345-356-Rutter

download 345-356-Rutter

of 12

Transcript of 345-356-Rutter

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    1/12

    345

    R. Museu Arq. Etn., So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    Introduo

    ASiclia uma grande ilha, cuja presen-a central no Mediterrneo e riquezaagrcola atraiu, ao longo da histria, invasores e

    colonos: gregos, cartagineses, romanos, rabes e

    outros. Os gregos estabeleceram-se no litoral da

    ilha a partir do final do sculo VIII a.C.1e foi

    somente cerca de duzentos anos mais tarde que

    algumas das suas comunidades comearam a

    emitir moeda. Em vrios momentos a partir do

    sculo V a.C. a maior parte das cidades assim

    o fez. As moedas batidas nesse perodo so

    bem conhecidas pela qualidade artstica, sendo

    algumas j descritas como as mais belas jamais

    cunhadas.

    Neste artigo quero ilustrar, de uma maneira

    geral, a partir de trs tpicos, como as moedas

    podem contribuir para a nossa compreenso

    da histria da Siclia grega. No primeiro tpico,

    apresentarei o trabalho de alguns dos gravadores

    de cunhos, um tema que diz respeito hist-

    ria de arte. No segundo, a partir de algumas

    imagens (tipos) nas moedas levantarei questessobre a escolha de determinadas representaes

    com a inteno de mostrar como a evidncia

    numismtica se relaciona frequentemente com

    outras fontes de informao, como os testemu-

    nhos literrios, fundamentando, assim, con-

    cluses fascinantes sobre a histria social dos

    antigos gregos no contexto da colonizao grega

    Ocidente. E finalmente, no terceiro e ltimo

    tpico, abordarei um aspecto da histria cultu-

    ral mostrando como o costume de bater moedasfoi adotado tambm pelos no gregos, embora

    a cunhagem de moedas tenha sido introduzida

    na Siclia pelos gregos. Assim, por contraste,

    mostrarei alguns aspectos interessantes da

    cunhagem de moedas de apenas um dentre

    Os gregos da Siclia a Numismtica e a Histria*

    Neville Keith Rutter**

    RUTTER, N.K. Os gregos da Siclia a Numismtica e a Histria. R. Museu Arq. Etn.,

    So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    Resumo: Este artigo objetiva apresentar o potencial do documento mon-etrio para o estudo da histria da Siclia grega. A partir da anlise da epigrafia

    e da iconografia em moedas cunhadas em pleis da Siclia em poca clssica

    discutir-se- como em contexto siceliota a moeda foi utilizada como suporte e

    veculo de competio artstica, como se mostrar com o caso dos gravadores-

    assinantes de cunhos fenmeno local , e de expresso de identidade polade,

    siceliota e tambm grega. A interao dos gregos com povos no-gregos na ilha

    ser tambm abordada a partir do caso dos tipos monetrios de Segesta.

    Palavras-chave:Siclia Epigrafia Iconografia monetria.

    (*) Reviso da traduo e edio, Lilian de Angelo Laky.

    (**) Professor emrito da Universidade de Edimburgo,Esccia. Escola de Histria, Clssicos e Arqueologia.

    (1) Todas as datas neste texto so a.C.

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    2/12

    346

    Os gregos da Siclia a Numismtica e a Histria.

    R. Museu Arq. Etn., So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    estes povos no gregos, os elmios de Segesta no

    noroeste da Siclia, procurando entender de que

    forma os segestanos adotaram e adaptaram a

    cunhagem de moedas s suas necessidades.

    1. Os gravadores-assinantes de cunhos na

    Siclia

    O nosso primeiro tpico relaciona-se, por-

    tanto, com os gravadores de cunhos monetrios.

    Na cunhagem grega em geral podemos muitas

    vezes identificar e comparar os estilos de diferen-

    tes gravadores de cunhos, os quais normalmente

    no assinavam o seu trabalho e, por esse motivo,

    Mapa.As cidades gregas da Siclia e da Magna Grcia (Florenzano 1986: s/pg.).

    os seus nomes, na maior parte das vezes, nos

    so desconhecidos. Pelo fato de as assinaturas

    de gravadores de cunhos serem normalmen-

    te to raras em moedas gregas, ainda mais

    notvel que na Siclia encontremos numerosos

    exemplos de tais assinaturas. Contudo, estas

    assinaturas no aparecem em todos os pero-

    dos de cunhagem, mas se concentram em um

    perodo limitado entre c.413 at ao comeo do

    sculo IV (Rutter 2009). Na sequncia seguem

    alguns exemplos de assinaturas de gravadores de

    cunhos monetrios provenientes de Siracusa,

    Catnia e Agrigento (Figs. 1-7).

    Primeiramente, uma questo fundamental:

    em nenhuma moeda siceliota encontramos um

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    3/12

    347

    Neville Keith Rutter

    Fig. 2. Siracusa, c.415 a.C., tetradracma de prata.

    Anv. Quadriga e. e Vitria alada d. Rev. Cabea de

    Aretusa e. com golfinhos; assinatura de I/N

    YPAKO- IO-N. Cahn et alli, 1988: fig.455.

    Fig. 1. Siracusa, c.410 a.C., tetradracma de prata. Anv.Quadriga d. com Vitria alada e.; EYAIN/ETO. Rev.

    Cabea de Aretusa com golfinhos; assinatura de EVME-

    -NO-Y; YPAKOI]N. Cahn et alii, 1988: fig.459.

    Fig. 3. Siracusa, c.405 a.C., tetradracma de prata. Anv.

    Quadriga e. e Vitria alada d. Rev. Cabea de Atena

    com elmo; assinatura de EY-KEI/A; []YPAK-[OI]-

    N. Cahn et alii, 1988: fig.464.

    Fig. 4.Siracusa, c.400 a.C., didracma de prata. Anv.

    Quadriga e. e Vitria alada d.; KI] NN. Rev. Cabea

    de Aretusa e. com golfinhos; assinatura de KIMN;

    YPAKOION. Cahn et alii, 1988: fig.479.

    Fig. 5. Siracusa, c.405 a.C., tetradracma de prata. Anv.

    Cabea de Aretusa e. com golfinhos; assinatura de

    PI; YPAKOION. Rev. Quadriga e. Cahn et alii,

    1988: fig.461.

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    4/12

    348

    Os gregos da Siclia a Numismtica e a Histria.

    R. Museu Arq. Etn., So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    Fig. 6.Agrigento, c.413-406 a.C., tetradracma de prata.Anv. Quadriga d. Rev. guia e. segurando lebre;assinatura de OY; AKPA-ANTINON. Cahn etalii, 1988: fig.260.

    Fig. 7. Catnia, c.410 a.C., tetradracma de prata.Anv. Cabea laureada de Apolo; assinatura deHPAKEIA. Rev. Quadriga e. Cahn et alii, 1988:fig.338.

    verbo definitivo como o(fez) comos vezes encontramos em esculturas ou emvasos pintados gregos. E assim, como podemosdeduzir que estes nomes so as assinaturas degravadores e no, por exemplo, de um funcion-rio ligado emisso de moeda ou ainda de ma-

    gistrados municipais? A principal constatao que a maior parte das assinaturas so pequens-simas e discretas, quase escondidas e certamenteessa no seria a maneira mais adequada detratar o nome de um magistrado. Outro pontoa se considerar que enquanto alguns nomesaparecem somente em moedas de uma cidade,outros nomes ocorrem em vrias delas: Euaine-tos aparece nas moedas de Siracusa, Camarina,Catnia, e Prokles assina cunhos em Catnia eNaxos. Tais evidncias parecem anular a idia de

    que poderiam ser as assinaturas de magistradose por isso deduzimos que estes sejam os nomesde gravadores (Kraay 1976: 221).

    A segunda questo : por que os gravado-res assinaram o seu nome to profusamenteentre o fim do sculo V e comeo do IV? Nestecaso, muito mais difcil dar uma respostadefinitiva. De fato, h uma variedade de res-postas ou explicaes e podemos comear, porexemplo, com a idia de que esta exploso deassinaturas, e o orgulho que parecem indicar,foi uma resposta s circunstncias histricas domomento. Os gravadores de cunhos trabalha-ram em sua maior parte para Siracusa nos anosimediatamente aps a defesa bem sucedidadesta cidade contra uma invaso poderosa dos

    atenienses. O resultado foi brilhantementeresumido pelo historiador Tucdides (7.87.5):para os vencedores um esplendor, para osderrotados um desastre. Houve certamenterazes para celebrar com exuberncia artsticaaps o acontecimento em 413. No entanto,

    pouco depois, esse triunfalismo foi totalmenteobscurecido por acontecimentos desastrosostanto para Siracusa como para toda a Siclia. inquestionvel que os siracusanos e os seusaliados tenham triunfado sobre os atenien-ses, mas, anos mais tarde, primeiro em 409e depois em 406, os cartagineses do norteda frica atacaram e saquearam muitas dascidades gregas na Siclia ocidental. Em Siracusaa presso destes acontecimentos em 405 levou tomada de poder do tirano Dionsio I. Esse

    contexto poltico na Siclia do perodo leva-nosa um paradoxo: as obras-primas de habilidadee perfeio foram, na sua maioria, criadasem um pano de fundo de desastre poltico emilitar. Mas por outro lado, foi precisamentea natureza crtica das batalhas entre gregose cartagineses que parece ter estimulado osgravadores gregos a produzir os seus melhorestrabalhos. Mas no suficiente tentar explicaresta fase extremamente criativa na arte nu-mismtica apenas por circunstncias polticasexternas, e seria importante considerar breve-mente como outras foras ajudam a incentivartal criatividade.

    Para que tal criatividade tivesse surgido ese desenvolvido foi necessria a existncia de

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    5/12

    349

    Neville Keith Rutter

    uma comunidade de artfices e uma tradio

    existente na Siclia.2Desde o incio da cunha-gem na ilha houve uma tradio e excelnciana gravao por cunhos e a competio emvrios nveis deve ter sido uma parte inevit-vel de tal tradio artstica to vibrante. Doponto de vista dos gravadores, um poderiatentar ultrapassar o outro na elaborao deuma imagem ou na resoluo de problemasno desenho de um tema complexo, como umaquadriga envolvida numa corrida (Fischer--Bossert 1998). s vezes, na Siclia, tem-se aimpresso de que alguns gravadores no scompetiam entre si, mas tambm consigoprprios. Por exemplo, um anverso de tetra-dracma assinado por Euainetos em Catniamostra um momento preciso na corrida quan-do o cocheiro tenta virar os cavalos em voltado poste que marcava a virada nos estdios decorridas de carros (Fig. 8): verdadeiramente

    um tour de force.Mas a competio no ocorria apenas entre

    os artfices. Um tipo de peer polity interactioncoloria as relaes entre as cidades que osempregavam (Renfrew 1986). Nessa perspectiva,devemos pensar tambm na atitude daquelesque contratavam os gravadores, orgulhososde encomendarem o trabalho de um gravadormestre famoso para a cunhagem da sua cidade.Alm disso, podemos tambm sugerir que naSiclia deste tempo, na ltima dcada do sculoV, tivesse existido igualmente uma rivalidadeconsciente com a recentemente derrotada Ate-nas cidade importante e dona de uma vastacunhagem, mas montona e repetitiva que sem-pre escolheu representar a sua deusa principalno anverso e a coruja no reverso (Fig. 9). Tucdi-des na sua Histriacaracterizou frequentementea luta entre Siracusa e Atenas como um gnou

    um agonsma, portanto, uma competio. Ossiracusanos, diz Tucdides (7.56.2-4), descobri-ram que seriam venerados como os responsveispela derrota dos atenienses e seriam grande-mente admirados por essa proeza, tanto entre asgeraes contemporneas como entre as futuras.A previso confiante siracusana sobre a suafama futura foi concretizada ao menos no quediz respeito sua cunhagem.

    Podemos ainda nos perguntar se osartistas que assinaram estas lindas moedassiceliotas foram influenciados no s porfatores internos Siclia, mas tambm seforam expostos a inf luncias culturais e arts-ticas exteriores, talvez at vindas de Atenas.Lembremos neste contexto a histria de comoalguns dos prisoneiros atenienses em Siracusaconseguiram a sua liberdade por terem podi-do recitar de memria as tragdias de Eurpi-

    des (Plut.,Nic

    . 29.2-4). Mais plausivelmente,sabemos que oficinas para produo de vasosde figuras vermelhas no modelo atenienseforam estabelecidas na Itlia do sul a partir de430 e na Siclia a partir do tempo da grandearmada ateniense (Trendall 1989: 17-30).

    (2) Sobre as foras que encorajavam e sustentavam a criativi-

    dade artstica no mundo antigo, cf. Burford (1972: 82-7):Training and tradition; Sauer (2004: 35): And creativephases in literature cannot be understoodin isolation fromsimilar developments in art and architecture as the underly-ing driving forces (namely sponsorship, competition, andexposure and openness to a wide range of influences) wereoften the same.

    Fig. 8. Catnia, c.410-403 a.C.

    Kraay, 1966: fig.42 O, pr.14.

    Fig. 9.Atenas, c.440-430 a.C. Kraay, 1966: fig.363, pr.119.

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    6/12

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    7/12

    351

    Neville Keith Rutter

    lou tambm Zancle, situada no lado siceliota

    do Estreito, e mudou o nome desta cidadepara Messana. Pouco depois de 480, Anaxilasintroduziu tanto em Messana como em Rgiouma cunhagem com o tipo, no anverso, de umcarro puxado por mulas (Fig. 12). Esta moedad-nos o nico indcio de uma razo pessoalpara a escolha de um tipo monetrio em moedana Siclia antes do reino de Agtocles, nos anosfinais do sculo IV. Provavelmente, Anaxilasquis comemorar sua vitria numa corrida decarros puxados por mulas em Olmpia ocorridaem 480. Ao mesmo tempo em que celebrou namoeda a ligao com Olmpia teve em menteuma reivindicao pessoal ao valorizar a suaposio entre os seus compatriotas gregos naSiclia.

    Ainda outro exemplo pode mostrar umamotivao dupla a ligao com a terra na-tal e a reivindicao da identidade siceliota.Trata-se de um tipo monetrio de Siracusa queoferece informao desta vez sobre a topogra-

    fia da cidade. Em Siracusa, aps um perodoinicial de experimentao, o desenho padrode cunhagem de tetradracmas depois de 485,era, no anverso, uma quadriga de corrida e, noreverso, golfinhos do Grande Porto de Siracusa,associados bela cabea de Aretusa, a ninfaque dava o nome famosa fonte de gua docelocalizada ao lado da gua salgada do mar (Fig.13). O fenmeno de uma fonte de gua docenuma ilha, Ortgia, e em posio to perto domar tinha uma explicao mitolgica. A histria

    chegou-nos em vrias verses diferentes, mas,em qualquer uma delas, a ligao fsica com oPeloponeso o fato principal: a ninfa Aretusaum dia desejou banhar-se nas guas do Rio

    Alfeu no Peloponeso. Alfeu, por sua vez, porela se apaixona indo ao seu encalo at Siracusaonde Aretusa brota ao lado do mar. Esta fontede gua doce era tambm uma caratersticaespecial da topografia de Siracusa e como talfoi celebrada no s nas moedas como tambmna poesia. precisamente este elemento datopografia siracusana que o poeta lrico Pndarosalienta em vrias das suas odes compostas para

    os vencendores siracusanos nos grandes jogospan-helnicos (Nem.1, 1sg.; Pit. 2, 6-7; Ol. 6, 92).Nesse sentido, o tipo monetrio siracusano deAretusa retrata a necessidade de ligar Siracusaao Peloponeso e tambm de celebrar uma cara-terstica especial da topografia local.

    Este interesse pela topografia local umaforte caracterstica dos tipos das moedas siceliotase parece ter se desenvolvido muito mais ali doque em outras partes do mundo grego, muitomais do que nas cidades gregas situadas na

    vizinha Itlia do Sul. Como no caso de Siracusa,outras cidades gregas da Siclia cunharam moedascom imagens monetrias que representam nar-rativas mticas descritas nas fontes literrias.

    No anverso de uma das moedas de Agrigento,a guia representa o deus Zeus. Mas o que significao caranguejo retratado no reverso? O caranguejono reverso um elemento constante na tipologiade Agrigento desde o comeo da sua cunhagempor volta de 510 e at o seu fim em 406, quando a

    cidade foi saqueada pelos cartagineses (Fig. 14). Talcontinuidade salienta a importncia do caranguejocomo expresso da identidade da cidade. Estecaranguejo de Agrigento uma variedade de guadoce e simboliza o rio do mesmo nome em cujasmargens a cidade de Agrigento foi estabelecida.

    Fig. 12.Messana, c.480-460 a.C.Kraay, 1966: fig.51 O, pr.16.

    Fig. 13. Siracusa, c.500-490 a.C.

    Kraay, 1966: fig.75 R, pr.24.

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    8/12

    352

    Os gregos da Siclia a Numismtica e a Histria.

    R. Museu Arq. Etn., So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    Ora, quando Pndaro escreveu odes celebrando as

    proezas e as qualidades dos vencedores de Agrigen-

    to nos jogos de Delfos e de Olmpia, qual carac-

    terstica da cidade natal dos vencedores o poeta

    escolheu para ser mencionada? Foi precisamente o

    rio (Pit. 6, 6; 12, 2-3).

    Voltamos outra vez a Himera para outro

    ponto sobre a valorizao da topografia local.

    O tipo monetrio pertence a uma srie introdu-

    zida na dcada de 450 e que durou at a captura

    da cidade pelos cartagineses em 408 (Fig. 15).No reverso a ninfa Himera realiza um sacrifcio

    enquanto que, direita, uma bica de gua com

    a forma de uma cabea de leo fornece o meio

    para um stiro tomar banho. Em Himera ele

    teria o privilgio de poder banhar-se em gua

    quente, pois desde essa poca a cidade famosa

    por suas fontes de gua quente. A origem destas

    fontes em Himera explicada pelo mito de que

    foram criadas para refrescar Hracles quando

    viajava pela regio. Estas fontes tambm somencionadas na 12 Ode Olmpicade Pndaro

    composta em honra de Ergteles a respeito do

    qual j falamos. Pelas suas vitrias, diz Pndaro,

    Ergteles exalta/enobrece os lugares de banhos

    quentes das Ninfas(Ol.12, 17-19).

    Para os gregos da Siclia, a ilha era o seu

    novo oikos, o seu novo lar e para este novo lar o

    siceliotas construram uma identidade muitas

    vezes representada por meio de um novo sim-

    bolismo. J vimos alguns exemplos e vou aqui

    mencionar mais um, proveniente do anverso de

    uma das primeiras moedas de Zancle (Fig. 16).

    Na moeda, a caracterstica topogrfica escolhida

    o porto de Zancle, que tem uma forma circu-

    lar muito especial. Uma passagem de Tucdides(6.4.5) recorda que Zancle herdou o seu nome

    dos nativos sculos, porque o lugar tem a forma de

    uma foice: zanklon na lngua dos sculos significa

    foice. Mais uma vez, dispomos de uma narrativa

    de um autor da Grcia Balcnica para confirmar

    o significado de um elemento topogrfico local

    em uma imagem monetria da Siclia. Mas se

    aprofundarmos um pouco mais encontraremos

    certa complexidade na mensagem: os recm

    chegados gregos procuraram se estabelecer

    firmemente no seu novo meio e o nome queeles deram ao novo assentamento um nome

    indgena. Assim, no costume eminentemente

    grego de bater moedas marca-se a interao com

    a populao indgena local.

    Fig. 15. Himera, c.440-430 a.C.

    Kraay, 1966: fig.68 R, pr.21.

    Fig. 16.Zancle, c. 510 a.C. Kraay, 1966: fig.48 O, pr.16.

    Fig. 14.Agrigento, c.460-420 a.C.

    Kraay, 1966: fig.170, pr.59.

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    9/12

    353

    Neville Keith Rutter

    Com estes exemplos comeamos a explo-

    rar as maneiras como os tipos monetrios decidades gregas na Siclia refletem o sentido deidentidade daqueles que as emitiram. evidenteque estes tipos compartilham, com as moedasde outras reas do mundo grego, um interessepelos elementos de helenidade to bem resumi-dos por Herdoto (9.144.2): uma lngua e umareligio comuns. Mas mais do que em qualqueroutra rea da cunhagem grega, os tipos siceliotasrevelam a importncia da noo de lugar para adefinio da identidade do grupo. Esta , assim,uma caracterstica distintiva de helenismo naSiclia.

    3. A iconografia e a epigrafia das moedas de

    Segesta: expresses da interao entre gregos e

    elmios

    Na terceira e ltima parte deste artigo,quero brevemente desviar a nossa ateno dos

    gregos em direo a outros habitantes do ladoocidental da ilha, onde me concentrarei noselmios e numa das suas cidades, Segesta, que bem conhecida tanto pela sua paisagem comopelo seu espectacular templo deixado inacabadonos fins do sculo V.

    Por volta do sculo VIII pelo menos,Segesta era habitada por um povo com cultos,tradies artsticas e uma lngua bastante dife-rente dos demais povos da Siclia. Nas nossasfontes literrias gregas, a verso dominante da

    histria dos elmios comea com Tucdides nosanos finais do sculo V: na verso do historia-dor ateniense os elmios eram refugiados deTria (6.2.3). Escritores posteriores aproveita-ram esta narrativa e contaram, em particular,sobre uma mulher troiana chamada Aigeste,que foi mandada para a Siclia pelo pai ou paral banida pelo seu rei Laomedonte. Aps serseduzida pelo deus f luvial Krimisos, que lheteria aparecido ali na forma de um co de caa,Aigeste deu luz a um caador formidvel quefundou trs cidades: Segesta, rice e Entella.Segundo o meu colega Andrew Erskine taishistrias de perambulao pelo Mediterrneoso fruto de uma viso helenocntrica domundo. Elas fazem parte do envolvimento dos

    gregos com o mundo no grego que os circun-

    dava e so tentativas de compreender e tornarseguro um ambiente potencialmente ameaa-dor e estranho (Erskine 2001: 133). No casodos segestanos, o seu ancestral troiano ajudou-os a unir o golfo entre gregos e no gregos,ligando a populao nativa ao mundo grego edando a ambos um passado herico (Erskine2001: 137).

    Contudo, como Erskine tambm comen-tou, estes mitos no eram propriedade s dosgregos, pois muitos dos povos indgenas da Sic-lia parecem ter aceitado e adaptado as origensmticas que lhes foram dadas pelos gregos (Er-skine 2001: 142). A cunhagem de Segesta, quecomeou por volta de 470 e continuou at aocomeo do sculo IV, abre muitas perspectivasnovas nessa rea (Hurter 2008). Assim, cabe-nos duas questes: como que os habitantesdesta misteriosa cidade viam a si prprios? Quetipo de relao tinham com os seus vizinhos?Terminarei esse artigo discutindo apenas alguns

    dos fatos fascinantes da cultura de Segesta quepodem ser inferidos a partir das moedas.Como mencionei, os segestanos comearam

    a emitir moeda por volta de 470 e durante todoo perodo de cunhagem o valor principal dassuas moedas era um didracma de prata, por-tanto, uma pea de dois dracmas cunhado nopadro de peso tico-eubico que pesa cerca de8.7g (Fig. 17). Durante algum tempo, antes deSegesta comear a cunhar as suas prprias moe-das, didracmas neste padro eram cunhados por

    trs cidades gregas na costa sudoeste da Siclia Selinunte, Agrigento e Gela e nesta per-spectiva a cunhagem de Segesta encaixava-se nakoinmonetria grega do sudoeste da Siclia. Noentanto, em c. 470 quando Segesta comeava aemitir didracmas, as outras cidades diminuiama produo de didracmas e em seguida inter-roperam esta produo completamente a favorde uma moeda maior, o tetradracma, ou peade quatro dracmas. Por essa razo, Segesta ficoupor muitos anos como nico fornecedor dedidracmas na Siclia ocidental.

    Se por um lado em relao aos padresde peso, os segestanos encaixam-se nos mod-elos gregos de cunhagem monetria, poroutro, contudo, os elementos iconogrficos

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    10/12

    354

    Os gregos da Siclia a Numismtica e a Histria.

    R. Museu Arq. Etn., So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    e as inscries de suas moedas do-nos uma

    perspectiva diferente. E assim, acerca dostipos monetrios o que significam a imagemde um co de caa no anverso e da cabea deuma mulher no reverso? luz das refernciasliterrias sobre as origens de Segesta que sa-lientei h pouco, o co deve representar o deusfluvial Krimisos. Ora, vrios deuses fluviais somostrados na sua forma animal em moedas,tanto da Siclia como da Itlia do Sul, maso animal escolhido para simbolizar os vriosrios , em outros locais, sempre um touro svezes retratado com cara ou cabea de homem,como no caso do tipo do reverso de Gela (Fig.18). Nesse sentido, no h nenhum precursorou paralelo na cunhagem da Siclia de um code caa como smbolo de um rio exceto nasmoedas produzidas em Segesta. Trata-se, assim,de uma criao prpria dos segestanos, que foibaseada nas tradies da sua prpria cidade.

    A cabea de mulher no reverso da moedade Segesta, portanto, deve ser a da troiana

    Aigeste, cnjuge do rio Krimisos. Nessa perspec-tiva, o anverso e o reverso representam respec-tivamente o pai e a me do heri Aigestes. Aocontrrio do co de caa no anverso, a represen-tao numa moeda da cabea de uma divindadelocal um conceito familiar tanto na Sicliacomo na Itlia do sul. Talvez o exemplo maisbem conhecido seja o da cabea de Aretusa, nasmoedas de Siracusa qual j me referi acima.

    Para finalizar, dirijo agora a minha atenopara alguns aspectos da epigrafia e da linguagem

    mostradas nestes didracmas de Segesta. A legen-da mais comum, SEGESTAZIB, que apareceprimeiro no anverso das moedas desta cidade emais tarde no reverso e s vezes ainda em ambosos lados de cada pea, levanta problemas (Fig.

    19). As letras so gregas, mas a forma Segestazib

    elmia. O significado da terminao ZIB temsido bastante debatido. luz de outra inscri-o, SEGESTAZIBEMI, que encontrada emapenas trs cunhos nos anos finais de 460, aterminao -ZIB parece indicar posse: Eu soude Segesta (eimi em grego significa eu sou)(Fig. 20). Quando analisamos outras cunhagensdo mundo grego afora, nos damos conta queo caso normal para expressar a autoridade dequem bate um numerrio era sempre o genitivoque indica pertencimento: dos siracusanos,por exemplo.

    Fig. 17.Segesta, c.460 a.C. Kraay, 1966: fig.199, pr.70.

    Fig. 18. Gela, c.410 a.C. Kraay,1966: fig.163, pr.57.

    Fig. 19. Segesta, c. 470-450 a.C., didracma de prata.Anv. Co d.; AETAZIB. Rev. Cabea da ninfaAigeste d. Cahn et alli, 1988: fig.398.

    Fig. 20. Segesta, c. 470 a.C., didracma de pra-ta. Anv. Co; Rev. Cabea da ninfa Aigeste d.;AETAZIBEMI. Kraay, 1976: Fig.847.

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    11/12

    355

    Neville Keith Rutter

    Consideraes finais

    Em resumo, esta breve discusso sobre

    Segesta nos permite afirmar que as imagens re-

    presentadas em suas moedas eram gregas no que

    se refere tcnica e ao padro de peso, tinham

    uma iconografia que tambm era grega no

    modo e na execuo, mas a identidade que esses

    elementos gregos expressam uma identidade

    segestana. As inscries ilustram uma identida-

    de igualmente misturada: as letras so gregas,

    mas a forma elmia.Assim, com esta discusso encerro o meu

    texto. Neste artigo espero ter podido mostrar

    algumas das maneiras como as moedas podem

    lanar luz sobre a histria dos gregos e de seus

    vizinhos na Siclia. Espero que concordem que,

    embora os tipos nas moedas sejam lindssimos,

    a lio mais importante a tirar que eles so um

    recurso inesgotvel para a criao da histria.

    BURFORD, A.

    1972 Craftsmen in Greek and Roman Society.Londres: Thames and Hudson.

    CAHN, H.A.; MILDENBERG, L.; RUSSO, R.;VOEGTLI, H.

    1988 Antikenmuseum Basel und Sammlung Ludwig.Griechische Mnzen aus Grossgriechenland

    und Sizilien. Basel: Gissler Druck.

    ERSKINE, A.2001 Troy between Greece and Rome: Local Tradi-

    tion and Imperial Power.Oxford: OxfordUniversity Press.

    FISCHER-BOSSERT, W.

    1998 Nachahmungen und Umbildungen in dersizilischen Mnzprgung. SchweizerischeNumismatische Rundschau, 77: 25-34.

    FLORENZANO, M.B.B.1986 Cunhagens e circulao monetria

    na Magna Grcia e Siclia durante a

    RUTTER, N.K. The Greeks in Sicily The Numismatics and History. R. Museu Arq.

    Etn., So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    Abstract:This article aims to present the potential of the monetary evi-dences for the study of the history of the Greeks in Sicily. From the analysis ofthe epigraphy and iconography on coins minted by the poleis in classical periodwill be discussed how in Siceliot context the Greek coin was used as a supportand vehicle for artistic competition, as will be shown with the case of engraverssubscribers of dies a local phenomenon , and for expression of Polis, Siceliot

    and Greek identities. The interaction between Greeks and non-greeks (elymians)in the island will be also addressed from the case of monetary types of Segesta.

    Keywords: Sicily Epigraphy Monetary iconography.

    expedio de Pirro (280-272 a.C.).

    Tese de doutorado . So Paulo:FFLCH-USP.

    HURTER, S.2008 Die Didrachmenprgung von Segesta. Berna:

    Schweizerische Numismatische Gesell-schaft.

    KRAAY, C.M.1966 Greek Coins. Londres: Thames and

    Hudson.1976 Archaic and Classical Greek Coins. Londres:

    Methuen.

    MARTIN, T.R.

    1985 Sovereignty and Coinage in Classical Greece.N. Jersey: Princeton University Press.

    RENFREW, C.1986 Introduction: Peer Polity Interaction and

    Socio-political Changes. In: Renfrew, C.;Cherry, J. (Eds.) Peer Polity Interaction and

    Referncias bibliogrficas

  • 7/24/2019 345-356-Rutter

    12/12

    356

    Os gregos da Siclia a Numismtica e a Histria.

    R. Museu Arq. Etn., So Paulo, n. 21, p. 345-356, 2011.

    Recebido parapublicao em 10 de outubro de 2011.

    Socio-political Changes. Cambridge: Cam-

    bridge University Press: 1-18.RUTTER, N.K.

    2000 Coin types and identity: Greek cities in

    Sicily. In: Smith, C.J.; Serrati, J. (Eds.) Sicily

    from Aeneas to Augustus: New Approaches

    in Archaeology and History. Edimburgo,

    Edinburgh University Press: 73-83.

    2009 Dating the period of the Signing Artists

    of Sicilian coinage. In: Counts, D.B.;

    Tuck, A.S. (Eds.) Koine. Mediterranean

    Studies in Honor of R. Ross Holloway. Jou-

    kowsky Institute Publication 1. Oxford;

    Oakville, Oxbow Books: 125-130.SMITH, C.J.; SERRATI, J. (Eds.)

    2000 Sicily from Aeneas to Augustus: New Ap-

    proaches in Archaeology and History. Edim-

    burgo: Edinburgh University Press.

    TRENDALL, A.D.

    1989 Red Figure Vases of South Italy and Sicily: A

    Handbook. Londres: Thames and Hudson.

    VERMEULE, C.C.

    1955 Chariot groups in fifth-century Greek

    sculpture.JHS, 75: 104-113.