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    histria da historiografia ouro preto nmero 9 agosto 2012 299-303

    Palavras-chaveHistria; Verdade; Tempo.

    KeywordsHistory; Truth; Time.

    Sobre as possibilidades do conhecimento histrico

    On the possibilities of historical knowledge

    SALOMON, Marlon (org.).Histria, verdade e tempo. Chapec: Argos, 2011, 374 p.

    Glaydson Jos da [email protected] adjunto

    Universidade Federal de So PauloEstrada do Caminho Velho, 333 Bairro dos Pimentas07252-312 Guarulhos SPBrasil

    Enviado em: 9/1/2012Aprovado em: 12/6/2012

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    histria da historiografia ouro preto nmero 9 agosto 2012 299-303

    Glaydson Jos da Silva

    Histria, verdade e tempo: trs linhas precisas que podem ser tomadas a

    partir de mltiplas perspectivas. Com esta frase Marlon Salomon professor

    da Faculdade de Histria da Universidade Federal de Gois d incio

    apresentao do volume, precedida por uma elaborada anlise do mesmo feitapor Durval Muniz de Albuquerque Junior, como prefcio. Essas palavras iniciais

    resumem, a justo ttulo, no s o contedo tematicamente tratado, mas,

    tambm, a diversidade das abordagens, caracterstica comum a muitas

    coletneas. Majoritariamente composto por contribuies de filsofos e

    historiadores, o queper sej guarda, em nosso contexto, alguma originalidade,

    o livro apresenta-se, de fato, como uma importante contribuio para teoria

    da histria no Brasil; em seus diferentes captulos seus autores se debruam

    sobre questes que secularmente interessam reflexo histrica.

    A preocupao com a memria dos eventos passados, o quadro

    cronolgico e uma interpretao dos acontecimentos so elementos de

    historiografia que so encontrados em muitas civilizaes (MOMIGLIANO 2004,

    p. 55), e a aluso a essas primeiras experincias da narrativa histrica, ora

    para criticar ou fundamentar-se figura na base do conhecimento histrico

    posterior. Da historieherodotiana histriamoderna, passando pela historia

    romana e medieval, a continuidade parece efetivamente clara(HARTOG 2004,

    p. 16, grifos nossos). Desse modo, em uma longa tradio interpretativa, de

    um lado tem-se as necessidades de registro, as concepes de tempo, as

    ideias de continuidade, a preocupao com o presente, o rompimento com o

    mtico, com o fantstico, a necessidade de documentos, a impossibilidade dese tangenciar o real e os limites do conhecimento, a busca pela compreenso

    do total, o imperativo da pesquisa e, de outro, os juzos proferidos, a busca

    pelas causas e consequncias, a crena no que se repete das aes humanas,

    os vnculos com os poderes oficiais, a histria com carter didtico mestra da

    vida. Aspectos definidores e presentes, ab origine, no ofcio dos historiadores,

    os pontos ora arrolados so de compreenses historicamente variveis.

    Presentes na historiografia antiga fundaram a reflexo histrica e perpassam,

    ainda hoje, o ofcio e as preocupaes dos historiadores e daqueles que refletem

    acerca das possibilidades do conhecimento histrico. A obra aqui apresentadaretoma muitas dessas questes.

    A totalidade dos textos que integra a Histria, verdade e tempose volta

    para questes que orbitam o tema do livro, ora privilegiando um, dois, ou

    todos os aspectos. Esses aspectos aparecem abordados na obra de trs

    diferentes modos: 1) A partir de reflexes nominadamente tericas acerca da

    epistemologia da histria: O conceito de anacronismo e a verdade do

    historiador, de Jacques Rancire; Histria, verdade e interpretao a partir da

    crise dos paradigmas, de Carlos Oiti Jnior; Histria, desconstrucionismo e

    relativismo: notas para uma reflexo contempornea, de Aarn Grageda

    Bustamante; Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformao do passado

    em histria, de Jrn Rsen; Tempo e verdade: proposta de critrio para um

    conhecimento histrico confivel, de Estevo de Rezende Martins e A verdade

    entre fico e a histria, de Roger Chartier. 2) A partir da obra de autores:

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    Sobre as possibilidades do conhecimento histrico

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    Foucault, Canguilhem e os monstros, de Franois Delaporte; Existncia e

    viso alegrica (Walter Benjamin), de Luiz Srgio Duarte da Silva; Bachelard:

    verdade e tempo, de Jos Ternes; Aristteles e o fracasso de Tucdides, de

    Mnica Costa Netto e Afrontar o perigo: a questo da histria da verdade, de

    Marlon Salomon. 3) A partir de exemplos desenvolvidos, por meio da anlise

    de objetos de estudo especficos: O real d-se ao olhar: perspectiva e

    visualizao da verdade nas imagens da Renascena, de Henrique Luiz Pereira

    e Por que se escrevia histria? Sobre a justificao da historiografia no mundo

    ocidental pr-moderno, de Arthur Assis.

    A variedade de autores, ordinariamente, encontra-se convertida em uma

    gama de variadas interpretaes acerca dos eixos estruturadores do livro, o

    que evidencia a riqueza de sua contribuio, com a participao de autores

    nacionais e estrangeiros consagrados na rea da teoria da histria e de outros,

    no diretamente relacionados rea, mas, tambm, com importantes reflexes.Diversos em sua formao, rea de atuao e compreenso do tema-objeto

    do livro, os autores, em suas aproximaes e distanciamentos, estabelecem o

    estado da arte do pensamento histrico, com seus limites e dilemas (em

    contribuies com densidades por vezes muito desiguais) com os quais lidam

    especialistas e interessados no conhecimento histrico em geral. Proponho

    nesta resenha uma anlise da obra a partir dos trs eixos supracitados em que

    vislumbro as diferentes contribuies.

    Reflexes nominadamente tericas acerca da epistemologia da histriaEm um erudito captulo Jacques Rancire analisa o lugar do anacronismo no

    pensamento histrico, entendendo-o como o conceito-emblema com o qual a

    histria afirma sua especificidade (SALOMON 2011, p. 44), concluindo que no

    existe anacronismo, mas modos de conexo de anacronias acontecimentos,

    noes, significaes que tomam o tempo de frente para trs. Para Rancire, a

    multiplicidade das temporalidades e dos sentidos deveria ser o ponto de partida

    de uma cincia histrica menos preocupada com a respeitabilidade cientfica e

    mais preocupada com o que quer dizer histria(SALOMON 2011, p. 49). Por

    abordar um aspecto nevrlgico do pensamento histrico de modo to elaborado

    este texto , de fato, uma importante contribuio do volume. Em vertente

    totalmente oposta e assumida como conservadora, ao analisar o contexto dos

    trinta anos que sucederam o interesse dos historiadores para o campo da linguagem

    e do significado, no mbito da representao, no que denomina era do

    representacionalismo(SALOMON 2011, p. 158), Aarn Grageda Bustamante bate-

    -se pela busca da verdade e da objetividade na histria, vista a substituio da

    realidade por representao/entronizao do ceticismo, dos preceitos ps-

    -modernos. Cr que conhecer verdadeiramente o passado permite entender a

    circunstncia presente e situar-se (SALOMON 2011, p. 183). A viso reducionista

    do desconstrucionismo, grande monstro combatido por Bustamante, aparece

    problematizada no captulo de Carlos Oiti Berbert Jnior, cujo objetivo mapear

    a apropriao dos textos de vrios autores ligados filosofia com o intuito de

    reforar ou refutar a capacidade de a histria referir-se ao passado(SALOMON

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    Glaydson Jos da Silva

    2011, p. 76). O autor resgata o pensamento de alguns filsofos do

    reducionismo da instrumentalizao de suas obras. Tomando um exemplo

    brasileiro, critica a voz cannica de Ciro Flamarion Cardoso, quando este diz, por

    exemplo: Para mim Castoriadais, Foucault, a desconstruo, Deleuze, Derrida e

    todos os nietzschianos so pensadores de direita(SALOMON 2011, p. 89).

    Ainda nos domnios das possibilidades do conhecimento histrico, e,

    sobretudo, o lugar que nele ocupa a verdade, Estevo de Rezende Martins

    preocupa-se comas condies de produo do conhecimento histrico

    verossmil e as condies de produo de insero desse conhecimento em um

    arcabouo cientfico plausvel e convincente (SALOMON 2011, p. 292-293).

    Denomina o que se designa de ps-modernismo de nova verso crepuscular da

    teoria do conhecimento, de cunho ctico e idolatria arbitrria do discurso, de

    cuja epidemia (termo usado pelo autor) a histria no escapou. Essa crtica

    contundente do autor parece desmerecer avanos importantes no campo das

    possibilidades de interpretao do conhecimento, reduzindo-as ao limite. Jrn

    Rsen e Roger Chartier, de modo no assertivo e no categrico,

    diferentemente, desdobram a questo da verdade, a partir, sobretudo, dos

    limites da interpretao e do intrprete. Para Rsen, o pensamento histrico

    no modifica o passado, as res gestae, mas o passado se torna melhor em

    relao ao novo status que ganham os fatos do passado no curso da sua

    interpretao (SALOMON 2011, p. 280). Para Chartier, tanto os textos da

    ordem da fico quanto aqueles dos registros autobiogrficos, documentais,

    normativos etc, esto na chave de compreenso das prticas e dasrepresentaes, estando a histria dependente das frmulas que governam a

    produo de narrativas(SALOMON 2011, p. 354), visto pertencer a histria

    classe das narrativas, mas no concorda, como j descrito em clssico debate

    com Hayden White, com a sua reduo da histria a essa instncia.

    Reflexes a partir da obra de autores

    A partir da anlise do discurso mdico feita por Foucault, Franois Dellaporte

    situa a histria da verdade e o lugar que esta ocupa no pensamento foucaultiano.

    No nvel em que se situa Foucault, a saber, o da descrio de umatransformao epistemolgica, a questo da predicao do verdadeiro,quaisquer que sejam suas modalidades, no pertinente. Foucault no seinteressa nem pelas falsas afirmaes cientificamente verdadeiras ou falsas,nem pelas divises do verdadeiro e do falso em um determinado momento,tampouco pelo dizer verdadeiro da histria epistemolgica. O que Foucaultanalisa o prprio discurso como prtica, medida que este define oespao no qual preciso se situar para estar no verdadeiro (SALOMON2011, p. 56).

    Essa percepo de Dellaporte poderia ser estendida obra de Foucault em

    sua quase totalidade. Importante referncia histrica de Foucault, Paul Veynetem suas preocupaes com a verdade analisadas por Marlon Salomon, cujo

    objetivo a anlise que Paul Veyne faz da maneira como Foucualt concebe a

    verdade, alguns objetivos implcitos nessa anlise e o esboo de algumas

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    hipteses que podem ser desenhadas a partir disso para um trabalho porvir

    (SALOMON 2011, p. 326). Ideias de histria e possibilidades do conhecimento

    histrico a partir de Walter Benjamin, Bachelard e Tucdides so objetos dos

    captulos de Luiz Srgio Duarte da Silva, Jos Ternes e Mnica Costa Neto.

    Silva busca localizar o que, na obra de Walter Benjamin, so as caractersticas

    da conduo existencial moderna e da forma de leitura que ela possibilita. As

    reflexes acerca do conhecimento histrico em Bachelard, j tratadas en passant

    no texto de Dellaporte so desenvolvidas por Ternes, que busca evidenciar, na

    obra do autor, sua noo de cincia e o status que nela ocupa a verdade. A

    contraposio aristotlica entre filosofia, poesia e histria e o pensamento

    histrico de Tucdides, luz das reflexes de Moses Finley, o objeto de anlise

    Netto. A riqueza desse conjunto de captulos encontra-se, sobretudo, no fato

    de aliar a reflexo terica ao estudo de casos, em analisando a obra dos

    diferentes autores arrolados.

    Reflexes a partir de exemplos

    Verdade, objetividade e capacidade de descrio do mundo de modo

    objetivo a partir do estudo do Renascimento o objeto de Henrique Luiz Pereira

    Oliveira, que busca pensar as imagens no como representao, mas como a

    prpria construo da possibilidade de existncia de um mundo objetivo, real e

    verdadeiro (SALOMON 2011, p. 135). A generalizao dos conceitos de

    Renascimento e Ocidente estruturam a anlise. O trabalho de Arthur Assis tem no

    ttulo a explicitao do objeto analisado. Com exemplos que remontam AntiguidadeClssica, o autor analisa a justificao da historiografia no mundo ocidental pr-

    -moderno, traando um percurso que permite visualizar da exemplaridade da escrita

    da histria crtica dessa mesma exemplaridade pelo mtodo filolgico.

    A leitura de Histria, verdade e tempoapresenta, por fim, a busca pela

    reflexo de problemas estruturadores do pensamento histrico e de suas

    possibilidades, evidenciando os diferentes caminhos trilhados por aqueles que

    se aventuram nessa busca. Professores e alunos de histria e interessados em

    geral muito se beneficiaro dessa obra, que cumpre importante papel no cenrio

    de reflexes de teoria da histria, ainda to incipiente no Brasil.

    Referncias bibliogrficas

    HARTOG, Franois (org.). A histria de Homero a Santo Agostinho. Traduo

    de Jacynto Lins Brando. Belo Horizonte: EdUFMG,2004.

    MOMIGLIANO, Arnaldo. As razes clssicas da historiografia moderna.

    Traduo de Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: Edusc, 2004.