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1 De Wagner a Bizet: Sobre o problema da música no pensamento de Nietzsche Rafael Lotério Licenciado em Filosofia pela UFJF [email protected] A redação de “A origem da tragédia” data dos anos de 1870 e 1871, quando o pensamento de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), então com 27 anos de idade, estava dividido entre as riquezas inestimáveis da cultura antiga, cujo fôlego lhe tinha sido soprado pelo estudo da filologia clássica, e as emergências de seu tempo. As décadas de 1860 e 1870 foram determinantes para a unificação da Alemanha e a fundação, em 1871, por intermédio dos esforços políticos, econômicos e militares de Otto Von Bismark, do Império. Nietzsche, que em 1869, fora nomeado professor de filologia clássica da Universidade de Basiléia, se afastou do magistério para servir ao seu país como enfermeiro voluntário na guerra franco-prussiana no ano seguinte. E é durante esse tumultuado período que ele se debruçou sobre os papéis para redigir o seu texto inaugural no campo da Filosofia. No prólogo que escreveu em 1886 para o livro acima mencionado não deixou de considerar: “Seja o que for que tenha servido de base para este livro de impreciso valor: havia de ser uma questão de grande fascínio e relevo, além de muito pessoal, como indica o momento em que foi escrito...”. É evidente que os acontecimentos de seu tempo tiveram influência determinante sobre seu pensamento; tanto porque eram acontecimentos de ordem social e cultural profundos quanto porque esse período via alcançar o patamar mais alto o produto de toda uma geração (o Romantismo). O jovem filólogo que tão intensamente trabalhara em artigos a cerca dos aforismos de Théognis e das fontes de Diógenes Laércio, em 1865, como que ao acaso, ao transferir-se para Leipzig, se deparou com a colossal obra de Arthur

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De Wagner a Bizet: Sobre o problema da música no pensamento de Nietzsche

Rafael Lotério Licenciado em Filosofia pela UFJF

[email protected]

A redação de “A origem da tragédia” data dos anos de 1870 e 1871, quando o pensamento de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), então com 27 anos de idade, estava dividido entre as riquezas inestimáveis da cultura antiga, cujo fôlego lhe tinha sido soprado pelo estudo da filologia clássica, e as emergências de seu tempo. As décadas de 1860 e 1870 foram determinantes para a unificação da Alemanha e a fundação, em 1871, por intermédio dos esforços políticos, econômicos e militares de Otto Von Bismark, do Império. Nietzsche, que em 1869, fora nomeado professor de filologia clássica da Universidade de Basiléia, se afastou do magistério para servir ao seu país como enfermeiro voluntário na guerra franco-prussiana no ano seguinte. E é durante esse tumultuado período que ele se debruçou sobre os papéis para redigir o seu texto inaugural no campo da Filosofia. No prólogo que escreveu em 1886 para o livro acima mencionado não deixou de considerar:

“Seja o que for que tenha servido de base para este livro de impreciso valor: havia de ser uma questão de grande fascínio e relevo, além de muito pessoal, como indica o momento em que foi escrito...”.

É evidente que os acontecimentos de seu tempo tiveram influência determinante sobre seu pensamento; tanto porque eram acontecimentos de ordem social e cultural profundos quanto porque esse período via alcançar o patamar mais alto o produto de toda uma geração (o Romantismo). O jovem filólogo que tão intensamente trabalhara em artigos a cerca dos aforismos de Théognis e das fontes de Diógenes Laércio, em 1865, como que ao acaso, ao transferir-se para Leipzig, se deparou com a colossal obra de Arthur

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Schopenhauer, “O mundo como vontade e como representação”. O manto obscuro e aparentemente macabro da Filosofia irracionalista de Schopenhauer crescia e se estendia sobre a Europa. À determinação organizadora do espírito absoluto hegeliano, oriunda do império da razão e que dera o tom do pensamento até então, Schopenhauer contrapôs as incertezas e inquietudes de um pensamento pessimista. Nietzsche, jovem ainda, sorveu até a última gota do cálice schopenhaueriano, de forma que esse pessimismo latente passou a fazer parte do seu próprio pensamento. É fato que essa visão pessimista do mundo que o autor de “Dores do mundo” inoculou em Nietzsche está diretamente relacionada às características elementares do romantismo como a melancolia e a reticente tristeza que se baseia em uma incerteza quanto ao real valor da vida e do mundo. Das idéias constituintes da obra de Schopenhauer a que mais intensamente afetou Nietzsche foi a vontade2. Segundo a Filosofia de Schopenhauer a vontade e a representação são formas diversas de observar um determinado objeto no mundo. Para ele a vontade é a coisa em si, a essência do mundo; considerada em si mesma é inconsciente e só se torna consciente quando o mundo lhe é apresentado como representação. Ora, sendo assim, a representação seria responsável por condicionar o conhecimento e nos enlaçaria de forma a cercear-nos com representações organizadas segundo o “princípio de individuação”. Isso significa que, presos aos círculos de representações não é possível atingir nada que esteja para além do que se define no tempo e no espaço. A vontade tem um destacado papel, sem ela não há representação possível, ao passo que quanto mais representações, menos viável é a observação da vontade. Esse impulso gigantesco, intenso e desenfreado, causador do efeito motriz do mundo, interessou a Nietzsche; principalmente nos períodos da obra em que Schopenhauer, que, aliás, era avesso ao ruído, dissertou sobre uma “metafísica da música”. Presos às representações e às diretrizes de tempo e de espaço, não é possível que a vontade seja alcançada. A coisa em si, mesmo fundando todo o impulso que rege a existência, continuaria incognoscível, assim como Kant estabelecera no seu criticismo. A diferença presente, que marca uma mudança e um progresso de Kant até Schopenhauer, é que este segundo concede à música uma peculiaridade que subtrai a distância entre a compreensão do mundo e a vontade. Em Kant a coisa em si pode ser pensada, mas jamais se torna tangível, não há acesso possível a ela, exceto através do pensamento. Ainda que se preserve em Schopenhauer a inacessibilidade da coisa em si, fato é que há uma diminuição representativa da distância desta para o mundo. Acontece que, nas suas idéias para uma metafísica da música as relações desta com o fenômeno são apenas indiretas enquanto a coisa em si para este permanece indecifrável. Isso significa que a música, alheia a uma dependência factual com o fenômeno, é uma forma de se interpretar a vontade que fomenta a existência de uma maneira mais verdadeira. O que Schopenhauer aponta nesta sua metafísica musical é a possibilidade de, através da música, alcançar uma compreensão, mesmo no sentido de uma justificação, da existência do mundo; de modo que haveria um mútuo encobrir e descobrir entre a música e o mundo. Ora, Nietzsche, cujo espírito era 2 Em alemão: wille. A adoção desta idéia por Nietzsche na sua primeira obra tem homogeneidade plena com a Filosofia de Schopenhauer, de forma que o seu discurso é completamente envolvido com as idéias do filósofo pessimista. Mais tarde, porém, a vontade, que em Schopenhauer aparece como algo negativo, como a negação da vontade de viver, vai ser transformada em uma pressuposição positiva, com a afirmação da vontade de viver e a conseqüente superação das idéias pessimistas.

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essencialmente inclinado à melodia, à expressão musical na sua plenitude, sentiu intensamente as idéias de Schopenhauer. A primeira grande influência sobre Nietzsche foi a Filologia clássica e a sua aproximação constante com a civilização antiga; algo que lhe tocou profundamente e cujos reflexos jamais seriam apagados. A Segunda influência foi a Filosofia de Schopenhauer, que moveu o seu pensamento até o pessimismo e o descrédito do mundo, estabelecendo um primeiro elo factual do filósofo com as idéias correntes no seu tempo a cerca dos vestígios do grande Romantismo Alemão. Essa aproximação também não seria esquecida posteriormente. Ainda que tenha valorizado a idéia de vontade com pressuposições particulares, muito naturalmente aspectos de sua própria Filosofia, nesse momento particular da publicação de seu primeiro livro não é possível distinguir uma separação nítida entre Nietzsche e Schopenhauer no que tange à problemática da vontade. De qualquer forma, ter herdado a idéia foi o que lhe possibilitou colocar em marcha toda o seu empreendimento iconoclasta. A terceira influência, talvez a mais dolorosa de sua vida, mas que o fez academicamente muito prolífico em produções, foi sua amizade com o compositor Ricardo Wagner. Conheceu o músico em 1868 e esta íntima relação daria o tom de seu discurso nos anos seguintes. A vida de Wagner era um grande evento e se consagrava já como um ícone do romantismo alemão, como o compositor que levou o movimento até o seu mais alto patamar. Por muitos estudiosos do movimento romântico na música ele é apontado como ícone do que se definiu como realismo romântico. Homem extremamente culto, apesar de perdulário e inclinado ao escândalo, era ele também um discípulo de Schopenhauer, tendo ajustado a sua composição de forma tal que a encarava como a melhor forma de fazer manifesta a vontade, ou seja, de tornar compreensível a força de que o mundo era constituído. Foi influenciado pela música de Weber, deixou-se encantar definitivamente por Beethoven e adotou as idéias de Schopenhauer. Esta grande e heterogênea forma de representar o mundo se homogeneizou na obra wagneriana e, em um primeiro momento, Nietzsche se inclinou a ver nesta música o anúncio de que uma nova era para o pensamento e a cultura se aproximava. Esse era o Nietzsche romântico, que ainda se permitia acreditar no futuro do povo alemão, que lutara por ele e que em nome dele vislumbrava um horizonte todo novo para o pensamento filosófico. Tanto na vida quanto no pensamento nietzscheano a música tem um destacado papel. No opúsculo “A origem da tragédia” esta aproximação está visivelmente discriminada na sua descrição do princípio dionisíaco do teatro antigo. O autor associa a origem do problema do trágico ao espírito musical, o que equivale dizer que associa a origem da tragédia a Dioniso**. Ainda no primeiro aforismo do livro, Nietzsche faz uma afirmação que se torna fundamental para a interpretação da obra. Segundo ele o progresso da arte estaria condicionado à luta constante entre dois princípios opostos: de um lado o princípio apolíneco, de onde se originaria a harmonia do mundo, o principium individuationis e o mundo de sonhos fundamental para o homem; de outro o princípio dionisíaco, baseado na embriaguez e no enfrentamento do mundo na sua forma mais elementar. Esses princípios, indeléveis rivais entre si, mantêm um progresso constante no campo artístico enquanto se enfrentam arduamente e proporcionam períodos de extrema * * Notar que a grafia deste nome grego muitas vezes é confundida com Dionísio. Ocorre que, aqui acompanhamos a tradução de “O nascimento da tragédia” de Jacó Guinsburg para a Editora Companhia das Letras e a biografia de Rudiger Safranski a título de confirmação.

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produtividade e excelsa forma quando esporadicamente se conciliam. A tragédia grega, na interpretação de Nietzsche, em seu período de mais intensa produção e no apogeu de seu estilo, seria uma conseqüência imediata da soma de Apolo e Dioniso. Essa ambigüidade presente na sua consideração sobre a tragédia revela a forma propriamente dual como entendia o mundo, algo que, aliás, não cessará com o passar dos anos. Acontece, porém, que esta dualidade dará lugar a uma outra de valor muito semelhante mas de conseqüência particular. Ao princípio apolíneco ele havia outorgado a competência de um harmonizador do mundo, de forma que quando denomina Homero como um poeta ingênuo3, o faz no sentido de que a épica homérica seria a tentativa grega de compreender o funcionamento do mundo, dando aos fatos aparentemente inexplicáveis da natureza uma atmosfera divina . Concebe Nietzsche que o mundo para os gregos seria um cenário hostil, margeando o insuportável, e que esse receio do desconhecido os teria impelido construir uma visão do mundo em que toda a adversidade encontrasse seguro entendimento na presença do extraordinário**. E Homero, na sua poesia épica, aproximando deuses e homens e dando aos obstáculos a forma de desafios superáveis, teria alimentado seu povo com o sonho apolíneco, ou “o véu de Maia”, que sanaria os temores imediatos. Quanto a Dioniso, senhor da embriaguez, estaria sempre inclinado a ir buscar o mundo no próprio mundo, de forma que pareceria um deus odioso, a quem só interessaria a satisfação de sua saciedade. O que fica evidente em Nietzsche, porém, é que o dionisíaco representa a maior aproximação que os homens poderiam ter com a natureza. Essa aproximação não foi entendida pelo filósofo como um naturalismo, no sentido moderno do termo. Esta aproximação denota o entendimento de um homem sem as ilusões do sonho apolíneco, sem a cobertura do “véu de Maia” e, portanto, sem se refugiar no não-humano, no não-real. Nietzsche chama atenção para o mito de Sileno. Quando Sileno afirma que o melhor para homem não é alcançável, com quanto significaria não ter jamais existido (sublinhe: jamais Ter existido e não deixar de existir, que são modos diferentes de ver a questão!) não está apontando para a negatividade da afirmação, mas, diferentemente, para a afirmação que procede da negação consecutiva. Se nada pode ser feito desde que existe o homem, o melhor é viver afastado da ilusão de que se pode não ser homem, não ser o que se é. Ainda que o pessimismo de Schopenhauer tenha se imiscuído ao pensamento do jovem Nietzsche, não consegue ainda nublar a sua visão do que entende como o ideal de felicidade e satisfação gregas. A música dionisíaca é música que chama o homem para a sua humanidade, que devolve a parte ao todo, que dissolve o fragmentado no uno primitivo. Apolo, seu antípoda, cobre o mundo com o véu da aparência para facilitar a condição da vida; e o faz através do sonho que enriquece a existência valorizando a crueldade do mundo. Assim sendo, o sonho é, em si mesmo, a própria aparência, ou essência dela, espécie de aparência primeira. A divinização do indivíduo presente no princípio apolíneco faz do indivíduo uma forma particular: cercando-o de leis e preceitos a seguir, a fim de obter o favor da vida. Mas Nietzsche resolve toda esta discrepância revelando que o parentesco entre os dois princípios 3 Em alemão no de “A Origem da tragédia” original: naiv * * Extraordinário aqui tem o sentido apenas unilateral de algo fora do comum. Acompanhamos a idéia de Schelling de que o maravilhoso não existiria em Homero, com quanto este significaria o desaguar de algo alheio ao mundo. Em Homero, porém, os deuses e os homens habitam um só espaço e se influenciam mutuamente.

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é indissolúvel, de forma que sob toda a formação harmônica, legislativa e ilusória do apolíneco, está o dionisíaco, que talvez seja o próprio fundamento da entrega de Apolo ao mundo de sonho.

“Apolo não conseguia viver sem Dioniso!”.

Nesse sentido, quando define o dionisíaco como sendo princípio da embriaguez, sendo esta a analogia que melhor nos poderia aproximar dele, e sabendo que desde “A origem da tragédia” Nietzsche enxerga o fenômeno estético por vias da fisiologia, é possível esclarecer que se trata do que há de mais elementar na natureza humana e que as ilusões da harmonia e da legalidade subtrairam. Tratar tanto o dionisíaco quanto o apolíneco como princípios que podem ser demonstrados fisiologicamente revela a sua idéia do que seria o pensamento estético. Mesmo o tendo destacado como o único princípio verdadeiramente metafísico, não deixa de considerar que seus reflexos são imediatos no mundo; o que significa dizer que não há expressão artística que se defina através do absoluto ou para ele, como queria Schelling. Há a necessidade básica de que a arte, mesmo relacionada ao metafísico, venha desaguar na realidade da vida. Esta concepção de uma estética que se reflita fisiologicamente no mundo é a prova de que não houve, por parte de Nietzsche, nenhuma apropriação impensada de outros pensadores. Mesmo sendo influenciado por ícones do romantismo, algo que facilmente se pressupõe, já que ele não poderia ter retirado sua Filosofia do nada, não assimilou simplesmente, tendo dado a cada herança um traje seu. No mais, ter caracterizado os princípios opostos como sonho e embriaguez denota a relação fixa que ele enxergou por toda a sua vida entre a arte e seus apreciadores. Em carta de 11 de maio de 1870 ao Barão de Gersdorff ele escreveu:

“Para mim, tudo o que há de melhor e mais belo está

unido aos nomes de Schopenhauer e de Wagner, e sinto-me orgulhoso e feliz por coincidir neste ponto com os meus amigos mais próximos”. Basiléia.

Esta carta revela o quanto lhe afetava positivamente, e fisicamente, tanto a música

de um quanto a Filosofia de outro; afetando de forma intensa. Mais tarde isso mudará e também terá nele uma expressão agudamente física, definindo Wagner como uma doença e dizendo, em “Ecco Homo”:

“De que sofro, quando sofro da fatalidade da música?

Sofro de a música ter perdido o seu caráter afirmativo e transfigurador do mundo, sofro de ela ser música de decadência, de já não ser a flauta de Dioniso...”

Nesse caso, ainda que opostos esses princípios são complementares, não podem

viver em separado de forma profícua; assim, o dionisíaco alarga as fronteiras estreitas do principium individuationis e devolve à natureza, ao uno primitivo, a parte que se afastou. Essa interação entre eles é o caráter interativo do próprio jogo estético que se esconde nas pressuposições.

Tendo identificado Homero como artista ingênuo, caracterizou-o Nietzsche como sendo um artista apolíneco. Nietzsche define a poesia épica como sendo uma poesia de

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fundo apolíneco e aponta, em contraste, para a canção popular como sendo o “perpetuum vestigium” do enlace entre os dois princípios. Define canção popular:

“A canção popular é, para nós, primeiramente,

um espelho musical do mundo, como melodia original, que procura agora uma figura de sonho paralela e que a exprime na poesia. A melodia é então o primitivo e o comum que, por isso, pode também sofrer múltiplas objetivações em textos múltiplos. Ela é ainda o mais importante e o mais necessário na apreciação ingênua do povo”.

Nietzsche tem visível inclinação pela canção popular e este é o primeiro de seus enlaces com a música wagneriana, a qual volveremos adiante. Reverencia este tipo de composição segundo as diretrizes do pensamento schopenhaueriano como sendo o espelho musical do mundo, algo como uma melodia original, que procura uma figura de sonho paralela que é expressa na poesia. No mais, o que parece deveras encantar Nietzsche na música popular é o caráter verdadeiro, autêntico, original da forma mais categórica; o que pressupõe que não fora ainda, uma tal música, aparentada aos pudores e receios e pesares da sociedade culta, do mundo que se deixa dominar por diretrizes duvidosas. E agora o futuro contraponto entre Nietzsche e Wagner: segundo Nietzsche, a melodia cria a poesia de si:

“A melodia cria a poesia de si, e isto sempre novamente; nada mais nos quer exprimir a forma de estrofes da canção popular, fenômeno que sempre fitei com espanto, até encontrar esta solução”.

Uma das vicissitudes de Nietzsche na redação de “A origem da tragédia” é a identificação de duas correntes na história da lingüística grega: primeiro a homérica, já identificada como essencialmente apolíneca, cuja língua imita o mundo das idéias e dos fenômenos e de outro a de Arquíloco, dionisíaca, que imita o som musical. Esta diferenciação é o que ele identifica como a única relação possível entre a poesia e a música, a palavra e o som. O maior contraste está entre Píndaro e Homero, quando no primeiro predomina a imitação do som (ritmo) na poesia. Mas, desde então faz ressalva quanto à possibilidade de a palavra conseguir acompanhar a expressão musical. A palavra não pode exprimir todo o simbolismo da música, capta apenas o símbolo dos fenômenos e interage com o espírito da música apenas exteriormente. E considera que a música não pode ser entendida como vontade. Nietzsche entende a vontade como sendo o inestético em si. Mas ela pode aparecer como vontade,que é o próprio sentido da expressão musical que Schopenhauer aponta e que Wagner e Nietzsche procurarão. É nesse sentido que ele trabalha a idéia de vontade proveniente da dimensão que relaciona vontade e representação na obra de Schopenhauer. Nesse caso, portanto, lirismo é um dependente natural do espírito da música; este independe das imagens e das idéias, mas a suporta. Apesar disso o poeta lírico não diz nada que já não esteja na música; daí o não poder transformar em palavras todo o simbolismo da música, que é universal. É muito evidente, portanto, o quanto a música é vista por Nietzsche, no primeiro momento de sua produção, como forma superior de expressão artística; e não simplesmente

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superior. A supremacia da arte em relação à ciência é fato destacado, tanto mais porque já no prólogo dedicado a Richard Wagner, datado do ano de publicação, 1971, ele considera:

“... estou convencido ser a arte a preocupação mais elevada e a verdadeira atividade metafísica desta vida...”.

O considerar assim a música é o mesmo que atribuir a ela uma capacidade especial de traduzir o mundo, o sentimento do mundo em uma forma inteligível de expressão da vontade. Trata, desta forma, de uma possibilidade de justificar a existência do mundo e através desta justificativa tornar suportável a vida. É este o sentido do que Nietzsche definiu como o dionisíaco da tragédia grega antiga. Dioniso, deus da embriaguez, coloca o homem ático em contato direto com a natureza na sua forma primeira, através do êxtase. A experiência dionisíaca está relacionada à dor primitiva e em tudo é diferente do plástico e do épico, dado que o gênio (genie) lírico o alcança por um abandono místico. Esse abandono é necessário para que o homem, separado do uno primitivo (Ur-Eine), tenha a possibilidade de regressar ao seu seio. A representação do teatro grego está, desta forma, centralizada na figura do deus. Seu mito está relacionado às transformações de vida e de morte e à terra, como origem e como fim. O primeiro Dioniso foi morto, despedaçado, e suas partes espalhadas pela terra. Essa comunhão entre o deus e a terra está refletida também na forma como manifesta o seu poder: através do encantamento da bebida mágica, o vinho. O êxtase em redor do qual se construiu o mito de Dioniso é o transporte entre a parte separada dolorosamente e o todo, para onde precisa regressar a fim de sanar a sua dor-primitiva (Ur-Schmerzen). Quando Ésquilo produziu as suas grandes tragédias a essência do trágico havia decrescido. Nietzsche destaca que o centro da grande tragédia é o coro, sendo ele, de toda forma, o próprio drama primitivo. Acompanha Nietzsche as idéias de Schelegel e de Schiller sobre a essência do coro, o que leva à mais uma hipótese afirmativa do quanto se deixava levar pela influência do romantismo; e em certa medida, de um extrato do idealismo, Schelegel, em sua forma mais pura. Esses pensadores concediam ao coro um destacado espaço na representação antiga. A interpretação de Schelegel entende o coro como o teor e o extrato da multidão dos espectadores, como um espectador ideal. Na verdade ele era toda a representação porque, sem os atores que foram adicionados de forma crescente por Ésquilo, Sófocles e Eurípides, respectivamente, restava apenas a configuração do coro de mascarados. Esse coro afeta particularmente Nietzsche porque a sua representação estaria, toda ela, envolvida em música; música na máxima expressão dionisíaca, que significa expressão musical somada ao êxtase da bebida e da dança. Esse era o drama primitivo: sem nenhuma forma de autêntica expressão centrada no discurso, em palavras como núcleo da ação, constituía-se necessariamente de música. A tragédia clássica, que pôde passar através das colunas do tempo e alcançar Nietzsche, não tinha mais o aspecto puro que o coro ideal apontado por Schelegel e Schiller descrevia. Na sua falta, Nietzsche se prendeu aos trágicos que melhor conseguiam manter a herança da representação anterior. Ésquilo, nesse ínterim, lhe é particularmente caro. Não apenas em função da manutenção, em menor escala evidentemente, do coro; também por um conjunto de características que outorgavam à tragédia um sentido completo no centro da vida cultural e social grega. O coro, na visão de Nietzsche, beneficia a tragédia, entre outros fatores, porque a imuniza contra a possibilidade de um naturalismo. A tragédia havia criado para si um terreno todo especial, quando este afamado coro representaria o que se

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convencionou chamar de espectador ideal. Ora, essa idéia de um espectador ideal esta camuflada na idéia de dissolução das barreiras entre a ação representada e o público assistente. Essa característica é apenas e tão somente moderna. Há de se considerar que, no teatro grego antigo, esse coro, que se movimenta segundo a ação dos atores, conseguiu fazer desaparecer a barreira entre os espectadores e a representação. Isso se deu através da caracterização da ação desse próprio coro. Ésquilo, nesse caso, é um exemplar perfeito dessa utilização porque o seu coro acompanha a trama que se desenrola, sofre com os atores, teme com ele e transporta para o público a emoção do que acontece. É o caso do coro de anciãos que acompanha “Agamênon”. Além disso, Ésquilo é o trágico que melhor apresenta a composição triádica de coro, culto e mito, condição sine qua non para a existência da verdadeira tragédia. O que parece chamar a atenção de Nietzsche é o envolvimento que este coro pode proporcionar à ação. Estar desobrigada de fazer representações realistas do mundo, no sentido de se afastar do que convencionalmente se denomina naturalismo, não quer dizer que o espaço da tragédia fosse uma fantasia pura. Acontece que esse terreno muito particular da tragédia é fundamentado no mito e no culto, que destacadamente aparecem com relevo em Ésquilo e Sófocles, mas é manipulado de forma pouco convencional por Eurípedes. Há na tragédia um ser fictício natural4,o sátiro5, que se relaciona com o homem culto6 e este último se extinguiria diante de um grande sentimento de unidade. No seio desta unidade há um conforto metafísico próprio da tragédia que afirma a alegria e robustez indescritível da vida; esse conforto aparecia melhor nos seres naturais fictícios que vivem por detrás de toda civilização, indiferente ao tempo ou à mudança. Esse conforto salva o heleno, próximo da dor por enxergar as agruras, e o livra de uma ânsia por negar a vontade. Assim:

“A arte o salva, e pela arte se lhe salva a vida”.

Esta é, talvez, a expressão máxima do interesse real de Nietzsche pela arte. Não há fuga ou tentativa de os homens se refugiarem fora da realidade através da representação teatral grega. Há envolvimento real e imediato entre expectadores e realidade, fazendo com que interajam uns com outros. Fica muito claro seu mais destacado interesse pela música. A música, para Nietzsche, é a abertura no mundo através da qual se pode vislumbrar o magnífico significado da existência. A decadência da tragédia, que o autor lamentará tanto e tão intensamente, é sinalizada pela perda do espaço dedicado ao coro, e 4 Em alemão: natürlich. Evidentemente, o que aqui se denomina como ser natural não é o que se pode obter sob um aspecto “naturalista”. Natural aqui, como em Nietzsche, que dizer pura e simplesmente proveniente da natureza. 5 Sátiro: na mitologia grega, híbrido de homem e bode. Simbolicamente esta figura enigmática pode significar, com sua forma híbrida, a ambigüidade da natureza humana. Isso certamente interessaria a Nietzsche no sentido de que chama a atenção para o homem no que tem de mais natural e quer ver o homem como ele é de verdade, ou seja, em comunhão com a sua natureza. Ambíguo no sentido de que representa uma soma de homem cultural e homem natural. 6 Quando refere a “homem Culto” está ser e ferindo ao homem que está inserido solidamente em uma cultura, em uma sociedade, e que vive sob as diretrizes dela.

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conseqüentemente pela diminuição da música, principalmente na obra de Eurípedes, quando o foro musical é substituído quase que sumariamente pelo discurso, e pelo desinteresse ou pelo vilipendio ao mito. Não há tragédia Ática sem o coro, o mito e o culto.Se coube a Eurípedes o papel de vilão, na “Origem da tragédia”, é porque Nietzsche associa a sua poesia à sofística e a Sócrates. Há realmente um crescimento exacerbado, de Sófocles para Eurípedes, da poesia como fundamento de suas peças. Toda a grande construção trágica que seus antecessores direcionaram para os efeitos da ação somatória de coro, atores, música e público, foi resumida em Eurípedes na idéia de uma poesia que nada deve à poesia moderna. Aliás, a respeito de Eurípedes é consenso que suas peças estão muito próximas de dramas modernos, como os de Heinrik Ibsen e Hebbel. É o que nos confirma Arnold Huaser em sua “História Social da Literatura e da Arte” :

“A heroína de Eurípedes, na sua revolta contra o homem, está quase mais próxima das personagens femininas de Hebbel e de Ibsen do que das heroínas da velha tragédia”.

Acontece que ao privilegiar a poesia em detrimento da música essencial, o poeta estava colocando o apolíneco sobre o dionisíaco, ou seja, estava dando a supremacia de um sobre outro. Ora, ainda nesse caso, continua sendo apolíneco o desejo de organização e compreensão do universo. Esse impulso à luminosidade, que glorifica uma clareza que se refugia no discurso sofístico é evidentemente uma inclinação do poeta ao que é lógico, mesmo legislativo; Nietzsche considera Apolo uma divindade ética. A decadência seria, na visão nietzscheana, inevitável. O mito é manipulado livremente e aparecem conceitos de conseqüências complexas como o deus ex-machina, que, utilizado para encerrar as peças de Eurípedes, dá um sentido todo novo às idéias que foram estabelecidas por Ésquilo e Sófocles. A divindade que anteriormente era chamada para estabelecer direitos e deveres, que pairava soberana sobre tudo foi abandonada e em seu lugar se erigiram deuses maleáveis, sem qualquer sombra da imponência determinante que possuem em Ésquilo. A manipulação do mito, ainda que não seja tão evidente, é uma das marcas mais profundas a separar os três trágicos. Além do completo absurdo que o deus ex machina manifesta em casos como a apoteose de “Medéia”, há soluções de fundo duvidoso e inesperado como o casamento de Electra e Pílades, que nem de muito longe parece razoável. O teatro antigo, na visão de Nietzsche, mais do que uma instituição da pólis, foi elemento fundamental da dinâmica da cultura grega sem o qual não seria possível oxigenar o crescimento e a elevação do povo. Apesar de certamente conhecer as implicações sociais que o teatro grego possuía, propriamente como uma instituição, Nietzsche não se refere ao problema como tal. Isso acontece por dois motivos: primeiro porque não é o viés do seu pensamento; depois porque isso atrofiaria a sua idéia de um teatro superior na estrutura e no funcionamento. A questão não é, por isso, menor. Contrariamente, é muito pertinente; no entanto, a montagem social da tragédia requereria um estudo particular e sempre se poderia incorrer no erro se enfatiza-lo, como se tem feito, meramente como parte social da pólis. Por outro lado não há quaisquer idealizações já que todo o seu estudo enfatiza exatamente o poder de o grego se relacionar de forma integral com a sua realidade imediata. Eurípedes saturou suas peças com sua inclinação ao poético pura e simplesmente, afastando a música, inutilizando o coro e interpretando o mito em detrimento de sua fundamentação no culto, e a tragédia morreu. A tragédia antiga morreu, desta forma, de seu próprio excesso, de sua própria protuberância. Dioniso é finalmente subjugado por Apolo e a civilização ocidental,

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terminantemente afetada pela herança socrática, passa a desconhecer a riqueza que o dionisíaco poderia desencadear. Destaque para o fato de que o ter sido subjugado por Apolo não quer dizer muito a Dioniso na visão de Nietzsche. Isso porque, desde os primórdios da “Origem da tragédia” o autor esclarece que esses dois princípios se revezam em períodos de velamento e desvelamento. O excesso de racionalismo socrático, baseado numa configuração otimista do mundo, teria afastado o poder da ação dionisíaca e todo o trágico do pensamento grego teria ido se refugiar nos mistérios; daí o referir de Nietzsche ao trágico nos mistérios helênicos. Desde a Antiguidade, passando pelos alexandrinos e bizantinos, até a sua época, o dionisíaco teria se mantido em segredo, fora do mundo, tendo deixado com que Apolo estendesse sobre este todo o seu véu de sonho e ilusão. Mas ele estava lá, presente, adormecido no seio da civilização, aguardando o momento de despertar, de descerrar os olhos e fixa-los no mundo de forma tal que o pudesse livrar de toda a fantasia épica, otimista e racional de seu antípoda, o apolíneco. É neste momento que, tendo percebido o filósofo que o dionisíaco despertava, vai depositar toda a sua confiança em uma música designada como a música do futuro7. Era a faraônica imagem de Ricardo Wagner que emergia diante de Nietzsche como o renascimento da tragédia na música alemã. Primeiramente é necessário considerar que esse renascimento é remetido pelo autor ao espírito alemão, que inicialmente teria sido desperto através do mito. Na verdade, o espírito trágico do dionisíaco (essencialmente musical) teria falado ao espírito alemão inicialmente através da sua construção mitológica. O fundamento do espírito artístico grego, na opinião de Nietzsche, estaria concentrado no mito e para destruí-lo, notadamente o lado apolíneco, teve que, antes, destruir sua arte, a tragédia. Diz:

“A arte grega e, principalmente a tragédia grega, susteve a destruição do mito; foi necessário destruí-las, livre do solo pátrio, poder viver desenfreadamente na brutalidade do pensamento, da moral e da ação”.

Segundo Nietzsche, até a falência da tragédia o mito só era compreendido no contexto de sua união com ela e, nesse sentido, foram presa de certa intemporalidade8 onde se iam refugiar tanto o estado quanto a arte. Considera assim que o valor, tanto de um povo quanto de um homem se mede pela sua capacidade de imprimir em seu sucesso o selo da 7 Música do futuro: Zukunftmusik. A inovadora música de Wagner ficou conhecida na Alemanha como sendo a música do futuro, no sentido de que sem ela não haveria futuro para a composição européia; sem os progressos com que contribuiu o grande compositor. Em “Nietzsche contra Wagner”, já no período de afastamento total entre o filósofo e o músico, o autor intitula um de seus capítulos com o título: “Uma música sem futuro”. 8 Quando se refere a intemporalidade, Nietzsche o faz para destacar a idéia de um desejo de afastamento do momento, de forma que, tanto a arte quanto o estado, poderiam se destacar para um espaço intemporal a fim de alcançar sossego; nas suas palavras: “... isolando-se da avidez e da cobiça do momento”. Que tal idéia tenha aparecido neste momento estabelece a distinção de uma inclinação do autor a considerar a arte sublinhe: arte trágica, de um ponto de vista romântico.

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eternidade. O oposto desse valor aconteceria quando o homem ou o povo sai da esfera intemporal e se perde na compreensão histórica de si. Isso representa um rompimento maior com a metafísica inconsciente de sua existência anterior. Desprende daí o quanto há valor na interpretação nietzscheana do mito. Esse mito é mito trágico, a homogênea mistura que permitiu ao povo grego antigo dar à sua arte uma expressão tão elevada. O fato em questão, que tem destaque e é extremamente necessário é que, a fusão de mito e música traduz a necessidade de que o apolíneco cubra com o seu véu a potência da música dionisíaca. Carregada com toda a verdade e o peso que Dioniso traz consigo, não seria possível para os homens suporta-lo puramente. Jamais Nietzsche procura independência entre esses princípios. A sua lei básica talvez seja o oposto, a interdependência completa entre Apolo e Dioniso, de forma que mesmo a arte ilusória do primeiro serve ao segundo como forma de não deixar perder os homens.

O renascer é iniciado no mito, isso é fundamental em Nietzsche. Ele destaca então na “Origem da tragédia”:

“O mito trágico, na parte em que pertence a Arte, toma

também parte naquela vontade de transfiguração metafísica da arte em geral”.

A importância que essa sua designação tem para o pensamento alemão é de extrema relevância. Com ela Nietzsche está agregando o diferencial do povo grego ao povo alemão porque no primeiro caso, é a esta capacidade de modelar o mundo como expressão de um pensamento essencialmente mítico que ele enfatiza como sendo o motor de propulsão para o crescimento e elevação da civilização que tão alto patamar alcançaria. A relação entre esses povos, ainda que o autor tenha tomado todas as precauções para não ser tão visível, está fundamentada no trabalho de toda uma geração de germanistas, que se responsabilizaram pela retomada da língua e da literatura dos gregos. É preciso reafirmar que o Nietzsche da “Origem da tragédia” é um Nietzsche marcado pelos resquícios românticos e que ainda manifesta inclinação à crença no futuro da Alemanha. Esta crença (se com esta palavra não causamos um crime contra o autor) é o que o leva a enxergar o espírito alemão como espírito favorável ao dionisíaco. A idéia básica é que o dionisíaco despertava no centro de uma civilização alexandrina, socrática ou otimista, e este reascender da chama espiritual da música trágica se daria através do espírito alemão. É no aforismo 19 da “Origem da tragédia”9 que Nietzsche introduz de forma mais clara a sua hipótese de renascimento do espírito dionisíaco. É fundamental no seguinte:

“Do fundo dionisíaco do espírito alemão elevou-se uma força que nada tem em comum com as condições primitivas da cultura socrática, não sendo explicável nem desculpável por estas, e que, muito pelo contrário, é sentida por esta cultura, como o horrível-inexplicável, o prepotente-hostil, a música alemã, como deve ser entendida em sua poderosa marcha solar de Bach a Beethoven, de Beethoven a Wagner”.

9 Esta passagem consta da tradução do doutorando em Filosofia Márcio Pugliese, de 2005, para Madras Editora. O referido assunto está no aforismo 19, parágrafo 6.

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Concorda que, com o desaparecimento desse espírito, na Grécia Antiga, degenerou o homem genuinamente grego, que via na tragédia um momento de comunhão com a sua natureza mais íntima; e afirma que, apesar de sua época ser exatamente favorável ao homem teórico, avesso a tragédia e cheio de reservas quanto a si mesmo, que se afasta do que tem de verdadeiro e vai buscar uma falsa interação com a natureza em um degradado naturalismo, consegue enxergar o soerguer de Dioniso. É importante notar que Nietzsche parte basicamente da idéia de que o espírito alemão tem um fundo dionisíaco. A cultura socrática não poderia compreender e nem através dela justificar a existência desse espírito. Fala, de forma muito enervante, de uma marcha solar que vai de Bach até Beethoven, e o faz desconsiderando toda a discrepância que há entre um e outro. Notadamente, músico que também era, ele fatalmente conhecia as diferenças básicas entre a composição barroca de Bach e a já tão completamente romântica música de Beethoven. Considera que esse romantismo de Beethoven é um romantismo sem excessos, puro no mais alto grau, cheio de sensibilidade, subjetividade e idealismo. É impossível não considerar que Beethoven é o símbolo primeiro do compositor que produz o que quer e quando quer. Ele representa um contraponto imediato com Johann Sebastian Bach, que é caracteristicamente barroco. A música de Bach é, toda ela, evocada em nome de Deus; ou seja, a música bachiana é divina em função do divino. Em face disso, porém, entende Beethoven a música apenas em função de si mesma, sendo superior tanto à sabedoria quanto à Filosofia. Eis a máxima sentença do pensamento de Beethoven:

“Música é revelação mais sublime do que toda sabedoria e Filosofia”.10

Se Nietzsche reúne Bach e Beethoven nessa marcha solar significa que está dando à música de características tão distintas um mesmo signo: o de música alemã, antes e além de tudo mais. Isso é característico da visão nietzscheana do espírito alemão nesse período. Podemos considerar Bach como sendo a luminosidade grandiosa que desponta e que subjuga a escuridão enquanto Wagner seria a apoteose, o momento sublime, mas que perde o fôlego para o crepúsculo que se aproxima. Nesse caso é necessário atentar com muito mais ênfase para Beethoven, quando não seria nem um pouco equivocado considerá-lo como o meio-dia, a luz maior, o momento mais alto, mais iluminado e mais intenso da renascente música dionisíaca. A expressão romântica do gênio desse compositor dava ao filósofo a possibilidade de adequar as suas idéias de uma música poderosa, a grega, a uma outra música cheia de ímpeto. Em Nietzsche o sentido da música é um sentido de revelação das mais profundas verdades que se escondem na natureza humana; é como se esta música pudesse abrir uma fresta na existência do homem através da qual poderia observar seu fundamento e compreender os seus motivos. Essa abertura, notadamente, liga o homem a um outro homem, completo em si próprio, que está soterrado em sua natureza, repleta de cultura e sociabilidade, algo que o obriga a absolver uma série de condutas e idéias em detrimento do que é deveras, do que é por si mesmo. Esse é o fundamento de uma marcha solar, de um gigantesco astro que percorre o mundo espalhando a sua luz reveladora e o seu calor confortador. E Wagner foi creditado por Nietzsche como o herdeiro de Bach e de 1 0 Citado do ensaio de Bruno Kiefer “O romantismo na música”, parte do conjunto de textos organizados por Jacó Guinsburg sob o título “O romantismo”.

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Beethoven, de alguma forma também de Kant e Schopenhauer, unificando música e Filosofia em uma analogia que ele próprio só considera possível quando próxima da visão helênica do mundo, tornando os alemães devedores imediatos dos gregos. Evidentemente toda esta manobra para aproximar gregos e alemães no espírito da música só poderia ser feita desde que ele se colocasse a fazer o caminho inverso do que fizeram os helenos. Os gregos foram da tragédia para o socratismo, da luminosidade verdadeira para a beleza confusa e ilusória. Os alemães deveriam ir do teórico herdado para a ressurreição do trágico velado. Considera, por tudo, que o renascimento do trágico era o retorno do espírito alemão a ele mesmo; um reencontro valoroso que se dá após um longo período de defrontamento com a forma bárbara do socrático. Assim sendo, Wagner é a própria expressão deste renascimento; pelo menos enquanto Nietzsche o considera partidário real de suas próprias idéias. Para compreender o sentido desta amizade é preciso ter sempre em vista o fato de que os anos de iniciação de Nietzsche são anos de relacionamentos românticos e de permissibilidade latente. Que tenha passado a menosprezar a Alemanha e o povo alemão um pouco depois de dissertar sobre a tragédia nada altera no fato de que enquanto se ocupou de seu primeiro livro os enaltecia como um grande povo e a eles outorgava a herança grega. O Wagner que tanto o encantou é, todo ele, fruto do romantismo; tanto que referiu-se diretamente à duas de suas peças de um período em que apenas as figuras românticas tinham espaço na representação wagneriana. São elas “Tristão & Isolda”, de 1865, e “Lohengrin”. Também se referirá, mas indiretamente, ao “Anel dos Nibelungos”. No primeiro caso, o de Tristão, consideraremos, antes mesmo do mito, já que a peça é baseada em um antigo mito germânico, a expressão musical pura e simplesmente. Ele questiona no aforismo 21 da “Origem da tragédia”:

“Dirijo-me somente a estes que, parentes imediatos da música, nela têm, por assim dizer, o seu seio maternal, e que só se relacionam com assuntos comuns por meio de inconscientes relações musicais. A estes músicos de verdade me dirijo perguntando se eles se podem imaginar pessoas que consigam perceber o terceiro ato de ‘Tristão e Isolda’, sem qualquer ajuda de imagens ou palavras, como uma composição sinfônica ingente, sem asfixiar-se sob inquietação temerosa de todas as asas da alma?”.

O atrativo sem dúvida era a intensidade da música; uma intensidade tão completa e tão absoluta que o marcaria de uma forma inigualável. Esta era a inclinação de Nietzsche por Wagner: na sua composição a canção popular alemã, no que tinha de mais genuína, tomou um sentido esplendoroso e universal, como se tivesse deveras sorvido para si o sentido todo da imensa força que circunferencia a existência, a sustenta e a justifica. “Tristão & Isolda”, com quanto deixe perceber alguns excessos de individualismo em dados momentos, como na manifestação da dor e da solidão, no enfrentamento do porvir, consegue completar seu sentido sem decrescer na qualidade de seu caráter de obra total. Isso é o que aparecia na obra de Wagner desde sua primeira ópera, “As fadas” 11, caracterizada pelos exegetas como juvenil mas cheia de uma nuance madura, talvez ecos

1 1 “As fadas”: em alemão “Die Feen”, de 1833.

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precoces do que o compositor faria quando adulto. E, também, “O amor perdido”12, que acompanha a sublimidade da composição magistral. Certamente, esse Wagner jovem era tão inovador e diferente do Wagner maduro como o próprio Nietzsche foi diferente na juventude em relação ao autor de “Assim falava Zaratustra”. Havia muito mais destaque para a música nessas primeiras composições e associado a esta maior intensidade, Wagner reconstruiu de forma magistral uma significativa parte da mitologia germânica. Esta associação completa o atrativo necessário para o gênio poderoso de Nietzsche. Enriquecidos que estavam os alemães com a herança que receberam de seus músicos anteriores, faltava o mito para completar o impulso dionisíaco. E foi Wagner quem buscou nas bases do povo germânico os seus mitos mais fundamentais, mais genuínos, para reconstruí-los de forma a devolver ao povo alemão o pleno gozo de suas criações. Embora não seja um consenso, os “Mestres cantores de Nuremberg” conseguem fechar todo o sentido desta herança germânica já que todo o mito está voltado para a origem das canções alemãs. Esses mestres cantores, ou minnesänger (cantores do amor, em alemão) são oriundos do medievo germânico e encerraram todo o sentido da construção de sua literatura através da estrutura mitológica. São eles: Biterof, Tannhäuser, Wolfram Von Eschenbach e Walther Von Der Vogelweide. Notadamente, essas canções de amor renasceram com toda a intensidade no romantismo, não sendo, portanto, uma dádiva wagneriana. É notório que, no período de unificação da Alemanha, teve muito espaço a defesa da cultura. Nas gerações que antecederam Nietzsche, quando a unificação ainda era uma aspiração e os diversos principados mantinham uma relação delicada entre si, a argamassa que reunia toda a população em redor de um mesmo ideal era a cultura; em outras palavras, o que Nietzsche denomina “espírito alemão”. Ora, em sua época, a ópera wagneriana contribuiu imensamente com a solidificação desse ideal de povo baseado na riqueza da cultura e era, talvez, observando isso que Nietzsche enxergava a grandeza de um povo na sua capacidade de superar a adversidade e consolidar a sua riqueza mítica. O trabalho de construção da idéia do espírito alemão é diretamente proporcional ao desenvolvimento do romantismo, que necessitava de uma identidade nacional consolidada. O destacável em Wagner no que tange à suas óperas em particular é a estupenda estrutura da tetralogia “O anel dos Nibelungos” (“Der Ring des Nibelungen”). O tema desta composição é épico e seu padrão basilar não é germânico mas nórdico, tratando, portanto de uma mitologia mais detalhada e mais documentada. Seu processo de construção foi longo e aparentemente muito árduo indo de 1848 até 1874. A pretensão do compositor é chegar à essência do mito dos Nibelungos, que estaria no centro de toda a construção da mitologia centro européia; daí o caracterizar de seus exegetas como sendo esta ópera uma construção épica. Evidentemente, está o tema na origem mesma do povo germânico. As quatro partes são: 1. “O ouro do Reno”(Das Rheingold), que funciona como o prólogo; 2. “A Valquíria”(Die Walküre), cujo tema da cavalgada ganhou destaque universal; 3. “Siegfried”, que é o centro mais importante de toda a ópera e 4. “O crepúsculo dos Deuses”( Götterdämmerung). Assim como no mito prometeico dos gregos, este mito versa sobre o roubo de algo que pertencia aos deuses, iniciando, portanto, do crime e da culpa e marcando um contraponto entre a superioridade da divindade e a baixeza de todas as outras criaturas. O anão Alberich teria roubado o anel de poder, feito com o ouro do Reno, que dá posse de todo o mundo àquele que o possuir. Esse anel percorre toda a tetralogia mas, de forma muito sutil, deixa de ser a peça mais importante de toda a questão quando passa a 1 2 “O amor perdido”: em alemão “Das Liebesverbot”, de 1834.

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interessar apenas as relações, o crime e a redenção que se desprendem da sua procura e da sua posse. É puro simbolismo, da mais categórica criação romântica. Aparecem desde aqui temas como a redenção e a culpa, trabalhados como a difícil relação, não raro antinômica, entre deuses e homens. É a reflexão a cerca do problema da culpa dos deuses o que levou Ricardo Wagner a confrontar os mitos germânico e helênico, pretendendo alcançar uma concepção moderna. A execução completa do ciclo dura cerca de 15 horas. No entanto, o fascínio de Nietzsche por Ricardo Wagner não resistiu às mutações de seu pensamento. Tão logo o Império Alemão se concretizara, o filósofo percebeu o quão enganado estava em relação à grandeza que via nessa nação. Ao poder do espírito alemão que encaminharia a cultura européia com o cortejo de Dioniso, precisou contrastar um povo que se tornara o último. Desde muito jovem ele deixara evidente que via na França uma nação superior. Nietzsche foi sempre muito impulsivo em suas definições do grande e do superior, sempre propenso a nomear destacadamente a superioridade de um lado sobre o outro quando a questão é a comparação entre formas distintas de pensar. A França esteve sempre diante dele como uma nação superior em relação à cultura e contrastava extremamente com a mudança de seu pensamento em relação ao seu país de origem. Tendo sido formado o Império Alemão, Nietzsche viu nele um “inimigo da cultura”; isso acontece porque o Estado passava a predominar acima e muito além de toda a cultura, de toda a vida social, de toda forma de independência do homem. Enquanto em França se faziam lutas sucessivas pela liberdade e pelo avanço da cultura, o povo alemão se fechava em redor de um Império que lhes podaria toda capacidade de crescer e deixar florescer aquilo que era inerente ao espírito dionisíaco. A formação do Império (reich) pareceu a Nietzsche um retrocesso diante de tudo o que a Europa conseguira por todos aqueles anos de árdua luta. Dando a França adeus definitivo ao Ancien Régime, tornava a Alemanha para as limitações de um Estado fechado em si mesmo, sendo por isso inimigo da cultura, que antes de tudo mais precisa de ar puro para crescer e florescer. Tornou-se, portanto, o avesso completo do que Nietzsche desejara e sonhara; logo ele se tornaria um combatente desse povo que “sempre chega por último”. O primeiro passo a separar Wagner e Nietzsche, isso se foram próximos algum dia, já que mais tarde nos seus últimos escritos ele dirá ter projetado no músico a sua própria intensidade questionativa, sua própria genialidade, foi o curvar-se a este Estado, ao Reich e a tudo o que ele representava. Assim, lê-se em “Ecce Homo”:

“Um psicólogo poderia acrescentar que tudo quanto ouvi nos meus anos juvenis através da música de Wagner nada tem que ver com Wagner; que quando descrevia a música dionisíaca ela era o que eu só ouvia; que eu transpus e transfigurei instintivamente todo o novo espírito que levava dentro de mim. A prova disto, tão forte quanto uma prova o pode ser, é o meu escrito: ‘Wagner em Bayreuth’. Em todos os passos psicologicamente decisivos fala-se de mim apenas; pode sem reservas escrever-se o meu nome ou a palavra ‘Zaratustra’ onde no texto aparece a palavra ‘Wagner’. Todo o perfil do artista ditirâmbico é já o retrato completo de Zaratustra, esboçado com profundidade abissal e sem tocar por um instante se quer a realidade wagneriana. O próprio Wagner o compreendeu; não se reconheceu naquele escrito”.

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Nietzsche tinha reservas severas quanto ao povo, quanto à “arraia miúda” que passara a inundar o teatro de Bayreuth para assistir às encenações das peças de Wagner. Se ele agia com tal reserva é porque não podia suportar a idéia do “animal de rebanho”. Talvez não compreendessem em nada o que viam e o que ouviam, mas estavam lá, levados por uma falsa idéia de cultura; a massa do povo alemão fizera alastrar o ideal do filisteísmo13. Ele sentencia em “Ecce Homo”:

“Que é que nunca perdoei a Wagner? Que ele

condescendesse coma Alemanha, que se tornasse alemão do Império... Ali onde a Alemanha chega, corrompe a cultura”.

Nietzsche não mais poderia suportar a música wagneriana. Além disso, como já se

mencionou, esta composição mergulhou tão profundamente no ideal filosófico de Schopenhauer que as suas óperas perderam o brilho que apresentavam, a grandeza e a intensidade que se atribuiu à sua similaridade com a música dionisíaca. Wagner era fundamentalmente um poeta. No “Caso Wagner” Nietzsche considera:

“De fato,toda a vida ele repetiu uma frase: que sua

música não significava apenas música! E sim mais! Infinitamente mais!...”.

Foi ele mesmo quem escreveu o libreto de todas as suas óperas e o seu

amadurecimento deslocou toda a sua atenção para a encenação, para o poético. É ainda no “Caso Wagner” que se lê:

“ ‘A música é apenas um meio’: esta era a sua teoria, esta era, sobretudo, a única prática para ele possível”.

É semelhante ao que aconteceu na Antigüidade com a poesia de Eurípedes. Toda a

superioridade da música, enquanto forma singular de expressão, tomando de empréstimo o sentido schellinguiano de “unidade de finito e infinito no finito” que dá todo o tom do sentido romântico ainda presente em sua esfera de influências, e o que recebera de Beethoven enquanto jovem, dera espaço às preocupações de um homem de teatro. Não é falso nem equivocado considerar Richard Wagner um dramaturgo e não um músico, segundo o parecer do Nietzsche maduro. É o que o próprio Nietzsche faz. Recordemos que Nietzsche é enfático quando considera que a “melodia cria a poesia de si”. Em “O caso Wagner”, Nietzsche é incisivo:

“Wagner não calcula jamais como músico, a partir de

alguma consciência musical: ele quer o efeito, nada senão o efeito”.

1 3 Nietzsche usou esta expressão primeiramente na “Consideração Extemporânea” dedicada a David Strauss e esta passou a ser intensamente utilizada para definir o indivíduo que se baseia numa falsa sabedoria, que, aliás, acredita ser verdadeira; o que o aproxima de certo ridículo.

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Muito mudou em Nietzsche entre as décadas de 1870 e 1880, tanto que, no prólogo que escreveu na Basiléia em fins de 1871 para a “Origem da tragédia” percebe o quanto fora intenso em suas designações, chegando a admitir parecer o volume um livro para iniciados. É verdade que há muitas mudanças, mas não há nenhum divórcio. O pensamento de Nietzsche é agregador, jamais dissipador. Mais correto é considerar que há uma “marcha solar” que vai dos resquícios do pensamento romântico até a sua etapa mais avançada de descrença no mundo e absoluta confiança em si mesmo. Se não podia suportar a relação de Wagner com todo aquele filisteísmo, com toda aquela adequação ao Império Alemão, menos ainda poderia ser conivente com o seu afastamento da música como base, como pilar de sua produção. Quando diz que não pode mais ouvir a música wagneriana não está fazendo uma recusa simplória, como se pudesse se impingir um juízo tão tosco. Recusa certamente ver degradada aquela que poderia ter sido a maior expressão artística de todos os tempos, com o curvar do compositor ao Estado, ao povo e finalmente, ao cristianismo.

Interessante que, assim como Franz Lizst, pai de Cosima, segunda esposa de Wagner, se tornara mais religioso quanto mais envelhecia, também Wagner foi lentamente cedendo ao credo cristão quanto mais o tempo passava. A sua última grande obra, Parsifal, que, aliás, Nietzsche se negou a assistir, estabelecia uma estranha relação com o cristianismo e uma simbiose assustadora com “Lohengrin”. Uma carta sua ao barão de Seydlitz menciona:

“Ontem recebi o Parsifal, que me foi enviado por

Wagner. As minhas impressões, à primeira leitura, foram as seguintes: toda a obra esta cheia do espírito da contra-reforma, e nela há muito mais de Lizst do que de Wagner. Além disso, acostumado ao grego e ao geralmente humano, acho a produção wagneriana limitada ao excesso, dentro do cristianismo e do tempo. Sobretudo, há no Parsifal uma absoluta falta de carne e, em troca, demasiado sangue (na cena, é já uma verdadeira pletora dele). Por último, dir-lhe-ei que não agradam as mulheres histéricas. Muito do que é suportável para a visão interna, já o não é em cena. Pense nos nossos autores, e imagine-os em êxtase, rezando e tremendo... Muito menos creio que o interior do templo produza efeito cênico, principalmente o cisne ferido. A linguagem soa como a tradução de um idioma estrangeiro. Em compensação, as situações e sua sucessão são da mais elevada poesia e do mais alto que se pode alcançar em música”.14

Em “O caso Wagner” Nietzsche não poupou certa ironia ao se referir à paternidade

de Parsifal15. A maturidade de Wagner significou para Nietzsche a negação de tudo pelo 1 4 Carta endereçada ao Barão de Seydlitz em 4 de janeiro de 1878 quando Nietzsche estava na Basiléia. 1 5 A ópera “Parsifal”, composta de três atos, estreou no Bayreuth Festspielhaus em 1882. Sua ação está encerrada no Monte Salvat, na Espanha, onde viveria uma fraternidade de cavaleiros do Santo Graal. Os exegetas wagnerianos traduzem Parsifal como “o inocente casto” e a ação da ópera gira em torno da redenção e da restituição (esta no sentido de salvação). A ironia se refere

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que outrora o tinha considerado. Estabelecemos que o principal dos fatores a afetar a forma como o filósofo passou a considerar o músico foi o seu abandono daquela música como forma de revelação da força que sustenta a existência do mundo; a isso somou-se, evidentemente, a sua religiosidade cristã e a sua subserviência ao Estado. O destacado sempre deve ser a música. Já no início da década de 1880 Nietzsche havia trazido à luz idéias fundamentais para alcançar o ponto mais alto de seu pensamento e Dioniso deixou de ser considerado na paridade com Apolo para ser contraposto ao crucificado. Ainda assim, distinto que seja esse Dioniso, de que Zaratustra fala tanto e tão intensamente, toda a sua base está na sua obra inicial. Nietzsche não deixou dissipar o seu pensamento; a aparição de um espírito dionisíaco como fundamento de uma crítica ao cristianismo está diretamente relacionada ao Dioniso que primeiro aparece na “Origem da tragédia”, daí o equívoco em se considerar tal obra como escrito de juventude apenas. Na “Origem da tragédia” está em germe todo o pensamento maduro de Nietzsche.

Mas a forma como Wagner afetou Nietzsche foi definitiva. A juventude do filósofo necessitava de uma música que correspondesse à intensidade de seu pensamento. É o próprio Nietzsche quem considera que não teria suportado tal época se não tivesse encontrado Wagner. Assim, ele confirma no “Ecce Homo”:

“Para tudo confessar, a juventude não me teria sido

suportável sem a música wagneriana. Estava então condenado aos alemães. Quando pretendemos libertar-nos de uma opressão intolerável, tomamos haschich. Pois bem: eu tomei Wagner”.

O compositor parece ter insuflado em seu espírito o calor que só o mito poderia; e

com ele uma música tão profunda e completa que, vitimado por ela, não se poderia mais recuperar. Em dados momentos de “O caso Wagner” ele se refere à proximidade com o wagnerianismo como uma doença. Deveras, se pensar nos efeitos que a composição exercia sobre ele, não haveria certamente melhor forma de caracterizar tal relação. O que não deve surpreender, paralelo a tudo isso, é o fato de que ele admite ser fruto da doença, talvez doente ele mesmo de tudo o que combatia. Sua aversão a Sócrates, nesse sentido, pode ser colocada em paralelo com a sua proximidade com ele. Ao que parece, quanto mais uma figura se torna odiosa a Nietzsche, instigando-lhe o senso de resposta e esforçando-o a renovar sempre a sua capacidade de sanar os problemas, mais próximo dela ele se torna. Vencendo-os, com sua argüição ferrenha, avizinha-se mais e mais. Não se pode negar, nem por um átimo, que a intensidade wagneriana é dominadora com a sua idéia de melodia infinita. Mesmo não atendendo às expectativas do filósofo, é fato que essa melodia penetra de forma dominadora e sem reservas todos os poros do ouvinte; a aí sim, repete, quase que enlouquecedoramente uma mesma idéia, uma mesma melodia, uma mesma história, até que o ouvinte esteja suficientemente dominado pelo infinito melódico. Esse foi o efeito mais

ao fato de que Lohengrin, tema e personagem de uma ópera anterior, seria nesta apontado como o pai de Parsifal. O inocente casto teria, desta forma, uma origem pouco favorável ao eco demasiado moral que a peça sugere de forma peculiar.

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imediato do aprimoramento do leitmotiv16, marcando a atmosfera da representação ao dar a uma personagem um acompanhamento particular que destaca tanto a personalidade desta quanto o sentido da ação. No emprego desta técnica está um aprimoramento da obra de Wagner que contrastará com as idéias de Nietzsche. Acontece que, ao empregar o leitmotiv a orquestração se torna o principal veículo da encenação como expressão dramática. O canto, que apareceu sempre como o enfoque mais destacado, é deslocado para uma reduzida declamação musical, que na essência afigura como a própria melodia infinita, que Nietzsche reprovará. O fato em destaque é que na fundação tradicional da organização da ópera, conhecida como “ópera-bel-canto”, a primazia quase que absoluta era outorgada ao canto. Nas primeiras óperas wagnerianas este fato teve visível profundidade no apoio que buscou no canto popular alemão, fazendo a sua afamada recuperação e reestruturação do mito germânico. Ao empregar o recurso do motivo condutor essa idéia de superioridade do canto é abandonada em favor da orquestração, que vai gradual e paulatinamente aumentar a sua capacidade de mover a dramaticidade da cena. Ocorre que há um deslocamento da música pura, entendida por Nietzsche como o espírito dionisíaco, para o teatro, a representação. A orquestra passou a exercer a função de base harmônica, de marcação rítmica e se responsabilizou pela criação da atmosfera que deve sustentar a ação que se desenrolará. O sentido da ópera em Wagner deixa de existir; o que há na sua produção são dramas musicais em que a música é apenas uma subordinada, um mecanismo periférico, da ação dramática. Toda essa transfiguração da música em teatro não poderia ser aceita por um filósofo que se baseava na idéia de um teatro grego. É sempre necessário reafirmar, sublinhar com suficiente ênfase que o teatro antigo, clássico, no sentido que Nietzsche quer lhe dar, tem seu eixo fundamental no coro; ou seja, é necessariamente música. Tendo Wagner tomado o caminho do aperfeiçoamento do leitmotiv, devolveu à ópera o seu sentido mais antigo de camerata fiorentina. Não é de surpreender, portanto, que Shakespeare também tenha deixado em Wagner algumas marcas profundas. O teatro, assim como passava a se mostrar na obra de Wagner não poderia agradar Nietzsche porque demostrava a máxima transfiguração da capacidade de manifestar na música a força da vontade em uma representação delineadamente dramática de ilusões e mentiras. O teatro wagneriano passaria a servir de corifeu às idéias que Nietzsche mais intensamente criticava e refutava. Desaparecem a música verdadeira, o canto popular e o mito genuíno, restando os traços de um perfeito décadent. Nietzsche se queixa, após o desentendimento com Wagner, ter sido a sua música quem comprometera seus nervos. Aproximou-se de Bizet, um francês, compositor de uma pátria verdadeiramente grande, cuja cultura certamente seria superior. Wagner encontrou um rival, um adversário absoluto, com características amplamente opostas, na figura de Verdi. Em tudo este parecia aparentado ao cômico das comédias francesas, que agradavam muito aos operistas italianos. O contraponto natural da música de Wagner não é Bizet, mas Verdi; e, no entanto, Nietzsche pendeu para a música do francês, apoiado em uma particularidade da sua música que, não estando ausente do italiano, em Bizet apareceu com 1 6 Leitmotiv: significa “motivo condutor”. É uma linha melódica particular de um dado personagem na ópera, que é enfatiza toda vez que o personagem está em destaque na cena. Esta idéia deu às peças de Wagner um dinamismo ímpar, porém, não foi invenção sua. Consta que Berlioz (1745-1825) havia utilizado motivo similar sob a denominação de “idéia fixa” que poderia ser apontada como o antecessor imediato do que Wagner desenvolveu.

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o destaque e a intensidade que o filósofo tanto apreciava. Em “O caso Wagner” há uma descrição perfeita do que a música de Bizet passou a significar para Nietzsche. A respeito da grandessíssima “Carmen” ele diz:

“Realmente, a cada vez que ouvi ‘Carmen’, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio: tornando-me tão indulgente, tão feliz...”.

Todo esse valor dado a “Carmen” não foi por mero acaso. As heroínas wagnerianas passaram a representar o exato oposto desta vida e desta volúpia que Bizet soube tão bem intensificar e que pareciam a Nietzsche representar tão perfeitamente a idéia de uma veracidade inconfundível que suplantava toda a mentira infinita da melodia infinita. É com pura ironia que diz em “Nietzsche contra Wagner”:

“Acreditam vocês que as heroínas wagnerianas, todas e cada uma delas, chegam a se confundir com Madame Bovary, tão logo lhes retiramos a casca heróica?”

Ainda que pareça uma afirmação simplória, estas palavras completam o sentido do que a música significou para Nietzsche, e isso sem a consideração de nenhum compositor em particular. Sublinhe: em Nietzsche, tanto no jovem quanto no maduro, a música, o espírito musical, paira como dom absoluto, revelação ampla e demasiado completa de todo o sentido da existência. Se considerarmos novamente a ênfase dada por ele a “Tristão & Isolda” na “Origem da tragédia” é possível perceber que o que o atrai é a capacidade de a música o colocar em contato com homem de carnes e ossos, com todo o ímpeto e toda insaciedade. Não suportava o decrépito Wagner porque suas composições estavam saturadas de tudo o que não era possível ao homem, suplantando suas forças, depreciando suas características, enfraquecendo sua vontade. Era impossível a Nietzsche toda forma de fuga do ser real, toda saída do si mesmo, toda culpa e covardia em buscar o avesso da natureza. Isso para ele era imponderável e era exatamente dessas figuras fingidamente virtuosas, cheias de um outro de si, que Wagner enchia seu palco. A música verdadeira, toda vontade, toda impetuosidade, desaparecia diante da busca pela redenção, a procura do perdão e da salvação. Em face deste monstro de virtudes torpes com que parecia o inocente casto, o cavaleiro do Graal, Nietzsche encontrou a formosura de Carmen e por ela se perdeu. “Carmen” era toda sensualidade, toda vida, toda vontade, tudo ao mesmo tempo: mulher e vontade. E, ainda em “O caso Wagner”, conclui:

“Por fim, esta música trata o ouvinte como pessoa inteligente e até como músico – também nisso é o oposto de Wagner, que, seja o que mais for, era o gênio mais descortês do mundo (Wagner repete uma coisa com tal freqüência que acreditamos nele).

É fato que Bizet se transformou no sol do meio dia que outrora queria direcionar à grande música alemã. É fato, também, que esta música lhe permitiu observar uma impetuosidade que desaparecera da música alemã em função do alastramento do wagnerianismo. Mas, o mais fundamental é que, não é Wagner e não é Bizet o que atraí a

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atenção de Nietzsche; nem quando jovem nem quando velho. É a música, entendida no sentido da beatitude que Clément Rosset identifica. Em “O crepúsculo dos Ídolos” Nietzsche manifesta a seguinte opinião:

“Sem a música a vida seria um erro”.

A experiência da música na vida de Nietzsche começou muito cedo, sob a influência do pai, que morreu quando ele ainda era um infante. Por toda a sua vida a expressão musical sempre lhe pareceu a mais intensa, mais profunda e mais genuína forma de expressão artística. De um modo geral, entendendo o espaço que a forma musical tem em sua vida, é possível observar toda a sua Filosofia do referencial da beatitude como concebe esta arte; aliás, certamente a mais importante para ele. Essa experiência musical seria semelhante à uma abertura para a contemplação real e imediata da verdade que envolve a existência. Este talvez seja o primado absoluto da sua perspectiva da música, que está muito relacionado à sua visão da única manifestação realmente metafísica da vida. Apenas nesse campo, apenas do ponto de vista da estética e da arte, a metafísica lhe parece relevante. O que Nietzsche refuta nos estudos da metafísica é a sua relação tortuosa com a moral, desejando fazer de valores não-humanos próprios para a averiguação da conduta dos homens. A arte, enquanto forma pura de expressão daquilo que há de mais autêntico no homem, independe de tais juízos e pode, como deve, ser entendida como a mais metafísica das atividades da humanidade. Talvez Nietzsche concordasse com Robert Schumann quando este escreveu:

“Enviar luz à profundidade do coração humano e o dever do artista”.

É nesse sentido que na música, para Nietzsche, há a possessão pela força superior da natureza (wille: vontade), que transforma o homem de novo em homem e o defronta com a sua verdade mais elementar. O dionisíaco é expressão desse voltar-se e defrontar-se consigo, com quanto se baseie na fórmula de refusão com os instintos naturais e com o uno-primitivo. E a conseqüência desta sua forma de entender a música é a forma como entenderá a tragédia, tanto a grega em sua origem quanto a possibilidade de renascimento do espírito trágico na música de Wagner. Antes de tudo mais, em Nietzsche a música é a equivalência imediata da vida; e a vida é observada longe da negação e da privação. A música grega seria capaz de ligar o seu ouvinte à fonte mesma de toda a melodia, ou seja, era capaz de ligar, de forma completa e intensa, o homem à seu espírito original, dionisíaco. A música trágica não é, desta forma, uma música negativa; contrariamente, ela é música positiva. Ocorre que a vontade de viver, que foi apontada por Schopenhauer de forma negativa como a origem da dor no homem, foi transformada por Nietzsche em uma vontade de viver positiva, através da qual toda a existência humana seria justificada e se tornaria suportável. Esta era uma inovação da Filosofia de Nietzsche que contrastava de forma definitiva com a música de Wagner, que seguiu pelo caminho da vontade pessimista de Schopenhauer. Vista agora como algo positivo, passava a vontade a ensejar o espírito dionisíaco capaz de fazer com que o homem enfrentasse a sua própria negação e se tornasse mais forte com isso. Nasce com esta transformação o mais nietzscheano dos problemas, que assume um aspecto quase kantiano. Fortificando a vontade como a afirmação da vida e como avessa a todo pessimismo

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romântico, era necessário fazer entender como o sofrimento, que está na raiz da música trágica e no culto dionisíaco, poderia ser transfigurado em prova positiva dessa afirmação. A solução para esta problemática, evidentemente, não foi apresentada de forma sistemática. Diferentemente de Kant, que às suas interrogações respondeu sempre com a distinção entre o fenômeno e o noumeno, Nietzsche concebeu suas respostas de forma positiva, através de experiências vividas e imediatas. A todos os questionamentos a cerca da realidade da vida e do mundo ele apresentou a música como resposta; e nela, o que há fundamentalmente, é o espírito dionisíaco, que se preserva da ilusão, do medo e da culpa indo viver a vida no que ela tem de mais real, indo colher o trágico no seu mais profundo sentido e volvendo dele triunfante. Triunfante sobre a culpa, o medo, a angústia, a redenção e a salvação. Essencialmente, sendo trágico, sendo ele mesmo. É este o sentido da sabedoria silênica, à qual Nietzsche remete ainda na “Origem da tragédia”, que esclarece, entre outras coisas porque o subtítulo desta obra –aliás, muitas vezes esquecido, sendo dado pleno enfoque à idéia apenas do renascimento; e isso já na época de Nietzsche - é “Pessimismo e Helenismo”. O assombro dos gregos diante do mundo era não conseguir explicar o seu funcionamento e as razões de sua dinâmica. Para isso desenvolveram formas muito peculiares de enfrentar o mundo. Já tivemos oportunidade de acentuar como o apolíneco e o dionisíaco se encaixam nesse contexto. Acontece que, diferentemente do apolíneco, a essência da poesia dionisíaca era exatamente o não se esconder, mas o confrontar-se. Daí o êxtase, a dança, a música fundamental, que colocam esse homem primitivo em contato consigo mesmo. Se há a necessidade de um encobrimento apolíneco na forma - e há - é porque a profundidade do dionisíaco seria intensa demais para ser encarada de forma direta. Na possibilidade da ressurreição desse espírito o que o autor pretende é munir o homem novamente desta sabedoria completa para que se manifeste diante do mundo com mais força e menos melancolia. É fato que esta sua pretensão ainda se enquadra dentro de uma perspectiva notadamente romântica, mas há como entende-lo através dele mesmo. Em “Ecce Homo” ele define o efeito da música como:

“... o poder de dizer sim ao mundo”.

O exemplo dado, ainda neste seu livro, é o caso de Frederico Chopin. Convencionalmente este é definido como romântico por sua obra manter uma atmosfera de suma tristeza e melancolia, que também adornam a sua vida. Nietzsche chama atenção, porém, para o fato de que a melancolia romântica que está na raiz da obra de Chopin não é a sua característica mais real. Segundo ele, a melancolia de Chopin não aponta para o pessimismo, a tristeza ou a desesperança. A tristeza de Chopin, sua melancolia e solidão e angústia apontam, pelo menos no que Nietzsche identifica, para o seu oposto. Acontece, portanto, como no impulso dionisíaco. Este não é, notoriamente, essencialmente felicidade e afirmação, mas uma felicidade e uma afirmação dionisíacas que se dão pelo conhecimento do seu oposto. Nietzsche não nega o oposto, não nega a contradição, dando-lhe um papel e uma função; da mesma forma interpreta a música do pianista polonês. Se Chopin é definido como romântico pela melancolia que o envolve, seria um anti-romântico na constatação de que esta melancolia apontaria para a felicidade; é semelhante ao dionisíaco que conhece a verdade silênica, mas aponta sempre para a afirmação da vida e da felicidade. Ainda em “Ecce Homo” se pode ler:

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“... pois a condição de afirmar está na ciência de negar e destruir”.

A vida, para Nietzsche, não é uma sucessão de fatos bem-sucedidos que caminha linearmente para um fim. Entender a vida de um ponto de vista tão teleológico seria ir em sentido oposto ao pensamento de Nietzsche, porque seria conformar a natureza beligerante do homem à procura por descanso e planícies tranqüilas. Ora, este absolutamente é o homem. Para toda luminosidade há um contrário obscuro e frio que deve ser enfrentado; somente na luta contra a adversidade o homem pode mostrar seu valor. Nada disso, porém, afeta Nietzsche de forma pessimista, pelo contrário, é esta luta que se deve empreender contra as fraquezas de si mesmo e as agruras do mundo que se pode crescer, que se pode tornar maior. Aliás, não seria nem um pouco equivocado considerar o pessimismo como sendo um degrau que o filósofo usa para alcançar patamares sempre mais altos e desta forma se pode pensar tanto em Wagner quanto em Schopenhauer como um mal necessário, que deveria vencer a fim de se fazer grande e digno de Dioniso. Quando dissertou sobre si mesmo em sua autobiografia, refletindo a cerca de como se chega a ser o que se é, há uma afirmação categórica que endossa o sentido afirmativo que a adversidade da vida tem em Nietzsche:

“Sou guerreiro por natureza!”.

E ainda há uma sugestiva passagem na sua consideração a cerca da História, escrita contra Eduard Von Hartmann que diz:

“Quem tem a vida mais bela é aquele que não se agarra à vida”.

E adiante, no mesmo texto, sentenciou:

“A vida é superior e dominante, porque um conhecimento que destruísse a vida destruir-se-ia também automaticamente. O conhecimento supõe a vida, ele tem pela conservação da vida o mesmo interesse que qualquer ser tem pela sua existência”.

Concluindo, estabelecemos que a linha que vai de Wagner até Bizet no pensamento musical de Nietzsche não é uma linha ascendente; diferentemente é uma linha plana. Não há a defesa de Wagner ou de Bizet, apenas a constatação de que a música é um núcleo particular da reflexão do filósofo, que talvez seja o ponto mais sólido de toda a sua Filosofia. Ainda que considere Wagner uma influência perniciosa, admite que não teria sobrevivido sem ele. Se na sua idéia para a dinâmica do espírito trágico prevê o confrontamento do adverso, o ter indisposto-se com Wagner era um fato necessário para que pudesse chegar com mais segurança e mais fortalecido ao Zaratustra, que coroa a sua produção. Assim, compreendendo a música como a “única atividade verdadeiramente metafísica” é possível dar um passo produtivo na compreensão de Nietzsche estabelecendo que música é expressão da certeza da vida, não além dela ou sob ela mas essencialmente nela, no que tem de mais elementar. Esses são os passos primordiais do que se definiu depois como “Filosofia da vida”, de que Nietzsche é precursor. O maior legado do filósofo

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tanto para a História da Filosofia quanto para a História da arte, da música em particular, é o ter se voltado para a vida no que ela tem de mais imediato, e para o homem no que ele tem de mais humano, demasiado humano.

Bibliografia

Guinsburg, Jacó (organizador). O romantismo. Editora Perpectiva, são Paulo, 1978. Hauser, Arnold. História Social da literatura e da arte (vol I). Editora Mestre Jou, São Paulo, 1980. Nietzsche, Friedrich. A origem da tragédia. Tradução de Jacó Guinsburg, Companhia das Letras, São Paulo, 2007. . Considerações intempestivas. Ed. Presença- Livraria Martins Fontes, Lisboa, 1976. . Crepúsculo dos Ídolos. Companhia das Letras, São Paulo, 2006. . que Ecce Homo: como se chega a ser o se é. Guimarães & Companhia Editores, Lisboa, 1984. . O caso Wagner & Nietzsche contra Wagner. Tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras, São Paulo, 1999. Safranski, Rüdiger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução de Lya Luft, Geração Editorial, São Paulo, 2005. Schelling, F. W. J. Filosofia da arte. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.