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Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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Liberdade, o pressuposto do trabalho
São os médicos Agrupamento profissional homogêneo? Têm todos eles
uma mesma autoridade na prática médica? Conseguem idêntico reconhecimento por
seu trabalho e conseguem situações próximas quanto a renda ou status social?
Resguardadas as especificidades técnicas e abstraídos alguns comportamentos
desviantes, mantêm eles desempenho profissional sempre de mesma qualidade?
As perguntas percorrem os atributos e autoridade, prestígio, responsabilidade
e dedicação, que enquadram o trabalho médico em uma imagem, um ideal de prática.
São categorias representantes de um saber legitimado cientificamente, valorizado
socialmente, e conformado a uma moral de conduta ética do desempenho pessoal a ser
corretamente exercitado pelo medico.
Ninguém hoje recusaria a evidência da estratificação técnica e social no
interior do trabalho médico, diferenciando agentes de mesma qualificação profissional
em posições técnicas socialmente situadas em tão distintos e variados lugares na
estrutura social, a ponto de se argüir em certas situações, ou para certos ramos de
atuação, da pertinência de uma mesma designação profissional. Esse é o caso, por
exemplo, do médico de laboratório ou de outras práticas exclusivamente de
diagnóstico e terapêutica, ou até mesmo dos que se dedicam à Saúde Pública. A
ausência de uma imediata identificação desses trabalhos com a profissão médica dá-se
por suas distâncias com a prática clínica. Por isso, são compreendidos como um outro,
por referência ao saber diretamente exercitado sobre os doentes, não sendo lembrados
como parcelamentos que se individualizaram do trabalho em saúde, tal qual tantas
outras práticas especializadas1.
No entanto, o que se dirá da própria prática clínica que guarda em seu
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interior tão variados desempenhos, tão diversos comportamentos em relação à atenção
ao paciente ou à disposição em tratá-lo, assistindo-o e responsabilizando-se por opções
diagnósticas e terapêuticas? Correspondem as diferentes formas de atuação pessoal às
diferenciações técnicas da profissão? Pode-se correlacionar tais dimensões e admitir
que as divisões técnicas supõem diversificação não apenas social, mas ética?
Certamente para essas últimas questões as respostas já não se apresentam
facilmente, ou mesmo dentro de um padrão unívoco. E há não obstante profundas
gradações e distinções de comportamento. Da intervenção técnica às práticas de
convencimento e de subordinação do doente à intervenção, passa-se pelos modos
distintos através dos quais esses dois planos se realizam na relação médico-paciente, o
que é da ordem da moral, no confronto de dois sujeitos sociais. Diferenciação que
também ocorre em outras relações de que participa o médico, como as que se realizam
entre colegas e entre os constituintes das equipes de trabalho. Esses são
comportamentos que já não se podem ser atribuídos a uns poucos desviantes: não há
de ser por características pessoais que tantos matizes aparecem, senão por
características do trabalho, garantias de espaço, instrumentos e processos estruturados
em práticas de diferenciação global dos desempenhos médicos2.
Houve tempo, porém, em que o termo médico qualificava práticas
aparentemente mais próximas, atos de conformações mais homogêneas e
imediatamente identificados como uma mesma profissão. A tal ponto que forneceram
uma imagem de ato único, uniforme para quaisquer conjuntos técnicos de
procedimento, os quais se podia individualizar sob a noção de consulta médica,
identidade social comum. Suas diversificações técnicas (especialidades) eram poucas e
nem sempre exercidas de modo exclusivo, situações em que o atributo de trabalho
médico apagava as diferenças, por garantir princípios equivalentes de prática na
relação entre médicos e doentes: garantia de reconhecimento social do trabalho do
médico e garantia da qualidade da assistência para o paciente.
Também é verdade que nesse tempo tudo foi, até certo ponto, mais
homogêneo e, de certo ponto de vista, mais igual, mais simples: o modo e os tipos de
trabalhos existentes, a forma de constituir e realizar a família, a escolarização e a
profissionalização, as formas de lazer e os dispositivos de uma comodidade de vida em
casa, no trabalho, de casa ao trabalho. Uma existência social, enfim, mais “comedida”,
em que as diferenças de padrões então reinantes de vida social, que existiam até
bastante polarizados, pareciam mais “simples” pela própria contenção da vida nos
limites postos, em simplicidades impostos pelas dificuldades da mudança, de gran-
des transformações. A industrialização e a urbanização correlata, com a
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produção em escala de bens e serviços, na diferenciação destes, na repartição do
trabalho e especialização de qualificações escolares, alterou os padrões de vida e suas
polaridades. Criou novos estratos sociais, originou o consumo de massa e alterou as
possibilidades de transformar a vida, tornando a vida mais repleta e o viver mais difícil.
A medicina fez-se profissão na transição entre os tempos; e desenvolvendo-se,
diversificou, transformou e mudou de tal modo a configuração da prática que, para
muitos, perdeu-se” nesta complexidade.
Passando a compor-se de trabalhos estruturados como práticas muito
diversas, a medicina viria transformar também o plano de sua aparência mais imediata,
eliminando concretamente a possibilidade de que aquela mesma concepção de
homogêneo fosse mantida sobre a prática profissional. Mas tentando resguardar a
identidade social anteriormente conquistada, o pensamento médico buscou formular
uma representação do trabalho através da qual reconstruísse o homogêneo. Esse
processo correspondeu à elaboração de um núcleo essencial da prática técnica, cuja
estrutura, articulada organicamente às características “naturais e intrínsecas” de seu
objeto – o corpo doente – foi tida como capaz de fazer decorrer de si mesma uma
organização do exercício profissional idêntica em seus termos substantivos para o
conjunto dos trabalho médicos, apenas diferenciando-se nos aspectos “secundários” e
“externos” relativamente àquela “essência” que formulou.
Será sobre todos estes movimentos que doravante nos debruçaremos, pois,
para compreender a medicina buscaremos sua história; essa mesma história que a faz
tão dividida e tão coesa; diversamente praticada e, não obstante, reunida em um ideal
comum. Por meio de sua trajetória veremos como e porque foi possível dotar a prática
de amplas liberdades de exercício, construindo-se um trabalho que, no plano das
representações, encontrou na plena autonomia de seus agentes a única condição
adequada de realizar-se historicamente, dado, é claro, o projeto de vida social que
pretendia seu sujeito, o médico.
A AUTONOMIA PROFISSIONAL
Os requisitos que se apresentam, talvez para muitos de nós, como os mais
típicos do trabalho dos médicos são os de um trabalho que se assenta em bases técnicas
e éticas, simultaneamente.
A técnica, de um lado, significa seu grande alcance como intervenção
reparadora ou mesmo mantenedora de condições vitais amplamente dese-
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jadas. Trata, assim, da capacidade transformadora desse trabalho e por isso relaciona-
se à sua dimensão operante, de ação manual direta ou instrumentalizada, mas que
sempre se refere a um fazer. E para tanto será requisitada a presença de um saber: a
técnica vincula-se à ciência, a um domínio da biologia e saberes afins, o que, então, a
situa na esfera do “mundo natural” e das questões a ela referidas. Se essa é a grande
característica do lado técnico do trabalho médico, embora não seja a única, o valor
social que a ela se dá termina por recobrir toda a compreensão usualmente tecida para
a própria técnica, cuja concepção dominante apresenta-a como evento apenas derivado
do conhecimento da natureza, restando liberto de outras “interferências”
(determinações). Será por essa razão que muitos, quando verificam que isso assim não
ocorre, isto é, quando se expõe declaradamente a historicidade da técnica e portanto
sua politização, interpretam habitualmente o observado como um desvio que deveria
ter sido, um dever-ser contrariado.
O lado ético do trabalho dos médicos, por sua vez, diz respeito à intervenção
de um sobre outro homem, remetendo diretamente ao aspecto relacional desse
trabalho, que é um momento particular de realizar a vida em sociedade, isto é, as
relações sociais. Significa, assim, os cuidados de um comportamento criterioso, já que
se está diante de uma “invasão”, ainda que permitida, do outro: interferência sobre as
vidas, as privacidades e as paixões das pessoas. Além disso, o fato de realizar-se
enquanto relação interindividual parece comprometer ainda mais esse trabalho com as
“questões do relacionamento humano”, de que são parte o respeito, o afeto, a
dedicação, a sensibilidade, a fraternidade e tantas outras substâncias da esfera do
pessoal. E se um primeiro entendimento, a ética não é percebida como atinente e
subordinada ao social, por realizar neste trabalho as relações sociais e suas regras de
reprodução da vida em sociedade (sendo pois também valor político e ideológico),
certamente ela é concebida como pertencendo ao domínio do subjetivo, em contraste
com a objetividade que se usa atribuir ao “mundo natural”. Sem dúvida, porém, esta
dimensão do trabalho jamais é tomada em uma totalidade que faz destes dois mundos
um só, permitindo compreender o que concretamente se verifica no trabalho médico: a
ética como pertencendo à substância técnica desse trabalho e a técnica como
movimento imediatamente ético.
A coexistência dessas duas qualificações da medicina, como fazes de uma
mesma moeda, não pode portanto, ser algo muito simples ou muito fácil. Dire-
mos, em princípio, que tal qual irmãs, filhas da mesma criação moder-
na das práticas sociais, elas disputam entre si a prerrogativa na prática mé-
dica, sempre, contudo, sem poder abandonar uma à outra. Hoje em
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dia não resta dúvida que a face técnica é extremamente evidenciada, fazendo com que
imaginemos até sua independência relativamente a ética. Na realidade, quase as vemos
como momentos separados. Todavia, a articulação de suas expressões concretas, no
modo como se apresentou a consubstancialidade da técnica com a ética, nem sempre
permitiu essa imagem.
Por isso se recuperarmos as características centrais sob as quais se estruturou
o trabalho médico contemporâneo, compreenderemos a complexidade da imagem e
das expectativas que dele se criou. Esta recuperação remete-nos para o momento
histórico da constituição da medicina moderna, quando, com todas as transformações
que se vão operando nas práticas da sociedade, a prática médica se estabelecerá como
uma profissão. E qualificar-se como profissão significa uma intervenção técnica
nuclearmente apoiada na atuação de seu agente para a produção do trabalho.
Por esse motivo a profissão é um trabalho que nasce como – e assim será
definido desse momento em diante – atividade que se dá fundamentalmente pelas
características vinculadas ao profissional: “Em sentido amplo, o conceito de profissão
médica compreende os principais atributos apontados nos estudos sobre as profissões
nobres ou tradicionais: o monopólio de uma área específica de atividade a partir de
prolongada formação intelectual; um sistema particular de valores que legitima e
sustenta padrões de comportamento profissional, e em cujo núcleo se encontram o
ideal de serviço e o ideal de autonomia”3.
A separação que ocorre ao longo do século XIX, entre ofício – identificado
como ação técnica que não envolve necessariamente uma dimensão científica, própria
e profunda – e profissão - com requisitos científicos e sobretudo éticos - intermediados
pela ocupação, é assim tratada por O. Nogueira: “ O mundo das ‘profissões’ pode ser
representado por um círculo em cujo centro estão as ‘profissões típicas’ – o direito e a
medicina – e, em diferentes pontos, ao longo dos raios, outras ocupações (...) os
praticantes de ambas, através de uma formação intelectual prolongada e especializada,
dominaram uma técnica que os capacitou a prestar um serviço específico à
comunidade. (...) Desenvolveram um sentimento de responsabilidade pela sua técnica,
que manifestam por uma preocupação pela competência e pela honradez dos
militantes como um todo (...) Outro aspecto significativo da técnica profissional é a
responsabilidade que envolve: quanto mais o seu exercício implicar num sentimento
de responsabilidade, mais próxima do centro estará a ocupação. (...) Quando a
ocupação implica numa técnica intelectual altamente especializada, fatalmente dá
origem a uma nova profissão; quando se trata de técnica generalizada,
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como frequentemente ocorre com as atividades comerciais, o aparecimento da
profissão depende do ‘desenvolvimento de um senso de responsabilidade comum
capaz de estreitar o fraco laço criado pela posse de uma técnica comum, porém mal
definida’.”4 Essa desproporção no valor dado ao ético e ao técnico igualmente se
observa através da distinta conceituação formada em torno de intervenções
tecnicamente próximas, cuja base em relação à outra: “(...) mesmo em 1878 o British
Journal declarava ser a medicina uma profissão e a odontologia (‘dentistry’),
predominantemente, um negócio. (...) O farmacêutico continuou um simples
comerciante mesmo depois de fundada em 1841 a Pharmaceutical Society, até que os
Pharmacy Acts de 1851 e 1868 criaram pela primeira vez uma profissão de pessoas
formadas e qualificadas e vedaram a venda de tóxicos por estranhos à mesma mesa.
(...) Os óticos continuaram a ser homens de negócios até a década de 30”5.
Estamos, portanto, no caso da medicina diante de um trabalho no interior do
qual assume relevância a qualificação técnico-científica de seus agentes; mas
sobretudo importam seus códigos de ética específicos, fazendo com que a profissão se
caracterize como trabalho de uma ampla autonomia de desempenho e de um profundo
caráter intelectual. Em razão disso sua qualidade tecnológica de ser ação de
intervenção manual será concebida como radicalmente distinta de outras similares,
quanto a este seu caráter de manipulação direta dos objetos de trabalho. A profissão
médica separa-se dos demais trabalhos técnicos não só porque designa ações que
demandam qualificações específicas e especiais, ou porque o conhecimento envolvido
(a Ciência) seja complexo e extenso, ou mesmo porque tenha regras próprias de
exercício, mas porque lhe são dadas normas de conduta bem estabelecidas, definindo
uma moral de prática e implicando uma sabedoria acerca do uso de ambos –
conhecimentos e valores éticos.
Esse conjunto de atributos acaba por permitir que se afaste da prática a idéia
de trabalho e que se a requalifique como ação genérica, sob a noção de profissão. Isto
conferirá a seus agentes, no conjunto dos trabalhos sociais, imediata identidade,
circunscrita e protegida em claros e estreitos limites de acesso. A intervenção manual,
neste caso, transcenderia seu caráter operativo, no sentido de manipulação pura e
simples de um objeto de prática, para significar um ato moral, em que a manipulação
apenas se dá fundada em, e na dependência de, éticas de interação médico-doente.
Podemos conceituá-la, pois, como técnica moral-dependente.
Não há dúvida de que esse modo de interpretar a profissão médica,
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desde sua gênese na sociedade capitalista, produz na escala de valor, mediante a qual
são apreciadas as ações sociais e são valorizados seus sujeitos, uma distinção e
elitização do trabalho dos médicos ante os demais. Mas para a própria sociedade
parecerá tanto mais importante que assim o seja, posto que se trata de intervenção
sobre pessoas. Por isso, o “bom” uso da ética, a capacidade pessoal do médico em
comportar-se de modo moralmente adequado, é o que se elege como principal
qualificação para esse trabalho. A profissão não demandaria pois apenas práticas
peculiares, senão fundamentalmente pessoas peculiares, “homens de dom”. Não é de
se estranhar, portanto, que as questões de aptidão e vocação, quase sempre dominem
sobre os interesses, gostos pessoais ou relevância social, como justificativas na escolha
da profissão, e mesmo em seu interior frequentemente são apresentadas como a razão
maior da escolha entre seus vários ramos.
A noção de profissão, no sentido acima, qualifica a prática dos médicos de
“talentosa”, misto de arte e técnica: técnica na arte, supremacia criativa de um proceder
técnico eticamente adequado. A arte reside, pois, nessa capacidade de aplicar o
técnico-científico sob preceitos “corretos” de comportamento pessoal. É um ouvir, um
receber, um interessar, um confortar, um orientar, em que se dispõem as ações técnicas
derivadas da ciência.
Poderíamos dizer que essa capacidade do médico está em elaborar uma
tecnologia do “afetivo” no técnico. Assim, mão é tão curioso que se tome a arte por
“humanismo” e que se atribua a tal capacidade elementos alheios à competência
técnica (estrito senso). A noção de dom ultrapassa conquistas escolares de qualificação,
para mesclar com esta, em certa dominância, elementos não materialmente
identificáveis, de caráter transcendental, metafísico. O dom, neste sentido ou a aptidão,
não se adquire: “tem-se” na própria natureza, seria natural; não, porém, para toda a
espécie humana, mas como rara propriedade (inexplicável) de alguns6.
Antes de prosseguirmos devemos observar que essas considerações
visam expor o ideário referido à noção de profissão médica. Não
constituem, enquanto tal e nessa medida, explicações que endossamos. Por
essa razão quando acima usamos o termo afetivo, para referir a presença da
subjetividade do agente do trabalho no técnico, o que fizemos foi nos valer do
simbólico próprio da ideologia do pensamento médico, embora sabendo que
muito além de afeto esta presença significa o julgamento do médico para operar
intervenções. De outro lado, tentamos salientar, por via do contraste afetivo/técnico,
uma dimensão da realidade – todavia não menos real – não equivalente a coisas, com
o que usualmente identificamos de imediato a noção de técnica.
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A desqualificação da presença da subjetividade em questões técnico-
científicas, procedimento próprio da racionalidade científica moderna, é que torna
estranha a convivência de valores e coisas no real, reduzindo a técnica a desempenhos
derivados exclusivamente das propriedades naturais dos objetos e desprovidos de
apreciações valorativas por parte dos sujeitos. O recurso ideológico ao dom ou
vocação, neste caso, representa o apelo ao transcendente para recompor esta radical
separação que o próprio pensamento médico faz ao adotar aquela racionalidade
científica, entre o sujeito e as “coisas da natureza”, produzindo a curiosa simbiose de
um “natural” nada natural constituindo o dom para a profissão.
O interessante é aqui notarmos o duplo tratamento conceitual, de ciência e de
arte, que no interior desse ideário foi sendo cunhado para a prática médica. Podemos
compreender a possibilidade concreta desse tratamento como decorrendo da
peculiaridade do trabalho dos médicos, em razão sobretudo do especialíssimo objeto
de que se ocupam: coincidindo o corpo-objeto do trabalho médico (quando então
significa doença) e o corpo-objeto do trabalho médico (quando então significa doente
a ser transformado), é possível tomar-se como equivalentes a terapêutica do doente –
que se dá como arte (de curar) - , e modo de curar doenças – que se dá como ciência,
conhecimento das doenças -, confundindo-os na noção de medicina – arte e ciência de
curar7 . A questão ora apontada é central em nossas reflexões, posto que as passagens
de uma a outra identidade - doente/doença – são processos importantes de elaboração
reflexiva para a problemática da autonomia no trabalho que queremos estudar.
Voltaremos, por isso mesmo, a examinar o tema mais detidamente adiante. Não
obstante, retenhamos, por enquanto, o fato de que os médicos conseguiram estruturar
seu trabalho nesta conjugação de arte com ciência, e têm sido bastante bem-sucedidos
em fazer com que as práticas que eles mesmos concebem como opostas – a artística e
a científica – convivam, como também se verá, tão solidárias em seu processo de
trabalho. E nisto certamente reside uma grande arte!
Será através de todo esse conjunto de formulações que o ideal de profissão
fia na dependência de seu agente ou, no máximo, de uma posição deste no processo de
trabalho tal que (adequada a) permita o “pleno” desempenho pessoal. Ideal de
profissão, desse modo, vinculado diretamente e subordinado a esse plano do pessoal.
Eis porque a autonomia aparece tão aderida ao ideal de profissão. Eis porque também
o profissional não se identifica a um trabalhador, no sentido de que o agente seria
apenas um dos componentes do processo de trabalho, como outro qualquer. Na
profissão, o agente quase é o próprio processo, posto que é seu componente
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nuclear, ao qual os demais se subordinam, má que para estes não haveria sentido fora
daquele que lhes demarca o médico no ato da prática. Na noção de profissão, portanto,
a concepção do processo de trabalho o reduz quase totalmente às dimensões do agente,
dada a dominância dessas no controle do trabalho.
Talvez, principalmente para o leitor médico, essas identificações pareçam
óbvias demais. Entretanto, há algumas conseqüências dessa representação que já não
são tão imediatamente visíveis assim. Tomemos o fato de que, diferentemente da
maior parte dos demais trabalhadores (entre os quais estão incluídos outros
trabalhadores intelectuais, tais como engenheiros ou administradores, cujo “talento”
pessoal é relativizado no trabalho) a qualidade do trabalho médico, isto é, o “bom
cuidado médico” articula-se diretamente à qualidade da figura pessoal desse agente.
Tudo se passa como se o trabalho dependesse exatamente da sua conformação moral e
técnica. Não por acaso, assim, muitas das questões referentes às condições de trabalho
ficam reduzidas a problemáticas da formação do agente: questões da qualidade do
ensino médico. Esse deslocamento também decorre do fato de que a qualificação
escolar teria esta função de conferir conhecimentos e adestramento em habilidades
técnicas, além de desenvolver atitudes morais/consciências, mediante as quais o
médico passa a ser o principal elemento de ajuste, de correção ou manutenção da
qualidade da prática. É por isso que, por uma concepção de autonomia da educação
relativamente ao trabalho, em que este se renovaria por reformas da primeira, inúmeras
propostas de reorganização do trabalho costumam resumir-se a projetos de
reorganização do ensino u da escola médica8.
Outras vezes, no entanto, as questões do trabalho são remetidas para a esfera
da formação moral privada do médico, razão pela qual sua origem – a família de que
provém, suas condições de vida, seu back-ground cultural e religioso – credita-se
positivamente na avaliação das potencialidades de sua prática. Também é por essa via
que se envolve, nesse julgamento, uma espécie de “hereditariedade”: ser filho de
médico, ou de parentesco próximo, conta pontos favoráveis, por exemplo, em sua
escolha pela clientela.
Todavia, são necessários alguns cuidados nessas considerações, posto que
uma distância tão absoluta entre as representações acerca do trabalho e
fatores extrapessoais do médico (tais como equipamentos e instrumentos de
trabalho, o local, a clientela etc.) já não preside a totalidade das imagens e
pressupostos de “boas” práticas. Alguns já identificaram com clareza a relati-
vidade do agente no processo de trabalho. Na realidade, a recusa em
aceitar essa formulação atém-se a alguns segmentos que, no
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pensamento médico da atualidade, estão voltados para a defesa dos valores
tradicionais. Mais importantes que estes últimos e atuando enquanto intelectuais
orgânicos da categoria, estão aqueles que re-elaboram as concepções mais antigas nas
atuais, mantendo-as ao transformá-las. Esse processo, mediante o qual os médicos
reconstroem ideais de prática e de profissão, podemos designar por modernização dos
intelectuais tradicionais, e surge como necessidade de formular um ideário que
corresponda às mudanças efetivadas na organização de prática. Como veremos, com a
especialização, uma nova concepção de serviço médico e de articulação entre os
trabalhos se impõe, ao mesmo tempo em que se mantém a defesa de alguns dos
antigos valores que tal transformação pode modificar, porém não anular9.
Para aquilatarmos melhor essas re-elaborações será necessário que
identifiquemos outros sentidos para o desempenho pessoal, tal como foi ele
originalmente constituído na construção da profissão médica.
Reduzida a essência da estruturação do trabalho para o plano pessoal dos
agentes, o ato médico passa a significar ação desencadeada pela vontade do sujeito,
isto é, dependente do médico, de sua disposição pessoal. Aparecem, a partir daí,
enquanto qualidades necessárias ao desempenho da prática as características de
responsabilidade e dedicação. Estas, se podem ser desenvolvidas por meio de longo
treinamento escolar, sobretudo na forma do desenvolvimento do respeito moral pelo
paciente em razão do tipo de conhecimento que envolve, não podem, por esta última
característica mesma, exercer-se senão como disposição pessoal, até porque a prática é
uma relação pessoal e direta do médico com o cliente10
. Trata-se pois de qualidades
que parecem pedir principalmente por vocação, posto que seu exercício, se bem que se
opere graças a disposições de coletivo, qual seja, a partir da normatividade social, não
se mostra de imediato produto deste social. Revela-se, antes de tudo, enquanto
disposição pessoal do médico em servir ao doente, por meio do qual serve ao coletivo-
social. E nesse plano do social, em contrapartida, deverá ser-lhe reconhecido um dado
prestígio: valor que se lhe atribui na escolha social mas que lhe permite obter uma
satisfação pessoal no exercício da profissão.
Reconhecer o valor do trabalho profissional também se pauta
em ação individual, pois se apresenta como reconhecimento pessoal por
parte do cliente (doente individual), quando este procura o médico
espontâneamente, ao selecioná-lo entre os demais e ao aceitá-lo como sujeito absoluto
na relação médico-paciente. Sujeito pleno de saberes e poderes a quem
deve o doente, como homem-comum, submeter-se: ao conhecimento geral (a
medicina) que o médico representa; e ao conhecimento particular (sobre
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o doente) que o médico exerce quando dispõe e aplica a medicina de uma dada forma.
Em síntese, trata-se da confiança pessoal, que sustenta a livre-escolha do médico, por
meio da qual se evidencia não apenas o valor da categoria profissional, senão daquele
médico especialmente: “(...) uma ideologia bastante difundida, segundo a qual a
dignidade profissional, a motivação para o trabalho, a preservação dos princípios éticos
e a própria qualidade da atividade médica podem ser significativamente elevador a
partir do momento em que se assegure ao médico a possibilidade de ser livremente
escolhido pelo paciente e de determinar seus próprios padrões gerais de
relacionamento com ele.”11
Há, portanto, de um lado, um movimento que se percebe como demanda
voluntária do serviço, uma procura ativa e pessoal do paciente, mediante o que a
profissão caracteriza como consultante, assistência que se daria por solicitação externa
e apenas se produziria onde e quando esta emergisse: “(...) the survival of medical
practice depends upon the coice of laymen to consult it. Choice to consult connot be
forced; it must be ttracted”12
.
É claro que a conformação desse voluntarismo há que ser compreendida
como dada no plano coletivo, no plano social. O que ora destacamos reside
exatamente nesta aparência de demanda espontânea, pessoal, voluntária pelo paciente,
de que advém, por outro lado, a representação do ato médico como relação que se
deva passar neste plano apenas do interpessoal. Não somente um serviço como outro
qualquer, nem tampouco mera aplicação técnica de conhecimentos científicos; esta
relação é antes um cuidado, uma assistência, em que a intervenção se caracteriza pela
manipulação direta e também, principalmente, pela orientação e pelo conselho. E
porque adentre os componentes pessoais, os acontecimentos privados do doente, a
privacidade da própria relação é base necessária ao componente ético que deve
perpassar o plano técnico do diagnóstico e da terapêutica. Eis o fundamento do
segredo profissional, cuja sustentação objetiva não pode ser, portanto, outra a não ser a
de uma relação que é também exclusiva: “(...) o ato médico é um colóquio singular,
isto é, uma espécie de duo que não comporta no silêncio do consultório senão dois
personagens: o médico e o doente. É um ato fechado no espaço e no tempo, que inicia
por uma confissão, continua por um exame e termina por uma prescrição. Há aí uma
unidade de tempo, lugar e ação. Esse encontro, bem o sabemos, é aquele de uma
técnica científica e de um corpo, mas prefere-se acreditar que são essencialmente duas
almas (...)13
.
Essa atenção para com a individualidade no ato privado e exclusivo
revela fundamentalmente uma conduta moral, modo pelo qual se deva
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cuidar da liberdade do sujeito-paciente, que por ser livre para demandar assistência,
será livre para expor seu sofrimento. E o ato médico requer essa conduta para que o
paciente possa apresentar-se sem constrangimento no exercício de sua subjetividade, e
sentir-se livre para expressar o domínio que tem da doença enquanto parte de si
mesmo. Porém, é uma atenção que também impõem limites à livre presença do
paciente, posto que esta se defronta com a liberdade do médico em observar, compor,
elaborar e atuar sobre aquele domínio que o paciente tem da doença, no exercício do
seu próprio, enquanto médico. Em outros termos, a privacidade da prática é a via pela
qual, de um lado, o paciente realiza-se como sujeito, que todavia se reduz a portador da
doença, e de outro, realiza-se o médico, como sujeito pleno, sujeito que sabe.
Examinemos isso mais de perto.
Primeiramente observemos a demanda espontânea e voluntária do paciente
também é concebida pelo pensamento médico como exercício de uma moral. O
comportamento demandante supõe não apenas o reconhecimento da ordem médica
pelo sujeito que se percebe doente, mas se constitui em ideal de comportamento diante
da doença por referência à ordem social, em que o doente além de reconhecer certos
estados vitais como necessidades de intervenção médica, submete-se sem restrições a
essa intervenção. Em resumo, aceita que seja o médico o sujeito do saber, aceita-se
passar a exercer sua própria subjetividade na qualidade de aprendiz, daí que também
para o paciente o ato médico seria uma assistência, que trata, mas sobretudo orienta,
aconselha, ensina: “When the societal reaction sends the lyman into Professional
consultation, it hás moved him into a different domain that of the profession. Some of
the force of societal reaction must be lost at He door. At the point of entrance into
consultation lay conceptions of illness no longer stand by themselves”14
. Esta mesma
atitude do doente traduz na vontade pessoal individualmente realizada um
condicionante social, posto tartar-se de ação estruturada na organização social global.
A racionalidade que a justifica no plano do pensamento médico, porém dela faz
representação que vê nesse movimento um ato de comportamento livre,
essencialmente dado pela moral do demandar-se responsável à qual adere o paciente,
como contrapartida ética do servir-responsável que o médico oferece à sociedade.
Na esfera do paciente, contudo, trata-se de uma responsabilidade referida
não exatamente ao médico e à sua ordem, mas ao social. Será por referência à
manutenção da ordem social (qualidade valorizada positivamente do
funcionamento regular, usual e normal do corpo como expressão de saúde,
tal qual se apresenta nas funções condições cotidianas de vida)
que se pauta o doente quando vai em busca da assistência que poderá restituí-lo
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 159 -
à sua situação anterior. E o fato de que seja na livre iniciativa individual que todos
esperem a reparação mantenedora do coletivo-social, tanto deriva da concepção da
doença como moralmente indesejável (na qualidade de comportamento social) mas
concebível e moralmente aceitável (no indivíduo), quanto deriva do ideal de alcançar o
social por meio exclusivo das atividades pessoais. A doença no coletivo controlar-se-ia
por meio da assistência individual, fundada no comportamento ético de cada
indivíduo, pessoalmente, e no exercício do livre-arbítrio da demanda por cuidado
médico.
Historicamente, a preocupação em demarcar um coletivo-social para o
âmbito da ação médica, conferindo-se à medicina alcance coletivo e objetivando a
doença em um social cada vez mais controlado pela medicina, correspondeu ao
próprio processo mediante o qual esta prática vai, conjuntamente com as demais
práticas da sociedade, assumindo características da forma capitalista de viver em
sociedade. O traço peculiar da medicina está em tê-lo feito na constituição de uma
intervenção individualizada, como forma histórica adequada. A emergência da Clínica
como meio de trabalho propício à medicina do capital, que é essencialmente
individualizante ao mesmo tempo em que se propõe a um controle da doença no
social, evidencia bem a equivalência que a medicina formular entre o social e o
individual15
, o que também ocorrerá no âmbito de todas as outras práticas sociais.
Assim, tudo se passa como se, da disposição pessoal do doente em procurar
a assistência do médico e de sua presteza nessa direção, decorresse tanto a colaboração
com a eficácia diagnóstica e terapêutica do ato realizado, quanto a validação da própria
ordem médica.
Será em reconhecimento a essa atitude que a sociedade validará a presença
do paciente em seu interior, implicando toda uma reorientação da ordem social de
direitos e deveres, através de uma peculiar, mas legítima, forma de exercício de
cidadania: mesmo existindo o ajuizamento negativo da doença para o conjunto social,
a valorização do doente reside em isentá-lo de culpa; não há responsabilidade pessoal
nesse comportamento social (de doente). Apenas a doença é julgável, não o doente,
posto que a primeira não é produto da ação intencional deste, mas acontecimento
possível, ainda quando ocorram gradações no trato social que se dará ao doente, em
razão da modalidade no adoecer por atitudes “condenáveis” por parte do doente.
Conforme se trate de doença aguda ou crônica, infecciosa ou não, leve ou
severa, serão todos esses estados concebidos de modo diverso enquanto
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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evento casual, e serão então também legitimados de modo diverso quanto à isenção
dos compromissos ou à ampliação dos privilégios sociais de seus portadores. Todavia
enquanto doença social, comportamento de doente na sociedade, a situação aponta, no
geral, para o permitido, com o desenvolvimento de práticas sociais de acolhimento do
doente e não de punição16
.
O fato de que as doenças crônicas ou infecciosas em participação direta
imediata do doente, e mesmo casos graves, recebem distintos tratamentos sociais
quanto ao papel do doente, em comparação com os casos agudos ou leves (tais como
resfriados ou distúrbios digestivos rápidos), ou em comparação com casos infecciosos
(a doença venérea, por exemplo), embora isto não anule a conduta geral de validação
daquele papel, denota ao mesmo tempo uma absolvição da incapacidade, e contudo,
uma isenção apenas relativa das obrigações normais, indicando também relativizações
nas responsabilidades que possam ser imputadas17
.
É desse modo que o sentido para o doente da posição que ocupa na relação
médico-paciente combina uma aceitação de conhecimento limitado com uma atitude
moral adequada, o que termina por caracterizar a presença ou participação do doente
nesta relação enquanto possibilidade muito específica de realizar sua subjetividade,
expressando seus desejos, expectativas ou receios pessoais. Para o médico, por sua
vez, a mesma combinação entre o aspecto técnico e o aspecto ético da relação assume
o sentido oposto. A concepção que se formula no ideal de prática é clara: define na
autonomia a posição necessária e adequada para a boa consecução de todas as
demarcações apontadas, sejam elas técnicas ou de ordem ética. Examinemos melhor
suas razões.
Observemos que apenas aparentemente a delimitação do domínio médico
dita-se direta e totalmente com base no conhecimento científico, pois seu monopólio
confere aos médicos a legitimidade de sujeitos que sabem sobre as doenças, mas já
sobre os doentes a sabedoria se funda em substrato de outra espécie, o da experiência
clínica. Assim, somente a Completar em dois níveis: o técnico e o ético; ou melhor,
oferecer conhecimentos na arte de combiná-los. E considere-se que ora discriminamos
duas dimensões que apenas podemos separar analiticamente, a da ação propriamente
técnica do diagnóstico/terapêutica e a da inter-relação pessoal entre médico e o
paciente.
Em ambas dá-se a combinação técnico-ético, posto que, de um lado, ao
médico cabe saber o modo de desvelar a doença no que lhe traz o doente.
Isto é, desvendar os planos pessoal (subjetivo) e corpóreo (objetivo), iso-
lando-os, re-classificando-os com base na realidade que lhe apresenta o
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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doente e na qual eles se encontram consubstanciados. De outro lado, o médico
também deverá ter a sabedoria da forma exata de fazê-lo, de modo que o doente lhe
confie toda sua pessoalidade, com exatidão e em completa entrega de sua
subjetividade. Os termos meu médico/meu paciente dão bem conta de situar essa
relação.
É sabedoria, portanto, de bem exercer este seu monopólio de saber
científico, saber que a prolongada e complexa qualificação escolar lhe confere. E ainda
que desta também resulte, por meio dos casos que vê na orientação escolar, uma
iniciação na sabedoria da profissão, é um aprendizado insuficiente a que há de agregar
o vivido da prática.
Onde reside a insuficiência? Por que a ciência não é capaz de suprir toda
essa complexidade? Novamente, aqui, uma clara resposta por meio de uma das mais
respeitáveis máximas da medicina: porque cada caso é um caso. Ou, o seu equivalente
no apelo à “soberania da Clínica”, isto é, da experiência profissional, sempre que o
pensamento clínico entra em disputa com quaisquer outros dados, ainda que mais
objetivos, do ato médico.
O sentido da forte presença da subjetividade do médico, e de seu progressivo
fortalecimento ao longo da experiência acumulada no múltiplos casos que vivencia, é
o que nos traz essa proposição, expressando a crença no único aprendizado que seria
eficaz para a profissão: descobrir as melhores formas de exercer a plenitude de sujeito,
demarcando na prática clínica o modo operatório adequado à realização de seus
monopólios de saber e praticar. Trata-se, desse modo, da peculiaridade da prática em
que o aspecto técnico, usualmente significando a aplicação da ciência, requer nesta
aplicação um domínio especial de uma arte, o que também devemos examinar
melhor.
A medicina é antes de tudo intervenção, prática técnica, daí que o
pensamento médico conceba a técnica enquanto essencialmente ação transformadora,
quando então o conhecimento científico adquire seu estatuto de máxima eficácia e
validação. Desse modo, se é verdade que pelo seu caráter científico é a prática médica
concebida como segura, em certo sentido é também pela praticidade que o
conhecimento médico se mostra eficaz: conhecer as doenças, ser capaz de diagnósticos
são precondições para a terapêutica; mas ser conhecimento terapêutico importa
mais do que ser conhecimento verdadeiro: “(...) the aim of the practitioner
is not knowledge but action. Sucessfull action is prefered, but action with
very little chance for sucess is to be prefered over no action at all. There is a
assumption that doing something is better than doing nothing”18
. Além
disso, como este mesmo autor aponta, por referência ao paciente que pro-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 162 -
cura o médico: “The request is ‘Doctor, do something’, not ‘Doctor, tell me IF this is
true or not’.”19
É evidente que se requer muito cuidado no tratamento analítico dessas
questões, posto que envolve componentes substantivos da prática e de sua
representação como atividade técnico-científica. Temos aqui nada menos que as
relações entre a Ciência e a Técnica, e as relações destas com a Verdade, todas elas
símbolos da qualidade superior da vida moderna. Ademais, temos estas relações em
articulações tais que conferem à medicina contemporânea sua credibilidade.
Com a devida precaução, portanto, de não construir apenas uma análise de
aparências reduzida ao mero proselitismo ideológico, considere-se que ora efetuamos
uma dada identificação das construções de ideais no pensamento médico. Partamos,
então, da presença efetiva da Ciência nessa prática técnica: a medicina de fato aplica o
conhecimento sobre as doenças. Não se quis jamais afirmar a ausência do caráter
científico como seu fundamento.
Todavia, ao indicar a precedência da ação, do prático relativamente ao
conhecer, buscou-se evidenciar o modo peculiar pelo qual o caráter científico se
inscreve nessa prática. Observemos, nesse sentido, a dualidade doentes-doenças, que,
como muito bem demonstrou Canguilhem20
, está presente como movimento
substantivo do julgamento no, e do, ato de prática: é o doente que busca cuidado; mas
é a doença que o médico diagnostica. É com base nesta que o médico projeta uma
terapêutica, a qual, em retorno ao doente, deve ser-lhe pertinente e eficaz; qualidades
que deverão aplicar-se não apenas à dimensão em que a doença domina, isto é, no
plano do corpo, senão à totalidade do doente. E na esfera deste último, à objetividade
do corpo se superpõe, com precedência de valor de vida, o plano em que é pessoa-
social, singular de coletivo, subjetivo de objetividade.
Dito talvez de modo mais claro, em relação ao doente uma intervenção só é
pertinente e eficaz se lhe é possível, isto é, se concretamente lhe corresponde para ser
realizada, e se lhe traz como resultado o retorno ao modo de seguir vivendo nas
condições em que isto se dava antes do seu adoecimento.
De um primeiro ponto de vista, portanto, o doente apresentar-se-ia na
qualidade de situação particular para o conhecimento geral dado a partir da Patologia.
Caso toda a questão da prática a isso se resumisse, se lhe retiraria toda a arte,
restando a medicina como a “ciência de curar”, mediante o que se reduziria
também sua máxima clínica de todo caso é um caso para “todo caso é
caso”, geral repetido em particular. Ocorre, porém,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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que é duplo o modo pelo qual a individualidade deve ser apropriada pelo médico no
ato de trabalho: singular relativo ao geral, mas também simultaneamente singular
absoluto, no profundo entrelaçamento de dimensões naturais e não naturais (afetivo,
psicológico, pessoal, social), tal como se postula para o ato adequado conforme já
consideramos anteriormente.
Exige-se tecnicamente, portanto, que a aplicação da patologia efetive-se
mediatizada pela Clínica, conhecimento de caráter mais prático, por meio do qual a
técnica aplica o conhecimento da Ciência. Trata-se do diagnóstico clínico, que
parecerá, pois, fundado na Patologia, mas o será somente por intermédio da Clínica,
que articula a Patologia a conhecimentos da ordem do subjetivo dos doentes, e assim
comparece na forma de um saber interconectante deste último plano com o plano
objetivo das alterações anatomofisiológicas do corpo. Veja-se que na Clínica estão
presentes várias dimensões de subjetividade: sintomas; reações psicológicas à doença,
ao sofrimento, e à própria terapêutica; situações de vida condicionantes dos distúrbios
objetivos do corpo, e assim por diante. Essas dimensões, porém, comparecem no saber
desqualificadas como subjetividades, conforme se pode ver nos textos de Clínica que
apresentam os conhecimentos operantes também estruturados em moldes da
Patologia, qual seja, como saber geral e positivo do comportamento das doenças dos
doentes.
Se isto serve ao saber clínico de amparo legitimador de cientificidade, de
outro lado, como para a Ciência, este saber impessoal sobre pessoalidades implica
medicações de esquema operatório, em razão da incapacidade de qualquer
generalização recobrir total e satisfatoriamente o já mencionado duplo sentido da
singularidade. Se é mister, pois, dominar o conhecimento científico, importa sobretudo
dominar a arte de aplicá-lo, sabedoria do exercício concreto que apenas no exercício
acumulado, por meio da experiência prática da clínica, se pode aprender.
Trata-se de uma sabedoria ímpar do médico este lidar com individualidades,
ao mesmo tempo conhecendo-as, descobrindo-lhes as verdades, e controlando-as na
articulação que deve fazer ao conectar o geral/abstrato da doença a este
particular/concreto do doente. Tudo isso de modo tal que também signifique oferecer
soluções aceitáveis ao doente, no domínio de um ensinar. E porque, enfim, toda essa
sabedoria diz sempre respeito a relações entre duas individualidades, como emergem
médico e paciente na relação interpessoal de consulta, não apenas se torna tão-só
parcialmente repassável esse aprendizado a outros, como também a si próprio lhe
parece sempre apenas parcialmente conhecida a arte com que domina.
Também para o médico cada situação apresenta-se até certo ponto
como novidade: todo diagnóstico é simultaneamente aplicação, em um sem-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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tido, descoberta, em outro. É conhecer, tal qual a prática científica, produzindo
verdades, valendo-se dos conhecimentos anteriores, mas com uma relativa
independência. E o fato de que sejam verdades singulares, específicas ao caso, não lhes
tira o mérito de verdadeiras. Ao contrário, é nessa peculiaridade da realidade médica
que reside sua virtude. De outro lado, porém, não deixa de ser prática técnica,
aplicação quer da Clínica mais imediatamente, quer da Patologia mais mediatamente.
Curiosa conjugação de significados, ambivalências de sentidos bem
evidenciada por todos seus termos-mestres, na ambigüidade das designações em que
medicina ou clínica querem dizer bem mais do que seus significados parcelares de
aplicação e de descoberta; e querem dizer, ainda, bem mais que as meras justaposições
desses dois significados. Nesse sentido, o termo arte lhes é muito mais favorável.
Novamente cumpre lembrar que se no cotidiano a arte não é assim tão
pródiga em matéria de criatividade pessoal, no plano do ideal esta prática se faz
representar pela qualidade de ato sempre “único”, o que concorre para tornar a relação
médico-paciente uma relevante questão diante da rotinização do trabalho para o
médico e diante do valor da doença para o doente, enquanto sua realidade pessoal e
singular.
Estas últimas considerações apontam aparentemente para uma “distância
entre intenção e gesto”; ou seja, fariam supor um ideal sem suporte de ação. A questão
é em realidade um pouco mais complexa: se para o paciente cada episódio mórbido é
único, para o médico a doença é supostamente conhecida na apropriação do saber. O
que será único é todo o ato de clínica, isto é, o modo pelo qual o doente e doença se
“conectam”. E seria único porque o médico desconhece as particularidades de cada
doente, a pessoa “na doença”. Porém, essa separação entre doente/doença só existe na
construção reflexiva que o médico faz da realidade, e o difícil será exatamente
processar com êxito a situação ao mesmo tempo já conhecida, mas ao mesmo tempo
não conhecida, uma vez que também o médico se dá conta de, e sabe que deve levar
em conta, a totalidade singular do doente.
É por isso que importa assinalar essa exigência da prática, aparentemente
paradoxal, de ter que sempre responder à demanda com uma intervenção que deve
utilizar-se da Ciência, mas também criar o novo e formular descobertas já
imediatamente eficazes e pertinentes, ainda quando o faça sem as mesmas
possibilidades que detém a Ciência de configurar sua criação como conhecimento
seguro, ou em situações que, valendo-se da Ciência Estatística, a Ciência Natural pode
conhecer até a medida e a extensão da segurança.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 165 -
Eis a razão porque a prática médica é concebida como prática que implica
julgamentos complexos, riscos e algum grau de incerteza nas decisões diagnósticas e
terapêuticas21
. No entanto, ela é ao mesmo tempo uma prática socialmente ofertada e
demandada como intervenção segura, indicando concretamente uma superação da
imagem anterior, ou pelo menos uma resolução antecipada da questão das incertezas:
um “bom” julgamento complexo dissiparia a insegurança, como que anulando o risco.
Esta última imagem funda-se na concepção de que os riscos decorreriam mais da
natureza da organização social do trabalho médico do que de uma inadequação técnica
por insuficiência do conhecimento científico relativamente às situações concretas de
prática. Este aspecto apenas reforça a necessidade de se compreender a superação das
incertezas como decorrendo de outros postulados que regem a medicina para além de
seu fundamento na ciência: o pragmatismo e a crença do médico em sue própria
capacidade.
A prática médica é representada, pois, também por esta via, como
intervenção fundada na competência pessoal do médico. Esta o fará desenvolver o
senso de particularização e o fará bem exercitar sua subjetividade, estabelecendo
também as próprias regras de decisão e os limites de sua intervenção. Em outros
termos, o médico deverá desenvolver os critérios e os mecanismos da sua auto-
regulação.
Para um exercício dessa natureza, carregado de tantos e tão complexos
requerimentos, não poderia ser outra a forma de desempenho que não aquela realizado
por meio de sua inserção no trabalho com ampla autonomia, quanto então disporá o
médico de condições de adquirir e exercer sua experiência clínica individual. É assim
que o ideal de prática articula-se a um ideal de produzi-la na sociedade na forma de
atos individualizados e tão diretamente dependentes da pessoa do médico: ato de
relação interpessoal e sempre individualizada; ato de competência pessoal, por
vocação, por formação familiar e por qualificação escolar, meios através dos quais
pode o médico pessoalmente desenvolver a qualidade central da profissão – a arte com
que usará seus conhecimentos científicos.
Mas o que viria a ser esta arte senão a independência do médico
relativamente a todos os componentes de seu trabalho “externos” à demanda que lhe
apresenta seu paciente, para que nada o perturbe ou influencie no julgamento
complexo e arriscado que fará? O que pode diminuir a incerteza senão o isolamento no
momento criador, em que o médico encontrará o diagnóstico já como parte
indissociável daquele doente singular, a doença como realidade individual e subjetiva?
Isolando-se mantendo-se independente de outras dimensões da reali-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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dade da prática que compões o ato profissional, pode o médico exercitar, “puro”, o seu
saber: imparcial e neutro por referência a ordens “exteriores” que assim devem ser
mantidas; e pleno por referência a outras ordens constitutivas da “essência” do ato
médico. Os componentes da vida social concreta, e que também perpassam o trabalho
profissional, não deveria perturbar sua “atenção absoluta”: sua remuneração, as
condições materiais de exercício de seu trabalho, as formas pelas quais o cliente
chegou a buscá-lo ou irá pagar por seus serviços, o que de fato ocorrerá com o doente
depois da assistência que prestou, ou, ainda, sua própria condição de um possível igual
ao outro, um doente virtual.
É nesse sentido que o isolamento fornecido pela consulta, como prática
interindividual e exclusiva, veio a se constituir na forma material imprescindível para
este desempenho. Conforme já referido, essa espécie de dueto não comporta no
silêncio do consultório senão dois personagens...22
Também é significativa essa referência ao silêncio no encontro constitui o
consultório, ou o hospital, uma separação entre as dimensões “externas” e “internas”
ao ato, demarcando bem um ambiente de prática que dela exclui a participação da vida
cotidiana, exceto a pedido do médico por uma necessidade técnica “interna” ao ato23
.
O momento do diagnóstico e da projeção terapêutica demarca no ato
profissional, portanto, planos de relevância distinta: o de “dentro e o “de fora” da
prática técnica. E se a independência referente ao que lhe é “exterior” definiria a
neutralidade médica diante dos outros elementos de realidade que ali se inscrevem,
uma outra independência se requer no plano “interno” do ato, para que, em sentido
oposto ao daquela mesma neutralidade, possa ele manter uma dada autonomia por
referência à objetividade absoluta da doença no plano de seu saber científico. Só assim
poderá efetivar a inevitável e necessária inclusão do social e da subjetividade com que
lhe é apresentada a realidade “da doença no doente”.
A inclusão do social e do subjetivo implica a exclusão dessa mesma
dimensão no diagnóstico, que remete á doença universal, para sua posterior re-
integração na terapêutica concreta. O que significam estes movimentos; o que se
comunica ao doente e à sociedade exatamente através destes processamentos; e o que
significa captar o social por meio do subjetivo individual, todos eles são elementos da
prática que devemos examinar em maior profundidade. Por ora retenha-se tão somente
essa dupla conotação da autonomia: independência em relação a valores, de um lado,
demarcando uma “essência” técnica e neutra do ato médico; de outro, no
momento de realização desta “essência”, uma independência inversa em
relação ao técnico científico. Será por meio destas especificidades que a
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1993. 229 páginas.
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autonomia do médico representa, ao mesmo tempo, o desempenho adequado às
necessidades éticas e às necessidades técnicas da profissão, assim se tornando o modo
ideal de exercê-la.
AUTONOMIA: UMA QUESTÃO PARA OS MÉDICOS
Pode parecer que insistimos demasiado nestas especificidades que e
atribuímos à prática até aqui; também se pode argüir da ausência de referências mais
explícitas ao social, ao econômico, ou ao político-ideológico no pensamento médico.
O fato é que essas referências não são verificadas quando se trata do conteúdo
substantivo de seu trabalho, exceto no âmbito dessa conexão técnica-ética. Já
mencionamos que os médicos não concebem sua prática exatamente como um
trabalho, senão que a destacam relativamente às demais práticas sociais que entendem
como trabalhos. Até porque, segundo eles, dada a complexa natureza do ser humano, a
prática sobre esse objeto de intervenção muito se aproximaria da noção de uma técnica
a serviço de um sacerdócio, no sentido de ação gratificante, e não propriamente um
“serviço remunerado qualquer”; imagem que persiste mesmo quando atenuada pela
forte presença do plano material de equipamentos e instrumentos na medicina
especializada.
Advogam os médicos, com base nessas concepções, tanto o necessário
prestígio e o valor social de sua prática, quanto a validade de sua forma monopolizada
de exercer vários domínios: o do saber, o da prática, o da ciência e o do ensino.
Ademais conseguiram nesses domínios reservar para si mesmos a avaliação e a
regulação de seus desempenhos: controle sobre outros e autocontrole é a fórmula
bem-sucedida de prática e que representa o seu ideal. Esta é a forma de relação que os
médicos pressupõem por referência aos demais agentes sociais, tanto quanto na
articulação entre seus próprios trabalhos. Definindo as ordens de vida e de saúde,
definindo as transgressões dessas ordens e definindo suas re-normarlizações, em atos
que também só essa categoria profissional efetiva, como gerentes e juízes de si
próprios, os médicos demarcam uma profissão que parece decorrer exclusivamente da
conquista de uma autonomia de amplos domínios.
Para isso concorreu o fato histórico de se ter estruturado a prática médica, em
seus momentos iniciais de reorientação como intervenção moderna, na forma
de um trabalho projetado basicamente às custas do saber, pois nasceu como
exercício quase que exclusivamente fundado no raciocínio, operacio-
nalização reflexiva de conhecimentos científicos de caráter teórico, havendo
apenas parcos recursos instrumentais materiais. Uma técnica,
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Liberdade, o pressuposto do trabalho - 168 -
portanto, cujo principal substrato tecnológico tinha caráter de tecnologia não material.
Por essa razão, também, pôde esse serviço ser socialmente produzido na condição de
“profissão liberal” de “prática autônoma”. Dessa configuração lhe adveio a
possibilidade, até mesmo, de ser desqualificado, no plano das idéias, como trabalho
social igual ao outros. Pelo contrário, pôde ele ser compreendido como prática cuja
essência e natureza própria exclui elementos de realidade mais imediatamente
característicos do social. Mas não obstantes retirados da representação do núcleo
essencial da prática, esses elementos permanecem subjacentes a ele, como se fossem
as “agruras” da profissão. Assim, se as realidades do cotidiano social podem “estar
fora” do momento nuclear da prática – ato técnico diagnóstico e terapêutico -, restam
todavia, como coadjuvantes inexoráveis de seu exercício, seja por intermédio do
doente, sujeito social/agente de produção, seja por intermédio do médico, igualmente
sujeito social/agente de produção.
Poderíamos então dizer que no âmbito mais inclusivo da prática, em suas
relações totalizantes, o ato não consegue totalmente libertar-se de influências sociais e
subjetivas, estruturando-se sob padrões técnicos de obrigatória polarização por
referência a juízos e valores. E isso ocorre porque ao qualificar-e como profissão,
desqualificando-se como trabalho, a prática médica pagou o tributo de construir-se em
atos individualizados de relação interpessoal. Estruturou-se socialmente por causa
disso como a prática do pequeno produtor privado e isolado, a que chamamos de
medicina liberal. Esta, porém, ao longo da história do trabalho médico, em seu
desdobramento nos trabalhos parcelares e especializados, e apenas depois disso,
mostrou-se tão-só uma particular modalidade de produção dos serviços, além do que
modalidade transitória.
Este fato irá necessariamente operar, por meio da diferenciação nas formas
de exercer a medicina que mais recentemente se instaura, uma relativização na
imagem original desta prática: veremos mais adiante que da autonomia do ato técnico
à autonomia na produção do serviço, que de início significava apenas um e o mesmo –
a autonomia da profissão – e apresentava-se como um todo indiviso, emergirão
conteúdos, como os da etapa diagnóstica por exemplo, que serão considerados
substantivos, dos quais outros serão afastados enquanto secundários, como as questões
político-administrativas da produção do trabalho médico. O próprio pensamento
médico, pois, operará uma cisão no que originalmente parecera aos médicos um
conjunto indissociável, qual seja, a prática técnica e a forma de sua produção em escala
social. Essa, porém, é a própria história em que a autonomia surge como campo de
problematização, passando a constituir uma questão, além do que vital, para esses
profissionais.
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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Liberdade, o pressuposto do trabalho - 169 -
Ela será, já vimos, um problema experimentado na vivência cotidiana do
trabalho. Alçada a problemática central relativamente à qualidade do desempenho na
profissão, constituirá objeto privilegiado do pensamento dos médicos acerca de sua
prática. Neste, porém, a referida demarcação dos âmbitos “externo” e “interno” à
prática proclamará apenas o lado técnico, representado pelo momento da consulta ao
médico, como aquele circunscrevendo em seu âmbito os problemas que serão
considerados como questão para os médicos.
Mas conforme dissemos, ao menos pela via do subjetivo-pessoal, o social
adentra o “interno” da prática. Ao fazê-lo por essa via, contudo, passa a ser recoberto
pela própria técnica, isto é, passa a ser subsumido no técnico. É nesse sentido que
embora a prática objetivamente lide com o social, este lidar não é reconhecido como
tal.
Ao contrário, vivenciando através da singularidade do doente e tomado
sempre na particularidade do caso, os elementos da vida social serão drasticamente
reduzidos para o plano da essência natural e biológica do doente. Os fatos e problemas
do social serão deslocados de sua qualidade de constituintes da vida consubstanciais
com o natural, para a qualidade de circunstâncias exteriores a este último:
conformariam o meio - conjunto de fatores de existência anterior e independente do
doente; ou no máximo conformariam, no que diz respeito a dimensões propriamente
humanas do mundo natural” dos planos do corpo mais visíveis e materializáveis que a
mente.
Ora, repousando várias necessidades técnicas do ato médico, entre elas a
autonomia como instrumento do trabalho, exatamente nesse plano do componente
subjetivo-pessoal da prática, será de certa forma até contraditório que as problemáticas
relativas a este plano (e então relativas de modo imediato ao social) sejam as que
assumam o papel de principal fonte geradora de questões. Não obstante, essa
contradição não será captada pelo pensamento médico, pois as questões implicadas
serão circunscritas e abordadas estritamente do ângulo da técnica, fazendo com que a
autonomia no trabalho pareça reduzir-se apenas a um imperativo de ordem técnica.
Dessa perspectiva e do ponto de vista histórico, as transformações
do trabalho médico serão tomadas como se fossem apenas seu desenvolvi-
mento científico-tecnológico, não afetando quer a relação médico-paciente
quer a autonomia do primeiro diante do segundo, posto que esta posição desigual
seria uma necessidade derivada das características “naturais” do
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paciente e um imperativo técnico, portanto, da prática. Decorre daí a noção de que, por
“ser” a medicina desde sempre uma intervenção sobre pessoas doentes, tal como se
revela na aparência formal do ato, o que viria qualificá-la de moderna seria uma
inserção na racionalidade da ciência e da técnica cientificamente fundada.
A esta racionalidade, também, crê impor o seu estilo ontológico, isto é, “ser”
não só uma relação interpessoal, senão já imediatamente uma relação desigual, ao
invés de entender que procedeu a adapatações radicalmente novas – mudando a
natureza da relação médico-paciente e criando a autonomia - , pra vir a ser aplicação
científica. Assim, embora seja a prática contemporânea dos médicos um outro
proceder diante das intervenções anteriores ( o que autorizaria vê-los como fenômeno
de existência nova e recente), pelo fato de não terem sido os médicos criados pela
Ciência moderna, mais parecendo “atingidos” por ela, as transformações modernas
não serão vistas como uma ruptura com a ordem anterior: trata-se, desde sempre, de
uma só e mesma medicina, dirá o pensamento médico sobre essa prática, embora não
mais empiricista e sim científica24
.
Nos traços “essenciais” de constituição de seu trabalho, como o da
autonomia profissional, por exemplo, supõem os médicos uma continuidade histórica
necessária. Acreditarão serem eles próprios agentes e intelectuais independentes de
qualquer outra racionalidade que não a que atribuem ao núcleo essencial da prática,
vendo a si mesmos, portanto, como necessariamente (no sentido técnico que se
estende a todos os outros planos) livres para definir sua atuação: “Diferentemente de
outras práticas sociais, cuja origem é coincidente com a própria emergência ou com o
desenvolvimento da sociedade capitalista, a medicina tende a revestir-se mais
facilmente de um caráter de neutralidade face às determinações específicas que
adquire na sociedade de classes. (...) Tal concepção, que se elabora e reelabora,
também por referência às demais práticas técnicas, no conjunto de relações sociais
próprias a essa sociedade, encontra, ainda, na marcada continuidade histórica da
medicina, um de seus principais suportes. A prática médica e seus agentes não foram
instituídos no interior do modo de produção capitalista. Justamente por se sentirem
entre as antigas formas de intervenção técnica é que eles podem também aparecer mais
facilmente investidos do caráter de autonomia, como ocorre com outras categorias e
práticas e agentes que, preexistindo a um novo modo de produção parecem
preservados de revestir novas formas correspondentes a articulações inteiramente
distintas com as estruturas econômica e político-ideológica que o compõem”25
.
A própria presença da transformação implica tentativas de fixar o tra-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 171 -
dicional, a ordem de práticas e de valores já consagrados. Um retorno ao passado, em
busca da manutenção do adequado, ou uma modernização com cautela, são presenças
constantes no pensamento médico: uma das primeiras reações a dificuldades da
prática, que são havidas como “desajustes” em um dever-ser, é a que reforça a
tradição; quando não, são manifestações que buscam formas conciliatórias com o
objetivo de re-produzir o tradicional. E dado que a re-adequação histórica da medicina
em sua modernização ocorreu por meio da constituição da produção de serviços na
modalidade da prática liberal, a marca do tradicional viria a instaurar como questões
para o pensamento médico os problemas referidos à organização da produção dos
serviços na sociedade. Em outras termos, tendo a autonomia profissional se
constituído através de uma assistência médica organizada na forma de pequenos
produtores isolados e independentes, a própria autonomia do médico passou a
vincular-se às características dessa forma de produção, a que se associou a concepção
de trabalho livre (liberal): ausência de conexões formais entre produtores; propriedade
pelos médicos individualmente dos meios de produção da assistência; laços informais
com a clientela; e ausência de obrigações produtivas exceto as geradas pela procura da
consulta e definidas pelo tipo técnico de demanda, com base na qual se definiria para
os serviços uma remuneração imprecisa, informal e flutuante.
Se isto significa, conforme já dissemos, a superposição do ideal técnico a
uma forma ideal de organizar os serviços, sobretudo significa, da perspectiva do
tratamento da questão da autonomia enquanto “essência” técnica própria ao trabalho
médico, o deslocamento dessa questão para um plano que em princípio lhe é tido por
exterior, o plano do social. Assim, passam a ser condicionantes da autonomia do
médico (que então se determinaria não mais à custa exclusivamente das
especificidades do plano pessoal na produção do cuidado médico) as condições de
trabalho em seu conjunto. Paradoxalmente, pois, o pensamento médico participará,
como forma de manifestação em prol da autonomia técnica, das formulações políticas
de saúde26
.
Será por via da problematização acerca do mercado de trabalho para o
médico; ou acerca da constituição de novas modalidades de produção de serviços
(tais como empresas médicas, por exemplo); ou ainda acerca da articulação
dos produtores entre si (como na formação de conglomerados empresarias)
e da participação do Estado na qualidade de regulador da produção, o modo
pelo qual prioritariamente se constituirá a problemática referida à autonomia
técnica, quando esta começa a ser tensionada ao se superar, com o
desenvolvimento histórico das forças produtivas do traba-
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 172 -
lho médico, sua organização social na modalidade liberal de prestações de serviços.
Trata-se, portanto, de um questionamento que não se dirige para as questões que dizem
respeito à rearticulação dessa autonomia na esfera reconhecidamente técnica do
trabalho médico, como as referidas aos trabalhos parcelares, quando da divisão técnica
do trabalho médico em práticas especializadas.
Não se depreenda daí, contudo que para o pensamento médico a
especialização não se mostre vinculada ao estabelecimento de “efeitos pensamento.
Ocorre, porém, nesse reconhecimento, a negativa em tomar a especialização pelo seu
aspecto de forma técnica correlata a um processo de trabalho parcelar que
necessariamente implica, como modo de organizar a produção dos serviços, a
interdependência (ao invés da independência) e a cooperação (em substituição ao
produtor isolado). O “efeito indesejável” toma-se na verdade por resultado da forma
socialmente encontrada, no plano de decisões políticas e sociais “exteriores” à prática
médica, para efetivar a complementaridade e a cooperação dos trabalhos, a qual seria,k
do ponto de vista dos médicos, uma forma tecnicamente inadequada. Assim sendo,
estes apenas percebem a questão no plano das configurações formais de seus trabalhos
e se abstêm de examiná-la no âmbito de seu conteúdo mais inclusivo, o ato técnico.
Tal abstenção revela, em realidade, a vontade político-ideológica de não expor esse
âmbito a questionamento, porque nele está, exatamente, a dimensão em que a
autonomia deveria ser sempre preservada: enquanto forma independente, isolada e
individual com que os médicos se articulam ao seu meio de trabalho principal, o saber.
Em outros termos, evita-se problematizar as relações entre os médicos e o saber (no
plano da aplicação prática do conhecimento) foram construídas com a Ciência
Moderna.
Ora, esta relação entre o médico e o saber constitui, como vimos, a
substância da autonomia, embora não seja seu único componente. Assim sendo,
resguardá-la de questionamentos, mesmo que no plano das representações, faz parte
dos procedimentos que buscam manter uma dada liberdade de desempenho
profissional para o médico, isto é, uma autonomia de prática ainda que restrita a esse
plano. E isto implica sentidos necessários para a concepção de trabalho especializado,
pois o ideal de especialização que se constrói terá que reelaborar, atualizando, o
próprio ideal de autonomia, agora reduzida a uma forma de prática técnica27
.
Mas se o movimento executado pelos médicos nessa direção pode ser
visto como tentativa de manter a ferramenta de trabalho que é a autonomia,
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 173 -
não há dúvida de que ele tem outros significados: também espelha a busca de manter o
monopólio sobre o saber e a prática, pois tensionada a autonomia no transcurso das
mudanças na medicina, vê-se igualmente tensionado aquele monopólio, cuja
justificativa residia exatamente na necessidade técnica do exercício autônomo. Nesse
sentido, a expectativa dos médicos é a de manter para a profissão o que lograram
conquistar seus antecessores, ou seja, o controle total sobre o processo de trabalho. Eis
a razão pela qual a preservação da autonomia é um movimento que se reveste do
caráter de estratégia fundamental de preservação do monopólio da prática para os
médicos. Conscientes até certo ponto deste extremo valor político da autonomia, e
mais evidentemente conhecedores de suas vantagens técnicas, os médicos traçaram
caminhos de construção de sua profissão cujo objetivo foi manter a autonomia (como
sinônimo, contudo, quer da técnica, quer do valor político e seus subseqüentes efeitos
sociais) a qualquer custo. E estes tornaram-se progressivamente maiores e mais
complexos, à proporção que a medicina moderna foi amadurecendo.
A necessidade, pois, de conferir harmonia de composição a situações
relativamente contraditórias de prática – autonomia e especialização – tendo ademais
que encontrar idênticas justificativas técnico-científicas para manter a mesma base
social de validação do monopólio da prática, revestirá este processo, como veremos a
seguir, de extrema complexidade, seja no plano material, seja em sua representação.
Antes, porém, de prosseguirmos é preciso um pequeno parêntese. Quando
acima afirmamos significar a autonomia uma estratégia de poder, não estamos
querendo apontar para um sentido moral e maniqueísta de uma ação pessoal. Longe de
atribuirmos boa ou má intenção para as ações deste, daquele ou daqueloutro médico,
tal como se tenderia a tomá-las no plano estritamente pessoal e como fruto de decisões
individuais completamente livres, estamos buscando o plano em que as opções são
socialmente determinadas e socialmente significativas. E desse ângulo, elas se dão pela
realidade objetiva da vida social em sua estruturação de coletivo, antes que pela
vontade de cada um: se a ação é movimento de um indivíduo particular, nem é ela
parte exclusivamente dele, nem é ele sujeito independente do histórico e do social.
Não se trata exatamente de um plano consciente a que se possa
simplesmente adjetivar com um bom ou mau sentido. Todavia, em certo sentido
e até certo ponto, é consciente, isto é, a medicina de fato se constrói pelas
opções de seus sujeitos-agentes sociais. São, desse ponto de vista, opções de
conjunto realizadas individualmente. Assim sendo, ao contrário da
precedência da dimensão pessoal, tomamos esta pessoalidade de forma
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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tal que não será possível, direta e principalmente, imputar a cada indivíduo
responsabilidade absoluta pelas ações de que é sujeito. Os médicos não são, na pessoa
deste ou daquele, imediata e absolutamente responsáveis, sem que contudo a categoria
profissional deixe de sê-lo; mas também não de modo uniforme. Há grande distância
entre os médicos-comuns e os intelectuais na participação política e ideológica para a
formulação do projeto de organização da medicina.
Em conformidade, porém, com os valores que professam, qual seja, a
supremacia da dimensão técnica e pessoal nas explicações que eles mesmos tecem
sobre suas práticas, os médicos atribuem a cada um dos seus uma potência decisória
muito ampla, do que deriva o princípio de um compromisso essencialmente pessoal
com a ação. Esta, por sua vez, lhes parece ser de base totalmente individual.
O médico pretende a si próprio e se reconhece sujeito livre, isto é, sem
constrangimentos de ordem “extratécnica” em seus julgamentos, suas decisões ou sua
ação, quando de fato os médicos agem socialmente posto que as dimensões em que a
ação concreta se efetiva ultrapassam aquela em que se dá seu reconhecimento na
reflexão. Ou, como diz Maria Cecília F. Donnangelo: “É essa dimensão extracientífica
da norma e do corpo normal que a medicina enfrenta em sua prática concreta,
reconheça-o ou não no plano das formalizações teóricas que orientam essa
interferência. (...) No plano dessa atuação, a prática médica manipula o caráter
histórico de seu objeto, sem necessariamente conceptualizá-lo.”28
.
Os médicos estão, pois, alienados de partes também componentes e mesmo
determinantes de suas práticas, ao desqualificarem o conhecimento do social e o
reconhecimento de sua existência material enquanto componente imediato e
consubstancial com a técnica. Ficam por conseqüência, impossibilitados de se
apropriarem do social e incluí-lo na concepção do projeto de ação: perdem eles a
possibilidade de um controle consciente sobre o modo pelo qual aquele social vem a
compor a prática técnica, ao menos do ângulo da tomada de um social não reduzido ou
transformado, tal como ocorre. É esta alienação que, ao nosso ver, impede que os
médicos operem de fato, e não apenas discursivamente (como intenção jamais
concretizada) uma autonomia técnica; com o que reestruturariam a relação médico-
paciente em uma relação mais igual, com a presença mais efetiva do doente no
processo decisório que antecede a operação do trabalho.
Isto posto, mesmo quando não sejam apontadas explicitamente neste
texto as opções de que tenham derivado as mudanças ocorridas na prática
médica, essas mudanças estão sendo compreendidas como produto de opção
social de sues agentes. De outro lado, ao serem escolhidas entre um
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
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leque de trajetos historicamente possíveis a cada momento da história, são elas
também delimitadoras já de opções futuras, pois baseadas na ação adotada
obrigatoriamente se demarca para o futuro tal ou qual nova gama de possíveis. Nesse
sentido, conflitos que se venham a evidenciar em decorrência de mudanças no real,
não configurarão “efeitos indesejáveis”, da forma como os explica o pensamento
médico. Em vez disso o aparecimento desses conflitos, cujo significado prende-se, de
fato, ao desenvolvimento de um real contraditório, resulta de escolhas anteriores, que
todavia pareceram os médicos adequadas e necessárias quando foram feitas.
A impossibilidade de previsão dessas contradições futuras decorre em parte
da própria decisão dos médicos de abstrair dimensões de sua realidade de prática e
assim desconhecerem suas presenças e influências na medicina, ainda que esta seja
apenas uma das decorrências desta decisão. Pois, ao contrário da independência que
atribuem ao seu trabalho, este é prática social, onde as possibilidades de ação técnica
dependem de sua articulação com os demais trabalhos sociais, sendo as características
de cada trabalho definidas no existo com que se dá a articulação.
Parece claro, portanto, que devemos relativizar a aparente liberdade absoluta
de opção, desde a concepção até a concretização de ações sociais. Mas dado que esta
relativização não faz parte do pensamento médico sobre a profissão, o que vemos é
uma autonomia que se problematiza deslocada de suas articulações sociais, porque
deslocada da vontade política dos sujeitos que a constroem.
Feitas essas considerações, podemos retomar nosso exame sobre a prática
médica e agora observá-la para compreender quais as razões que permitiram,
objetivamente, não só a construção de uma liberdade de ação no trabalho (que se não
foi total, com certeza foi ampla), como sobretudo permitiram que dela se estabelecesse
uma imagem do absoluto.
1 Eliot, Freidson, citando um estudo sobre as perspectivas estudantis (em Howard S. Becker et
al - Boys in White, Chicago, University of Chicago Press, 1961), mostra que, como valores
dominantes na orientação do aprendizado e da escolha de carreiras por alunos de medicina,
aparecem os valores que marcam tradicionalmente a profissão: responsabilidade – correlata à
noção de poder sobre a vida ou a morte – e a experiência clínica, enquanto substrato de apoio
àquele poder. Por isso escolhem como especialidades mais importantes as que acumulam ambas as qualificações, na maior medida possível - Freidson, E. – Professional Dominance...,
op. cit., pp. 84-87. Achado similar, aliado a uma incapacidade de
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
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definir especialidades como Medicina Preventiva ou Saúde Pública, resultou de pesquisa sobre
o “Perfil do estudante de medicina” realizada com primeiro-anistas da Faculdade de Medicina
da USP, entre 1985 e 1989, pelos professores do curso de graduação do Departamento de Medicina Preventiva (mimeo). 2 Raros são os estudos que mostram este comportamento diferencial dos médicos no exercício
da profissão. Dentre eles cabe destacar o de Ana C. S. L. Sucupira – Relações médico-paciente nas instituições de saúde brasileiras, São Paulo, FMUSP, 1981 (dissertação de mestrado), que
demarca especificidades da relação médico-paciente referidas à prática pediátrica tais como
verificada em distintos tipos institucionais de serviço. 3 M. Cecília F. Donnangelo, Medicina e sociedade, op.cit., p.126 4 Oracy Nogueira, op.cit., vol. I, pp. 27, 28-29, 30 e 33 (aspas no original). Embora não
trabalhemos, como o texto citado, com o deslocamento da categoria trabalho social para profissão/ocupação, esse autor explicita bem, dentro dos estudos das profissões – dos quais
procede a extensa revisão – as qualificações atribuídas ao conceito de profissão. 5 Lewis, R. and Maud, A. – Professional Peoples, Londres, Phoenix House, 1952, apud O. Nogueira, op.cit., vol I, p. 26 e p. 127. 6 Para maior compreensão e aprofundamento de tais considerações veja-se N. Bisseret – A
ideologia das aptidões naturais, in Durand, J.C. G. (org.) – Educação e hegemonia de classe, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979, pp. 31-67 7 Ricardo Bruno M. Gonçalves – Medicina e história: raízes sociais do trabalho médico, São
Paulo, FMUSP (dissertação de Mestrado), 1979, pp. 19-53 8 Lilia B. Schraiber – Educação médica e capitalismo: um estudo das relações educação e
prática medica na ordem social capitalista, São Paulo, HUCITEC, 1989. 9 Estas re-elaborações, em especial para o caso brasileiro, são mostradas por M. Cecília F. Donnangelo, op.cit.; e por Gastão W. de S. Campos – Os médicos e a política de saúde, São
Paulo, HUCITEC, 1988. 10 Eliot Freidson – Profession of Medicine, op.cit., p.161-165 11 M. Cecília F. Donnangelo – Medicina e sociedade, op.cit., p 129 (grifos no original). 12 E. Freidson – Profession of Medicine, op.cit., p.21 13 Peguinot, H. – Medecine et monde moderne, Paris, Minuit, 1953, p.7, apud M. Cecília F.
Donnangelo – Medicina e sociedade, op.cit., p.128. 14 E.Freidson – Profession of Medicine, op.cit., p. 300 15 Ver nesse sentido Maria Cecília F. Donnangelo – Saúde e sociedade, op.cit., em especial capítulos I e II; Ricardo B. M. Gonçalves – Medicina e história, op.cit., capítulo 2; e sobre a
constituição Clínica enquanto reorientação epistemológica da Medicina, M. Foucault – O
nascimento da clínica, op.cit. 16 E. Freidson – Profession Fo Medicine, op. cit, pp 152-53 17 Idem, idem, pp. 224-243 18 E. Freidson – Profession of Medicine, op.citg., p.168 19 Idem, p.22 20 G. Ganguilhem – O normal e o patológico, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982.
21 E. Freidson – Profession Dominance..., op. cit., p. 97 22 Ver nota 13, supra 23 O hospital como espaço apropriado para individualizar a doença e naturalizar
Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec,
1993. 229 páginas.
Liberdade, o pressuposto do trabalho - 177 -
o social aparece discutido em M. Foucault - O nascimento da clínica, op.cit.; do mesmo autor -
“O nascimento do Hospital”, capítulo VI de Microfísica do poder, op.cit. Nesse mesmo
sentido, o hospital como apropriado à redução das diferenciações do social ao homogêneo das estruturas biológicas do corpo, foi objeto de considerações em L.B. Schraiber - Educação
médica..., op.cit., em especial o capítulo 2, item I, O hospital na rearticulação da prática
médica. 24 É exemplar neste sentido a interpretação das transformações da prática como decorrência
direta e exclusiva das descobertas científicas e da criação tecnológica. A história da medicina
seria suficientemente apreendida, segundo essa interpretação, pela história dos equipamentos, dos instrumentos materiais e das técnicas de manejo correspondentes. Aperfeiçoamento dos
meios e objetivos imutáveis é a imagem da medicina construída nesta história. A esse respeito
veja-se Laura Conti, Estrutura social y medicina, in Medicina y sociedad (colet.), Barcelona, Ed. Fontenela, 1972, pp. 287-310 25 M. Cecília F. Donnangelo – Saúde e sociedade, op.cit., p. 29 26 Veja-se, no caso brasileiro, Gastão W. de S. Campos – Os médicos e a política de saúde, op.cit. e Professional Dominance, op. cit. 27 A permanência da autonomia como ideal de trabalho também na medicina especializada é
objeto dos vários estudos já citados. Assim, E. Freidson – Profession of Medicine, op.cit. , em especial o capítulo 2 (Political Organization and Professional Autonomy), identifica tal
permanência em modelos de organização de serviços bem distintos entre si, tais como os que
ocorrem nos Estados Unidos, na Inglaterra, na União Soviética. Maria Cecília F. Donnangelo – Medicina e sociedade, op.cit., aponta a mesma presença no caso brasileiro, ainda que restrita a
um núcleo essencial, quando passa a ser re-produzida na modalidade de pensamento que mais
se reveste de caráter empresarial. Ademais, como aponta Roberto P. Nogueira (A ideologia médica neoliberal, Saúde em Debate, Rio de Janeiro, CEBES, no. 14/16, fev. 84, pp. 44-47) a
presença da autonomia aparece recentemente reavivada na Declaração dos Direitos do Doente,
produzida pela Assembléia da Associação Médica Mundial em 1981, o que o autor vem designar por modelo neobliberal de medicina (p. 47). 28 Maria Cecília F. Donnangelo – Saúde e sociedade, op.cit., pp. 24-25.