura 4 na pág.89) está: “incentivar a participação da

sociedade através das suas diversas formas de organização na formação de

parcerias para a realização dos objetivos da Política do Patrimônio Cultural”; e

quanto às ações estruturantes dessa política a lei cita que é preciso

articular, em conjunto com a Secretaria Municipal de Educação e demais órgãos

vinculados ao Patrimônio Cultural das demais esferas governamentais, ações de

estímulo à proteção e à valorização do Patrimônio Cultural, incluindo disciplina

relativa ao tema no currículo do ensino básico

(http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c23032

56bc30052cb1c/cdd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument, acesso

02 de abril de 2013).

A não desintegração do conceito patrimônio cultural é muito válida para se

trabalhar com outro conceito, o de paisagem. O conceito de paisagem há muito

vem sido debatido dentro da ciência geográfica e ao longo desse debate sofreu

alterações de acordo com as respectivas correntes geográficas. O importante,

nesse momento, é destacar que o conceito paisagem evoluiu e se distanciou

daquele pensamento que a considerava mero como enquadramento de um cenário,

estática e objetiva; até culminar, lá pela década de 1970, no que Claval (2004)

denominado de “outras leituras geográficas da paisagem” (p.43). Para o autor a

paisagem é dinâmica e quanto maior for o número de pontos de vista do geógrafo

tanto melhor para a análise da paisagem por integrar a soma dos olhares

horizontais e verticais. Por essa perspectiva geográfica se fortalece a relação da

paisagem com a Geografia Cultural, muito bem abordada por Berque (1998)

quando ele fala de Paisagem – Marca e Paisagem – Matriz.

como manifestação concreta, a paisagem está naturalmente exposta a objetivação

analítica do tipo positivista; mas, ela existe em primeiro lugar, na sua relação com

um sujeito coletivo: a sociedade que a produziu, que a reproduz e a transforma

em função de uma certa lógica. Procurar definir essa lógica para tentar

compreender o sentido da paisagem é o ponto de vista cultural que se indicou

acima (Idem, 1998, p.84).

Assim, a paisagem multidimensional de Berque (1998) é marca, pois,

revela seu passado, as relações e materializações das ações das civilizações e

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sociedades ao longo do tempo no espaço, ou seja, “(..) implica toda uma cadeia de

processos físicos, mentais e sociais (...)” (BERQUE, 1998, p.88) e é matriz, por

ser o conjunto que nos envolve, ou seja, com as marcas que nos apresenta aguça

nossa percepção, nosso entendimento acerca daquela paisagem e nossas possíveis

ações para com essa mesma paisagem. Nesse momento a subjetividade por parte

do cientista, observador, sujeito é extremamente importante.

Lembra-nos Ribeiro (2010) que vivemos um momento no qual a categoria

da paisagem apresenta uma força incomum, seja pelos inúmeros estudos que vem

sendo realizados ou porque nas diferentes esferas de atuação do governo esforços

têm sido feitos com o intuito de transformar a paisagem numa categoria

identificadora do patrimônio cultural e formuladora de políticas públicas.

Num mundo em que o patrimônio cultural ganha cada vez mais atenção e valor, e

em que seu crescimento em importância, para alguns, pode gerar uma

banalização, espetacularização e homogeneização dos espaços (...) a categoria de

paisagem é capaz de se transformar em importante instrumento para políticas

públicas e para gestão da organização espacial através da cultura. Entretanto, é

necessário que seja utilizada de maneira coerente e dentro das potencialidades

que a paisagem comporta, evitando também a sua banalização. (Idem, 2010,

p.4105 – 4106)

Para evitar seu uso de maneira equivocada Ribeiro (2010) atenta aos

pesquisadores que a paisagem não é meramente visual / cênica; que a paisagem

não é dada, mas sim um constructo; que a paisagem também tem seus aspectos

subjetivos; que a paisagem é sim fruto de construção histórica; todavia a paisagem

não é só história; que a paisagem não é só cultural; e, por fim, de que tudo não é

paisagem. Ambas as ressalvas apresentadas por Siqueira (2010) são relevantes e

complementares, porém, devido a presente pesquisa estar trabalhando com

intangibilidades a consideração do subjetivo por parte desse conceito possibilita a

relação do mesmo com o patrimônio cultural.

Analisar aquilo que cada indivíduo ou grupo de indivíduos identifica como

paisagem é um caminho que tem sido explorado por algumas correntes e que

pode ser um foco importante para relacionar paisagem e patrimônio. (Idem, 2010,

p.4111).

E essa relação é fundamental na formulação de políticas publicas e

espaciais de sustentabilidades que levem em conta a cultura. Sem a paisagem não

há patrimônio e sem patrimônio não há a possibilidade de proteção da paisagem.

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Dessa forma, retomamos a Ribeiro (2010), já que para o autor apesar de todos os

problemas que envolvem a captura da categoria paisagem, os quais não podem ser

negligenciados, ela é essencialmente integradora e, portanto, deve ser inserida na

discussão em torno das sustentabilidades.

A categoria de paisagem obviamente tem suas limitações, ressalta algumas

características, responde algumas questões, mas esconde outras. O caráter

integrador de diferentes aspectos, até hoje vistos de maneira separada, é

sem dúvida um dos seus grandes trunfos. (Idem, 2010, p.4115).

A paisagem dos bares e botequins é caracterizada pela relação desses

estabelecimentos privados com o “de fora”, tornando-se, assim, uma das essências

da cidade do Rio de Janeiro (sua sociabilidade e relações afetivas, happy hour e

etc.). Dessa forma, a beleza cênica em si (e só ela) que circunda, por exemplo, o

Bar Urca e o Bar Lagoa, não deve ser tomada como definição de paisagem para a

temática, pois, se assim for feito, a paisagem acaba sendo confundida com

cenário142

.

A paisagem e a paisagem cultural (já que como fora colocado

anteriormente, a paisagem não é só cultural) também são abarcadas pela Lei

Complementar n°111. Dentre os instrumentos de gestão do patrimônio cultural

elencados pela própria lei, que fazem parte do conjunto dos instrumentos da

política urbana da cidade, está a Declaração e Registro de Sítio Cultural e de

Paisagem Cultural (Art.140). Para esse artigo por sítio cultural entende-se

o espaço da cidade, de domínio público ou privado, que por suas características

sócio-espaciais e por sua história constitua-se em relevante referência a respeito do

modo de vida carioca, ou trate-se de local de significativas manifestações culturais,

ou possua bens imateriais que contribuam para perpetuar sua memória

(http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c230325

6bc30052cb1c/cdd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument, visitado em

03 de abril de 2013).

142

A reportagem do anexo 7.8 antecede a escolha da cidade do Rio de Janeiro como Paisagem

Cultural da Humanidade. Nessa reportagem, a murada da Urca, que serve como “as mesas e

cadeiras” do Bar Urca, é considerada como parte formadora dessa paisagem cultural.

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174

E por paisagem cultural a

porção do território onde a cultura humana imprimiu marcas significativas no

ambiente natural, propiciando a aparição de obras combinadas de cultura e

natureza, que conferem à paisagem identidade e valores singulares (Idem).

A paisagem, por sua vez, está inserida dentro das políticas públicas

setoriais e no capítulo da política de meio ambiente (figura 4). Para a lei, ela é a

interação entre o ambiente natural e a cultura, expressa na configuração espacial

resultante da relação entre elementos naturais, sociais e culturais, e nas marcas das

ações, manifestações e formas de expressão humanas; sendo que a paisagem do

Rio de Janeiro representa o mais valioso bem da cidade, responsável pela sua

consagração como um ícone mundial e por sua inserção na economia turística do

país, gerando emprego e renda. E integram o patrimônio paisagístico do Rio de

Janeiro tanto as paisagens com atributos excepcionais, como as paisagens

decorrentes das manifestações e expressões populares, ou seja, o conjunto dos

seus bens materiais e imateriais. (Idem, visitado em 03 de abril de 2013). Sendo

assim, os bares e botequins podem ser considerados símbolos culturais cariocas

imateriais e estão dentro do que a lei classifica como sítio cultural, paisagem

cultural e paisagem.

De acordo com o Art.166 dessa lei, da responsabilidade conjunta dos

órgãos vinculados ao sistema de planejamento e gestão ambiental no que diz

respeito à proteção da paisagem está incluso: a “ação de fomentar a preservação

do patrimônio cultural e ambiental urbano” (Idem). Quanto às ações estruturantes

dessa proteção destaco: 1. planejar e executar ações de conservação,

monitoramento e manutenção dos traços significativos ou característicos da

paisagem; 2. estabelecer processos de negociação para mediar os diferentes

interesses e valores dos grupos sociais que vivenciam e interagem na configuração

da paisagem; 3. estabelecer procedimentos para a participação da sociedade e de

representantes de entidades, instituições e órgãos públicos das diferentes

instâncias de governo interessados na definição e implementação das políticas de

proteção da paisagem; e realizar ações permanentes de educação ambiental143

,

através da promoção de campanhas de esclarecimento público para a proteção e a

valorização da paisagem urbana.

143

Mais uma vez ressalta-se que a educação ambiental e a educação patrimonial devem dialogar.

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Em relação aos objetivos da política municipal da paisagem elencados por

ela, aquele que considero mais relevante é: “fortalecer uma identidade urbana,

promovendo a preservação do patrimônio cultural e ambiental urbano” (Idem,

2013, acesso em 03 de abril de 2013). Por fim, a política de paisagem apresenta

algumas diretrizes, e ainda que todas sejam importantes, se pensando nos bares e

botequins patrimônios culturais e a relação deles com a paisagem da cidade, são

claramente significativos: 1. favorecer a preservação do patrimônio cultural e

ambiental urbano; promover a participação da comunidade na identificação,

valorização, preservação e conservação dos elementos significativos da paisagem;

e conscientizar a população a respeito da valorização da paisagem como fator de

melhoria da qualidade de vida, por meio de programas de educação ambiental e

cultural.

A questão do turismo cultural enquanto instrumento fundamental da

promoção do desenvolvimento, principalmente, do desenvolvimento regional e

local, também é essencial. Pensar o turismo dissociado do caráter puramente

mercadológico que para ele, em grande parte, é voltado, se configura como tarefa

difícil, até porque o turismo é uma atividade econômica por essência; todavia,

necessária ao se falar de sustentabilidades espaciais e numa sustentabilidade

cultural baseada nas identidades das sociedades. Paes (2009) indica que o

planejamento territorial contém intencionalidades afeitas à preservação do

patrimônio cultural e ao uso turístico, o que implica em um novo conjunto

normativo referente ao espaço em que essa relação se dá. Afirma ainda a autora

que essa é uma equação difícil144

, pois a valorização turística incorpora novos

usos ao território, e os patrimônios culturais acabam por potencializar essa mesma

valorização e são incorporados á lógica do consumo cultural.

Nesse duelo entre a preservação e a modernização, o uso público e o uso privado,

a identidade e a diversidade, as forças de mercado e os interesses sociais, estes

sítios históricos – objetos do imaginário cultural do nosso tempo – rendem-se à

economia política da cidade (Idem, 2009, p.5)

Dessa forma vê-se a necessidade de, nessa inevitável lógica

mercadológica, a qual cada vez mais toma o imaterial / subjetivo como bem

144

Por mais que no contexto da autora ela se refira aos patrimônios materiais e passíveis de serem

tombados eu associo seu pensamento à discussão em torno dos bens imateriais.

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poderoso a ser acumulado, que o turismo cultural, como se denomina em oposição

ao turismo mercadológico, não deixe as identidades e os sentimentos de

pertencimento ao lugar se diluírem em um consumo cultural vazio que prioriza a

valorização estética (Idem, 2009, p.8). No sentido de evitar mimetizações

culturais Fonseca (2005) afirma que o antídoto natural para este contágio é

justamente o “resgate, revalorização e re-significação das identidades culturais

locais assumindo seus valores como referência para a construção da ideia de

sustentabilidade (...)” (p.7).

Uma das perguntas do questionário (anexo 7.3) era “Para você qual o

futuro dos bares e botequins da nossa cidade?”. Inevitavelmente, essa questão

deve ser colocada aqui no debate das sustentabilidades, não há como pensar, por

exemplo, na tão característica sociabilidade desses lugares (fora suas tradições e

identidades) se eles não mais existirem. E as respostas á essa pergunta estão no

gráfico abaixo.

Gráfico 2: Qual o futuro dos bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro?

Fonte: Elaborado pela autora com base nas respostas do questionário (anexo 7.3)

A preocupação dos donos no que diz respeito ao futuro dos seus

estabelecimentos é bastante significativa. Somente um dos quatorze botequins

onde obtive retorno disse que o futuro é crescer, enquanto que para os demais o

cenário é diferente. Outros dois afirmaram que mesmo concorrendo com as

poderosas redes dos bares e botequins simulacros / forjados sempre existirão os

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bares e botequins tradicionais e familiares, aqueles em que você se sente em casa.

Todavia, 35% desses estabelecimentos tendem a crer que se for para pensar em

futuro, só se for um futuro bem próximo, ou melhor, não há como ter a garantia da

próxima geração no comando, pois, as dificuldades encontradas para manter a

administração familiar são muitas. Essa participação efetiva dos herdeiros, para

eles é crucial, uma das grandes tradições mantenedoras da existência dos mesmos.

Em casos como o Bar Urca, Bar da Amendoeira e Café Lamas, por exemplo,

observa-se que essa participação familiar ainda permanecerá por um bom tempo

devido a vontade e idade dos atuais administradores.

Fora isso, a qualificação profissional dos demais funcionários também se

configura como outra importante preocupação, e tal preocupação foi associada por

um dos estabelecimentos ao futuro do mesmo, no caso, o Bar Luiz. Em muitos

dos vinte e quatro bares e botequins tradicionais que visitei percebe-se que os

garçons são homens mais velhos, muitos deles idosos, inclusive. Os atuais

administradores sabem que se não houver incentivos será complicado assegurar a

próxima geração de garçons e funcionários; afinal, grande parte dos jovens, frente

as maiores possibilidades de crescimento pessoal e profissional, não possuem

como objetivo de vida tornarem-se garçons, por exemplo.

Para o Cervantes, o futuro é a necessidade de avaliação e modernização

tanto com as necessidades sanitárias e segurança alimentar quanto ás de

automoção sem perder as tradições. Já para o Nova Capela, imaginar esse mesmo

futuro não é algo positivo devido aos bares e botequins estarem na contramão do

mercado, além do que, do ponto de vista financeiro, há os impostos, alugueis e

custos de mão de obra. E para a Casa Villarino, o futuro não deve ser diferente do

que ocorre até o momento a menos que ações e movimentos significativos sejam

adotados.

Nesses variados discursos dos bares e botequins tradicionais sobre o futuro

fica evidente serem necessárias políticas de incentivo para a permanência desses

estabelecimentos. A partir do momento em que as famílias percebam que esse é

um negócio (pois os bares e botequins são estabelecimentos comerciais) que vale

a pena investir a partir da compreensão que eles têm importância simbólica para a

cidade do Rio de Janeiro; possam herdar esses espaços de sociabilidades sem que

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eles se tornem fardos. Mas, para isso há de haver educação patrimonial para os

patrimonializados. A necessidade da qualificação profissional e da realização de

novas ações e movimentos tanto por parte das esferas públicas e privadas parece,

também, serem urgentes.

Como bem ressaltou Thiago de Mello em entrevista a Revista História da

Biblioteca Nacional145

, o melhor para os bares e botequins seria oferecer

condições para o bom funcionamento dos mesmos, se possível reduzindo os

custos para as casas. Dessa forma, como não pensar em políticas públicas que

potencializem a relevância dos bares e botequins tradicionais para a cidade do Rio

de Janeiro sem a redução dos ônus econômicos para os seus donos? Ainda no que

diz respeito á questão da patrimonialização, por si só, não sobreviverão. (Cristina

Lodi, superintendente do Iphan, numa entrevista a Revista o Globo do dia 16 de

julho de 2012)

4.2. Resultados das visitas aos bares e botequins tradicionais

Sem muito me alongar na apresentação dessa etapa da dissertação, creio

que o mais interessante está por vir logo adiante, as visitas feitas á vinte e quatro

dos vinte e seis bares declarados patrimônio cultural imaterial da cidade do Rio de

Janeiro. Só se é capaz de perceber o que esses lugares guardam e representam a

partir do momento em que você os adentra e “sente” a história, e o espaço

material e imaterial. São ambientes muito diferentes, mas se assemelham em

vários pontos, outros encantam mais, alguns nem tanto, levando-se em

consideração a percepção e olhar de quem está a observá-los. Notar os detalhes da

ambiência, as peculiaridades de cada um, enfim, é preciso ir aos bares e botequins

e conhecê-los.

Ir à rua, eis aí outra grande lição que tiro dessa experiência, pois caminhei

muito pela cidade, indo, inclusive, a lugares que talvez eu não fosse se não

estivesse com a temática que me propus a pesquisar, como, por exemplo, o bairro

145

Entrevista essa já citada por essa dissertação e que se encontra disponibilizada no site

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/chope-oficial.

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de Maria da Graça. Pelo metrô nunca tinha ido alem da estação Maracanã. Andei

muito pelo centro da cidade, e se até pouco tempo eu ficava insegura em alguns

locais dessa região, depois de tanto me locomover por lá (fazia tudo a pé, com

exceção da subida até Santa Teresa), aprendi, tracei caminhos, sou capaz de fazer

associações pelos “símbolos” que defini como pontos de localização e etc. Até

mesmo o bairro de Copacabana, onde já trabalhei e muito me desloquei a partir de

novas caminhadas muita coisa foi assimilada pela primeira vez. Já tinha passado

por diversas vezes em frente à praça onde está situado o bar Bip Bip, por exemplo,

mas não sabia nem da existência desse estabelecimento.

Além de conhecer lugares de sociabilidades surpreendentes, entrei em

contato com pessoas incríveis, seja dentro dos estabelecimentos ou a caminho

deles, nos pontos de ônibus ou ao pedir informações. Quanto às informações, em

vários momentos, no centro da cidade, ao invés de citar o nome da rua que

desejava chegar perguntava pelo bar e botequim, e muito me surpreendeu ver que

a maioria das pessoas não faz ideia da existência desses lugares.

Aprendi que a vergonha é algo que não combina com bares e botequins,

até porque dependendo da pessoa com quem você se depara para explicar suas

intenções quanto à pesquisa é preciso ganhar confiança, ter paciência ou então se

adaptar ao que eles oferecem. Fora a existência daqueles mais saidinhos, e é

preciso saber lidar com isso, faz parte da sociabilidade desses lugares, sem dúvida,

receber algumas cantadas. No fundo, dava muitas risadas e muito me diverti.

Dos vinte e quatro bares e botequins tradicionais que fui obtive retorno de

quatorze deles (anexo 7.4). Em alguns dos botequins desde a primeira visita tive a

percepção que não teria o questionário de volta. Nesses fui uma segunda vez,

liguei, procurei e mesmo assim o retorno foi negativo. Em outros realizei duas

idas na tentativa de encontrar a pessoa indicada a me atender, no caso, os donos,

mas, infelizmente também não tive êxito. Quanto ao Café e Bar Brotinho e Bar

Adônis, esses dois são os únicos em que não estive pessoalmente.

Optei em encaminhar o questionário (anexo 7.3) aos donos / gerentes /

administradores / funcionários mais antigos, ou melhor, aqueles que

“internamente” vivenciam esses estabelecimentos no seu dia-a-dia, que enfrentam

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de perto as dificuldades de manter esses símbolos cariocas, dificuldades essas bem

maiores para o Restaurante 28 e o Bar do Jóia, por exemplo (como pude perceber

durante as visitas e pelo questionário). As pessoas as quais destinei minhas

perguntas são fundamentais na manutenção desses espaços de sociabilidade e suas

tradições. Não me arrependo dessa escolha metodológica, ainda que eu não tenha

tido um retorno que considere satisfatório a respeito dos questionários (63%146

).

Todavia, poder conversar pessoalmente com eles e em alguns casos ter a

oportunidade de um papo alongado foi muito válido. Sendo assim, segue abaixo o

relato das minhas idas aos bares e botequins tradicionais, agora patrimônio

cultural imaterial da cidade do Rio de Janeiro, somadas as respostas obtidas pelos

questionários.

Quanto aos donos / gerentes / administradores / funcionários /

“contribuidores” com os quais eu conversava e realizava a proposta dos

questionários uns eram mais simpáticos e solícitos; outros simpáticos e devedores

(já que não me deram retorno do questionário), outros desconfiados, mas, que se

soltavam; outros antipáticos. No Pavão Azul, por exemplo, quem respondeu foi

uma antiga frequentadora que já ia ao bar antes da chegada de Dona Vera e sua

irmã. Na Adega Flor de Coimbra, a dona encarregou ao funcionário mais antigo o

papel de me ajudar; já no Bar Luiz quem o fez foi um gerente contratado a 16

anos pelo estabelecimento. Por sua vez, no Bar do Jóia quem respondeu foi um

homem que, por mais que seja só um cliente ou sócio (o que não tenho certeza), é

muito mais que isso, é um grande amigo da dona, a senhora Alayde. Na verdade

eu sabia desde a minha participação no Comida di Buteco que lidar com essas

pessoas responsáveis pela administração / vivência diária dos botequins é algo

extremamente complicado, até porque, pelo que percebi e ouvi, é um ramo

comercial que dá bastante trabalho, dependendo da organização, porte do

estabelecimento, financiamentos, apoio ou não de outras pessoas. Dois dos que

responderam os questionários, por exemplo, estão “tecnologicamente avançados”,

encaminharam as respostas por email. Com exceção do Pavão Azul, Bar da

Amendoeira e Casa Villarino todas as pessoas que responderam ao questionário

são do sexo masculino.

146

63% em relação ao total de 24 estabelecimentos visitados. Sendo que não deixei o questionário

em todos esses bares.

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Com o intuito de ajudar na pesquisa em termos de organização, após as

idas aos bares e botequins realizei anotações que resultaram no que denomino de

Diário das idas aos bares e botequins tradicionais. Através desse diário, trago

todas as percepções que assimilei desses lugares de sociabilidade durante o tempo

de permanência nos mesmos ou, por exemplo, nos casos em que fui mais de uma

vez ao lugar na medida do possível falo das diferenças dessas visitas (dia da

semana, horário, frequência e etc.). Foram pouquíssimos os bares cujos registros

fotográficos não são meus (feitos pelo celular), se não me engano três dos vinte e

quatro. Portanto, em relação a esses três recorri a imagens do Google Imagens.

Quanto às fotos do arquivo pessoal trago aquelas que mais me agradaram, levando

em consideração, também, o foco e qualidade das mesmas. A seguir, portanto,

segue o diário composto de descrições e ilustrações. O leitor perceberá através do

diário as minhas preferências enquanto sujeito dessa pesquisa; afinal, é válido

relembrar que a observação e a assimilação vão ao encontro das minhas

percepções pessoais e investigativas.

4.2.1. Diário das idas aos bares e botequins tradicionais

Cervantes (Copacabana)

Cheguei às 13h30min de uma sexta-feira. Falei com o dono/ gerente Juan,

um homem que deve ter por volta de 40 anos e foi super solícito, mas, como ele

estava ocupado, me pediu para ou voltar de tarde ou no dia seguinte. Já que eu ia

ainda andar muito por Copacabana, pois o Cervantes era o primeiro dos quatro

patrimônios em Copacabana, optei em retornar mais tarde. Voltei

aproximadamente às 16h. As 13h30min o restaurante estava lotado, não me

recordo se vi mulher almoçando lá tamanha a quantidade de homens (homens

mais novos e vestidos de roupa social em sua grande maioria), já o bar estava

vazio (na parte bar não há mesas nem cadeiras, só o balcão mesmo, lugar é

pequeno e estreito – figura 9). Quando retornei o bar já possuía alguns clientes,

mas como o espaço físico do bar é bem pequeno, a presença de poucos clientes já

se faz significativa para o lugar. Não há ali como colocar mesas e cadeiras, as

pessoas ficam sociabilizando em pé. Disse-me Juan que a entrada do restaurante é

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a original (figura 7). O Cervantes da Prado Júnior, ou seja, o original eu não

conhecia. Todavia quando criança ia muito com meus pais a uma filial, na época,

no shopping Via Parque na Barra da Tijuca e, atualmente ainda existe a filial da

Barra, em outra localização do bairro (o que pode ser confirmado no site do

estabelecimento). A grande lembrança que tenho do Cervantes é que íamos para lá

na busca dos seus deliciosos sanduíches acompanhados por abacaxi. E esses

mesmos sanduíches de carnes (presuntos, pernis e afins) com abacaxi foram

destacados pelo gerente, em uma das suas repostas ao questionário. Quando li essa

resposta voltei há muitos anos atrás! Essas carnes que recheiam os tradicionais

sanduiches, vendidos há mais de cinquenta anos pelo Cervantes, estão expostas na

vitrine de vidro do especo destinado ao botequim, como pode ser visto na figura 8.

Grandes pedaços de carne ficam expostos para os clientes. O Cervantes foi o

primeiro bar que fui deixar o questionário. Depois das visitas que realizei aos

demais, percebi que poderia ter notado mais os seus detalhes e admito que foi um

erro, assim, se der volto lá com mais calma e a ele dedico mais o meu tempo e

aguço mais as minhas percepções.

Figura 7: A fachada mais antiga do Figura 8: Carnes no balcão do Cervantes

Cervantes

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Figura 9: O ambiente bar do Cervantes

Pavão Azul (Copacabana)

Cheguei por volta das 14h de uma sexta feira e encontrei dona Vera (que já

conhecia do Comida di Buteco). Ela fica no turno da manhã/tarde e a irmã no

turno tarde/noite. Como sempre super solícita e simpática para com todos os seus

clientes, tanto aos mais conhecidos quanto aos que ali vão pela primeira vez.

Percebe-se que ela é muito participativa nos afazeres do próprio botequim, ora

está na cozinha, ora recebendo pagamento e etc. O bar estava muito cheio

(homens e mulheres), única mesa vazia era a que sentei, Possui muitos garçons,

reparei em uns cinco enquanto estava por lá. Os pratos do dia variavam entre

R$17,00 (bife acebolado e a milanesa) e R$30,00 (risoto de camarão), como pode

ser percebido pela figura 10. Tirando o risoto, pelo que eu percebi dos outros

pedidos, todos os pratos do dia vinham com acompanhamento de arroz, feijão e

batata-frita. Ambos muito bem servidos em quantidade (duas pessoas comem

bem). Como eu já havia notado, está sempre a vista pelo balcão uma caixa com

doces portugueses, e toda vez que vou lá acabo devorando um. A higiene do

botequim não é assim um primor (parte dessa característica é visualizada na figura

11)! O Pavão Azul está entre um pé-sujo e um pé-limpo, se eu tivesse que

qualificá-lo nesse sentido! Não é grande nem pequeno, tem um tamanho bom.

Não percebi a presença da placa azul da prefeitura, também, só passei a notar

essas placas no segundo dia de visita aos bares. Dediquei o primeiro dia de visitas

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ao grupo dos quatro bares e botequins de Copacabana, sendo que no Bip Bip tive

que retornar outro dia, já que ele só abre a noite. Um fato interessante do Pavão

Azul é que o boteco se expande para o outro lado da rua, ou seja, logo em frente

ao primeiro estabelecimento, ao atravessar a rua Hilário de Gouveia, há a

continuidade do Pavão Azul. Segundo um amigo meu, cuja família ,disse ele,

frequenta o Pavão Azul há muito tempo, a loja logo ao lado do Pavão Azul tinha

feito uma proposta ao estabelecimento, para que ele aumentasse o seu espaço.

Essa proposta, entretanto, teria sido muito cara e o Pavão azul optou, então, em

crescer “além do outro lado da rua”. Deixei o questionário, pois ela não podia

responder no momento, mas, no fim das contas quem respondeu foi uma cliente

muito antiga que conhece tudo de boteco é frequentadora do Pavão antes da D.

Vera ir pra lá.

Figura 10: O cardápio do dia Figura 11: Produtos expostos no

do Pavão Azul balcão do Pavão Azul

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Figura 12: Interior do Pavão Azul

Adega Pérola (Copacabana)

Cheguei por volta das 15h de uma sexta-feira e também pude falar com o

dono/administrador, que já conhecia do Comida di Buteco. Também foi super

solícito quanto ao questionário. O bar estava cheio, pois, tirando minha mesa

todas as demais tinham clientes, além do que, não é um botequim tão grande

(figura 13). Como sempre, fico encantada com o botequim, acho o bar Adega

Pérola muito bacana, seu balcão apresentando aos fregueses os mais diversos

acepipes, sendo que todos parecem ser bem temperados, é lindo, tudo muito

colorido (figura 15)! E eu adoro cor. O local estava bem limpo. As porções dos

seus petiscos vão desde R$6,00 até a faixa dos R$25 / 30,00. Exemplos dos seus

acepipes: alho no azeite, linguiça de avestruz, gorgonzolas aos pedaços,

mexilhões, bacalhau, coração alado (coração de galinha). Percebi que havia entre

três e quatro garçons. O chope custa R$5,00. Mesas de madeira compridas e de

tonalidade escura que ficam encostadas e enfileiradas na parede oposta ao balcão

(figura 13). O bar tinha uns três garçons. Um casal de pessoas mais velhas e

moradoras de Copacabana veio falar comigo quando me ouviram falar da temática

da dissertação para o dono. O homem desse casal veio me dizer que, apesar de

morador de Copacabana há um bom tempo, não conhecia a Adega Pérola. Ficou

encantado com o lugar. Conversei um pouco com o dono (na verdade, acho que é

um dos dois donos, me recordo por conta do Comida di Buteco), ele citou outros

bares e botequins (de donos que conhecia e / ou frequentava). Falou do Adega da

Velha em Botafogo, para citar um exemplo, já que disse que o seu Chico (dono do

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Adega da Velha) comprou o bar de um casal de portugueses e que, o Adega da

Velha, como é hoje, tem, aproximadamente, 15 anos. Para o dono da Adega

Pérola 15 anos é muito pouco tempo para ser tomado como tradicional. Disse

também que o primeiro decreto isentou os bares e botequins de IPTU, quando

falou isso fui procurar por essa informação. Pelo que li em algumas reportagens

(já apresentadas nesse capítulo), os bares e botequins dos dois decretos têm direito

sim a isenção de IPTU. Provavelmente, ele não sabe disso. O Adega Pérola, na

minha opinião, é sim, dentro de tudo o que eu conheço da cidade, um lugar único.

Merecedor de ser declarado patrimônio.

Figura 13: Interior da Adega Pérola Figura 14: Interior da Adega Pérola

Figura 15: Exemplos dos acepipes da Adega Pérola

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Adega da Velha (Botafogo)

Cheguei por volta de 17h50min de uma sexta-feira. No letreiro do

botequim está escrito: Adega da Velha, O Bar do Chico, Rei da carne de sol. Ou

seja, a comida nordestina é um dos seus pontos fortes, senão o principal, além da

feijoada de sexta, pelo que o próprio Chico (o dono) me disse. Ele sentou a mesa

comigo, não é de muitas palavras, com todo o preconceito, me parecia uma pessoa

menos instruída em comparação aos outros, talvez porque é um pouco mais

bronco rs, mas percebe-se que vai se soltando. No horário o bar estava vazio, e,

segundo seu Chico, a culpa era do dia chuvoso; todavia, ainda estava cedo, disse

ele. Depois da lotação no horário de almoço ele retorna a ficar cheio lá pelas

20h30min. Seu Chico disse que já tinha tido em torno de 51 bares, mas,

atualmente, só estava com o bar Adega da Velha, uma “padaria” ao lado da

mesma e uma “lanchonete” na esquina da rua do próprio Adega. Comentei com

ele sobre um bar da moda que fica ali perto, o Alpha Bar, na Rua Sorocaba, que

vive cheio de jovens e é um boteco, pelo menos hoje em dia, bem conhecido em

Botafogo. Todavia, na hora seu Chico falou (não necessariamente com essas

palavras): pra mim o bar ficar lotado não é o que mais importa, na verdade, não

tenho mais muito saco para esse tipo de coisa. Gosto é da minha clientela mais

fixa, de ver famílias reunidas aqui. Voltando a feijoada de sexta, ele ressalta que a

sua feijoada é muito boa, que hoje, em um dia com menos movimento, vendeu em

torno de 200 feijoadas. Mas, por conta da chuva, as mesas da calçada não

puderam ser ocupadas, se tivessem sido a venda da feijoada seria muito maior. Ao

lado do botequim há o espaço dedicado ao restaurante (figura 17), onde fica nítido

o lado botafoguense do dono (figura 16). Esse espaço tem um bom tamanho, com

muitas mesas e cadeiras. Suas paredes possuem muita informação, quadros

variados com reportagens, prêmios e afins, fora a parte dedicada ao clube do

Botafogo, com seus grandes pôsteres também enquadrados. Já o espaço do

botequim, esse também não é pequeno, além do balcão, é composto por umas três

mesas com cadeiras, se não me engano. É mais no estilo pé sujo, assim como o

Pavão Azul. Percebi que os preços do Adega da Velha não são salgados, o que eu

acho, particularmente, que tem tudo a ver com verdadeiros botequins. O que mais

chama a atenção desse espaço é seu teto, o qual possui um “pergulado” com

folhas secas penduradas. Como eu não consegui distinguir que folhas eram essas

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fui até a internet procurar sobre e descobri que são cabaças e folhas de louro

penduradas (figura 18). Ah, me disse seu Chico que mora na Tijuca (só para

constar). Lá o chope custa R$5,50. Voltei em uma terça-feira, acompanhada,

inclusive, da minha sobrinha, na tentativa de conseguir o questionário preenchido.

Não foi dessa vez e tenho certeza que não conseguirei o questionário do seu

Chico. Na verdade eu desde a época em que trabalhei no Comida di Buteco já

sabia o quão difícil é lidar com alguns donos de botequins, seu Chico é um desses,

pelo menos parece.

Figura 16: Parede “do futebol” na Adega da Velha

Figura 17: Restaurante da Adega Figura 18: Bar da Adega da Velha

da Velha

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Adega Flor de Coimbra (Lapa)

Cheguei por volta de 13h45min de um sábado. Seu interior estava lotado,

um lugar pequeno, mas, muito agradável, com uma ambiência diferenciada. Se eu

fosse direcionar, diria que tende mais a restaurante do que um botequim/boteco,

pois não há, por exemplo, um balcão como o do Cervantes. Percebi a presença de

uns três garçons. A mulher/administradora que estava atrás do balcão, no

momento, não podia responder o questionário e, no fim, quem ficou de responder

foi o funcionário mais antigo de lá, chamado Zé, um garçom com 20 anos de casa

(o que me deixou feliz). O bar fica muito perto da famosa escada de Selarón, na

Lapa, dessa forma há ali uma grande movimentação de gente, inclusive de muitos

turistas estrangeiros. Esse bar é todo português, “É uma casa portuguesa com

certeza”, diz um letreiro em frente a sua adega. É português em toda a sua

ambiência, desde as suas cores, até as figuras na parede, a prateleira de vidro

(composta por vinhos, galos, latas de sardinha, pratos e etc. - figura 21), as cores

do folder que apresenta os pratos do lado de fora (figura 20); tudo remete a

Portugal, inclusive os aventais dos garçons. Voltei uma quinta lá pelas 14h para

buscar o questionário, Zé tinha respondido! A casa estava com uma mesa grande

de clientes e outra com duas pessoas, e percebi que muitos dos que estavam ali

bebiam uma limonada, ou seja, também resolvi experimentar. Uma delícia, além

de ser servida em uma caneca de vidro grande, daquele estilo antigo que

ressaltava que o bar era patrimônio cultural. Outra mulher estava lá, juntamente

com a que tinha me recebido na primeira vez, e não me deixou pagar a limonada,

além de ter me dado dois cupons com uma gratuidade em relação a algo da casa

(taça de vinho, limonada ou bolinho de bacalhau), para mim e um acompanhante.

Como a limonada está nesse cupom imagino que, realmente, seja uma das

tradições da casa. O cupom ainda diz “Pratos saborosos a partir de R$21,90”. Ou

seja, considerando os preços da cidade do Rio de Janeiro como um todo e de

outros bares e botequins patrimônio cultural, esse valor mínimo não é caro.

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Figura 19: Entrada da Adega Flor de Figura 20: Folder cardápio da Adega Flor

Coimbra de Coimbra

Figura 21: Prateleira “portuguesa”

da Adega Flor de Coimbra

Cosmopolita (Centro)

Cheguei lá por volta das 14h de um sábado, é muito perto do Adega Flor

de Coimbra. O bar estava completamente vazio, o que me causou muita

estranheza, afinal, tinha acabado de sair de um muito perto que estava lotado. Um

homem mais velho que estava sentado me chamou a atenção, logo pensei que

fosse o dono, era o gerente. Um português de mais ou menos uns 60 anos que era

gerente do estabelecimento há uns 20 anos. No início ele se mostrou muito arredio

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a minha intenção da entrevista, disse que não responderia a questionário (se

tivesse que escrever) e não permitiria fotos, essa idéia não lhe agradava.

Perguntou, então, se havia a possibilidade de eu ler as questões e ele responder,

dessa forma ele iria tentar responder o que conseguisse. Aos poucos ele foi se

soltando, mas, eu não podia, sem querer, o chamar de dono, logo ele recrutava:

“gerente”. No final da entrevista voltou atrás e disse que, por eu ser muito

simpática, poderia tirar fotos do que eu quisesse, acho que o conquistei rs. E

depois que eu falei muito rapidamente da minha vida e de futuras pretensões,

comentou que eu deveria continuar meus estudos voltados para os bares e

botequim assim que acabasse esse em andamento. Segundo esse mesmo

português, a grande tradição do Cosmopolita é o Filé Oswaldo Aranha, cujo nome

foi dado em homenagem ao senador Oswaldo Aranha, representado no lugar por

um quadro que fica no interior do bar (figura 23). Notei a presença de dois

garçons lá dentro e, quando cheguei no bar, tinha um sentado/”jogado” em uma

das mesas do lado de fora. Também é um lugar com todo o jeito de restaurante.

Figura 22: Ambiente externo do Figura 23: O senador Oswaldo Aranha

Cosmopolita

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Figura 24: Prateleira de bebidas em cima do balcão

no Cosmopolita

OBS: Nesse momento posso, talvez, afirmar, que a escada de Selarón e a recente

morte do artista acabam por influenciar o público ao redor do Adega Flor de

Coimbra, já que este estabelecimento encontra-se na rua que leva a subida da

escada. Ou seja, a escada de Selarón, outro símbolo da cidade, movimenta o bar

que está bem ao seu lado, todavia, o outro há 100 metros – Cosmopolita, por sua

vez, se encontra vazio no mesmo horário.

Café Lamas (Flamengo)

Cheguei lá por volta das 15h de sábado. Lá resolvi almoçar com um

amigo. Sua entrada é relativamente estreita, mas, o estabelecimento se

“aprofunda” de forma significativa, e mais ao fundo fica o restaurante. A parte do

bar, que dá para a calçada, é a sua lanchonete e seu boteco, se assim posso dizer.

Possui umas três mesas na calçada, achei interessante um casal que comia com o

poodle praticamente sentado a mesa. Entre a lanchonete e o restaurante há um

pequeno ambiente, onde ficam os dois caixas (do restaurante e da lanchonete,

cada um mais próximo ao seu respectivo) e lá estão penduradas todos os “títulos”

ganhos pelo estabelecimento, revistas, guias e etc. Indo da lanchonete em direção

ao restaurante, ou seja, também nesse ambiente, há um portal que,

particularmente, me chamou a atenção por conta dos seus azulejos (disse meu

amigo que eles parecem ser portugueses – esse meu amigo morou dois anos em

Portugal – figura 27). Nesse portal há a frase: “Café Lamas, 139 anos de tradição.

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Eu e meu amigo fomos para o restaurante, estava muito cheio, tinha umas

três mesas vazias – o restaurante é grande, bem grande e subdividi-se em duas

parte, sendo a menor com ar-condicionado (foi o que me pareceu). Todos os

garçons, que eram muitos, vestiam um terno branco. Eu e meu amigo pedimos um

contra filé acompanhado a francesa, na verdade, meu amigo pediu, pois,

primeiramente, ele fez questão de escolher e, depois, pelo preço eu não pediria,

admito. O prato, que foi acompanhado por uma entrada de cinco bolinhos de

bacalhau mais quatro chopes sai R$130, 40. Voltei em uma sexta-feira às

13h30min na esperança de pegar o questionário, tinha combinado com Milton, já

que o mesmo não pode me atender naquele sábado movimentado. Cheguei e

Milton estava almoçando, ele pediu para que o esperasse acabar. O lugar estava

bem cheio, afinal, era hora de almoço. Fui conversar com Milton, muitíssimo

solícito por sinal, e ele foi preenchendo o questionário junto comigo, digo isso por

que ele me perguntava o que eu achava a respeito das respostas dele antes de

escrevê-las. Mas, foi muito bom, já que papeamos por volta de uns 30 / 40

minutos. Milton me disse que é filho do dono que adquiriu o Lamas em 1950, ou

seja, sua família já está ali há 63 anos, muito tempo (mais tempo, inclusive, do

que alguns dos bares e botequins patrimônio cultural). Já que a família de Milton

está com o estabelecimento desde 1950, foram eles os responsáveis em levar o

Lamas para o Flamengo, pois vale lembrar que em 1974 o Lamas saiu do Largo

do Machado por conta das obras do metrô. De acordo com Milton, se no Largo do

Machado a frente do botequim era dedicada à venda de frutas (tipo um pequeno

armazém), com a mudança para o Flamengo a família optou em, ao invés da

venda de frutas, contruir a lanchonete. Depois da conversa, Milton me mostrou

uma foto emoldurada (a qual estava lá atrás do restaurante – figura 26) do

primeiro Lamas e o atual foi feito para ser igual, na medida do possível, em

termos de ambiência, à aquele. As paredes espelhadas já tinham me chamado a

atenção, assim como imagino que aconteça com todo mundo, mas, ao olhar essa

foto percebi que, realmente, é tudo muito parecido. Até a disposição das mesas em

frente às paredes espelhadas, isso, Milton fez questão de ressaltar. Fora essa

materialidade, ele citou o cardápio, a tradição desse e, principalmente, dois pratos

que tem mais de 70 anos: Filé a Francesa e Filé Oswaldo Aranha (lembremos que

o português que conversou comigo no Cosmopolita disse que foi no seu bar que

esse prato surgiu. Milton disse que não tem muita certeza disso). O cardápio do

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Lamas impressiona tamanha a sua variedade, é enorme. Possui pratos / refeições

caríssimas, a exemplo do valor do meu almoço no sábado, até porções, sanduíches

e petiscos mais em conta, R$11,00 / 15,00 / 20,00 / 30,00. Algumas meias porções

também apresentam esse valor. Ah, dentre todo o papo que batemos, citei que

tinha lido em reportagens que os bares e botequins patrimônio tinham direito a

isenção de IPTU, e ele disse não saber disso, mas, que seria muito interessante ao

bar já que pagam trinta e cinco mil de IPTU anuais. Como bem argumentou

Milton, o Lamas pode até não ser o restaurante mais bonito, porém, sem dúvida é

um dos mais tradicionais da cidade. Pelo menos, o mais antigo ele é. É a

manutenção dessas tradições que ele julga ser fundamental para a permanência do

Lamas. Ah, dizia a placa da prefeitura, em relação ao Lamas; “Mais antigo bar da

cidade, aberto em 1974 com vida e peso na história do largo do Machado.

Tradicional ponto de encontro de intelectuais, políticos, escritores e músicos”.

Figura 25: Lamas atual Figura 26: Foto do Lamas original

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Figura 27: Passagem da lanchonete para

o ambiente do restaurante no Lamas

Armazém Cardosão (Laranjeiras)

Cheguei por volta das 16h / 16h15min de sábado. Não conhecia o lugar,

foi uma grande surpresa. É bar, é botequim e é armazém, é um lugar único em

relação a todos os bares e botequins que eu conheci. Fica numa rua “escondida”

de Laranjeiras e, sendo assim, é passível de se entender quando as pessoas falam

“não, nunca ouvi falar” ou então “não, nunca fui lá”. Tendo a crer que o bairro de

Laranjeiras seja realmente seu maior conhecedor. Meu amigo seguiu comigo do

Lamas rumo ao Cardosão, e ele, como morador de Laranjeiras, desde criança,

ainda acrescentou que aquele “pedaço” de Laranjeiras tem ares mesmo de uma

comunidade! Estava cheio o estabelecimento, aliás, o armazém fica situado em

um local muito agradável, uma das suas laterais está em uma rua sem saída, que

mais lembra uma vila (figura 29). Pelo que percebi, sábado é dia de feijoada,

muitos dos presentes lá a pediam, esse meu amigo já tinha me alertado desse fato!

Outra amiga de Laranjeiras, por outro lado, assim que soube que o Cardosão era

patrimônio disse: “ele tem as melhores empadas”. É um lugar muito acolhedor, a

dinâmica interna dele é bem interessante por ele ainda ser um armazém. Os seus

três donos / sócios (duas mulheres e um homem) estavam atrás do balcão, dava

pra notar que participavam ativamente, uma delas, quando fui entregar o

questionário, lavava os copos de cerveja. A gerente, uma mulher mais nova,

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ficava na circulação entre lado de fora (no meio das mesas) e atrás do balcão.

Havia lá uns dois ou três garçons, mas, a gerente também ajudava nessa atividade.

O banheiro, muito simples, estava absolutamente limpo. As mesas (umas 10, se

não me engano), ficam todas localizadas do lado de fora (figura 29). Seu interior é

composto pelo balcão, dois conjuntos de prateleiras mais as geladeiras / freezers e

os banheiros (esse conjunto pode ser visto na figura 26), fora uma dispensa (notei

muitas bebidas nela) ao lado dos banheiros. De maneira geral, todo o

estabelecimento em si me encantou, ele é todo muito colorido, mas, o seu caráter

ainda de armazém, sem dúvida, foi o que mais me chamou a atenção (figura 30).

Como bem disse o meu amigo, que estava comigo lá, é muito compreensível se

entender a declaração do Armazém Cardosão enquanto patrimônio cultural da

cidade do Rio de janeiro. Tudo bem que isso é a opinião dele, mas, depois que

conheci o lugar, tendo a concordar.

Figura 28: Interior do Armazém Figura 29: ambiente externo do Armazém

Cardosão Cardosão

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Figura 30: Prateleiras características de um armazém

no Armazém Cardosão

Restaurante 28 (Centro – perto do Morro da Conceição)

Cheguei as 12h53min de uma segunda-feira. , a localização do Restaurante

28 é muito ruim, o local onde ele se encontra, perto da Central e do Morro da

Conceição, está super abandonado, mal tratado; além de ser perigoso, ainda mais

dependendo da hora a ser visitado. Em minha opinião, é difícil alguém ter o

interesse de passear por aquela região da cidade. O estabelecimento estava vazio,

com aproximadamente três mesas ocupadas, sendo que o mesmo é grande (figura

33). Também segue o estilo restaurante. Por dentro, em termos da sua ambiência,

não achei nada demais, dentre todos que vi, acho que é o único que desgostei por

não ter me cativado (figura 33). Pela “placa” da prefeitura, esse lugar, aberto em

1910, foi ponto de encontro de estivadores que aguardavam a chegada dos navios

do cais. Segundo a pessoa com a qual deixei o questionário, materialmente

falando, a grande tradição do bar é a tabela de preços que tem mais de 50 anos

(figura 31). Todavia, na entrada do bar, no vidro que dá para a rua, está escrito:

Restaurante 28, o rei do cabrito (figura 30). Ou seja, eis aí sua outra grande

tradição! Voltei em uma quinta, por volta de 12h, para pegar o questionário que

ainda não tinha sido preenchido, e essa quinta foi muito mais proveitosa.

Conversei com os dois irmãos, que estão ali todo os dias a frente do negócio. Um

parece ser mais administrador (segundo o irmão está ali há 55 anos) e o outro

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parece ter como função principal ajudar como garçom (trabalha lá há mais de 40

anos e tem sotaque de português muito mais forte que o outro, pelo menos assim

percebi, já que ele fala mais e ficou conversando comigo). Com esse último,

consegui preencher o questionário do jeito dele, ou melhor, aos poucos, com

respostas curtas, ainda assim, ele é uma pessoa muito simpática! Mais uma vez o

restaurante se encontrava bastante vazio, somente uma mesa ocupada. Fui

convidada pelos dois a voltar para almoçar.

Figura 31: A tabela de preços do Figura 32: Entrada do Restaurante 28

Restaurante 28

Figura 33: Interior do Restaurante 28

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Bar do Jóia (Centro)

Cheguei era por volta de 13h55 de segunda-feira, admito que me perdi em

meio a tantas ruas ali pela Uruguaiana, em torno da Central. Estava vazio, tinha

uma mesa composta por cinco homens, dentre eles o atual administrador. Logo

que entrei, me deparei com uma senhora, que, depois, fui descobrir se chamava

dona Alayde (um amor de senhora, muito simples). Assim que entrei, à dona

Alayde fui explicar as minhas pretensões, nesse momento, a mesa toda que estava

reunida parou, todos se interessaram. Pronto, fiquei por muito tempo com todos

eles. Bacana era o assunto principal da mesa (que tinha desde um grande

“contribuidor”, um advogado, dois amigos e, posteriormente, foi aumentada com

a chegada de um senhor fofo, que parecia um daqueles fregueses de todo o

sempre, todos o conheciam): a festa de São Jorge que estava sendo organizada por

um “desses amigos” (no fundo, todos ali eram amigos, isso ficou muito claro), um

Agente da Fazenda do governo do estado do Rio de Janeiro (sei da sua profissão,

pois, o próprio deixou um cartão comigo). Foi esse mesmo homem, inclusive,

que fez questão de me pagar almoço. Dona Alayde é a única atendente do

botequim, se assim posso dizer. Ele não possui garçom (como fazia questão de

ressaltar o administrador) e, fora ela, há duas cozinheiras de uma cozinha tão

simples assim como todo o restante do bar. Diziam os homens da mesa: “esse é o

único bar que toca música clássica” (e é verdade, pelo menos naquele momento

era esse o som ambiente). As mesas do Jóia são todas iguais e de madeira, já suas

cadeiras, algumas de madeira outras de plástico; não há preocupação com essa

combinação mesa/cadeira (figura 35). Do seu chão, que parece ser o original, há

pouca coisa (figura 36) e suas paredes de tijolos expostos chamam a atenção. Seu

cardápio é um dos mais simples que vi, pelo menos, em se tratando prato do dia,

onde os preços não chegavam a R$20,00 já se contando a bebida. Ah, é um bar de

admiradores do time Botafogo e de mulheres, uma das suas paredes mescla um

pôster do time com vários outros de mulheres nuas! (figura 34) Em outra parede

está a pintura do verdadeiro Jóia, assim desconfio. Lá comi arroz, feijão, frango e

batata cozida (R$14,00) como pode ser visto na figura 37 e, o advogado outra

mesa, prestei atenção quando ele falou, optou pela carne assada (R$17,00). Soube

que ele era advogado, pois o dono me deu um cd de samba de autoria do próprio

(inclusive as letras), e quando ele me deu esse presente a mesa interia retrucou que

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ninguém dali havia ganhado tal mimo (amigos do dia-a-dia do Bar do Jóia). Nesse

momento um dos homens da mesa disse, que o advogado presente podia me

defender caso eu achasse que estava sofrendo assédio! Estava eu ali, com uma

mesa cheia de homem, que bebiam desde cerveja a vinho, que falavam palavrão,

decidiam a festa de São Jorge e, me tratavam da melhor maneira possível. Posso

dizer que eu estava muito a vontade. Toda essa simplicidade, em todos os

sentidos, desse estabelecimento aberto em 1909, me encantou. Quando

inaugurado se chamava Café e Bar do Paiva, adotando na década de 1980 o atual

nome, Bar do Jóia. O Bar do Jóia é uma mistura intensa de simplicidade com

“desorganização” e nenhuma vontade de deixar de assim ser, e isso que me

encantou. De lá, peguei carona com o organizador da festa de São Jorge e outro

“amigo” da mesa em direção ao Armazém do Senado. O próximo destino também

era de interesse do tal Agente da Fazenda, lá ele deixaria camisas da festa para

serem vendidas (a minha, assim como o cd por parte do outro, foi presente, na

verdade, tanto a camisa quanto a entrada para a festa). Voltei ao Jóia em uma

quinta para pegar o questionário, não tive sucesso, Marcio ficou de me mandar por

email. Mais uma vez, por lá almocei, o lugar estava cheio, com rotatividade.

Rotatividade essa de fregueses fixos, isso fica claro. Há ali uma intimidade entre

fregueses, dona Alayde e os dois “contribuidores” (hoje estava lá mais um, que

chegou na hora do almoço para ajudar, ele vestia uma camisa de firma de

informática, ou seja, acredito que ele realize dupla função – Bar do Jóia e outro

emprego). Dessa vez lá havia um homem / freguês que quando eu cheguei me

ofereceu uma bebida. Esse mesmo homem chamava a cozinheira e roía o osso da

galinha velha ao molho pardo que comia para mostrar o quanto estava bom. Sim,

ele falava galinha velha e não frango. Depois disso lambia os dedos, literalmente.

Dizia ainda para o outro “contribuidor” que que traria azeite de casa para

complementar o frasco de pimentas, foi quando o dono respondeu: “pode trazer,

eu chego aqui e não tenho tempo para isso”. Dona Alayde, mais uma vez, estava

lá super dedicada naquilo que podia fazer fisicamente. Lá os fregueses ajudam a

arrumar a mesa, levam os pratos e potes sujos depois da refeição até a “janela”

que dá para a cozinha, coisas do tipo! Depois que obtive a resposta de um desses

“contribuidores” soube que dona Alayde á viúva do Sr. Jóia e vem mantendo a

casa com muita dificuldade. Por ter descoberto que dona Alayde é a pessoa central

do Bar do Jóia de uns anos para cá, voltei a este relato e utilizei a palavra

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“contribuidores”, pois me parece que os dois são os que mais ajudam dona

Alayde, todavia, não sei nada além disso!

Figura 34: Variados pôsteres no Bar do Jóia Figura 35: Do interior para a rua - Bar

do Jóia

Figura 36: Os azulejos do chão do Jóia Figura 37: Comida simples e gostosa no Jóia

Armazém do Senado (Centro)

Chegamos (eu e meus amigos do bar do Jóia) no Armazém do Senado lá

pelas 15h05min da mesma segunda-feira. Que lugar incrível, uma outra surpresa

tão agradável. Também não estava cheio, havia uns seis / sete homens mais velhos

espalhados pelo estabelecimento, a mesa que estava bem abaixo de São Jorge era

a que aglomerava três pessoas! Todos os homens que ali estavam também tinham

toda a cara de clientes fixos, aqueles de sempre. Os meus acompanhantes do Bar

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do Jóia conheciam tudo e todos, também eram íntimos desse botequim. Fui, por

eles, apresentada ao Henrique (estava atrás do balcão), atual administrador, com o

qual deixei o questionário para pegar dois dias depois. Todavia, e considero esse o

momento mais incrível de todas as visitas, fui levada até seu Antônio, o herdeiro

mais antigo desse estabelecimento. Um português de quase 90 anos que fica

sentado no sentido oposto de São Jorge, sua cadeira, pelo menos, nesse dia, tinha

vista direta para o santo. Seu Antõnio não é um senhor de muitas palavras, não sei

se agora por conta da idade, mas, nele dei dois beijinhos e com ele tirei uma foto;

dei sorte, pois, ele ainda está lá tomando conta do seu lindo armazém (figura 41).

Até quando? Acho que não por muito tempo! Como ele não era de muitas

palavras e tinha um ar de cansaço, não insisti em um bate-papo. Quanto à foto,

bem, não fui eu e seu Antônio somente. Meu novo amigo, organizador da festa de

São Jorge, fez questão de marcar presença no registro que, por sinal, ficou ótimo.

Será uma ótima recordação que terei dessa experiência. O Armazém do Senado,

com seu teto todo de madeira, suporte de duas bandeiras – Brasil e Portugal

(figura 38), ainda é um armazém. Nele pode ser encontrado desde produtos de

limpeza, chinelo Havainas (não desses estilos mais modernosos, frisa um dos

meus amigos do Jóia, mas sim aquele primeiro modelo mais simples de

trabalhador rs), biscoitos, azeites, óleo de cozinha, enlatados e etc (figura 39).

Sem contar as suas prateleiras compostas de bebidas, inclusive, aqueles “galões”

de vinho, também para a venda. Por esse lugar também fiquei encantada e,

principalmente, pelo seu Antõnio. Voltei lá numa quinta, por volta de 11h. O

questionário estava prontinho, Henrique me entregou! O lugar estava bem vazio,

mas, seu Antônio estava lá na sua cadeira olhando finanças / contas, pelo menos

foi o que pareceu. Somente percebi a presença de fregueses na mesa em baixo de

São Jorge (figura 40).

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Figura 38: Conexão Brasil – Portugal no Armazém Figura 39: Parte armazém do

do Senado Armazém do Senado

Figura 40: Destaque para São Jorge Figura 41: O Melhor momento de todas

no Armazém do Senado as visitas aos bares

Nova Capela (Centro)

Cheguei lá pelas 16h de segunda-feira. Contei da minha intenção para o

homem que recepcionava na porta (pelo qual fui muito bem atendida), todavia, ele

ficou de repassar o questionário para o Aires Filho, atual dono / administrador do

Nova Capela. E assim o fez, pois, no dia em que retornei, encontrei o Aires Filho

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e ele havia respondido! O bar estava vazio, duas mesas ocupadas, contanto, que

não tinha nenhum garçom circulando pelo ambiente, todavia, bem notei um

sentado lendo o jornal, todo pomposo no seu terno branco. Aliás, em alguns

desses bares e botequins tradicionais (a exemplo do Lamas, Nova Capela, Bar

Brasil, Bar Luiz), o terno branco, com suas especificidades e diferenciações de um

bar para o outro, é a vestimenta dos garçons. Também com ares de restaurante, é

um espaço grande, de muitas mesas, por sinal, muito bem arrumadas (figura 42).

Nesse sentido, eis aí a diferença no quesito organização (e higiene) em relação,

por exemplo, ao Bar do Jóia. É outro lugar lindo, sendo que seus azulejos,

presentes em todas as paredes, chamam muito a atenção, destoam (figura 43).

Outra coisa muito diferente são uns círculos cor de cerâmica que ficam grudados

no teto, na verdade, são bem estranhos (figura 42). Assim como a grande maioria,

possui quadros com as conquistas do estabelecimento no contexto da cidade do

Rio de Janeiro. Seu balcão é enorme, em formato da letra ele. Suas prateleiras,

com as mais diversas bebidas, também são marcantes, inclusive, elas são

espelhadas! A vitrine do balcão abriga grandes pedaços de carne, fora frutas e

mais bebidas (figura 44). Segundo a placa da prefeitura, na porta de entrada do

restaurante, sua origem remete ao antigo Capela (na Lapa) que fora destruído por

um incêndio em 1903, sendo reinaugurado, já com o nome Nova Capela em outro

lugar da Lapa, na rua Mem de Sá (figura 45). Quando retornei para buscar o

questionário, numa terça-feira lá pelas 10h45min lá estava Aires Filho e um

senhor, que parecia ser seu pai, de idade já bem avançada, mas, que ainda estava

ali a participar do dia a dia do seu estabelecimento.

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Figura 42: Interior do Nova Capela Figura 43: Os azulejos do Nova

Capela

Figura 44: Um dos balcões do Nova Capela Figura 45: A entrada do Nova Capela

Bar Luiz (Centro)

Quando cheguei estava vazio, era em torno de 16h30min de uma segunda-

feira. Em termos de idade, um grande clássico, já que foi fundado em 1887 (figura

46). É um bar de origem alemã. Um lugar bem grande também com ares de

restaurante. Mesas e cadeiras de madeira muito bem organizadas, paredes com a

exposição dos seus quadros (figura 47). Diz a placa da prefeitura que lá foi o

primeiro lugar a servir chope, aliás, a história do chope na cidade do Rio de

Janeiro possui vínculo direto com esse estabelecimento, conforme me contou

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Emerson, que está no dia a dia do bar há 16 anos, mas, não faz ele parte da quarta

geração da família que deu origem ao Bar Luiz. Pelo que entendi, Emerson já

morou e trabalhou na Europa nesse ramo, não exatamente o mesmo que exerce

atualmente, e então foi contratado pelos donos da casa. Durante minha conversa

com Emerson, muito solicito por sinal (sentou a mesa comigo e papeamos até que

por um bom tempo, até por que ele gosta de falar), ele faz questão de mencionar a

qualidade do serviço alemão. E um ponto é de extrema relevância: de acordo com

ele a tradição da casa não está na herança familiar, mas sim, na herança dos

funcionários. Ou seja, ali está a quarta geração de funcionários, geração essa, que

para Emerson, não passa dos próximos dez anos; pois, os filhos dos atuais

funcionários já não querem trabalhar nesse ramo, ou então, querem estudar. Fora

que tais familiares não se deslocam mais de outros estados para trabalharem como

garçons e afins, assim como fizeram seus pais, tios, avós e etc. A não “herança”

dos funcionários pode levar, dessa forma, a perda de uma das principais tradições

do bar. Ainda segundo Emerson, o prato mais tradicional é o Alemão Completo,

fora a salada de batata e o rosbife; ambos fizeram a casa chegar ao que ela é hoje,

sendo que esses pratos são diferenciais, são identidades do Bar Luiz, afirmou ele.

Como não poderiam deixar de aderir a outros sabores, o bolinho de bacalhau

também ganha destaque na fala de Emerson. Voltando ao chope, Emerson

ressaltou que sim, eis aí outro ponto que não pode ser esquecido ao falar do bar

Luiz, sendo o chope escuro outra identidade do estabelecimento. Emerson disse

que o Bar Luiz foi o primeiro a ter o barril de carvalho de 100 liltos, que ali

estagiaram funcionários da Brahma. Ah, não resisti e fotografei o banheiro. Pelo

menos no feminino, apesar do mal cheiro, azulejos e pia se destacam, são bem

bonitos; assim como o hall dos banheiros feminino e masculino (figura 49). O

interior do Bar Luiz, em termos de ambiência, é menos chamativo, menos

colorido, sendo seu balcão também nesses “moldes” (figura 48). Não notei, por

exemplo, as prateleiras de garrafas, típicas dos bares e botequins tradicionais;

como, lembrando agora, também não vi no Restaurante 28. Enfim, é um lugar de

muita história, que merece ser conhecido e visitado. Todavia, ainda prefiro

aqueles como Armazém Cardosão, Adega Pérola, Bar do Jóia, Armazém do

Senado, Casa Paladino, ou seja, mais coloridos. Emerson ficou de mandar o

questionário por email

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Figura 46: Placa na porta de entrada Figura 47: Interior do Bar Luiz

do Bar Luiz

Figura 48: O único balcão do Bar Luiz Figura 49: Hall dos banheiros no Bar Luiz

Casa Villarino (Centro)

Cheguei eram 17h30min de segunda-feira. Assim que você entra tem a

sensação de que não há lugar parecido no Rio de Janeiro, diria que é o bar e

botequim tradicional mais sofisticado de todos. Organização e higiene impecável.

Sua ambiência, composta pelas milhares de garrafas nas prateleiras e muitos

quadros pelas paredes (que contam toda a história do bar através das suas fotos,

pôsteres, recordações materiais como contratos e poesias), é única. É lindo, apesar

de, para mim, ser extremamente chique para ser chamado de botequim (parte

dessa ambiência está na figura 53). Pode ser um bar / restaurante, mas, se eu fosse

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qualificá-lo, diria que é um armazém de muito luxo, uma delicatessen de classe A.

Um armazém muitíssimo organizado que vende comidas, quitutes e bebidas os

quais parecem ser bem caros (nacionais e internacionais), não olhei o cardápio.

Fui muito bem recebida por Torres, um funcionário com 33 anos de casa. Disse-

me ele que não poderia responder minhas perguntas, que preferia que um dos seus

donos (herdeiros familiares do lugar) o fizesse e, um pouco antes de eu ir embora

chegou a esposa de um desses donos, que pelo visto fica ali a partir das 11h da

manhã, foi o que a mesma me disse. Ela ficou encarregada de responder o

questionário. Quando cheguei, o bar tinha somente um homem mais velho

bebendo no balcão, mas não pense você que é qualquer balcão, é uma coisa linda.

Só vendo pessoalmente. O balcão da para a rua, o bar está localizado em uma

esquina, assim, há duas entradas que te levam ao balcão. A parte composta pelas

mesas é em outro ambiente. Todas as mesas de madeira, pé fino e tampo de

mármore branco e, suas cadeiras, de madeira com acento e encosto vermelho

(figuras 51 e 53). Da metade para baixo as paredes são de madeira bem escura. O

chão, disse Torres, é original e não pode ser trocado. A Casa Villarino também

carrega consigo a história da cidade do Rio de Janeiro: a história dos seus

intelectuais (figura 52), tanto dos grandes artistas nacionais e internacionais,

quanto dos políticos cariocas e nacionais, quanto de funcionários de empresas do

alto escalão (a exemplo de Vale, Globo), quanto advogados mais prestigiados da

cidade; é esse o tipo de frequentador (trabalhadores da justiça e economia).

Contanto que disse Torres que quinta e sexta são os dias de maiores movimentos,

“nesses dias da semana os advogados estão fechando seus processos, a cidade

está, nesse sentido, sua semana”, frisou ele (não exatamente com essas palavras).

Como diz uma reportagem enquadrada pela casa e exposta em uma de suas

parede: “Casa Villarino, ponto de encontro de intelectuais”. Torres me mostrou

todas as fotos enquadradas e espalhadas pela parede, e são muitas. Sabia ele o

nome de todas as pessoas em cada foto, se esqueceu um ou dois, foi muito. A cada

foto se percebe o nível do público desse lugar. Foi na Casa Villarino Tom Jobim

foi apresentado a Vinicius de Moraes para musicar a peça Orfeu da Conceição,

desse fato o lugar se apropria com todo o orgulho (figura 50). A única parede que

não possui quadros é a que, em toda sua dimensão, contém uma foto de Vinicius

de Moraes sentado à mesa com amigos e seu filho (pelo que me recordo). Era ali

que ele gostava de ficar sentado, ali era sua mesa (figura 51), disse Torres.

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Observa-se que na foto não há comida na mesa e, segundo Torres,Vinicius de

Moraes assim não o permitia, se tivesse comida era a mesma coisa que ofender o

diabo. Diz-se que foi nesse lugar, que pela primeira vez, se ouviu o termo Bossa

Nova. O bar expõe, por exemplo, um poema escrito por um de seus intelectuais ao

lugar dedicado e o primeiro (ou um dos primeiros) contratos do estabelecimento.

Quanto ao contrato, Torres me fez perceber que o nome dos funcionários (quatro

no total, sendo dois espanhóis) apareciam antes do nome dos donos. Para ele isso

é muito representativo, pois, normalmente o oposto é feito. Esse fato simboliza

sim a importância dos funcionários na época da sua fundação, em 1953. Ou seja,

se comparado a outros dos botequins, como Bar Luiz, Restaurante 28, Bar do Jóia,

Café Lamas, é um “moço bar”. Voltei para pegar o questionário em uma quinta-

feira, lá pelas 14h45min. Ao atravessar a rua observei que um grupo de homens

novos e super engravatados saiam de lá. Ainda estava no almoço dos grandes

executivos, advogados e afins. Consegui as respostas

Figura 50: O encontro de Vinicius de Figura 51: O lugar cativo de Vinicius de

Moraes e Tom Jobim Moraes

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Figura 52: Uma das muitas reportagens Figura 53: Interior da Casa Villarino

sobre a Casa Villarino

OBS: Se no Restaurante 28, por exemplo, os estivadores / trabalhadores do porto

se sociabilizavam, na Casa Villarino a sociabilidade se dava pela nata da

sociedade. Um estabelecimento não é melhor que o outro, o que quero ressaltar é

que ambos fazem parte da cidade do Rio de Janeiro, seja pela história dos seus

trabalhadores, seja pela história dos seus intelectuais. Afinal, nossa cidade é

constituída de todas as classes e os bares e botequins tradicionais, historicamente,

atenderam todas elas.

Bar Bip Bip (Copacabana)

Cheguei ao bar eram 20h30min de uma terça-feira.. O bar não dá

diretamente para nenhuma das famosas ruas de Copacabana (Nossa Senhora de

Copacabana e Barata Ribeiro), estando ele situado em um local “menos a mostra”,

que, talvez, possa ser chamado de praça. O Bip Bip é um bar muito pequeno

(menor que ele só a Casa da Cachaça). Assim que cheguei me deparei com um

grupo de sete pessoas (homens e mulheres, de idades variadas) tocando samba147

/

chorinho dentro do estabelecimento, que ocupavam a única única mesa do interior

147

Bar e samba que ganham destaque na reportagem do anexo 7.6.

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do estabelecimento Parecia um grupo de amigos que ali se reunia para tocar /

ensaiar, pois, logo depois que eu cheguei um homem sentou-se a mesa, foi o

último músico que eu vi a adentrar o grupo (não posso dizer se depois chegou

mais algum). O som estava muito bom, foi bem bacana poder presenciar esse

momento. Fora a mesa de músicos de dentro, duas mesas eram ocupadas do lado

de fora, uma delas pelo dono do bar e amigos. Um homem que estava em pé ao

meu lado me falou que Alfredo, o dono (um senhor com seus 60 anos e pouco, me

pareceu), estava naquela mesa. Quando olhei reparei que ao lado do Alfredo havia

uma mesinha com um telefone (no qual ele falava quando cheguei) e muitas

notinhas, assim me pareceu. Percebi também que na mesa em que ele estava

sentado, tinha um bloco onde ele fazia anotações, realizava contas, também foi o

que me pareceu. Nessa mesma mesa havia tinha um pote com muitas moedas. O

bar não aceita pagamento em cartão, somente dinheiro, desta forma, naquele

pequeno pote, Alfredo deve reunir as moedas que recebe pelo que vende. Não tem

garçom (não vi nenhum pelo menos) e, pelo que percebi, cada pessoa que está no

bar acaba incorporando tal função, já que os clientes vão até o fundo do

estabelecimento, pegam a bebida que desejam, por exemplo, e na volta mostram

para seu Alfredo. Todas as mesas do bar são de madeira com uma toalha azul, as

cadeiras também são de madeira. Percebe-se que todo mundo que chega vai dar

um beijo / abraço no dono do bar. Das três pessoas que observei chegando, todos

foram até Alfredo e lhe deram um beijo. Incrivelmente o bar estava silencioso,

pois, as pessoas estavam ali a admirar o som que vinha lá de dentro. Alguns

transeuntes paravam também para ouvir. Enquanto estive por lá, passaram dois

tipos de ambulantes, um vendendo aquele famoso amendoim tostado enrolado no

papel branco e outro carregando seu painel com pulseiras e afins. Papéis

pendurados na entrada e no interior do estabelecimento informavam os petiscos

oferecidos pelo bar: salame / quibe / queijo / azeitona / bolinho de bacalhau.

Quanto ao seu interior, não há dúvida que esse, também, é um bar de

botafoguenses (pôster, símbolos do clube, faixa pendurada). Assim como reparei a

presença de imagens de Dilma e Lula, uma foto de cada, ou seja, deve ser petista.

A plaquinha da prefeitura afirmava a data da sua fundação, 1968, e afirmava,

também, que ali era um dos berços do samba carioca, da antiga e da nova geração

(a figura 54 ilustra esse apreço pelo samba). Duas outras placas me chamaram a

atenção, respectivamente, elas diziam: “44 anos a serviço do porre e da amizade”

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e “Fundado em 13-12-1968 em homenagem á mocidade brasileira”. Nas suas duas

paredes laterais há, além dos símbolos botafoguenses, muitos quadrinhos

pendurados (figuras 54 e 55). Para refrescar, nos dias mais quentes, o

estabelecimento possui dois pequenos ventiladores daqueles que se coloca em

cima de mesa. Infelizmente, percebi que não conseguiria ter acesso ao dono

Alfredo nessa terça-feira, ele estava lá ocupado com suas pendências e entretido

com a mesa. Também infelizmente, a bateria do meu celular tinha acabado e não

pude tirar fotos, portanto, recorro aqui à fotos da internet..

Figura 54: Google Imagens, Bar Bip Bip Figura 55: Google Imagens, Bar Bip Bip

(acesso em 20 de abril de 2013) (acesso em 20 de abril de 2013)

Casa Paladino (Centro)

Cheguei antes das 10h da manhã de uma quinta-feira. Já tinha ido outro dia

à tarde, mas, me falaram que Ricardo, o dono / administrador, só está lá pela

manhã. A manhã de quinta que eu escolhi retornar o Ricardo decidiu não escolher

para estar lá, infelizmente. Segunda ida sem conseguir contato com ele, e no Bar

do Jóia “meus amigos” falaram que ele é uma pessoa super tranquila e solícita.

Bem, depois de duas tentativas de um primeiro contato com o dono, desisti de

voltar lá. Na segunda visita, pelo menos, tirei fotos da Casa Paladino. O lugar

estava vazio. O bom de você encontrar o lugar vazio é poder vê-lo como um todo,

e a Casa Paladino é ainda, também, um armazém. “Um dos lugares mais antigos

da cidade, no mesmo local desde sua fundação em 1908. Aqui, permanece o

ambiente do botequim em sua origem, junto a um armazém”, diz a placa azul

arredondada da prefeitura. O estabelecimento é lindo, muito bonito mesmo, único!

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Metade da casa é destinada a venda de produtos (figuras 56 e 58 e a outra a mesas

e cadeiras (figura 57). Por todo o bar há milhares de garrafas de bebidas muito

bem arrumadas tanto atrás do balcão na prateleira de madeira escura de bebidas

(ainda protegidas por vidro e que encanta), quanto na parte dedicada ao armazém.

As prateleiras de chão do armazém, além das muitas bebidas, oferecem,

principalmente, comida. Assim como percebi na Casa Villarino, a Casa Paladino

destina grande parte das suas prateleiras e venda de vinhos. As paredes, quando

não possuem nenhuma prateleira, são compostas por azulejos de tom claro (bege,

amarelo talvez, perto dessas tonalidades). As mesas e cadeiras também são de

madeira escura, sendo as mesas cobertas por toalhas amarelas (assim considero

aquela cor). Acaba que as toalhas combinam com os azulejos. Mais voltado para

uma das calçadas estão expostos os produtos refrigerados, naqueles balcões de aço

com vidro à frente. Mais uma vez, noto a presença de muitos salames e presuntos

inteiros, por exemplo (figura 59). Sem dúvida, a Casa Paladino merece ser um

patrimônio cultural da cidade.

Figura 56: Bebidas e comidas no balcão Figura 57: Parte das mesas e cadeiras

da Casa Paladino na Casa Paladino

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Figura 58: Parte Interior da Casa Figura 59: Parte do balcão que dá

Paladino para a rua – Casa Paladino

Bar Brasil (Lapa)

Cheguei eram 10h30min de uma quinta-feira. Estavam arrumando a casa

quando bati na porta. Falei com um dos funcionários, expliquei a situação e ele

me deixou entrar, e me apresentou a seu José, um dos donos (eu já tinha ido ao

Bar Brasil em uma segunda-feira a tarde e tinha sido atendida por um garçom de

bastante idade, penso que já devia trabalhar lá a tempos. Todavia, esse mesmo

garçom pediu para que eu voltasse outro dia de manhã, já que a pessoa que ficava

lá no período da tarde não era de muitas palavras). Fora o funcionário que me

atendeu, havia mais dois ajudando na arrumação, enquanto seu José verificava

contas (eu acho). Todos estavam se camisa, inclusive, seu José. O que falar de seu

José? Uma pessoa muito simpática e solicita (que já deve ter os seus setenta e

poucos anos), ainda bem que eu retornei no período da manhã! Disse ele que

entendia minha necessidade da pesquisa, pois o filho que o ajuda no Bar Brasil é

formado (segundo ele, iria dar o questionário para o filho responder, por isso

pediu que eu retornasse outro dia para buscá-lo). Não sei eu, porém, se é esse filho

que fica na parte da tarde, o tal que não gosta de muito falar. Só sei que seu José

adora um bate-papo, se eu tivesse mais tempo ficaria ali papeando mais com ele.

Seu José disse que estava no dia a dia do Bar Brasil há 56 anos. “Tenho certeza

que o tempo que estou aqui é mais velho que seu pai”, ressaltou. E sim, é verdade!

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Quando citei que o Bar da Cachaça, ali ao lado, logo depois do Nova capela,

também era patrimônio, ele lembrou do primeiro dono do Bar da Cachaça, o qual

chamou de doidão: “minha filha, ele comprava cachaça por todo esse Brasil”,

lembrou Seu José. O Bar Brasil é também muito bonito, tem um espaço grande

com duas entradas (uma para a rua Mem de Sá – figura 61 - e outra para a rua do

Lavradio) e tende mais a restaurante (figura 61). Seu balcão é um lindo balcão de

madeira. Na vitrine do balcão, onde ficam expostas as comidas que precisam de

refrigeração, havia salames, presuntos, queijos, enlatados (figura 63). O balcão e

“seus fundos” formam um conjunto bonito, aquela tradição mesmo de botequim

com prateleiras de garrafas atrás cheias de bebidas (bem enfileiradas – figura 62).

Logo acima dessa prateleira, a parede é toda preenchida por quadros que mostram

os títulos do estabelecimento. Enquanto essa parede situada atrás do balcão

concentra os títulos do bar, as outras apresentam quadros grandes com ilustrações

do Rio antigo. Suas mesas e cadeiras são de madeira escura e todas as mesas

forradas por uma toalha de pano branco, sendo que essa tolha, pelo menos para

seu José, é algo muito tradicional. Fora que ele dizia que não tinha jeito da mesa

não ser forrada, já que o barulho dos pratos e talheres na mesa é horrível. Além do

balcão, outro móvel me chamou a atenção, não consegui distinguir se era uma

antiga geladeira de madeira ou um armário de madeira. Parece-me ser uma antiga

geladeira. Assim como o Bar Luiz, o Bar Brasil é de origem alemã, uma das suas

paredes possui um folder pendurado afirmando que ali é vendido um crocante

croquete alemão. No dia em que retornei para buscar o questionário, uma terça de

manhã (um pouco depois das 10h), lá estava seu José sem camisa ajudando na

organização do Bar Brasil e, juntamente com ele, seu filho Gustavo (um homem

que parecia ter seus trinta, trinta e poucos anos). Foi Gustavo que respondeu as

perguntas! Nesse dia, seu José logo apontou para a primeira resposta onde o filho

disse que o Bar Brasil, por ser um bar de família, representa tudo o que a família

viveu até hoje, ou melhor, a história da família está diretamente ligada ao bar.

Nesse momento, seu José disse que começou a trabalhar no Bar Brasil quando

tinha dezoito anos como faxineiro, isso lá na década de 1950 (hoje é dono e tem

seu filho como sócio). Como o bar era de uma família alemã, lá aprendeu o

idioma, assim como fizeram as duas negras que trabalhavam como cozinheiras e

eram analfabetas, mas, que dominavam o alemão como os próprios originários de

lá.

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Figura 60: A “geladeira” do Bar Brasil Figura 61: Interior do Bar Brasil que dá

para a rua Mem de Sá

Figura 62: O balcão do Bar Brasil Figura 63: As comidas refrigeradas no

balcão do Bar Brasil

Armazém São Thiago (antigo Bar do Gomes) (Santa Teresa)

Cheguei eram 14h de uma quinta-feira. O dono, Ricardo (que possui outro

estabelecimento logo à frente do Armazém São Thiago, do outro lado da rua), não

estava lá. Pelo que entendi de uma mulher que desceu de ônibus comigo, Ricardo

é filho de Jesus, que juntamente ao Gomes, tomavam conta do antigo Bar do

Gomes. Expliquei minha situação á um dos dois funcionários que estava atrás do

balcão e ele falou que entregaria o questionário ao Ricardo. Falando em balcão,

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que belo balcão possui o Armazém São Thiago. O bar, que é grande, estava com

três mesas ocupadas e mais uns três ou quatro homens bebendo no balcão. A placa

da prefeitura ressalta que ele se chamava Bar do Gomes, que foi inaugurado em

1919 e, que ainda, o local mantém a ambiência dos antigos botequins, junto à um

armazém. Sim, posso dizer que apesar das diferenças grandes entre eles há uma

similaridade entre o Armazém São Thiago, a Casa Paladino, o Armazém do

Senado e a Casa Villarino, pois, esses realmente misturam o bar/botequim ao

armazém, onde os móveis são de madeira escura, onde as estantes de bebidas

chamam muito a atenção e ocupam paredes inteiras, seja no seu comprimento

quanto na sua altura (figura 67). As mesas do Armazém são Thiago possuem

tampo de mármore e não são forradas por tolhas. O chão do estabelecimento é

muito bacana, chamou a minha atenção. A ida ao banheiro, cujo hall também é

belíssimo, é realizada por uma pequena escada também de madeira, um charme!

(figura 65). Atrás do balcão de madeira, que é muito grande e coberto por

mármore, está uma das suas duas lindas estantes a expor as bebidas (figura 66).

Fora a geladeira de madeira que não passa despercebida e está a pleno uso (e, por

isso, penso que o móvel do Bar Brasil que fiquei admirando também seja uma

geladeira). Uma das paredes do estabelecimento, localizada acima de um

aconchegante “recoado” dentro do bar, é repleta de quadros (figura 64). Fora as

mesas internas, o bar oferece pequeninas mesas altas e redondas do lado de fora,

para se ficar em pé. Lá presenciei curtos momentos muito divertidos entre uma

mulher e um homem (cego). Acho que eles se conheciam, parecia que sim. Ela

sempre a encher o copo dele, ele bem mais velho que ela, os dois eram duas

figuras. Eu não conseguiria aqui dizer dos dois quem era o mais engraçado. A

conversa perpassava por todos os assuntos, e eu como estava ali a esperar o ônibus

(o ponto é bem em frente ao botequim, em uma das calçadas onde ele coloca as

mesas redondas), fui sendo cooptada pela mesma, na verdade, não tive muita

opção rs. Mas, no fundo, me diverti, ri um bocado. Acho, realmente, que esse tipo

sociabilidade é única do botequim, estranhos em menos de cinco minutos rindo

juntos, eu já a falar da temática da minha dissertação para a tal mulher, que

achava, até eu começar a falar, que eu era francesa. O Armazém São Thiago fora

sua beleza e ambiência, está situado em Santa Teresa e, por conta da sua

localização, não tenho dúvida que a relação entre estabelecimento e bairro só dá

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mais charme ao estabelecimento. Até porque, quem mora no Rio e conhece o

bairro, sabe que ele também é muito diferente de todos os outros.

Figura 64: O recuado do Armazém Figura 65: Interior do botequim, as escadas

São Thiago levam aos banheiros

Figura 66: O belíssimo balcão do Figura 67: As lindas prateleiras de madeira

Armazém São Thiago do Armazém São Thiago

Bar e Restaurante Jobi (Leblon)

Cheguei ao Jobi por volta de 11h30min de uma sexta-feira. Está situado

em um dos pontos mais nobres de toda a cidade do Rio de Janeiro, o bairro do

Leblon. Estava vazio, havia lá dois senhores sentados na última mesa do bar antes

desse alcançar a calçada, e esses senhores liam jornal e bebiam chope (tinham

toda a cara de serem aqueles fregueses fixos, de todo ou quase todo dia – figura

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70). Fora eles, havia outro homem, também no espaço interior, que tomava um

caldinho de feijão. Seu Pires e outros dois funcionários almoçavam. Já conhecia

seu Pires da outra visita e tentativa que tinha feito, em uma quarta-feira. Depois

que expliquei o que queria no Jobi, disse-me seu Pires que ele era o único que

podia responder as minhas perguntas. Mas, caso eu queira o questionário de volta,

disse-me ele que eu terei que retornar outro dia, ou seja, numa terceira tentativa, a

qual, muito provavelmente, poderá ser em vão. Contando já com os funcionários

que almoçavam com seu Pires, percebi que o lugar possuía uns quatro garçons,

fora um outro homem que ficava atrás do balcão e no caixa (nada simpático por

sinal). Não é um bar / botequim grande, suas mesas e cadeiras são de madeira,

sendo as mesas cobertas por toalhas quadriculadas ora em vermelho e branco ora

em verde e branco (em cima dessas toalhas eles colocam uma outra pequena

toalha branca. Particularmente gostei bastante das toalhas quadriculadas, dão cor

ao ambiente). Aliás, para bom observador, na verdade, essa mistura de vermelho e

verde das tolhas combina com o restante do lugar, várias coisas da sua ambiência

são nas tonalidades vermelha e verde, inclusive, o letreiro do bar que dá para a

rua, além das madeiras que fazem parte das paredes e do “cercado“ que separa o

bar da calçada. O balcão é bonito, um típico balcão de botequim mais pé-limpo.

Sim, o Jobi é muito organizado e limpo. A parede em frente ao balcão possui um

painel enorme, na verdade, a parede se configura pelo painel mais uma prateleira

com bebidas logo acima do painel (figura 69). O painel é muito bonito e ganha

destaque na placa azul da prefeitura, que diz: “Inaugurado em 1956, matem suas

portas abertas durante a madrugada, Possui um painel de Milton Bravo, artista

plástico que enfeitou botequins por toda a cidade na década de 1960” (figura 68).

Logo ao lado da placa da prefeitura um papel com algumas palavras chamou

muito a minha atenção, “É proibido cantar, batucar nas mesas, tocar instrumentos

musicais ou aparelhos sonoros dentro do bar”. Um tanto quanto regrado em

termos de barulho o Jobi, ou seja, o oposto de um Bip Bip, por exemplo. Assim

como todo botequim, possui quadros pelas suas paredes. O Jobi é um lugar bonito,

mas, para mim Ana, parece ser cheio de não me toques, muito organizado demais.

Essa organização em demasiado combina mais com o Villarino, por exemplo.

Prefiro ambientes mais descolados. Tudo bem que estive em um Jobi vazio, já que

o mesmo funciona de madrugada e, portanto, imagino que de madrugada, depois

de muitas bebidas por parte dos seus frequentadores, as regras como as do papel

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em relação ao barulho não sejam cumpridas à risca. Assim espero, fica tudo mais

divertido. Ah, resolvi no Jobi tomar um café expresso duplo, somente isso. Foi o

jeito que arrumei para ficar uns minutos ali, já que não tinha conseguido meu

questionário. Quando fui pagar minha conta de R$7,00 eu só tinha cartão (tenho a

péssima mania de andar com a carteira vazia). Enfim, fui até o antipático do caixa

e disse que pagaria em débito, ai ele retrucou que lá só se aceita cartão a partir dos

R$30,00; quando eu “devolvi” falando que não tinha dinheiro vivo, infelizmente.

Com a cara muito feia ele aceitou meu pagamento. Não sei afirmar direito, mas, o

Jobi não me agradou, apesar de ser um lugar fisicamente interessante.

Figura 68: A placa da prefeitura no Jobi Figura 69: O painel de Milton Bravo

Figura 70: O Jobi visto da rua Figura 71: Quadro / cardápio do Jobi

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Bar e Restaurante Urca (Urca)

Cheguei ao Bar Urca numa sexta-feira lá pelas 15h30min. Admito que só

de ir para o bairro da Urca estava feliz, sou apaixonada por aquele lugar. Da zona

sul, Urca, Jardim Botânico e Horto me encantam. E nesse encanto de bairro está

localizado o Bar Urca (assim comumente conhecido). O Bar e Restaurante Urca é

dividido em dois ambiente: botequim em baixo e o restaurante em cima. O espaço

do botequim estava vazio, tinha umas duas pessoas ali na frente do balcão. Fora

uns três funcionários atrás desse. Todavia, em relação ao Bar Urca, deve se medir

seu movimento olhando para a mureta da Urca, localizada logo a frente do

estabelecimento (figura 72). Como ainda era meio da tarde, a quantidade de

pessoas na mureta também era pequena, isso porque já fui em outros momentos

em que a mureta estava lotada, com pessoas ao longo de grande extensão da

mureta. Os que chegam primeiro tendem a ficar na parte da mureta mais próxima

ao bar, por isso, que quando o “bar está lotado” as pessoas tendem a sentar longe

do estabelecimento. O botequim não é grande e é do tipo pé-sujo, não possui

mesas nem cadeira, a mureta da Urca assume esse papel (figura 72). Sem dúvida,

isso é algo único desse bar, é uma das suas tradições, se assim posso falar. O

balcão do botequim expõe todas as suas delicias: empadas, pastéis, bolinhos

(figura 74). Em abril ainda estava havendo a venda de dois petiscos, servidos

numa quantidade boa (como uma porção de batata frita): camarões fritos e lulas

(não me recordo se fritas também). Quando uma bandejinha de camarão passou na

minha frente no balcão, enquanto eu esperava o Manuel, admito que perdi o foco

rs. Como eu não estava com muita fome, pois tinha acabado de comer um

sanduíche no Lamas, mas, não queria sair do Bar Urca sem ter comido algo, optei

pelo pastel. Comi dois pastéis de queijo, paguei R$ 4,50 por eles, ou seja, os

preços do botequim, dos seus petiscos, não são salgados. A própria porção de

camarão que me deixou com água na boca, se não me engano, custava R$30,00.

Deve se considerar que camarão não é algo barato e que a porção não era mínima.

Na parede do botequim que leva aos banheiros estão pendurados alguns quadros

sobre o bar – reportagens e afins. Manuel, um dos funcionários do botequim

chamou, foi quem me atendeu. O Manuel é quem está abaixo do Armando pai e

Armando filho, os donos do Bar Urca (assim como já foi o pai do Armando pai).

Disse-me Manuel que Armando pai estava em casa e Armando filho tinha ido

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viajar naquele dia. Sendo assim Manuel disse que ou ele responderia, ou então,

entregaria a um dos “Armandos”. Perguntei para Manuel se eu podia ir ao

restaurante, no segundo andar, para conhecer e tirar algumas fotos. Eu já fui

muitas vezes ao Bar Urca, mas, nunca tinha visto como era o ambiente do

restaurante por dentro. Logo na porta destinada a entrada do restaurante está

enquadrado o seu cardápio e, também, pelos preços que consultei, não é um

restaurante barato. As paredes de fundo branco da escada que levam ao segundo

andar formam um ambiente / hall muito bacana. Logo na subida, em frente, há um

desenho (auto-retrato) do mais antigo dos “Armandos”, seu Armando Gomes.

Nessa mesma parede, estão enquadrados muitas reportagens e títulos ganhos pelo

Bar Urca, entre eles, um da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e

outro da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, sendo que nesse último, logo após

o nome do seu Armando Gomes aparece entre aspas “Seu Gomes”. Assim,

portanto, ele devia ser conhecido e chamado. A outra parede é toda ela composta

de recados enquadrados destinados ao Bar Urca e/ou Seu Gomes. Todos os

quadros têm a mesma moldura, o mesmo fundo branco (onde estão os recados)

juntamente a uma foto / figura daqueles que deixaram suas palavras. A quantidade

desses quadros é bastante significativa. Quando você entra no restaurante uma

caricatura gigante dos três “Armandos” juntos logo chama a atenção (figura 75),

essa figura ocupa grande parte da parede em direção oposta a porta de entrada do

restaurante, assim, não há como não notá-la. E é muito representativa, pois,

demonstra que ali a administração e participação familiar é uma grande tradição.

O restaurante tem um tamanho bom, é comprido e estreito e seu interior é muito

branco, paredes combinando com o teto e as toalhas de mesa. Fora as cadeiras de

madeira, cujos encostos também são brancos. Algumas de suas paredes também

são recheadas dos “famosos quadros”, “famosos” no sentido de corriqueiros. A

parede que dá para á vista da Urca (de lá se observa todo o movimento da mureta)

é toda ela composta de grandes janelas, ou seja, o lugar é muito bem iluminado

pela luz do sol. Talvez seja por essa razão que o ambiente é muito branco. Ah, o

ambiente é todo refrigerado por ar-condicionado. O balcão do restaurante não é

grande, e a parede de fundo do balcão é a única que destoa em termos de

coloração, sendo vinho. Essa mesma parede possui poucas prateleiras com suas

enfileiradas bebidas. O restaurante não estava lotado, mas, muito bem

movimentado, afinal eram quase 16h da tarde. Ah, o Bar Urca ainda não recebeu a

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placa azul da prefeitura. Pelo menos procurei e não encontrei nem no botequim

nem no restaurante. O que acho mais impressionante do Bar Urca é a vista que o

mesmo possui, uma das mais belas vistas de toda a cidade do Rio de Janeiro

(figuras 72 e 73). Não há como não lembrar dessa vista quando se fala e/ou

lembra do Bar Urca. Eu nunca comi no restaurante, já petisquei muito no

botequim e posso dizer que o que nele se serve é bem bom, fora nunca ter bebido

cerveja quente por lá; todavia, acho que a maior tradição do Bar Urca, em minha

opinião, é sentar na mureta da Urca e ficar ali a olhar aquela maravilha,

independente da hora do dia e independente, também, por exemplo, das baratas

que por ela passeiam. O vai e vem dos pescadores (no momento em que eu estava

por lá chegava um pequeno barco que além da pessoa, dele descia um cachorro

todo molhado, imagino eu que ele deva ter aproveitado bastante o passeio, a cara

do bichano era de pura satisfação), logo ao ali ao lado a entrada do forte da Urca,

enfim, tudo se completa. Quando são somados à vista os quitutes, cerveja e aquele

burburinho da mureta (com muita gente bonita) dá-se algo único. Só indo

pessoalmente para saber o que é aquele lugar.

Figura 72: A mureta da Urca Figura 73: A vista da mureta

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Figura 74: Os petiscos do bar no Bar Urca Figura 75: Os “Armandos” do Bar Urca

Bar e Café Lisbela (Bar da Amendoeira) (Maria da Graça)

Escolhi um sábado para ir até Maria da Graça, bairro onde está localizado

o Bar da Amendoeira. Era tudo novidade, nunca tinha ido a Maria da Graça. Nem

sabia, por exemplo, que tinha metrô para lá, não havia reparado a fundo nos

desenhos das linhas do metrô. Vou muito à ao Maracanã, e Maria da Graça é “ali

do lado”. Ou seja, meu limite de metrô, até então, era a estação Maracanã. Assim

que você sai do metrô se depara com uma paisagem não muito bonita (figura 76).

Na verdade, bonita é a palavra que eu uso de acordo com meu gosto e minha

vivência. O bairro estava muito vazio, um silêncio, com pouco movimento de

carro e de pedestres pela rua. Isso, pelo menos no percurso que fiz entre o metrô e

o Bar da Amendoeira. E saindo do metrô, seguindo à direita, já se é a rua do

botequim, e andando reto por uns 10 minutos, lá você está. O bar fica numa

esquina, em frente a um posto de gasolina (figura 78). Quando cheguei no

estabelecimento era por volta de 13h. Pela quantidade de carros, a procurar

parecia ser alta. E sim, o bar estava muito cheio, todas as mesas de dentro

ocupadas e todas as mesinhas de fora (daquelas mais altas, para se ficar em pé),

também. É um botequim grande com toda a cara de botequim. Ele não tem ares de

restaurante, na minha opinião. A quantidade de mesas dentro do estabelecimento

não é grande. Digo isso, por que há espaços para se circular bem entre as mesas

(figura 77), ainda que tal circulação não seja assim tão boa entre a mesa mais

próxima do balcão e o balcão. Mesas e cadeiras de madeira, sendo as mesas

forradas com uma toalha azul de cor forte. Azul, por sinal, todavia em tonalidade

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mais clara, é a cor da parede que “coleciona” os quadros dos títulos do botequim,

assim como as paredes da parte de fora e os azulejos que ocupam outras partes do

botequim, principalmente o hall dos banheiros. Ah, o toldo também é azul,

escuro! (figuras 77 e 78) O balcão, que é grande em extensão, estava cheio. E

atrás dele duas jovens mulheres (que depois descobri serem as atuais

donas/administradoras), assumiam os trabalhos, ou seja, botequim não é só lugar

de homem! No balcão estavam expostos assadeiras / tabuleiros com aquelas

comidas bem típicas de botequim, aquelas que na maioria das vezes, pelo menos

eu, não tenho muita vontade de experimentar por conta da aparência! Mas, que lá

no fundo, devem ser gostosas (ou não rs) (figura 79). Atrás do balcão está a

prateleira com bebidas, prateleira essa espelhada. Prateleiras de madeira escura ou

espelhadas são as que vi nos botequins visitados. Apesar de eu achar mais brega a

espelhada, elas chamam a atenção, impactam pelo brilho que causam. Não percebi

a presença da placa redonda azul da prefeitura. É um botequim bem grande,

também ali entre pé-sujo e pé-limpo. Deixei o questionário com a mais nova das

mulheres atrás do balcão, pelo menos parecia ser a mais nova. Ela foi super

solícita. Saiu do “barulho” do balcão para me ouvir e logo se propôs a preencher o

questionário, mas disse ela que naquele momento seria impossível, como a própria

afirmou, e é notável, sábado o movimento é bastante intenso. Fiquei de retornar

terça para pegá-lo Gostei bastante do Bar da Amendoeira, também é bem diferente

dos outros que visitei, inclusive daqueles que colocaria no mesmo patamar, a

exemplo do Pavão Azul. Não posso dizer ao certo, mais os vasos amarelos que o

decoram, a sua combinação / “descombinação” de azulejos da parede com o piso

do chão, por exemplo, tudo isso é muito diferente dos outros que vi. Pretendo

voltar assim que puder, adorei o Bar da Amendoeira.

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Figura 76: Metrô de Maria da Graça Figura 77: Interior do Bar da Amendoeira

Figura 78: Bar da Amendoeira visto de fora Figura 79: Comida exposta no balcão do

Bar da Amendoeira

Casa da Cachaça (Lapa)

Como a Casa da Cachaça só abre a noite (pelo menos nas duas vezes que

passei lá no período da tarde, ela ainda não estava aberta. Desconfio, portanto, que

ela abra lá pelas 18/19h), cheguei lá por volta das 21h de um sábado, mesmo com

chuva. Relutei muito até decidir encarar a Lapa com chuva, admito, mas fui!

Aproveitei que duas amigas minhas estavam na Lapa para ir a um show e fui

encontrá-las. Eu, infelizmente, não pude ir ao show, fiquei com elas somente em

um dos mais novos patrimônios culturais da cidade. Posso dizer, sem dúvida, que

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a Casa da Cachaça é o mais pé-sujo de todos os declarados patrimônios. É bem

“root”. Ah, o banheiro, que nunca tem papel e, raramente água, é unissex, imagine

isso! (figura 82). Um pé-sujo incrível, um ícone da Lapa. Difícil alguém que vá e

conheça a Lapa não saber ou nunca ter ido à Casa da Cachaça. E ouso dizer mais,

difícil alguém ir lá e não procurar ou pedir a Cachaça de Gengibre. Pela sua

“fama”, creio que ela possa ser, talvez, considerada a maior tradição desse

botequim. E sim, essa cachaça é uma delícia! Apesar do nome do bar, lá também

se vende cerveja. Ou seja, imagine as consequências quando seus frequentadores

misturam cachaça e cerveja rs! Sinceramente, não reparei se lá havia algum

cardápio de comida, mas, desconfio que não, apesar de não dar certeza disso.

Posso dizer que, eu Ana, não comeria ali, só se a fome já estivesse em um nível

insuportável. Apesar de pequeno, possui muita informação, sua ambiência é única

com aquelas “infinitas” garrafas penduradas (figuras 80 e 81). Você se perde em

meio à tantas garrafas. Fica a curiosidade de saber a procedência de tantas

garrafas, pois como tinha dito o seu José, do Bar Brasil, o fundador da Casa da

Cachaça era um “louco” que comprava cachaça por todo o Brasil. Imagino, pela

quantidade de garrafas, o quanto ele não deva, então, ter andado por esse país! As

mesas e cadeiras do bar, de plástico, ocupam as calçadas da rua Mem de Sá.

Ainda que o bar seja muito pequeno, comporta algumas pessoas em pé no seu

interior. Esse tamanho diminuto, na minha opinião, promove uma grande

sociabilidade no botequim, as pessoas ficam “espremidas” á sua frente e,

querendo ou não, sociabilizam sem saber, ou sabendo, dependendo das intenções.

Assim aconteceu sábado, com a chuva as poucas pessoas que ali estavam ficaram

ainda aglomeradas, e quando eu e minhas amigas percebemos, estávamos

dividindo uma mesa com desconhecidos, agora conhecidos. Isso é bem boteco!

Fora os donos / administradores que notei lá nesse dia (um homem e uma mulher),

percebi a presença de no máximo dois garçons. Por uns cinco minutos consegui

explicar minha pesquisa ao “dono”, mas, ele disse que responder algo ali seria

muito difícil por conta do movimento do bar e, sinceramente, percebi que seria

praticamente impossível ter meu questionário de volta e respondido se eu tivesse

dado à ele. Por isso, optei em captar o lugar somente através das fotos que fiz.

Acho que ele já diz muita coisa ao leitor, como vocês poderão perceber. O

botequim ainda não recebeu a placa azul da prefeitura. Quem não conhece a Lapa

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e passa em frente da Casa da Cachaça, imagino eu que não desconfie mesmo que

aquele lugar, agora, é patrimônio cultural carioca. Mas ele é!

Figura 80: Interior da Casa da Cachaça Figura 81: Interior da Casa da Cachaça

Figura 82: Entrada do banheiro Figura 83: Elementos da decoração da

na Casa da Cachaça da Casa da Cachaça

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Bar Lagoa (Lagoa)

Fui ao Bar Lagoa duas vezes, nos mesmos dias que fui ao Jobi.

Aproveitava a proximidade física entre eles para ir andando. Na primeira ida ele

estava fechado, era uma quarta de manhã. Fui saber só lá, por um quadro, que o

bar, durante a semana, só abre depois das 18h. Todavia, fiquei espiando através da

porta, uma porta de ferro vazada. A área interna do lugar é muito grande (figuras

86 e 87), e a varanda coberta por toldo também possui um tamanho muito bom.

Mas não consegui tirar fotos do interior, estava escuro. Retornei então em uma

sexta, ás 17h30min, com intuito de conseguir falar com alguém antes de começar

o movimento. Quando cheguei os garçons estavam arrumando as mesas,

colocando as toalhas brancas, guardanapos e outros itens. Um garçom idoso veio

até mim, expliquei o que ali pretendia e ele me disse para esperar uns 15 minutos,

que a pessoa com a qual eu poderia falar chegaria. Passaram-se uns dois minutos,

no máximo, ele me chamou (eu estava encostada em um bicicletário que tem em

frente ao bar) e disse que naquele dia essa tal pessoa só chegaria às 21h. Não dava

para esperar. Percebi que os garçons não simpatizavam muito com a idéia de

conversar comigo, o que me atendeu, então, muito menos. Entendo também que

eles estavam ali preparando o estabelecimento para a abertura. Sinceramente, não

insisti na tentativa de entrar e tirar fotos, sendo assim, fotografei, somente, sua

entrada, que, por sinal, é sinalizada por uma placa de mármore bem chique, em

comparação ao letreiro dos outros bares e botequins que fui (figura 84). Na

verdade, alguns nem esse letreiro tinham. Como não consegui fazer meus registros

da ambiência interna do Bar Lagoa, trago duas fotos da internet (figuras 86 e 87).

Posso dizer que o que levei de melhor do Bar Lagoa foi o registro da beleza logo a

sua frente, a Lagoa Rodrigo de Freitas somada ao Cristo Redentor (figura 85),

uma das mais belas vistas da cidade do Rio de Janeiro, pelo menos, para mim.

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Figura 84: A placa de entrada do Bar Lagoa Figura 85: A vista do Bar Lagoa

Figura 86: Google Imagens, Bar Lagoa Figura 87: Google Imagens, Bar Lagoa

(acesso em 20 de abril de 2013) (acesso em 20 de abril de 2013)

Restaurante Salete (Tijuca)

Cheguei ao Salete eram 12h de um sábado. Nunca tinha ido até lá. O lugar

estava começando a encher, acho que ainda estava cedo para um sábado. Gostei

da fachada do bar, ainda mais os portais de ferro logo acima da porta (figura 86).

Assim que entrei no lugar, o que mais me chamou a atenção foram os azulejos

“geométricos”, das paredes e do chão (figuras 89 e 90). Imagino que não há como

não ser atraído por eles. Enquanto os do chão são pretos e brancos, os das paredes

são azuis claros e brancos. Posso falar que a combinação do preto, azul e branco

muito me agradou. Tantos azulejos dão um charme ao bar. Uma amiga minha que

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mora perto do botequim, assim que eu disse que iria ao Salete por ele ser um dos

bares e botequins agora patrimônio cultural, logo citou a questão dos azulejos (e

essa amiga minha não é frequentadora de botequins). Penso, dessa forma, que por

ser conhecido também pelos seus azulejos, os azulejos devem configurar uma das

tradições do Salete. O Salete tem um espaço bom, é bastante organizado e limpo.

Cadeiras e mesas de madeira, sendo as mesas forradas por uma toalha preta, que

não cobre todo o tampo dessas (figura 89). Outra coisa que chamou minha atenção

foi, mais uma vez, as prateleiras de espelho atrás do balcão (figura 91). A maior

parte das prateleiras era composta por garrafas também bem organizadas, porém,

em uma parte da prateleira se notava a presença de enlatados e vidros de palmito.

O letreiro do estabelecimento por dentro dizia “Restaurante Salete, a melhor

empada da cidade”, além de trazer a data de fundação que é 1957 e, por fora

afirmava “Restaurante Salete, o melhor risoto do Rio” também acompanhado da

data 1957. Falei com o funcionário que estava acima dos garçons naquele dia, em

termos de administração do lugar. Ele foi muito solícito, mas, pediu para eu

retornar outro dia, lá por volta das 11h da manhã de segunda a sexta. Nesse

horário eu encontraria a pessoa que poderia me ajudar, disse ele. Voltei então em

uma terça-feira, lá pelas 13h20min, já que não pude ir no tal horário

recomendado. O mesmo homem que me atendeu disse que o dono estava lá, mas,

não conseguiria falar comigo. Bem, como eu estava morrendo de fome, resolvi

por ali comer. Ou eu provaria o tal risoto ou então as empadas. Particularmente,

minha fome era de risoto, todavia, meu dinheiro só permitiu empada. O risoto era

muito caro, em torno de R$70,00. Na verdade o Salete é um botequim caro,

peguei o cardápio para dar uma olhada e os preços eram 95% acima dos R$30,00.

As tais melhores empadas da cidade, que são de três sabores (frango, palmito e

camarão), custavam cada uma R$4,00 / R$4,20 reais. Experimentei uma de cada,

e posso dizer que são empadas gostosas, mas, nada que não se experimente

melhor por aí. Dessa vez o lugar estava lotado, a única mesa livre era a minha,

aquela bem ao lado da entrada do banheiro (fundos da figura 89). De todas as

pessoas que lá estavam, cinco eram mulheres, já contando comigo. De resto, eram,

aproximadamente, uns trinta homens. Outra coisa que me chamou a atenção foi

que nas duas vezes em que lá estive na mesma mesa do lado de fora do bar estava

sentado o mesmo homem (o da figura 88, à direita). Eu tinha reparado na figura

dele no sábado e não tive como não notar na terça de novo. Este deve ser um

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típico freguês fixo da casa. O Salete é bastante pé-limpo e está mais para

restaurante.

Figura 88 : Fachada do Restaurante Figura 89: O interior e seus azulejos -

Salete Restaurante Salete

Figura 90: Azulejos e quadros no Salete Figura 91: A prateleira de vidro atrás do

balcão no Restaurante Salete

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