3 Pesquisa e Transferência Em Psicanálise Lugar Sem Excessos - Waldir Beividas-tréplica

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Psicologia: Reflexão e Crítica Print version ISSN 0102-7972 Psicol. Reflex. Crit. vol.12 n.3 Porto Alegre 1999 Pesquisa e Transferência em Psicanálise: Lugar sem Excessos 1 Waldir Beividas 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro "Nous veillons à l"autonomie finale du malade" (Freud) Mesmo se insuficiente e desajeitado nos seus inícios, todo debate só pode ser proveitoso quando, ao invés de repetir o consenso, provoca o contraditório. Não fosse isso, tudo teria parado nas cavernas de Platão: não teria havido Aristóteles, …nem Descartes, …nem Freud ! para saltar apenas com três nomes a história milenar de trabalho de pensamento no Ocidente. É no espírito contraditório que minha leitura responde ao texto-réplica de L. Elia. A interpretação que colhi é que, segundo o fundo geral da réplica, o primeiro texto de minha autoria ficaria, se não « desqualificado » na sua pretensão central, ao menos bem atenuado e limitado, no que se refere à pesquisa analítica. Isto, por quatro tipos de argumentos: (a) meu texto inicial, ao tratar da pesquisa em psicanálise, não mergulha a transferência imediatamente na experiência clínica, como "condição prévia", isto é, situa-se numa região outra, que não é o coração do que se trata na experiência clínica; (b) meu texto primeiro denuncia um excesso transferencial na pesquisa, sendo que, para a réplica, não se trata em psicanálise de uma quantificação da transferência, visto que a pesquisa só pode ser conduzida aí "sob transferência"; (c) meu texto de origem pleiteia uma vocação científica para a psicanálise, ao passo que, para o texto replicante, ela constitui um outro saber, fora do campo da ciência; (d) meu texto primeiro sugere a construção de uma nova linguagem conceitual para estruturar o campo psicanalítico (com Freud e com Lacan e não sob a submissão pânica aos seus dixit ), ao passo que, ao ver da réplica, a psicanálise só pode recriar ou re-inventar na medida em que disser sim aos significantes "já constituídos, elaborados e estabelecidos" de Freud e de Lacan. São os argumentos maiores que me cabe então retorquir. Psicanálise vs Ciência Na primeira parte, o texto da réplica concentra a atenção num viés que chama metodológico, em que tenta propor um eventual quid diferencial do saber psicanalítico, sua posição perante a ciência. Mas, uma primeira discordância minha vai logo contra a

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  • Psicologia: Reflexo e Crtica

    Print version ISSN 0102-7972

    Psicol. Reflex. Crit. vol.12 n.3 Porto Alegre 1999

    Pesquisa e Transferncia em Psicanlise:

    Lugar sem Excessos 1

    Waldir Beividas 2

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    "Nous veillons l"autonomie finale du malade"

    (Freud)

    Mesmo se insuficiente e desajeitado nos seus incios, todo debate s pode ser

    proveitoso quando, ao invs de repetir o consenso, provoca o contraditrio. No fosse

    isso, tudo teria parado nas cavernas de Plato: no teria havido Aristteles, nem Descartes, nem Freud ! para saltar apenas com trs nomes a histria milenar de trabalho de pensamento no Ocidente. no esprito contraditrio que minha leitura

    responde ao texto-rplica de L. Elia. A interpretao que colhi que, segundo o fundo

    geral da rplica, o primeiro texto de minha autoria ficaria, se no desqualificado na

    sua pretenso central, ao menos bem atenuado e limitado, no que se refere pesquisa

    analtica. Isto, por quatro tipos de argumentos: (a) meu texto inicial, ao tratar da

    pesquisa em psicanlise, no mergulha a transferncia imediatamente na experincia

    clnica, como "condio prvia", isto , situa-se numa regio outra, que no o corao

    do que se trata na experincia clnica; (b) meu texto primeiro denuncia um excesso

    transferencial na pesquisa, sendo que, para a rplica, no se trata em psicanlise de uma

    quantificao da transferncia, visto que a pesquisa s pode ser conduzida a "sob

    transferncia"; (c) meu texto de origem pleiteia uma vocao cientfica para a

    psicanlise, ao passo que, para o texto replicante, ela constitui um outro saber, fora do

    campo da cincia; (d) meu texto primeiro sugere a construo de uma nova linguagem

    conceitual para estruturar o campo psicanaltico (com Freud e com Lacan e no sob a

    submisso pnica aos seus dixit ), ao passo que, ao ver da rplica, a psicanlise s pode

    recriar ou re-inventar na medida em que disser sim aos significantes "j constitudos, elaborados e estabelecidos" de Freud e de Lacan. So os argumentos maiores que me cabe ento retorquir.

    Psicanlise vs Cincia

    Na primeira parte, o texto da rplica concentra a ateno num vis que chama

    metodolgico, em que tenta propor um eventual quid diferencial do saber psicanaltico,

    sua posio perante a cincia. Mas, uma primeira discordncia minha vai logo contra a

  • premissa que abre o texto: situar a transferncia e a pesquisa em psicanlise na

    experincia analtica como "condio prvia". Com efeito, Freud esboou seu Projeto,

    arquitetou sua neurtica , edificou sua teoria dos sonhos, sua teoria da sexualidade,

    do narcisismo, da transferncia, no na clnica, mas na reflexo dos seus memoriais ,

    nas cartas trocadas, nos manuscritos ou, mais diretamente, quando teoriza sua

    metapsicologia, quando especula para alm do princpio do prazer, enfim, quando

    profere solenes conferncias para um pblico real ou um interlocutor ficcional.

    Igualmente, Lacan aqueceu sua teoria com a tmpera acadmica (o caso Aime), forjou-

    a com um manifesto finamente terico-epistemolgico (o discurso de Roma), temperou

    os pesos da espada em Escritos, e suas medidas na reflexo dos Seminrios, enfim,

    brandiu-a na mdia (Televiso, Radiofonia). Ou seja, os textos decisivos da construo

    da psicanlise, freudiana ou lacaniana, testemunham que ela no nasceu e se comps na

    horizontal do div, mas na vertical da mesa de trabalho, ou do trabalho de

    pensamento. escusado dizer que tudo isso esteve fartamente incitado pela

    sensibilidade clnica, pela acuidade de escuta, e apoiado nos relatos clnicos embora mesmo isso sujeito a um bom nmero de precaues, haja vista as revises sempre

    incmodas sobre o que se passa efetivamente nas sesses clnicas e o que dela relatado

    como um caso , na maioria das vezes bem sucedido (cf. Borch-Jacobsen, 1995).

    Portanto, nada autoriza a dizer que um eventual exame da transferncia na pesquisa em

    teoria psicanaltica deva imediatamente adentrar o campo da experincia analtica.

    Ainda nesse primeiro momento do texto-rplica, discordo tambm do argumento

    de que o saber psicanaltico no pode ser "integrante do campo cientfico", porquanto

    seria uma subverso deste. A meu ver, a subverso freudiana no difere em essncia

    daquilo que a filosofia ou a cincia moderna imps contra as evidncias perceptuais e

    imediatas, e que teve de ser absorvida pelo campo cientfico. Galileu e Newton no se

    impuseram facilmente episteme ambiente da cincia, a teoria de Einstein no menos e

    a fsica quntica tambm. Esta ainda hoje se exaspera, perplexa e aturdida, para manejar

    a linguagem da estranha realidade fenomenal do sub-mundo quntico. O teorema de

    Gdel solapou o edifcio matemtico de Hilbert, e a mquina de Turing fez irromper

    revises quase atordoantes sobre o modo de operar da inteligncia humana (cincias

    cognitivistas, neurais, inteligncia artificial). Quero dizer com isso que a cincia, no seu todo, avana nessas subverses, que acabam por se integrar no patrimnio de

    conhecimento da humanidade. O prprio Freud pleiteou sua ferida narcsica como a

    terceira das grandes humilhaes da humanidade, acostando-a, pois, cosmolgica

    de Coprnico e biolgica de Darwin, isto , integrando-a ao saber cientfico. A

    subverso de seu saber anterior sempre o paradigma que faz a cincia existir e

    avanar. E se o quinho subversivo, que coube psicanlise apresentar, no teve ainda

    maior impacto ou absoro pelo campo cientfico, imagino que seja menos pelo

    argumento da resistncia coisa freudiana do que pela relutncia da psicanlise de hoje

    em trabalhar numa possvel converso epistemolgica da sua subverso, numa possvel

    e urgente epistemologia do desejo.

    Do mesmo modo, discordo tambm quando se atribui Lacan a demonstrao

    de um saber no integrvel cincia, ou quando se deduz, a partir da obra de Lacan, que

    a psicanlise definitivamente no mais cabe no campo da cincia. No o que entendo

    quando o psicanalista francs posiciona seu projeto radical na questo que vai de: "a

    psicanlise uma cincia? a: o que uma cincia que inclui a psicanlise" (1984, p.8),

    ou quando enfatiza que a via cientfica promovida por Freud "no contingente, mas

    permanece essencial"(Lacan, 1966, p. 857).

  • Por sua vez, difcil aceitar que a psicanlise no nem mesmo cincia humana.

    Se a psicanlise de Lacan se move na solidariedade dos trs registros (imaginrio,

    simblico, real), e mesmo que sua operao clnica seja a de desvelar a funo de

    desconhecimento do seu ego imaginarizado, sempre o homem com todos os revestimentos identificatrios e imaginarizantes que se deita no div, ainda que rumo ao sujeito do inconsciente. Se, para atingir o extrato pretensamente "sem qualidades" do

    seu sujeito, ela expurga, j na sada, a carne imaginarizada de seu homem, vai acabar

    reduzindo-o a um esqueleto inconsciente, vai dissec-lo numa espcie de algoritmo do

    inconsciente, mais artificial que as inteligncias artificiais. A psicanlise deve ento

    ser uma cincia humana, bastando para isso definir adequadamente o termo. Por outro

    lado, a psicanlise deve tambm ser uma cincia natural, no pelos mtodos, mas pela

    atitude que deve guiar seu horizonte ontolgico: se o inconsciente subverte o j

    conhecido das funes da conscincia, se as pulses subvertem a organizao j

    estipulada ao corpo, no deixam de ser por isso um fenmeno da natureza, tal qual as

    foras de atrao da matria inanimada, tal qual o dinamismo instintual da matria

    animada. Haver outra regio fenomenal fora disso? Aqui vejo a vocao inelutvel da

    psicanlise para a cincia apesar de tudo.

    A Transferncia e a Clnica do Real

    Num segundo momento, o texto da rplica avana hipteses sobre a

    transferncia. D a entender que o Freud-cientista que apostava nas recordaes e associaes do paciente pela via "meramente simblica" cede o passo, ou evolui, para o Freud-analista que se surpreende com um inconsciente que o sacode "em ato, em

    afeto, em transferncia ".

    Minha primeira discordncia, menor, incide no entendimento que a vejo de

    considerar uma maior implicao da transferncia apenas quando, segundo a rplica,

    Freud abandona a via "meramente simblica". Ao contrrio, entendo que a transferncia

    esteve instaurada desde os primrdios da psicanlise, dita simblica ou interpretativa,

    sobretudo na conotao de obstculo a ser superado. Os manuscritos centenrios de

    Freud no deixam dvidas quanto a isso (Gubrich-Simitis, 1997, p.124-5). Assim como

    Laplanche e Pontalis (1967/1992), no vejo porque o analista "seria menos implicado

    quando o sujeito lhe narra um acontecimento de seu passado, quando lhe conta um

    sonho, do que quando se volta contra o analista num ato" (p. 498).

    Minha discordncia j se torna maior quando o texto-rplica procura ressaltar o

    Freud-analista em detrimento do cientista-Freud, at mesmo encurtando o tempo deste,

    para defender que a psicanlise no uma cincia explicativa. No entendo assim. Na

    conferncia densa e profunda sobre a Weltanschauung, o cientista Freud intolerante, a

    favor da cincia (cf. Beividas, 1994). Na sua autoapresentao(1925/1992), queixa-se

    da "injustia grosseira" daqueles que deixam de tratar sua teoria como qualquer outra

    cincia da natureza e termina o posfcio, acrescentado em 1933, dizendo que, enfim, "o

    conjunto d a regozijante impresso de um trabalho cientfico srio e de alto nvel"

    (p.106; 122). Isto , esses textos bem tardios indicam que o cientista Freud insistiu, at o

    fim.

    Discordo tambm do que o texto da rplica sada como a passagem da

    via meramente simblica para as excelncias de uma via do "real do sintoma", na

    clnica. Essa pretensa via de irrupo do real "em afeto, em ato, em transferncia, do sintoma, sob a forma de sujeitoa transferncia" problemtica, difcil de convencer, quando, a meu ver, est mal feita a equao entre o simblico e o real na

  • psicanlise ps-lacaniana. Para mim, qualquer ato ou afeto do paciente no passa de um

    ato significante, totalmente inserido no registro do simblico, apenas num regime de

    linguagem outro, no verbal, a linguagem gestual, visual, facial, prxica ou somtica.

    assim que entendo Lacan (1974): "nesse caso, o que deve ser pesado, se minha idia

    de que o inconsciente est estruturado como uma linguagem permite verificar mais

    seriamente o afeto"(p. 37). Continuo convencido de que o registro do real da psicanlise

    ps-lacaniana inchou-se equivocadamente na proporo e por causa da viso ainda simplista que se tem a do simblico. assim que ouo o psicanalista da linguagem: "o

    inconsciente, isso fala, o que o faz depender da linguagem, da qual s se sabe pouco"

    (1974, p. 16 itlicos meus).

    Pesquisa e Transferncia: Lugar sem Excessos

    A ltima parte do texto da rplica a mais longa e mais diretamente concernente

    a meu texto primeiro. Mas introduz uma srie de outros argumentos que extrapolam o

    campo do debate. Quero portanto ser o mais claro possvel no tocante pertinncia e

    extenses do conceito de transferncia, e seu excesso, na pesquisa em teoria

    psicanaltica: (a) quero mostrar que o argumento pelo qual s se pode fazer pesquisa em

    psicanlise sob transferncia em nada alivia a denncia de excesso, no texto primeiro;

    (b) quero retorquir os argumentos da rplica de que no se trata de colocar a

    transferncia "na prtica da pesquisa em psicanlise", em termos de excesso; (c) s

    medidas defendidas da transferncia, do seu lugar por excelncia na clnica e na

    pesquisa como alavanca privilegiada de acesso ao inconsciente quero contrapor os pesos mais sombrios da transferncia, enfatizar a superao da transferncia, ou sua

    temperana, reativar a conotao de obstculo, desde Freud. Ou seja, quanto ao tema

    da transferncia em psicanlise, quero temperar a laudao de um bem maior porque aciona tudo, no incio , com a resignao de um mal necessrio porque atua sempre, no meio , e com a denunciao vigorosa, quando mal em excesso, porque estanca a pesquisa, no fim.

    Primeiramente, no vejo dificuldade em entender que toda a pesquisa se d

    sempre sob transferncia. Isso no ocorre s na psicanlise. Depois da descoberta do

    inconsciente, a maior faanha de Freud foi mesmo ter posto a transferncia no epicentro

    da cura, e tambm ter desvelado a pregnncia do prprio fenmeno da transferncia nos

    domnios do humano, nas relaes entre os homens. Nesse sentido, no apenas o

    saber do inconsciente que exige a transferncia como modo de acesso. Todo saber

    sobre quaisquer fenmenos da natureza, da vida ou do homem, se contamina de

    transferncia, de igual modo.

    O fenmeno da transferncia tem histria milenar nas teorias filosficas sobre a

    crena. No campo cientfico, o prprio conceito de episteme implica um crer-poder-

    saber algo novo em cima de um suposto saber antigo. Nenhum pesquisador investe sua

    reflexo se no supe um mnimo de saber na teoria, no outro, ou no objeto de suas

    buscas. E se, do palco do intelecto, descemos rua da vida cotidiana, nada muda. No

    vivemos um minuto sequer sem uma suposio de saber no outro, no saber do

    transeunte, para perguntar-lhe onde fica tal rua, ou no saber do padeiro, para comprar o

    po. Por isso, quando para o texto da rplica, a transferncia condio de tratamento

    e, por isso, condio de pesquisa, aceito-o menos como silogismo, a legitimar a

    subordinao, e mais como condio da prpria condio humana.

    Mesmo porque, o fenmeno da transferncia exibe traos ainda insondados pela

    psicanlise de hoje. No se restringe apenas ao saber do outro, do Outro, do

  • significante ou do inconsciente. H uma imensa regio semntica a explorar, para alm

    do saber, que estende as estruturas modais do discurso para o campo do dever, do poder

    ou do querer, o que permite amplificar o conceito de sujeito-suposto-saber, de Lacan, e

    conceber, de igual maneira, um sujeito-suposto-dever, um sujeito-suposto-querer e um

    sujeito-suposto-poder. Essas estruturas modais exigem ainda ser aquilatadas na sua

    contaminao pelas intensidades: a suposio demasiada no saber (do outro) pode

    gerar credulidade cega ou submisso pnica e, insuficiente, torna o sujeito incrdulo ou

    desconfiado; a crena excessiva no poder (do outro) leva a fanatismos militantes ou a

    emulaes servis, caso contrrio desperta rebeldia ou afrontamento; a transferncia

    exaltada no dever (do outro) cria expectativas sufocantes, diferentemente daquela que

    no aposta quase nada nele, e vira decepo; enfim, a suposio desmedida no querer

    (do outro) d margem histeria mais sedutora e, muito enfraquecida, mais fria

    indiferena.

    Quero sugerir que justamente a quantificao ou a tensividade na transferncia

    abre um precioso registro heurstico para descobrir as infinitas gradaes e variedades

    de posies subjetivas do sujeito na pesquisa (e na clnica). nesse registro semntico,

    das articulaes modais e tensivas, que vale projetar a via mais fecunda de acesso s

    "duas mil leituras diferentes" do algoritmo lacaniano do fantasma, multiplicidade

    admissvel em funo das relaes que determinam para cada sujeito a lgebra em

    que est preso (Cf. Lacan, 1966, p.816). Em outras palavras, apresento aqui, como

    esboo de reflexes, modalidades de transferncia sobre as quais Lacan nada disse, de

    modo explcito ou consistente, nos significantes da sua teoria. Tero elas um dia a

    chance de se incorporar ao campo e incitar a uma reflexo que dialogue com os

    progressos que uma teoria do discurso, como a semitica, j fez no terreno das

    modalizaes tensivas?3 Aqui me permito responder indagao mais incisiva do texto-rplica:

    "Mas, por outro lado e este o ponto em que reside toda a sutileza e a dificuldade da questo como seguir tais convocaes sem estar em transferncia com Freud e Lacan, se pela boca de um (Freud) que a coisa fala a verdade e se pelo dizer

    do outro que a convocao feita?" (Elia, p.786)

    A resposta simples e sem maiores mistrios, como me parece ter sido para

    Freud ou Lacan: a coisa fala pelos poros leia-se: pelas estruturas da linguagem , cujo registro o primeiro intuiu e o segundo desbravou. Mas a coisa insiste em mostrar-se

    falando para qualquer pesquisador, sem que seja necessrio repetir a mesma coisa. A

    transferncia na pesquisa no se d, pois, com a boca de Freud ou de Lacan, com seus

    dixit ou seus significantes. Ou seja, o lugar, sem excessos, da pesquisa em psicanlise

    estar bocada linguagem, em transferncia com as estruturas linguageiras do inconsciente, como suposto-saber, realidade-em-si primeira ou apodicidade fundante da

    psicanlise, proposio central do meu texto primeiro.

    Assim, para concluir estas reflexes e abrir o tema ao debate eventual que possa prosseguir , ao invs de uma certa apologia da transferncia, julgo mais pertinente que se retorne um pouco mais para a sndrome freudiana: manter sempre

    a transferncia sob suspeita, como um obstculo a ser superado, algo que suscita

    poderosos conflitos psquicos (na pesquisa e na clnica), mas que, "graas a sua

    superao, tem um efeito curativo" (cf. Gubrich-Simitis, 1997, pp.124-125). a

    dissoluo da transferncia (sobretudo quando excessiva) que me parece ser a bssola

    de Freud (1912/1998): "ns velamos pela autonomia final do doente" (p.114). Sem

    dvida, ele tem razo: o tema da transferncia mesmo "dificilmente esgotvel" (p.

    107). A meu ver, sua presena constante na pesquisa, na clnica, na vida tem efeito

  • nefasto quando se estabelece em excesso, quando "excede a medida e a natureza do que

    se pode justificar fria e racionalmente", quando se alastra sorrateira no invisvel ou na

    surdina. Por isso um debate sobre os excessos na transferncia tem mesmo de levar em

    conta a forma que o prprio vienense lhe deu: a de um combate ; tem de sair das

    sombras, vir luz, pois, "afinal, ningum pode ser abatido in absentia ou in effigie" (p.

    116).

    1 O texto a seguir uma trplica ao de Luciano Elia "A transferncia na pesquisa em psicanlise: lugar ou excesso?" , por sua vez introduzido como rplica a um primeiro texto meu "O excesso de transferncia na pesquisa em psicanlise" , todos neste mesmo nmero da revista. De certa forma, o segundo movimento de um debate, idia

    imaginada por A. C. Lo Bianco e prontamente aceita por S. H. Koller, editora-

    responsvel pela revista. Se algum mrito haver neste debate, que lhes seja atribudo

    primeiramente e, em seguida, ao replicante. Se eventualmente outros o levarem adiante,

    o tema s ter a ganhar.

    2 Endereo para correspondncia: Programa de Ps-graduao em Teoria Psicanaltica -

    Instituto de Psicologia - UFRJ - Av. Pasteur, 250 Fundos, 22290-240, Rio de Janeiro,

    RJ.

    E-Mail: [email protected]

    3 Cf. Greimas e Courts (1979) e Fontanille e Zilberberg (1998). Em Beividas (1999)

    apresento bibliografia mais ampla.

    Referncias

    Beividas, W. (1994). Psicanlise: Entre cincia e mito. Em A. M. Q. Fausto Neto (Org.),

    Tecendo saberes. (pp. 413-435). Rio de janeiro: Diadorim/UFRJ. [ Links ]

    Beividas, W. (1999). Inconsciente et verbum: Psicanlise, semitica, cincia, estrutura.

    So Paulo: Humanitas/USP [ Links ]

    Borch-Jacobsen, M. (1995). Souvenirs dAnna O. Une mystification centenaire. Paris: Aubier. [ Links ]

    Fontanille, J. & Zilberberg, Cl. (1998). Tension et signification. Lige: Mardaga

    [ Links ]

    Freud. S. (1992). Autoprsentation. Em uvres compltes. (Vol. XVII). Paris, PUF.(Original publicado em 1925) [ Links ]

    Freud, S. (1998). Sur la dynamique du transfert. Em uvres compltes. (Vol. XI). Paris, PUF (Original publicado em 1912) [ Links ]

    Greimas, A. J. & Courts, J.(1979). Smiotique. Dictionnaire raisonn de la thorie du

    langage. Paris: Hachette Universit. [ Links ]

    Gubrich-Simitis, I. (1997). Freud: Retour aux manuscrits. Faire parler les documents

    muets. Paris: PUF. [ Links ]

    Lacan, J. (1966). Ecrits. Paris: Seuil. [ Links ]

    Lacan, J. (1974). Tlvision. Paris: Seuil [ Links ]

  • Lacan, J. (1984). Comptes rendus denseignements. Ornicar? 29, 7-25. Paris, Navarin. [ Links ]

    Laplanche J. & Pontalis, J-B. (1992). Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUF

    (Original publicado em 1967) [ Links ]

    Recebido em 30.06.99

    Aceito em 10.09.99

    Sobre o autor:

    Waldir Beividas Doutor em Semitica e Lingstica pela Universidade de So Paulo

    (1992); Ps-Doutorado na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales - EHESS -

    Paris (1999); Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da UFRJ, no Programa de

    Ps-Graduao em Teoria Psicanaltica, desde 1993.