3. O corpo que desafia a escola - A transgressão travesti · a importância do reconhecimento das...

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3. O corpo que desafia a escola - A transgressão travesti A discussão que perpassa a construção dos corpos transgressores da heteronormatividade possui, para nós, forte relação com as espacialidades vividas, conforme defendemos no capítulo 1. Assim, estabelecemos um paralelo entre as interdições experimentadas pelas travestis e um processo de “montagem” do corpo que materializa a não conformação ao padrão binário. E, neste momento, a fim de darmos prosseguimento aos questionamentos que desestabilizam (a partir da compreensão dos elementos discursivos), estruturam e reafirmam ‘as verdades basilares’ de organização do espaço, voltaremos a nossa atenção à escola básica. A ideia ancorada no que compõe feminilidades e masculinidades faz da escola mais que um espaço de transmissão de conhecimentos ou de sociabilidades, no período da infância/adolescência. Corroboramos com Louro (2010) quando a autora discute, pela crítica à formação de ‘homens e mulheres de verdade’, a forte carga simbólica que as concepções de gênero conferem às aprendizagens que nos remetem ao que foi construído como uma das principais funções da escola, registradas inclusive nas memórias da autora, através da produção “de um homem e de uma mulher ‘civilizados’ capazes de viver em coerência e adequação” (LOURO, 2010, p.18). Dessa forma, argumentaremos que este se torna também um espaço de regulação, atravessado por normas que permeiam a ‘educação’ dos corpos. A partir da ideia de Louro (2010), sobre a formação de homens e mulheres civilizados, destacamos a obrigatoriedade estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB (Lei n° 9.394/ 1996) 33 , que aponta no Art. 22° como finalidade da educação básica “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”. Assim, mesmo que não façamos uma discussão profunda do conceito de cidadania, recorremos a Gorczevsk e Martin (2011) tanto para apontar uma cidadania que nas suas origens não contemplou bases iguais para homens e 33 Disponível em: portal.mec.gov/arquivos/pdf/ldb.pdf (Acesso realizado em março de 2015)

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3. O corpo que desafia a escola - A transgressão travesti

A discussão que perpassa a construção dos corpos transgressores da

heteronormatividade possui, para nós, forte relação com as espacialidades vividas,

conforme defendemos no capítulo 1. Assim, estabelecemos um paralelo entre as

interdições experimentadas pelas travestis e um processo de “montagem” do

corpo que materializa a não conformação ao padrão binário. E, neste momento, a

fim de darmos prosseguimento aos questionamentos que desestabilizam (a partir

da compreensão dos elementos discursivos), estruturam e reafirmam ‘as verdades

basilares’ de organização do espaço, voltaremos a nossa atenção à escola básica.

A ideia ancorada no que compõe feminilidades e masculinidades faz da

escola mais que um espaço de transmissão de conhecimentos ou de sociabilidades,

no período da infância/adolescência. Corroboramos com Louro (2010) quando a

autora discute, pela crítica à formação de ‘homens e mulheres de verdade’, a forte

carga simbólica que as concepções de gênero conferem às aprendizagens que nos

remetem ao que foi construído como uma das principais funções da escola,

registradas inclusive nas memórias da autora, através da produção “de um homem

e de uma mulher ‘civilizados’ capazes de viver em coerência e adequação”

(LOURO, 2010, p.18). Dessa forma, argumentaremos que este se torna também

um espaço de regulação, atravessado por normas que permeiam a ‘educação’ dos

corpos.

A partir da ideia de Louro (2010), sobre a formação de homens e mulheres

civilizados, destacamos a obrigatoriedade estabelecida na Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional – LDB (Lei n° 9.394/ 1996)33

, que aponta no Art.

22° como finalidade da educação básica “desenvolver o educando, assegurar-lhe a

formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe

meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”.

Assim, mesmo que não façamos uma discussão profunda do conceito de

cidadania, recorremos a Gorczevsk e Martin (2011) tanto para apontar uma

cidadania que nas suas origens não contemplou bases iguais para homens e

33

Disponível em: portal.mec.gov/arquivos/pdf/ldb.pdf (Acesso realizado em março de 2015)

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mulheres34

, quanto para a partir da concepção de “nova cidadania” compreender

a importância do reconhecimento das identidades de gênero e a orientação sexual,

para os autores sob as bases do multiculturalismo35

.

Assim, a partir de Louro (2010) consideramos a escola um espaço

atravessado pelo gênero, onde as reflexões sobre as construções sociais do

masculino e do feminino ganham sentido desde a sua estrutura, onde salas de aula,

corredores, banheiros e a organização da educação física nos indicam uma ordem

que se relaciona com as práticas educativas. Essas construções, pautadas em

relações de poder, conforme colocou Foucault (1988), mostram a importância de

pensar esse espaço como produtor de discursos, ou seja, para nós, estrutura e

práticas cotidianas falam de gênero, reproduzem hierarquias e fazem parte do

ambiente de formação de crianças e adolescentes.

Dessa forma, a contribuição de Foucault (1988) no que tange à escola,

enquanto instituição protagonista na regulação, conformação e disciplinamento

dos corpos será problematizada à luz das relações de poder que estão impressas

nas memórias das travestis neste tempo/ espaço. Nesse sentido, o corpo enquanto

lugar de afirmação da identidade é marcado nessa espacialidade tanto pelas

transmissões de conhecimento e práticas de comportamento quanto pelas

resistências materializadas desde pequenas subversões. A escolarização dos

corpos não fala assim apenas dos conteúdos curriculares, ela expressa um padrão

concebido de homem e mulher, e reafirma a heterossexualidade como uma norma

a ser seguida.

34

O conceito de cidadania, que segundo Gorczevski e Martin (2011), esteve limitado a uma noção

permeada de privilégios e desigualdades contidas na escolha ou definição de quem era considerado

cidadão não foge ao padrão hegemônico estabelecido do homem branco heterossexual. 35

Apesar das críticas, que podem ser encontradas no próximo capítulo, entre a associação do

multiculturalismo e do ‘respeito à diversidade’, consideramos relevante a proposta de Gorczevski e

Martin (2011) sobre uma cidadania que para ser exercida na plenitude garante a liberdade de

manifestação e de identidade individual, sem que para isso, sejam excluídos da participação

coletiva, como reiterado na passagem a seguir: “não obstante a existência de processos coletivos

de socialização, a identidade individual está assegurada, respondendo a livre decisão de cada

indivíduo, no pleno exercício da sua autonomia de vontade” (GORCZEVSKI; MARTIN, 2011,

p.99). O que na relação com o espaço escolar, além de pretender a participação de todos, pois

segundo os autores só assim é possível desfazer as relações com privilégios (contidos na cidadania

excludente de outros tempos) firma um compromisso com a redução das desigualdades

experimentadas em função dos marcadores de gênero e sexualidades.

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Assim, as normas regulatórias de gênero perpassam vivências, currículos e

memórias assentadas nesse espaço, ou seja, os conteúdos ensinados e repetidos

não estão desvinculados dos deboches e violências dirigidos a quem não se

adéqua ao padrão binário, visto que a ausência das práticas mais básicas como a

do uso do nome social36

ou do simples ato de se ir ao banheiro (reprodução da

polarização espacial homem/mulher ao pautar a educação básica na linearidade

entre sexo, gênero e desejo), reflete a necessidade de se repensar a escola como

um lugar que, conforme entendeu Foucault (1988), sempre falou, da forma mais

exaustiva, da sexualidade das crianças. Segundo esse autor:

Seria inexato dizer que a instituição pedagógica impôs um silêncio geral ao sexo

das crianças e dos adolescentes. Pelo contrário, desde o século XVIII ela

concentrou as formas do discurso nesse tema; estabeleceu pontos de implantação

diferentes; qualificou os interlocutores. Falar do sexo das crianças, fazer com que

falem dele os educadores, os médicos, os administradores e os pais

(FOUCAULT, 1988, p.36).

Nesse sentido, cabe a análise de como as hierarquias de gênero estão

presentes no espaço escolar, pois a multiplicação discursiva do sexo ‘se comporta’

de diferentes formas em espaços distintos, ou seja, concordamos que a escola fala

(e sempre falou) das normas regulatórias de gênero, mas ela o faz de forma

particular, escolhe e prepara quem pode falar, reproduz a organização binária em

sua estrutura e impõe através da disciplinarização dos corpos o lugar adequado a

cada um, a exemplo da definição de horários para os ‘pequenos’ e os ‘grandes’ no

recreio; além de reproduzir as expectativas de comportamento para meninos e

meninas, naturalizando e construindo, através de uma leitura que se apropria da

biologia, um discurso linear entre a sexualidade e os desejos.

Portanto, a sexualidade compõe este espaço, apesar de silenciada,

reprimida e controlada, de forma que as concepções de gênero dão o tom da

linearidade que estrutura a sociedade e que será, neste capítulo, mais uma vez

36

Segundo Junqueira (2010), quando discute a importância do no nome social no âmbito escolar:

“o nome social não é um apelido e representa o resgate da dignidade humana, o reconhecimento

social da legitimidade de sua identidade tal como ela se percebe” (p.6). Destacamos a partir de

Rasera, Rocha e Teixeira (2012) que o nome social quando atrelado aos serviços de saúde cumpre

uma estratégia de reconhecimento que legitime no contato com o outro “uma existência subjetiva e

social”, ademais os autores acreditam ainda que a iniciativa do Ministério da Saúde (em resposta

as pressões sofridas) tenha colaborado para deflagrar outras “leis municipais e estaduais referentes

ao uso do nome social nas escolas” (p.174). Portanto, as normativas que envolvem o uso do nome

social, nos espaços da escola ou da saúde, refletem notadamente a necessidade de reconhecimento

identitário.

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deslocada a fim de dar a visibilidade a outras identidades. Portanto, pretendemos

discutir o espaço escolar e seu vínculo com os conceitos de gênero e sexualidades

para, desta maneira, pensar na dimensão pública da escola enquanto direito

fundamental de todos, o que vai de encontro com a marginalização experimentada

por quem não se adéqua ao padrão binário e heteronormativo.

3.1. O papel da escola na construção do corpo ideal para a sociedade heteronormativa

A escola pode ser pensada como uma instituição que difere os sujeitos e

colabora com a construção de classificações. Dessa forma, a própria frequência já

se configura como uma maneira de distinção, pois segundo Louro (2012) estas

seriam as diferenças “externas”, uma vez que o critério seria quem frequentou ou

quem não frequentou a escola. O tratamento dirigido em função do nível de

escolaridade, na busca de emprego ou mesmo na obtenção de um status é um bom

exemplo. Além disso, no interior do ambiente escolar também são construídas

formas de classificação, ou seja, a partir das distinções entre meninos e meninas,

negros e brancos, homossexuais ou heterossexuais as trajetórias espaciais serão

marcadas pelas diferenças, porém, nossa proposta é analisar como essas

diferenças tornam-se desigualdades.

A discussão de identidade e diferença, nesse momento, contribui na

problematização do que nomeamos como diferente e para isso recorremos a Silva,

T. (2013), que faz uso do arcabouço da linguística para mostrar de que forma a

negação do outro está presente na construção da identidade, de maneira que a

afirmação cotidiana, por exemplo, do não gostar de roupas de menino, afirma

simultaneamente o gosto por roupas de menina. Já as desigualdades materializam-

se na utilização dessas diferenças em um determinado contexto de valorização /

desvalorização, possibilitando compreender de que forma são construídos os

discursos de exclusão quando se trata de alguém que contraria as expectativas que

relacionam sexo e gênero, em um ambiente heteronormativo e binário.

Assim, para pensar a inteligibilidade do corpo travesti é preciso entender

as construções que o excluíram e os espaços que lhes foram interditados. Para nos

referirmos à inexistência do corpo travesti na escola, o faremos a partir de um

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diálogo com Foucault (1988), que assim considera “o que não tem direito a

manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra que enuncia sua inexistência”

(p.94). Pensando no exemplo anterior – a ‘obviedade’ da escolha entre roupas de

menino e roupas de menina diretamente ligadas às identidades masculinas e

femininas - excluímos a possibilidade de compreensão de um corpo que não se

adeque à polarização dominante. Afinal, o gosto por determinada roupa

condiciona sexo e gênero? Não pretendemos aqui nos debruçar sobre juízos de

valor e sim nos questionar onde estão essas identidades no espaço escolar.

Nesse sentido, as relações de poder estão materializadas na

impossibilidade de se pensar além da lógica binária, em que a associação

compulsória entre sexo feminino e expressão de gênero feminina, por exemplo,

(vistas, hegemonicamente, como a única possibilidade de constituir-se enquanto

sujeito e integrar a sociedade), condicionam a inexistência do corpo travesti nesse

espaço, até mesmo no nível da linguagem, do pensado e dito.

É importante, portanto, retomar as definições de corpo neutro e corpos

marcados feitas por McDowell (2000). Para essa autora, as marcas são impostas

pelas relações desiguais materializadas espacialmente, ou seja, a matriz de

pensamento heterossexual distingue os corpos transgressores quando estes tornam

pública sua orientação sexual. E a função da escola de regulação e

disciplinamento dos corpos muito nos diz sobre as formas de moldar e escolarizar

as atitudes, em função do padrão concebido em outra escala, mas que carece da

repetição cotidiana para se afirmar.

Essa repetição cotidiana a fim de controlar os corpos e reiterar o padrão é

necessária, segundo Louro (2010), pois estas não são superfícies inertes e

passivas, onde são apenas inscritas normas regulatórias. A concepção de poder

trabalhada por Foucault (1988) já nos chama atenção para a resistência na

construção da sexualidade. E, nesse sentido, a discussão sobre o corpo travesti e o

espaço escolar pode ser entendida a partir da relação estabelecida por Butler

(2010), que aponta que a construção pautada nos constrangimentos e regulações

nunca se completa, pois “os corpos não se conformam, nunca completamente, às

normas pelas quais sua materialização é imposta” (BUTLER, 2010, p.154).

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A heteronorma não está expressa apenas na escola, todavia de acordo com

a afirmação de Facco (2011), como essa instituição compõe um microuniverso

social acaba por reproduzir as práticas discriminatórias oriundas do padrão

heteronormativo em suas salas de aula, pátios, corredores ou banheiros. E em

consonância com as relações desiguais de poder, os argumentos pautados nas

ciências biológicas e médicas se apresentam como verdades que embasam as

justificativas para patologização do corpo travesti e para as explicações entre as

diferenças físicas e ‘comportamentais’ de meninos e meninas.

O lugar de socialização, aprendizagens e pertencimento torna-se então

muitas vezes, segundo Silva (2008), um “treinamento” para a vida das travestis,

por dar mostras da violência que será sofrida mais tarde, em outros espaços. A

preocupação de educar os corpos relaciona-se, dessa maneira, à internalização do

certo e errado, ou do normal e anormal, e isto é inscrito nos corpos e repetido nas

expressões de afeto heterossexuais que são consentidas no espaço público. Na

escola, as relações afetivas devem ser ocultadas, notadamente aquelas que não

correspondem aos anseios dominantes na sociedade.

Na escola despreparada para discussão sobre corpos e sexualidades, o

ocultamento surge muitas vezes como uma tática do estigmatizado que pretende

evitar a violência. Quando de forma contrária este assume o “lugar da

ambiguidade”, “a fronteira” nos termos de Louro (2013), há a desorganização e

divisão do ambiente. Segundo Facco (2011), “ninguém sabe muito bem o que

fazer diante daquele corpo que, ao desafiar o padrão, o modelo reprodutivo de

sexualidade, coloca em xeque essa normatividade, fazendo com que alguns a

questionem” (p.27).

A escola trabalhada aqui é então produtora de verdades, espaço de

reafirmação de normas, criadora de discursos e, para isso, conta com o que

Foucault (1988) nomeou de ‘qualificação dos interlocutores’ através de uma

relação de poder pautada no saber, nos conhecimentos trabalhados e nos sujeitos

“exemplares” que figuram as aulas e materiais didáticos. Assim, essas configuram

formas de repetir o imperativo heterossexual e invisibilizar “os outros” no espaço

escolar. Nas palavras de Foucault (1971), essas se apresentam como táticas de

controlar os discursos:

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Existe, creio, um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controle dos

discursos. Não se trata desta vez de dominar os poderes que eles detêm, nem de

exorcizar os acasos do seu aparecimento; trata­se de determinar as condições do

seu emprego, de impor aos indivíduos que os proferem certo número de regras e

de não permitir, desse modo, que toda a gente tenha acesso a eles. Rarefacção,

agora, dos sujeitos falantes; ninguém entrará na ordem do discurso se não

satisfizer certas exigências, ou se não estiver, à partida, qualificado para o fazer

(FOUCAULT, 1971, p.10).

A ‘rarefação dos sujeitos falantes’ impõe assim novas hierarquias quando

nos referimos aos discursos sobre sexualidade. A não adequação não está restrita a

um pecado ou a um crime, pois estas leituras nos remetem a outros ambientes.

Porém, a qualificação dos interlocutores é fundamental para entender a relação

entre os espaços em que falamos ou não de sexo.

Assim nos chama atenção a afirmativa de Nikaratty (2013) de ter

apanhado na escola por não ser heterossexual, na frente de uma professora e esta

não ter feito nada para impedir. Assim, mesmo que não seja possível aprofundar

este assunto nesta pesquisa, destacamos a necessidade de repensar também as

formações não só docentes, mas de todo corpo técnico da escola com objetivo de

dar visibilidade às relações entre a vivência nesse espaço e as construções

identitárias nas suas relações com identidade de gênero e orientações sexuais.

O espaço escolar foi e é, portanto, intimamente relacionado à formação

dos sujeitos, constituindo-se um lugar composto por valores morais e que reitera

as normas regulatórias de gênero. Segundo Louro (2012),

À escola foi atribuída, em diferentes momentos, a produção do cristão; do

cidadão responsável; dos homens e das mulheres virtuosos/as; das elites

condutoras; do povo sadio e operoso, etc. Certamente não se esperava que ela

desempenhasse sozinha essas tarefas, embora, com muita frequência, elas lhe

fossem explícita e pontualmente endereçadas (p.94).

Assim, se as paredes, currículos e práticas escolares estão permeados por

concepções de gênero e sexualidade, aqueles colaboram com a formação de

homens e mulheres, marcando quem está à margem ou exerce uma ‘espacialidade’

pautada no corpo concebido como ‘neutro’ ou ‘normal’. Nesse sentido,

acreditamos que para entender a construção do corpo ideal para a sociedade

heteronormativa, não podemos negligenciar o espaço escolar. Voltamos à fala de

Louro (2012) para pensarmos na escola enquanto responsável (mesmo que não

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isoladamente) pela reprodução da sociedade, mais uma vez evidenciando que a

experiência nesse espaço vai além dos conteúdos formais.

A organização espacial e a reprodução das normas de gênero estão

relacionadas tanto para manutenção dos corpos disciplinados quanto nas

transgressões que dão visibilidade a outras identidades e novas formas de

participar do cotidiano escolar. Consideramos, portanto, fundamental entender

como a organização escolar brasileira e as desigualdades de gênero contribuem

para produção de “homens e mulheres de verdade”.

Cartografias que falam de gênero: a organização escolar

Julgamos importante fazer uma breve análise da organização escolar

brasileira visando apontar momentos e espaços nos quais os marcadores de gênero

e sexualidade já se colocavam como elementos presentes na organização dos

espaços e na definição de currículos. Não pretendemos, porém, fazer uma

investigação profunda sobre a história da educação no Brasil, mas sim marcar

elementos que colaborem com a compreensão dos paralelos que faremos entre a

escola (estrutura e currículo) e o que entendemos como a construção dos padrões

de homens e mulheres na sociedade heteronormativa.

Desde o período colonial, segundo Ribeiro (1982), a escola já aparece

como um elemento de distinção social entre os ‘escolarizados’ e os ‘não

escolarizados’, assim a autora chama atenção para a característica excludente do

sistema de ensino, onde filhos de colonos e filhos de índios, por exemplo, terão

graus de instrução diferentes. Nesse contexto, a necessidade de escolarização de

uma minoria reflete a intenção de formar um grupo capaz de fazer uma mediação

com a metrópole.

Soma-se a isso, segundo Ribeiro (1982), a importância da religião,

notadamente na participação dos jesuítas que forneciam uma formação intelectual

com características rígidas na forma de pensar e interpretar a realidade. Além

disso, os recursos destinados à educação também ajudaram a traçar essas

hierarquias, pois, além do favorecimento aos filhos dos colonos, existia também,

segundo a mesma autora, uma predileção pelos futuros sacerdotes em detrimento

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dos leigos. A religião marca, dessa forma, a educação tanto pela diferenciação

quanto pelo controle, através da catequese que propagava a fé católica e tornava o

índio mais “dócil”, civilizado.

As desigualdades atreladas ao gênero ficam a cargo da educação feminina

restrita ao “ensino de prendas domésticas e boas maneiras” (RIBEIRO, 1982,

p.29). Assim, as relações sociais constituídas que dão base para as classificações

vão sendo conjugadas ao sistema de ensino, diferenciam-se os que estudam e os

que não estudam, perpetuando-se as diferenças entre “filhos de colonos” e “filhos

de índios”. Ou seja, a identidade masculina é atravessada por outros marcadores

como o da raça. As hierarquias entre feminino e masculino também são

destacadas na diferença dos conteúdos trabalhados, assim com na base da relação

estabelecida por McDowell (2000) entre gênero, espaço público e privado.

Apontamos aqui para os cuidados domésticos (associados ao espaço privado) e os

conteúdos impostos às mulheres, que vão ao encontro da argumentação de

McDowell (2000):

Como ya he apontado, tales divisiones, especialmente las que separan lo público

de lo privado, siempre han estado asociadas a las divisiones de género, que,

supuestamente, son esferas <naturales> de cada uno de los sexos. Uno de los

mayores logros de los estudios feministas desde hace unos veinte años há sido

deconstruir y desnaturalizar tales divisiones (MCDOWELL, 2000, p.56) 37

.

Já no que Ribeiro (1982) chamou de fase Pombalina (1759-1827), a

mudança do ensino jesuítico para a valorização de uma formação voltada aos

interesses do Estado em detrimento dos religiosos, exemplifica um dos aspectos

das Reformas empreendidas. Essas tiveram, ainda, como um dos seus

rebatimentos uma formação “modernizada” em que a proibição do ensino público

ou privado sem licença, os exames para o exercício de docentes, foram

considerados pontos positivos, entretanto, novamente, as mudanças destinam-se à

elite colonial masculina.

Destacamos que o tipo de escola aqui trabalhada localizava-se, naquela

época, majoritariamente, nas casas dos professores e, segundo Cardoso (2003),

37

‘Como já apontei tais divisões, especialmente as que separam o público do privado, sempre

estiveram associadas às divisões de gênero que, supostamente, são esferas ‘naturais’ de cada um

dos sexos. Um dos maiores ganhos dos estudos feministas dos últimos vinte anos foi desconstruir e

desnaturalizar tais divisões’. Tradução literal da autora.

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poucas vezes nas construções anteriormente ocupadas pelos jesuítas. Assim, não

há necessidade de um prédio para haver escola, apesar de existir por parte do

governo fiscalização da casa-escola, em relação a sua estrutura. Com relação ao

conteúdo, a segmentação por gênero é reiterada pela autora:

Quanto ao ensino do sexo feminino, seguia o que estipulava o art.6º, ‘com

exclusão das noções de geometria e limitando a instrução de aritmética só as

quatro operações’, de acordo com o artigo 12 da mesma lei, que por outro lado

determinava que as mestras ensinarão também as prendas que servem à economia

doméstica (CARDOSO, 2003, p.130).

A fala de Cardoso (2003) relaciona o ensino para as mulheres às prendas

domésticas, e nos possibilita pensar na naturalização entre espaço privado e sexo

feminino. Para direcionar essa associação ao espaço escolar, destacamos a partir

de Louro (2012), que consideramos as distinções entre atividades de meninos ou

de meninas como construções sociais. E com base nisto, posteriormente

compreendemos as naturalizações que atravessam os espaços, e marcam as

relações com o feminino ou o masculino.

Além disso, a reflexão de McDowell (2000) pode ser enfatizada pela

colocação de Bourdieu (2012), visto que quando aquele autor discute a dominação

masculina o aponta como um dos seus princípios: a naturalização da visão

androcêntrica. E, para isso, é fundamental entender a relação entre espaço e

gênero, ou seja, as hierarquias construídas entre masculino e feminino são

também materializadas. De acordo com Bourdieu (2012), “é a estrutura do espaço,

opondo lugar de assembleia ou de mercado, reservado aos homens, e a casa,

reservada às mulheres” (p.18). O exemplo apresentado nos serve de base também

para pensar a própria organização dos espaços no interior da escola, como

meninos e meninas se organizavam para além da sala de aula ou ainda quais as

definições de atividades desempenhadas e lugares de preferência, sem abdicar da

sua relação com o que foi concebido em função do gênero. Pretendemos, dessa

forma, indicar o quanto a cultura interfere nas escolhas e gostos, que muitas vezes

foram associados apenas à condição biológica. Louro (2012) ajuda a perceber

essas naturalizações, relacionando-as ao espaço escolar. Nas palavras da autora:

Tal “naturalidade” tão fortemente construída talvez nos impeça de notar que, no

interior das atuais escolas, onde convivem meninos e meninas, rapazes e moças,

eles e elas se movimentam, circulem e se agrupem de formas distintas.

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Observemos, então, que eles parecem “precisar” de mais espaço que elas,

pareciam preferir “naturalmente” as atividades ao ar livre. Registramos a

tendência nos meninos de “invadir” aos espaços das meninas, de interromper suas

brincadeiras. E, eventualmente, consideramos tudo isso, de algum modo inscrito

na “ordem das coisas” (p.64).

Assim, o ensino das prendas domésticas citadas por Cardoso (2003) são:

bordar, marcar, coser, música e dança, o que nos coloca a importância do espaço

privado para construção do que se espera do feminino e da sua espacialidade

marcando, especificamente, o espaço da casa como seu lugar. Essas mesmas

aprendizagens já nos indicam, porém, a existência de ‘mestras’, visto que as

mulheres ficariam responsáveis por ensinar as turmas femininas.

A função docente, apesar de constar de concurso para o exercício, requer

dos interessados “atestados necessários sobre a sua boa conduta, fornecidos pelo

pároco e pela polícia, além de outros atestados opcionais, todos recomendando o

candidato para o cargo pretendido” (CARDOSO, 2003, p.133, 134). Os valores

morais avaliados para a contratação de professores reforçam a importância que a

escola possui na manutenção dessas regras e, mais que isso, no papel do professor

como um exemplo. A reflexão de Louro (2012) nos serve de base para

compreender a relação entre a reprodução dos padrões de comportamento e a

importância da figura do docente:

Não basta que o mestre seja conhecedor dos saberes que deve transmitir, mas é

preciso, que seja ele próprio, um modelo a ser seguido. Por isso o corpo e a alma

dos mestres, seus comportamentos e seus desejos, a sua linguagem e seu

pensamento, também precisam ser disciplinados. O mestre – e o jesuíta é o

exemplo mais perfeito – é cuidadosamente preparado para exercer o seu ofício

(LOURO, 2012, p.96).

Já no período republicano destacamos, com base em Ribeiro (1982), a

Reforma Benjamin Constant, por seus princípios de liberdade e orientação de um

ensino laico em detrimento de outro religioso e pela gratuidade da escola

primária. Entretanto, os altos índices de analfabetismo ainda marginalizavam boa

parte da população, reiterando, como forma de classificação, os ‘incluídos’ e os

‘excluídos’ do sistema escolar.

Assim, segundo Ribeiro (1982) a tensão entre a manutenção de uma

pequena parcela instruída da população e o ideário republicano de participação

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política38

no qual o mínimo de conhecimento era necessário, até mesmo pelo

contexto de desenvolvimento que exigia ao menos o letramento, representam,

entretanto, continuidades, pois atendem aos interesses de uma elite local. Nesse

sentido, a educação passa a ser também considerada uma ferramenta importante

na busca da superação de um sistema pautado na ignorância popular.

Dessa forma, na fase anterior ao governo Getúlio Vargas, segundo Ribeiro

(1982), a assimilação da Escola Nova marcou a exigência de uma democratização

do ensino, ou seja, da ampliação da rede de instituições. Isto não representa,

entretanto, que a figura da mulher tenha deixado de ser invisibilizada tanto nos

textos de referência, que fazem menção ao “homem brasileiro”, quanto nas

discussões relacionadas à necessidade de uma ‘escola primária integral’. O

exemplo da reforma vivida no ensino primário baiano ilustra essa ausência no

debate:

Será sobretudo educativa buscando exercitar nos meninos os hábitos de

observação e raciocínio, despertando-lhes o interesse pelos ideais e conquistas da

humanidade ministrando-lhes noções rudimentares de literatura e história pátria,

fazendo-os manejar a língua portuguesa como instrumento de pensamento e

expressão” (NAGLE, 1974, p.212 apud RIBEIRO, 1982, p.94).

As questões de gênero relacionam-se, assim, com a história da organização

escolar brasileira, na qual destacamos a invisibilidade da mulher nos textos que

nortearam as mudanças curriculares, visto que as modernizações no campo

educacional relacionavam-se com o desenvolvimento do país, especificamente

ligado às transformações iniciadas na estruturação de um modelo nacional-

desenvolvimentista, que valorizaria a industrialização. Isto relaciona novamente

espaço público e a ausência do feminino, e nos traz a naturalização de um espaço

por excelência do homem, ou seja, é ele quem precisa estar preparado para atuar.

A preocupação com a democratização do ensino perpassa, segundo

Magaldi (2003), a organização de um sistema nacional de educação e uma nova

38

Ribeiro (1982) coloca que a escassez de informações estatísticas relativas à educação aponta

para o que chamou de ‘não prioridade’ ou desinteresse “em relação à organização escolar com

objetivo de atender à população em sua totalidade” (p.80). Entretanto, é possível colocar que nesse

período o desenvolvimento do ensino primário exprime a seguinte relação por mil habitantes: 18

em 1889, 41 em 1920, 54 em 1932. Dessa forma, apesar de triplicar o número de alunos que

ingressaram no ensino primário no período, ainda segundo Ribeiro, isso não representou mais que

o atendimento de um terço da população.

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concepção para o próprio ato de educar que, neste momento, acaba por ser

pautado em uma perspectiva mais científica. De forma que a exemplo das novas

concepções de higiene e saúde pública, que deveriam ser trabalhadas nas escolas e

repetidas no espaço da casa, favorecem a atuação das mães como agentes de

civilização. Para o exercício desta atividade, segundo a mesma autora, existe a

necessidade da realização de reuniões periódicas, a fim de ‘formar’ as mães e, de

alguma maneira, padronizar as falas e reforçar o discurso da escola.

Observamos neste contexto uma inversão no papel da mulher que,

historicamente marginalizada na produção do conhecimento, agora exerce um

papel de centralidade nas relações de poder, notadamente atrelada ao espaço da

casa. Assim, o ‘ato de educar’ passa pela atuação da mãe, enquanto responsável

pelo cuidado com a educação do filho. As espacialidades da escola e da casa são

compreendidas como complementares na formação dos indivíduos.

Voltamos a nos questionar sobre as formas de atuação do poder no espaço

escolar, afinal centro e margem variam em função do gênero e são alterados

também em relação ao foco de análise, visto que a mesma escola que protagoniza

uma construção de conhecimento masculina abriga a centralidade do feminino na

relação com os ‘atos de educar’, uma prática cotidiana fundamentalmente

formativa. Louro (2012) dedica um capítulo do seu livro para discutir o ‘gênero da

docência’ e faz uma análise sobre a relação gênero / escola:

a atividade escolar é marcada pelo cuidado, pela vigilância e pela educação,

tarefas tradicionalmente femininas. Além disso, os discursos pedagógicos (as

teorias, a legislação, a normatização) buscam demonstrar que as relações e as

práticas escolares devem se aproximar das relações familiares, devem estar

embasadas em afeto e confiança, devem conquistar a adesão e o engajamento dos/

as estudantes em seu próprio processo de formação. Em tais relações e práticas, a

ação das agentes educativas devem guardar, pois, semelhanças com a ação das

mulheres no lar, como educadoras de crianças e adolescentes. Ao contrário,

dizem outras/os, a escola é masculina, pois ali se lida fundamentalmente com o

conhecimento – e esse conhecimento foi historicamente produzido pelos homens

(LOURO, 2012, p.92, 93).

Através das desigualdades de gênero é possível perceber diferentes formas

de viver o espaço, porém, mais que isso, a experiência espacial varia também nas

relações sociais estabelecidas, de forma que “cuidado”, “afeto” e “família” trazem

para o feminino (ou melhor, para o que assim foi construído como feminino),

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outra forma de participar da escola. Os conhecimentos curriculares historicamente

ocultados para as mulheres não anulam os saberes transmitidos no espaço da casa.

Nesse sentido, mais do que a herança das “prendas domésticas” que compõem os

conteúdos restritos às meninas, vemos nos ‘atos de educar’ uma forma de

tensionar as relações de poder no espaço escolar.

No caminho dos tensionamentos entre gênero e escola, o ‘Manifesto dos

Pioneiros da Educação Nova’, de 1932, escrito por Fernando de Azevedo e

assinado por vários professores, destaca a compreensão da educação como “uma

função social e um serviço essencialmente político que o Estado é chamado a

realizar com a cooperação de todas as instituições sociais” (RIBEIRO, 1982,

p.101).

E a partir de Libâneo, Oliveira e Tschi (2012) acrescentamos que o

manifesto defendia uma escola pública, laica, obrigatória e gratuita o que coaduna

com a mobilização, apontada por Ribeiro (1982), em prol de uma educação

igualitária na qual não exista distinção entre os sexos, conforme o próprio texto do

manifesto:

O sistema escolar deve ser estabelecido nas bases de uma educação integral;

comum para alunos de um e outro sexo e de acordo com suas aptidões naturais;

única para todos, e leiga, sendo a educação primária (7 a 12 anos) gratuita e

obrigatória; o ensino deve tender progressivamente à obrigatoriedade até os 18

anos e à gratuidade em todos os graus (RIBEIRO, 1982, p.101).

Assim, o debate sobre a organização educacional brasileira opôs uma

orientação tradicional composta por educadores católicos, subordinados ao ensino

religioso e que apresentavam defesas em busca da manutenção da educação

segmentada pelo sexo, e outra representada, notadamente, por educadores

influenciados por “ideias novas”39

, que defendiam, ainda segundo Ribeiro (1982),

39

Essas ideias estão relacionadas ao movimento ‘Escola Nova’, que tem suas bases nas sociedades

europeia e norte-americana, e no Brasil, segundo Ribeiro (1982), representaram a busca por

adequar o rompimento com o modelo agrário a realidade escolar.

A teoria educacional, pautada no modelo Escola Nova, nos serve para refletir sobre os problemas

oriundos da adaptação de uma teoria a um espaço/ contexto social e político diferenciados. Assim,

Ribeiro (1982) faz uma crítica à ideia concebida de um ‘tipo ideal de homem’ que não leva em

consideração as desigualdades sociais experimentadas no Brasil, o que segundo a autora favorece

então o grupo dominante. Para nós, a crítica a um modelo de homem, em especial tendo como

contexto a organização escolar brasileira, está pautada nas desigualdades já problematizadas de

acesso à educação e nas relações hierárquicas de gênero construídas desde os tempos do ‘Brasil

colônia’. Assim, mesmo que a teoria argumente para uma nova forma de seleção com base nas

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a laicidade, a coeducação, gratuidade e responsabilidade pública no sistema de

educação. Esse documento integra uma preocupação com a democratização do

ensino que teve início na república e que, em especial para a geografia, apresenta

rebatimento na garantia de acesso e na análise de políticas que preservem a

igualdade de direitos. É possível, dessa forma, traçar um paralelo entre as

discussões sobre os incluídos e os excluídos do sistema escolar, letrados e

analfabetos; e perceber que as hierarquias de gênero perpassaram essa trajetória.

A manifestação por uma educação igualitária em 1932, no tocante às

desigualdades entre os conteúdos ensinados a meninos e meninas tem

rebatimentos nos espaços naturalizados na vida adulta, ou seja, é para nós um

passo na direção da reivindicação, por repensar os lugares a partir dos novos

contextos e direitos.

Encaminhado em 1948 o anteprojeto da lei de diretrizes e bases, com o

objetivo de ampliar o acesso à escola, teve como um dos principais pontos de

debate a divergência entre as tendências centralizadoras e descentralizadoras de

gestão escolar. Destacamos que, segundo Ribeiro (1982), a crítica dirigida à

centralização teve, por motivos diferentes, o apoio dos educadores católicos mais

tradicionais e dos educadores de ‘ideias novas’. Os primeiros embasavam sua

justificativa através da relação entre os direitos da família, a garantia de liberdades

individuais e indiretamente preocupava-se com os interesses da igreja em

detrimento dos do Estado, enquanto os segundos defendiam a partir de princípios

pedagógicos a necessidade de resguardar as diferenças regionais e individuais que

seriam suprimidas na centralização.

A lei que seria aprovada apenas em 1961 (antes disso ainda é alvo de outro

ponto de debates) dessa vez, relacionada à necessária escolha entre a valorização

da escola pública ou privada, que mais uma vez torna claro o embate entre os

conservadores e os educadores de ‘ideias novas’. Assim, utilizaremos uma parte

capacidades biológicas, ou seja, a fim de minar a velha estrutura do sistema educacional (de

sentido aristocrático), as aptidões ‘naturais’ substituiriam as razões econômicas e sociais

(anteriormente valorizadas). Porém, essa proposta também é vista por nós com ressalvas, visto que

acreditamos, pautados em Louro (2012), que muitas dessas naturalizações estão carregadas de pré-

concepções atreladas às construções de gênero. Conforme discutimos ao longo deste capítulo, a

construção das escolhas e gostos não está livre dos constrangimentos impostos pela sociedade

heteronormativa.

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do que, segundo Ribeiro (1982), ilustra a argumentação utilizada em prol dos

princípios particulares:

Do ponto de vista pedagógico, a Igreja Católica acusa a escola pública de ter

condições de desenvolver somente a inteligência e, enquanto tal instrui, mas não

educa. Ela não tem uma filosofia integral de vida [...] Assim a escola confessional

seria a única que teria condições de desenvolver a inteligência e formar o caráter,

ou seja, educar (RIBEIRO, 1982, p.150).

De acordo com o exposto anteriormente, por nós, sobre a construção dos

corpos ideais para a sociedade heteronormativa, e sua relação com as concepções

que são reproduzidas na escola, a exigência de uma educação que não só forme o

caráter como conduza a uma filosofia de vida, se apoia também na religião, fato

que não é novo na história da educação brasileira.

Dessa forma, através de uma conversa com uma das travestis, em janeiro

de 2015, temos a oportunidade de exemplificar, à luz do presente, a

contextualização que tem sido feita, visto que na análise das identidades que

foram marginalizadas e excluídas em função da não adequação de gênero à busca

por uma escola laica40

, também fica representada na fala de Bia, que se preocupa

com a relação entre preceitos religiosos e mais motivações para as brincadeiras de

“mau gosto”, nas palavras da entrevistada:

Eu acho que o primeiro erro taí, a escola só explica a ideologia, a construção, o

nascimento da religião católica, e se você fala de uma deveria falar de todas, até

por que o catolicismo ensina que o homem foi criado pra a mulher e pra procriar,

fazer filhos na terra e nisso você para. Gente, por favor o ser humano é muito

mais que isso (Bia, entrevista realizada em janeiro de 2015).

Assim as tensões vividas para aprovação da lei de diretrizes e bases (1961)

representam, muitas vezes, reações às tentativas mais progressistas, onde a

educação pública e gratuita deve ser garantida para todos, e a partir do histórico de

organização da escola como espaço excludente ratificamos a proposta de pensar as

40

Cabe esclarecer que a fala de Bia, não foi direcionada por nós, no sentido de fazer algum

questionamento sobre as relações entre a vivência na escola e religião (conforme pode ser

inclusive percebido no anexo com as questões norteadoras das entrevistas). De forma, que esta

colocação surge como uma das proposições e necessidades que, a partir do olhar da entrevistada,

contribuiriam para modificar o cenário da escola básica. Assim, apesar das relações entre

religiosidade, educação brasileira e identidades transgressoras, não constituírem o eixo central

deste trabalho, acreditamos que essa colocação contribua não só para exemplificar, na vivência de

Bia, um dos reflexos da pequena historização feita neste subcapítulo, como também pode motivar

estudos e reflexões futuras.

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vivências dos corpos que não se adéquam como uma forma de questionar a

estrutura binária materializada na construção deste ambiente.

Após a década de 1960, segundo Lima (2013), os movimentos sociais

exerceram influência na produção dos discursos que conjugam educação e

sexualidade, chegando mesmo a colocar a educação sexual como uma

obrigatoriedade. Entretanto, o contexto da ditadura militar cerceou os debates e

representou um retrocesso, tornando o ensino de educação sexual facultativo e

relegando a família a responsabilidade por transmitir e formar os cidadãos em

relação às bases morais.

No contexto de enfraquecimento do regime militar, destacamos a partir da

década de 1980, uma revalorização da discussão nas escolas, apesar de muito

ligadas ao campo da saúde / prevenção, fato justificado pela necessidade de

discutir a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis (DST), em especial

a AIDS. Weeks (2012) faz uma crítica à exploração da doença como uma forma

de demonstrar os “limites do corpo” em relação à vivência da sexualidade. Assim,

a doença que ficou conhecida, naquela época, por “devastar o corpo”, foi utilizada

pelos comentaristas (dentre eles jornalistas) como uma “vingança da natureza

contra aqueles que transgrediam seus limites” (WEEKS, 2012, p.37), o que mais

uma vez traz os estudos sobre as sexualidades na escola para o campo biológico.

É possível, porém, notar uma preocupação em relacionar o cotidiano da

escola, que é composto por múltiplas identidades com os conteúdos aprendidos, e

para isso a orientação do estudo da sexualidade como um tema transversal, na

década de 1990, e não como uma disciplina reafirma, segundo Lima (2013), sua

importância. Nesse momento, a discussão sobre a construção do corpo travesti é

elucidativa, pois não pode ser restrita a uma análise disciplinar, esta é dotada de

simbolismos que vão além das mudanças físicas representadas pela ingestão de

hormônios ou pela colocação de próteses de silicone. A discussão sobre as

identificações de gênero e sexualidades atravessam os espaços da escola e não

podem ser condicionadas a estudos biológicos.

Atualmente, já na elaboração do Plano Nacional para Educação, que tem

sua vigência entre 2011 a 2020, dentre as metas prioritárias destacamos a terceira,

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que visa reduzir as desigualdades educacionais e para isso estabelece como uma

de suas estratégias “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por

preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de gênero”

(PNE 2011/2020, p. 26).

No mesmo contexto, as Diretrizes Curriculares Nacionais (2012), no Art.

5°, organiza o Ensino Médio, independente da forma da oferta, baseado na

educação em direitos humanos como princípio nacional norteador, chamando

atenção para o respeito aos princípios da dignidade humana, da igualdade de

direitos e do reconhecimento e valorização das diferenças e diversidades, de

forma que, mesmo não garantindo a mudança das práticas e atitudes no interior

das escolas, tais medidas representam avanços para pensar novas vivências nesse

espaço.

3.2. Conflitos no cotidiano escolar: existo mas não me vejo na escola

É nesse cenário que analisaremos o corpo travesti desconstrutor de

binarismos, que se soma à discussão sobre a redução da homofobia na escola, já

presente em uma das metas do Plano Nacional da Educação (2011-2020), a

preocupação com a não exclusão ou invizibilização dessa identidade. Nesse

sentido, relacionamos a organização da escola, discutida no subcapitulo anterior,

de sua estrutura aos contextos políticos e culturais, que possuem seus

rebatimentos no próprio cotidiano escolar.

Assim, a partir da compreensão da escola como espaço marcado,

historicamente, pela exclusão e, simultaneamente, atravessado por questões de

gênero e sexualidades, buscamos relacionar a identidade travesti e as vivências

espaciais no ambiente escolar. Destacamos que para isso, além da bibliografia

que nos referenda, realizamos trabalhos de campo com um grupo composto por

nove pessoas que se identificaram como travestis41

. Assim, além dos

procedimentos já abordados na introdução deste trabalho é importante pontuar que

41

No anexo A é possível encontrar uma tabela com algumas informações básicas das

entrevistadas, que mesmo preservando as identidades das mesmas, oferece como subsídio

elementos como “idade” e o “período em que saíram da escola”, o que talvez, colabore com a

interpretação do leitor de alguns fragmentos de falas que serão discutidos neste e no terceiro

capítulo da pesquisa.

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todas as entrevistadas iniciaram o processo de transformação dos corpos ainda no

período escolar, o que não significa que isso ocorreu de forma homogênea.

Porém, essa informação nos revela que os relatos que serão trabalhados ao longo

do texto, não podem ser desvinculados das memórias de violência atreladas a não

linearidade de gênero e sexualidade.

Nesse sentido, corroboramos com Silva e Junckes (2009) quando destacam

a importância de considerar as memórias do espaço escolar “articulando os

acontecimentos passados interpretados à luz do presente, permanentemente

negociadas intersubjetivamente na construção identitária” (p.157).

E, através do diálogo com Ferreira (2011), chamamos atenção para a

relação entre as identidades que não se adéquam e o espaço, visto que a

argumentação da autora versa sobre a importância deste para visibilidade das

identidades homossexuais:

em particular as identidades homossexuais tem uma forte relação com a dimensão

espacial, as marchas de orgulho, as vizinhanças auto-organizadas, com ambiente

amigável para gays e lésbicas, os espaços públicos específicos anunciados como

seguros e livres de discriminação, bem como as negociações de identidades

relacionadas com os espaços (assumir a orientação sexual apenas em locais

específicos) tem como fator comum a dimensão espacial (FERREIRA, 2011,

p.43).

Mesmo que Ferreira (2011) não faça referência especificamente à

identidade travesti, acreditamos que as negociações entre espaços e identidades

sirvam de base também para pensar o processo e mudança corporal vivido pelas

travestis bem como as dificuldades de permanência na escola, que a exemplo de

outros espaços, reproduz a lógica binária. Em consonância com o que abordamos

no capítulo 1, os corpos não são inertes ou essencializados, de forma que as

subjetividades atreladas ao feminino vão ocorrendo de forma processual

conforme, inclusive será possível visualizar nas construções associadas aos

espaços da escola e discursos reproduzidos com base neste ambiente.

Com relação à linguagem, algumas vezes as entrevistadas se referiram ao

passado no masculino, a exemplo do que colocou Luciana (2015) “eu era um bom

aluno, nossa, falei aluno, se bem que naquela época ainda era né”. O que não

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anulou também algumas correções feitas pelas próprias entrevistadas enquanto

falavam com a finalidade de afirmar a identidade feminina.

Foucault (1988), ao discutir a multiplicação das falas sobre sexualidade,

afirma a escola como local de destaque para reflexão sobre esses discursos nos

corredores, banheiros, na organização dos alunos. Assim, as funções de controle e

disciplinamento exercidas nesse espaço são fundamentais para manutenção da

ordem estabelecida. Para isso, utilizam-se inclusive, marginalizações e pequenas

punições sofridas por quem desvia. Lembramos que, segundo Butler (2002), os

corpos encontram, paradoxalmente, nas mesmas tentativas de normalização a

força de resistência, que só pode ser compreendida na existência do sexo como

um ideal regulatório, ou seja, o sexo também atua como uma força para

materialização do gênero, e para nós, nessa relação o constrangimento dos corpos

travestis está na subversão da expectativa imposta na lógica binária de que sexo e

gênero devem “concordar” para construção de um corpo “normal”. Portanto, a

escola quando atua na conformação dessas identidades ao que é socialmente

aceito nessas bases, silencia as “identidades trans” para afirmar a outra.

A partir de Lima (2013) trazemos a dimensão política da identidade na

medida em que, no espaço da escola, as negociações de centro e margem,

atreladas ao padrão heterossexual e aos que não se adéquam, variam definindo

lugares e não lugares no interior desse ambiente. Nas palavras da autora:

É desta forma que as identidades sociais e culturais se manifestam de forma

política, na medida em que determinados grupos sociais, por sua posição dentro

da rede social, ocupam lugares centrais e têm a chance não só de representar a si

mesmo, como de representar os diferentes de si mesmo, subordinando, negando

ou excluindo as suas manifestações. Essa dinâmica é sempre marcada por

relações de poder que definem o que está ou não dentro da normalidade (LIMA,

2013, p.137).

O corpo escolarizado vai sendo moldado, o padrão se impondo e sendo

imposto através de práticas performativas, porém não sob uma superfície inerte. A

resistência é condição para o exercício do poder e não pode ser assim exterior a

ele. Mesmo com os silenciamentos, outras sexualidades se fazem presentes na

escola e arriscamos dizer que isso ratifique a preocupação com a vigilância e a

manutenção de uma ordem naturalizada, assim Louro (2012) chama atenção para

quem pertence a esse lugar.

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A escola delimita espaços, servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que

cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o “lugar” dos

pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através dos seus quadros e

crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles que deverão ser modelos e

permite, também, que os sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos

(LOURO, 2012, p.62).

O conceito de identidade figura, dessa maneira, mais uma vez nossa

discussão, pois este é um momento de reconhecimento e exclusão, que se faz a

partir de uma identidade hegemônica e considerada normal. Por isso,

argumentamos pautados em Tomaz Silva (2013) que o desejo heterossexual não é

alvo de discussões, este é tão naturalizado que se torna invisível na hora dos

questionamentos, como se esta fosse a única possibilidade. Concordamos com o

autor quando afirma que:

a normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no

campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente

– uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras

identidades são avaliadas e hierarquizadas (SILVA, T., 2013, p. 83).

Quando colocamos que a heterossexualidade é compulsória, estamos

justamente fazendo alusão a uma naturalização que não permite questionamento

ou discussão, já que essa sexualidade foi construída como “o certo” e na escola

um olhar mais atento percebe as restrições ligadas às diferenças de gênero,

expectativas relacionadas aos comportamentos de meninas são afirmadas nos

detalhes, nas interrupções que exigem que elas “tenham modos” ou nas tentativas

de constrangimento observadas, por exemplo, nos comentários sobre o menino

que só anda com as meninas. Surgem assim algumas classificações como: “ele/a é

estranho/a”.

A partir disso, consideramos importante contextualizar o momento da

descoberta da diferença e, simultaneamente, da marginalização sofrida por quem

não figura o centro das abordagens disciplinares. Assim, a partir da publicação

organizada por Silva, Ornat e Chimin (2013) recorremos a fala da travesti

Nikaratty (2013) para exemplificar o que foi trabalhado por Hall (2013) e Tomaz

Silva (2013) ao atrelarem a descoberta da sua identidade em relação ao “outro”.

Este, ao negar a identidade dissidente para afirmar a sua, chegou ao extremo da

violência física.

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Caiu a ficha mais ou menos com uns oito anos de idade. Eu vi que era diferente

porque eu comecei a apanhar na escola. Não que eu vi, as outras crianças me

obrigaram a ver. Porque para mim eu era uma pessoa normal, eu era um ser

humano. Aí com oito anos eu já comecei a apanhar, apanhei até oitava série

(NIKARATTY, Leandra, 2013, p.40).

Portanto, se a escola “cala” ela mostra quem é considerado estranho e

afirma um padrão de normalidade, expressando isso das mais diversas formas.

Não nos referimos apenas à estrutura, mas às práticas representadas pela omissão

em situações de violência física e simbólica. Nomear alguém como estranho e

anormal implica, necessariamente, que se tenha como base um contrário imposto

como modelo, ou seja, o recurso linguístico utilizado por Hall (2013) não só

elucida o exposto com Nikaratty (2013) como será usado para analisar a fala de

Bia transcrita de uma entrevista realizada por nós em 2015:

eu não gostava da escola pois é um ambiente muito hostil, para quem não segue o

padrão. Foi hostil comigo por que eu era um menino loirinho, de olho claro,

bonitinho e, na época, “afeminado”. No primeiro dia de aula ok, no segundo eu já

era o viadinho da sala, no terceiro o viadinho da escola (Bia, entrevista realizada

em janeiro de 2015).

Assim, mesmo compreendendo a partir de Hall (2006) a identidade como

algo inacabado, fluído e interpelado ao logo da vida por outras identificações,

naquele momento ele foi classificado como “viadinho” e no ambiente escolar esta

característica se sobrepôs as outras, ou seja, mesmo que o sujeito também seja

marcado pela raça, classe social, religião e não exista homogeneidade nessas

relações, vamos destacar aqui, que ele teve suas memórias atreladas ao ambiente

escolar, principalmente por não se adequar ao padrão heterossexual.

As violências e classificações perpassam por gêneros e sexualidades de

forma que a ocultação da identidade homossexual é, segundo Facco (2011), uma

das estratégias utilizadas para reduzir as hostilidades na escola. Essa é também

uma das faces da inexistência que trabalhamos baseados em Foucault (1988), que

joga entre as possibilidades de não existir ou de existir na sombra, no segredo, ou

seja, se interditar a identidade quando lhe é tirada a possibilidade de se

materializar, de forma que, segundo Massey (2013), se o espaço pressupõe a

diversidade, essa de forma análoga existe na sua relação com o lugar.

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A frequência obrigatória na escola compõe o texto de ocultações da

identidade e cria, na relação com a fuga, pequenos esconderijos, lugares onde o

estigmatizado se sente livre dos olhares que controlam e medem suas posturas.

Segundo Facco (2011), o sentimento de prisão condiciona a vivência na escola,

visto que um deslize representaria a descoberta do teatro feito em relação à

sexualidade. A mesma autora afirma que, muitas vezes, por essas razões, o

estigmatizado prefere o isolamento, o que nos remete à fala de Bia (2015) “eu

gostava, me sentia bem na biblioteca, lá não podia acontecer nada comigo, podia

ficar quieta”. As relações de tolerância e aceitação são, dessa forma, vistas com

ressalvas, pois carregam as hierarquias e desigualdades em função da sexualidade.

Os sentimentos e memórias trazem, portanto, os lugares de pertencimento,

a exemplo da biblioteca para Bia. Chamamos atenção, porém, que a existência

desses lugares está relacionada, à naturalização e estigmatização que compõem o

espaço escolar. Através das estratégias para “desaparecer”, vemos a possibilidade

de significar novos espaços, criar lugares.

Torna-se clara, então, a relação de ocultamento de orientações sexuais

diferentes da heterossexual como formas de defesa ou tentativa de aceitação. Em

contrapartida, o espaço de aprendizagem e desenvolvimento da crítica é marcado

por medos, violências, aversão. A geografia colabora, portanto, com o estudo de

um espaço permeado por sentimentos diversos em função de marcadores de

gênero e sexualidades, e aponta para modelagem de corpos e estigmatizações que

fazem parte das memórias dos sujeitos. Recorremos à Louro (2012) para entender

a relação entre identidade e lugar.

O olhar precisa esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se

nas pessoas, nos seus gestos, suas roupas; é preciso perceber os sons, as falas, as

sinetas e os silêncios; é necessário sentir os cheiros especiais; as cadências e os

ritmos marcando os movimentos de adultos e crianças. Atentas/os aos pequenos

indícios, veremos que até mesmo o tempo e o espaço da escola não são

distribuídos nem usados – portanto, não são concebidos – do mesmo modo por

todas as pessoas (LOURO, 2012, p.63).

O debate sobre ocultações e segredos carece de outra análise que

contemple a “publicização” de outras identidades no espaço escolar. Assim, as

cobranças e questionamentos para que o aluno “se defina” partem do princípio

que se existe um sexo, este deve ser nomeado, e mais que isso, a educação dos

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corpos e o seu controle devem ser pautados pela sua definição. Foucault (1988)

sugere que sexualidade perpassa toda existência do sujeito:

Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está

presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ele é o princípio

insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no

seu corpo já que é um segredo que se trai sempre (FOUCAULT, 1988, p.50).

A citação de Foucault (1988) reafirma a preocupação relatada por Facco

(2011) das reações que uma sexualidade homossexual pode motivar na escola. A

heterossexualidade encontra-se, dessa forma, no cerne das coisas, e segundo

Junqueira (2012), compõe concepções curriculares e motiva a incorporação das

normas nos corpos. Um lugar privilegiado para a socialização de crianças e

adolescentes, a partir das questões identitárias já citadas, pode tornar-se um lugar

de medo, constrangimentos e culpas. Assim, para direcionar a reflexão

especialmente para a sexualidade das crianças, citamos um trecho da poesia de

Pedro Barroso:

“Tanta falta, tão escondida

tanta mentira mentida

tanta busca de aprender

e a vontade a mandar,

e os adultos a não querer

e as coisas a acontecer...

depois vem o corpo e manda;

vem a sorte e o acaso

mais a vida convivida

que nos ensina sabores

preferências e valores

coisas que vão dar azo

a uma culpa indefinida...”

Para nós, a citação ilustra a força das normas regulatórias, especialmente

em um ambiente formativo, no qual as falas e as regras tomam, muitas vezes, o

peso de verdades. O sentimento de culpa, além disso, é intimamente ligado ao fato

do estigmatizado não se encontrar no padrão. Segundo Facco (2011), a vontade de

“corrigir” as atitudes que não são aceitas, além do sentimento de insatisfação,

pode culminar em violências com outras pessoas que tenham o mesmo estigma,

com o objetivo de mostrar a todos o repúdio a uma identidade que está oculta.

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Foucault (1988) ao falar da sexualidade das crianças reforça os

dispositivos de controle e vigilância debatidos por pedagogos e pais, a fim de

reprimir o assunto, ou seja, a vigilância implica em, a qualquer sinal de descoberta

do que foi construído como segredo, em outras táticas de regulação. Dessa forma,

quando a família e a escola demonstram a importância de esconder aquele “erro”,

de corrigir outra forma de falar, andar, se vestir, estão reafirmando diretamente a

norma. Assim concordamos com Goffman (2013) quando afirma que o estigma é

uma perspectiva gerada, em função de normas não cumpridas

Também está implícita em uma forma de cooperação tácita entre os normais e os

estigmatizados: aquele que desvia pode continuar preso a norma porque os outros

mantêm cuidadosamente o seu segredo, fingem ignorar sua revelação ou não

prestam atenção as provas, o que impede que o segredo seja revelado; esses

outros, em troca, podem permitir-se ampliar seus cuidados porque o

estigmatizado irá, voluntariamente se abster de exigir uma aceitação que

ultrapasse os limites que os normais consideram cômodos (GOFFMAN, 2013, p.

141).

Assim, no momento da entrevista, Bia ao falar sobre as violências que

viveu na escola comenta que não adiantava nada ir à Direção: “quando eu

reclamava, diziam: mas também né, você não pode ser desse jeito aí dá nisso,

tenta engrossar a voz, andar direito” (2015). A resposta do diretor ilustra a

inversão que justifica a violência e, ao contrário do que aponta Facco (2011), (em

relação às violências contra os homossexuais) quando afirma que os processos

discriminatórios costumam ser sutis dificultando sua identificação, as violências

sofridas aqui não foram escamoteadas.

Nesse sentido, outra entrevistada, Priscila, afirma que não acredita que

procurar a Direção da escola possa “resolver algo”, visto que nas palavras dela “o

assunto não é deles, isso tem que ser resolvido por nós [alunos] ou não tem

solução”, a entrevistada segue ainda comparando a situação de violência sofrida

por uma colega com as que ela enfrentava, antes de decidir sair da escola:

Não tem nenhuma mudança que eu acredite que vá resolver o problema, quando

falei para minha mãe que não ia mais para escola, expliquei que, muitas vezes

depois que os meninos me tacavam as coisas fui reclamar com diretor. Para

minha mãe não foi surpresa, porque ele [o diretor] já tinha chamado ela na escola

e dito que, se aquilo continuasse, eu poderia ir a policia reclamar, ele me daria um

papel para isso. E foi o que ele fez, mas eu não quis ir. Não acredito em nada

disso. Por exemplo, uma vez uma menina foi filmada pelo namorado transando e

ele mostrou o vídeo para todo mundo na escola. O diretor fez a mesma coisa,

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falou pra ela ir à delegacia, ela foi, ficou um tempo sem aparecer, o menino foi

suspenso uns dias e depois voltou tudo ao “normal”, ela só não estava indo pela

vergonha mesmo, ou seja, não aconteceu nada! (Priscila, entrevista realizada em

fevereiro de 2015).

Assim, os relatos de Priscila representam parte das violências que, segundo

a entrevistada, a levaram inclusive a sair do colégio mesmo diante de um cenário

de “vida escolar compulsória”, conforme trabalha Facco (2011)42

. As

perseguições feitas por um grupo de meninos estão refletidas, inclusive, nos

documentos que segundo ela ainda não voltou para buscar visando evitar

encontrá-los.

Os espaços da escola fazem parte, portanto, das memórias das travestis e

materializam sentimentos de pertencimento e rejeição. Ademais, apresentam-se

como uma forma de compreender o cotidiano escolar através de outro olhar, tendo

em vista o número reduzido de trabalhos que se dedicam a perturbar a organização

da escola, pautada na linearidade já discutida aqui. Para isso, elencamos espaços e

momentos de maior relevância, em função dos relatos das travestis que compõem

o grupo focal e do objetivo de desvelar os discursos que marginalizaram e

excluíram as travestis do espaço escolar.

O “pátio” – A hora do recreio

O horário do “recreio” ou intervalo entre as aulas é tradicionalmente

apontado como momento de relaxamento, descanso e brincadeira, que,

aparentemente, seria relacionado a lugares de pertencimento, descontração e

alegria. Porém, quando nos referimos à sexualidade atravessando a escola e a

heterossexualidade como compulsória não excluímos as brincadeiras como uma

forma de reprodução desses valores.

A partir da fala de Bia, que diz nem mesmo “ir para o recreio”, em

referência ao espaço do pátio da escola, com medo das perseguições demonstra o

que Junqueira (2012) discutiu sobre a capacidade de ora camuflar ora explicitar

42

Recorremos a seguinte fala de Facco (2011) “a vida escolar, pelo menos nas grandes cidades, é

compulsória” (p.22) para destacar que as experiências de exclusão e violência são reforçadas, visto

que o estigmatizado não pode parar de frequentar aquele local.

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insultos e violências que acabam por compor memórias e inscrever-se, segundo o

autor, nos corpos da vítima. Assim nas palavras de Bia (2015):

Às vezes eu não ia pro recreio, pois me tacavam as coisas: quando era biscoito

com café com leite, me tacavam o bendito do biscoito. Quando era macarrão com

salsicha me tacavam a salsicha. Eu só não apanhei na escola porque tinha um

grupo de meninas que me defendiam (Bia, entrevista realizada em janeiro de

2015).

Entendemos a representação do pátio da escola também como um território

no sentido simbólico, um espaço de referência para a construção de identidades, o

que não anula as relações de poder e as disputas, que podem ser visualizadas no

relato de Bia, quando ela prefere não ir ao pátio devido ao medo gerado pelos seus

agressores. Haesbaert (2011) entende que o território é idealizado e diz que o

mesmo não pode ser definido apenas por um princípio material de apropriação,

mas sim contemplando um princípio cultural de identificação ou pertencimento.

Assim, o espaço / momento do recreio é complexificado, visto que opõe o

descanso, o intervalo entre as aulas e a experiência das violências. Recorremos

ainda a Junqueira (2012) para nos referir ao que o autor chamou de ‘pedagogia do

insulto’, que imprime através das tensões e medos uma forma de controlar os

corpos, condicionando-os na medida em que qualquer “falha” na demonstração de

masculinidade remete a novas perseguições.

É até difícil saber qual era o pior momento, acho que era ter que andar pela

escola, pois como eu disse, os meninos me tacavam aquelas frutas que caem das

árvores e minha escola era cercada por uma mata mesmo, tinham muitas

frutinhas. Isso sem falar nas piadas que eram frequentes, os risinhos, as vezes que

ficavam me gritando: “viado, gordo”. Como disse, por isso parei de estudar

(Priscila, entrevista realizada em fevereiro 2015).

A fala de Priscila nos remeteu ao primeiro relato de violência que ouvimos

em uma conversa realizada ainda em 2011 e, mesmo que naquela ocasião o

espaço escolar não tenha sido o foco da pesquisa, a entrevistada destacou o

momento como um dos piores já vividos por ela, assim Estrela coloca:

O pior dia da escola foi quando me tacaram cascas de laranja. Foi pior porque as

cascas pareciam não acabar, eu corria e eles corriam atrás de mim, me tacando as

casca e rindo alto. Lembro de todo mundo olhando. Só depois, já em casa, me dei

conta que aquilo só foi possível porque eles pegavam as cascas do chão e me

atiravam de volta. Na hora não pensei nisso (Estrela, entrevista realizada em

2011).

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O banheiro entre violências: “eu não ia mais, desisti”

O banheiro representa materialmente uma divisão binária do espaço, ou

seja, a estrutura construída através das relações com as concepções de gênero

expõe claramente masculino ou feminino. O binarismo nos remete, portanto, a

“inexistência”43

dos corpos travestis, ao concretizar a impossibilidade de uso

deste espaço por identidades que não se adéquem. Nesse sentido, o processo de

naturalização é desvelado no entendimento das ‘regras da escola’ que não

permitem o uso do banheiro feminino, de forma que a patologização ou a

anormalidade dos corpos, encontra-se na afirmação da própria identidade travesti.

Destacamos a partir de Junqueira (2012) que essa “classificação” possui

também um papel “educativo”, no sentido que direciona e naturaliza as diferenças

de gênero, com base na perspectiva que conjuga de forma coerente (para

heteronorma) sexo e construção do corpo. Os dispositivos de poder são assim

analisados pelo autor:

A espacialização é um dos procedimentos cruciais dos dispositivos de poder. É

um dos aspectos centrais do currículo e se verifica na esteira dos processos de

divisão, distinção e classificação que este continuamente opera. A violação do

direito ao acesso ao banheiro é um exemplo que mostra que processos de

espacialização são acompanhados de naturalizações sutis, que se desdobram em

interdições e segregações (JUNQUEIRA, 2012, p.6).

Em confluência com os processos apontados pelo autor, destacamos o

espaço como um dos elementos que ‘formam’ os corpos de acordo com as normas

hegemônicas, e para isso mantém no seu “exterior constitutivo” a patologizaçao

dos corpos travestis. Portanto, a provocação que delimita o início de nossa análise

sobre essa espacialidade “entre violências” faz referência aos relatos obtidos em

campo, polarizado fundamentalmente entre as agressões (físicas, verbais,

simbólicas) e as invisibilidades, conforme é possível observar em alguns

fragmentos:

Eu não ia, só ia em casa mesmo. Não era permitido usar o ‘das meninas’, os

inspetores não deixavam. E o ‘dos meninos’ não tinha condições iam ficar me

zoando. Uma vez eu fui e me trancaram lá dentro (Priscila, entrevista realizada

em fevereiro de 2015).

43

A inexistência é trabalhada de acordo com a proposta de Foucault (1988), conforme colocamos

na apresentação deste capítulo.

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Não ia, só em casa, ou, se eu estivesse muito apertada, esperava todo mundo

entrar na sala e quando via o pátio vazio ia rapidinho. Uma amiga em outra escola

há pouco tempo me falou que ela tinha a chave do banheiro dos professores e

podia ir, mas também não gosto dessa idéia, porque é um tipo de exclusão. Esse

para mim era o pior momento da escola (Mônica, entrevista realizada em

fevereiro de 2015).

Pra eu ir ao banheiro sozinho era um inferno por que ou tinha menino querendo

me bater ou tinha menino querendo me abusar sexualmente, se fosse mais velho,

maior que eu (Bia, entrevista realizada em janeiro de 2015).

A fala de Priscila, em destaque, chama atenção pelo fato da mesma

entrevistada, no ‘encontro dialogado’ com o grupo44

, ter exposto que no trajeto de

casa para escola tinha que pegar dois ônibus, fato que muitas vezes motivou seus

atrasos e faltas. O que reitera para esta entrevistada a dificuldade de ir ao banheiro

na escola, visto que mesmo com o tempo despendido no deslocamento somado às

horas de permanência na escola, raras às vezes ela usou o banheiro masculino.

Já a relação entre as falas de Mônica e Bia exemplificam a dupla dimensão

da violência observada, visto que enquanto a primeira coloca que não ia ao

banheiro ou o fazia quando todos estavam em sala (em momentos estratégicos), a

segunda expõe as tentativas de agressão física e tentativas de violência sexual.

Ademais, a proposição oferecida na escola de uma amiga de Mônica, a utilização

de banheiro separado, também não é aprovada pela entrevistada. Essa tentativa,

para nós, também não pode ser vista como solução, visto que mantém nas relações

sócioespaciais as bases desiguais, porém retomaremos essa temática com mais

detalhes no próximo capítulo.

Dialogamos também com Silva e Junckes (2009) que enfatizam as “trocas

simbólicas de exercício de identidade de gênero” que permeiam este espaço. De

forma, as pessoas que subvertem o padrão binário “são excluídas do ritual ou

incorporadas de forma subordinada, inferiorizada” (p.162). Dentre os rituais aos

quais os autores fazem referência citamos as performances masculinas, das quais

pela não identificação de gênero, as travestis não fazem parte.

44

Conforme o exposto na introdução desta pesquisa, realizamos um encontro em grupo composto

pelas colaboradoras vinculadas ao projeto Vira-Vida no qual além de apresentar nosso trabalho foi

possível observar, principalmente através das participações (perguntas e comentários) alguns

elementos que compunham o cotidiano das entrevistadas no período escolar

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A partir do texto “Basura y género, Mear/ Caga. Masculino/ Femenino”

de Preciado (2009) é possível fazer provocações a respeito de quais seriam de fato

as “funções” do banheiro? De forma que um local para ‘despejo de dejetos’ acaba

convertendo-se, através de inscrições simbólicas em lugar para controlar e

reafirmar no sentido de refazer, reiterar as normativas de gênero. A autora

exemplifica ainda através dos símbolos nas portas que podem ser imagens (como

um bigode e uma flor) ou mesmo palavras (damas e cavalheiros) representantes de

um dos pólos que estruturam a norma.

Assim, a advertência a qual Preciado (2009) recorre no texto “Eh, usted:

se ha equivocado de baño, los de caballeros están a la derecha” chama atenção

para vigilância exercida também por quem está utilizando o banheiro feminino. A

partir de símbolos inscritos nos corpos esta vigilância se concretiza no julgamento

se há ou não coerência entre corpo e gênero. Para nós, assim como outras

aprendizagens (curriculares), os banheiros da escola também se fazem exemplo da

vigilância e das aprendizagens normativas45

. Traçamos um diálogo com a teoria a

partir das colocações das entrevistadas: Monica, Priscila e Rosa, que afirmaram

que as próprias meninas não gostavam que elas utilizassem aquele banheiro.

A quadra e as aulas de educação física: Um exercício para corpos disciplinados

A nossa preocupação em abordar os espaços da escola, destacando as

memórias do grupo focal e estabelecendo as relações entre os processos de

normatização ancorados nas concepções de gênero, quando especificamente

relacionados à educação física são marcados desde as práticas cotidianas,

exemplificadas pela divisão da turma em dois grupos (meninos e meninas), até as

próprias concepções que segundo Louro (2012) estão atreladas a um processo de

individualização que colabora com avaliação dos corpos, assim, geralmente, nas

palavras da autora:

45

Entendemos, porém que o banheiro enquanto espaço significado através das relações de gênero

e práticas sexuais possui outras “funções”, até mesmo contraditórias ou subversivas estas, porém

serão abordadas no próximo capítulo, em função do enfoque teórico que busca estabelecer o

diálogo entre os “novos usos” e as criatividades queer.

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Estratégias típicas da aula permitem que o professor ou professora exercite um

olhar escrutinador sobre cada estudante, corrigindo sua conduta, sua postura

física, seu corpo, enfim, examinando-o constantemente. Alunos e alunas são aqui

particularmente observados, avaliados e também comparados uma vez que a

competição é inerente à maioria das práticas esportivas (LOURO, 2012, p.79).

Portanto, apesar de já termos defendido que a escola básica falou e fala de

sexualidade, não apenas reproduz, mas também produz concepções de gênero.

Corroboramos com Louro (2012) que o momento da educação física “parece ser

um palco privilegiado para manifestação de preocupação com relação à

sexualidade das crianças” (p.78). É nesse contexto que traremos as falas das

entrevistadas, onde sete (do total de nove) relataram que durante o seu período

escolar, as aulas eram divididas entre “meninos” e “meninas” durante a prática de

esportes.

De forma que nos propomos a pensar através das expectativas

(construídas) que compõem as diferenças entre os gêneros e o espaço da quadra,

quando usado para aula da disciplina em questão. Para isso, nos remetemos às

expectativas que permeiam as masculinidades e sua relação com a prática de

esportes, assim dialogamos com Louro (2012) que ao discutir a formação dos

meninos, aponta que para eles os exercícios físicos aparecem como “naturais” ou

“instintivos”.

Entretanto, ao transgredir as normas binárias de gênero, os corpos travestis

deixam de ser inteligíveis, o que subverte e desvela as limitações desse cenário de

avaliação, em relação ao grupo focal. Utilizamos as entrevistas realizadas com Bia

(2015) e Tamara (2015) para exemplificar a obrigatoriedade de realizar as

atividades em conjunto com os meninos:

Ah, na educação física eu era um desastre! Mas por mais que eu não fosse boa eu

tentava, por exemplo, nos primeiros dias eu tentava jogar futebol, mas ficava

nítido pra todo mundo que não dava, porque se eu ficava na linha eu só me

machucava, no gol eu não conseguia pegar a bola, só sofria frango, aí os outros

meninos começavam a falar “tira o viado”... “mas é uma moça mesmo” (Bia, em

entrevista realizada em janeiro de 2015).

Eu detestava a educação física meus irmãos faziam e eu não. Eles adoravam

futebol, aliais, diziam que “homem que é homem tem que gostar de futebol,

jogar, assistir, ter um time... aí que eu ficava pior, eu era horrível e acho que

todos percebiam uma “áurea rosa” em mim (Tamara, em fevereiro de 2015).

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De forma que as falas exemplificam a importância conferida às atividades

para afirmar a masculinidade (construída) a exemplo do futebol (que deve ser bem

jogado ou ao menos inspirar interesse, torcida). Além disso, diante de um

desempenho abaixo do esperado, as entrevistadas colocam a associação ao

feminino (desvalorizado) ou a homossexualidade, que acabam tornando-se

motivos para piadas e insultos.

Além disso, outro aspecto a ser observado, com base nos trabalhos de

campo, foi que a impossibilidade de fazer as aulas junto com as meninas não foi

apenas vinculado a uma questão de prática esportiva diferenciada, ou seja, uma

preferência de jogar vôlei ao invés de futebol, por exemplo. Esta representou

também uma obrigatoriedade de convívio com os meninos. De forma que

recorremos à fala da entrevistada Luciana, para exemplificar também as

colocações de Tamara e Rosa, “eu tinha verdadeiro pânico da educação física

porque as meninas não estavam lá pra me defender” (Luciana, entrevista realizada

em janeiro de 2015).

Essa relação de “defesa” colocada em função do convívio com o grupo das

meninas nos remetem a discussão de Costa (2011) sobre as ‘microteriorializações

de sujeitos orientados para o mesmo sexo46

’, onde o autor afirma que as

expressões que não estão adequadas à norma ainda precisam de uma “apropriação

grupal do espaço público” com a finalidade de defender os sujeitos que sozinhos

estariam mais vulneráveis às violências. Dessa forma, guardamos as devidas

proporções em função das distinções entre os espaços da escola e da rua e, além

de não pretendermos também discutir os tipos (ou “gravidade”) das violências,

contudo acreditamos que este seja um elemento importante para trabalhar os

sentimentos vinculados a este momento/espaço e a territorialização da prática

esportiva vinculada ao gênero.

Em consonância com a argumentação que vincula a prática esportiva ao

sentimento de isolamento por não estar próximo ao grupo das meninas,

46

Destacamos que mesmo que o autor refira-se a sujeitos orientados para o mesmo sexo, não

fazendo menção especificamente às subversões de gênero, acreditamos que o diálogo seja profícuo

tanto por entendermos as transformações dos corpos travestis como um processo iniciado (mas não

concluído) nesse momento/espaço da escola, quanto por evidenciar as microterritorializações em

função dos desejos e afetividades, que não se encaixam a norma.

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dialogamos também com Tuan (1980), quando discute a familiaridade envolvida

entre os seres humanos pertencentes a um grupo, que segundo o autor implica no

reconhecimento entre “nós” e “eles” relacionando-se, por conseguinte as

diferenças entre o “lugar familiar” e “território estranho”.

Dessa forma, a masculinidade vinculada à observação dos corpos

representa a reprodução da construção linear e binária que conjuga sexo e gênero

como uma justificativa para separação das turmas, conforme é possível observar

ao longo das entrevistas realizadas com Priscila e Mônica:

Eu odiava a educação física. Eu repeti por causa disso, não ia às aulas. A

professora não me deixava fazer aula com as meninas. Ela era escrota e me falou

que eu tinha um “piru” no meio das pernas, então deveria fazer aula com os

meninos, querendo ou não. Eu nem levava roupa pra trocar, ficava sentada

olhando e ela me dava falta (Mônica, entrevista realizada em fevereiro de 2015).

Eu não fazia aula de educação física e a professora sabia o por quê. Com essa

professora, fiz aula só uma vez e como eu não queria fazer aula com os meninos

ela me colocou pra correr sozinha enquanto todo mundo olhava. Fiquei com

vergonha e fui. Depois disso não fiz mais aula, assim eu também evitava de ter

que ir ao vestiário (Priscila, entrevista realizada em fevereiro de 2015).

Até tinham uns meninos que ficavam até tarde lá [no vestiário] para olhar os

outros tomando banho, isso já no final porque “só os que gostavam” ficavam até

tarde. Mas eu nunca gostei, tinha medo, vergonha. Não fazia aula e já evitava isso

também, não precisava ir pro vestiário (Mônica, entrevista realizada em fevereiro

de 2015).

Assim, o destaque dado à genitália na fala de Priscila e o relato de Mônica

que afirma não fazer as aulas por um “motivo conhecido” da docente, novamente

são relacionados à concepção de corpo essencializada, que conjuga a definição de

masculino a presença do pênis.

Entretanto, não vamos aprofundar as discussões sobre as práticas

vinculadas aos vestiários, pois durante os relatos das entrevistadas esta

espacialidade foi evidenciada apenas por Mônica, à medida que as demais ou

recusavam-se a fazer as aulas e com isso evitavam trocar de roupa47

ou colocaram

47

Priscila e Mônica afirmaram durante grande parte do período escolar não faziam as aulas de

educação física; Luciana, Tamara e Bia colocaram que após o início do ano letivo já começavam a

justificar as faltas ou tentar alguma forma de dispensa das aulas, o que é desatacado pela fala de

Tamara “o professor de educação física era o mesmo, então depois de muita justificativa furada,

ele mesmo não me cobrava mais presença, ele e eu sabíamos qual era o meu “problema” (Tamara,

entrevista realizada em fevereiro de 2015). Assim, apesar dos questionamentos de outros alunos

sobre a ausência de Tamara das aulas práticas a mesma fazia trabalhos para justificar a nota. Essa

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que pela ausência de vestiário, as trocas quando feitas ocorriam nos banheiros,

que já discutimos neste capítulo.

Apontamos, apesar das ressalvas feitas na nota nº47, como ponto de

confluência as tensões vividas em função da não adequação de corpos e

identificações à lógica binária em relação a espaços e práticas cotidianas. O que

nos remete a discussão de Veiga-Neto (2014) sobre os desdobramentos que

relacionam o poder disciplinar a construção de corpos dóceis, porém sem que isso

implique em sinônimo de obedientes, pois para ele significa:

falar em corpos maleáveis e moldáveis; mas não se trata, aí, de uma modelagem

imposta, feita à força. Ao contrário, o que é notável no poder disciplinar é que ele

“atua” ao nível do corpo e dos saberes, do que resultam formas particulares tanto

de estar no mundo – no eixo corporal – quanto de cada um conhecer o mundo e

nele se situar no eixo dos saberes (VEIGA-NETO, 2014, p.71).

Assim, a fala do autor coaduna com a importância das inscrições

simbólicas (para nós, feitas nos espaços da escola) que reiteram as normas de

gênero, a exemplo do que foi discutido através dos binarismos exemplificados nos

banheiros e nas aulas de educação física. Recorremos ainda ao mesmo autor para

trabalhar as subjetividades presentes nas práticas reproduzidas nesses espaços

(somados ao pátio), que ao representar aprendizagens, reiteram, fazem parte e

produzem as naturalizações das divisões entre meninos e meninas na escola

básica.

Entretanto, por esses mesmos corpos não serem “obedientes” ou inertes,

sugerimos que a partir das vivências cotidianas existem possibilidades de

resistências e subversões, entendidas desde as produções dos corpos às

criatividades que dão novos usos aos espaços. Assim, no próximo capítulo

analisaremos discursos e lugares nas suas relações com a diferença, sendo esta

trabalhada conforme propõe Silva, T (2013) como um ponto de chegada, ou seja,

nos referimos à diferença que constrói as relações socioespacias e não apenas

como produto das mesmas.

experiência da elaboração de trabalhos escritos para substituir as práticas foi relatada também por

Luciana e Bia, pouco antes de saírem da escola. Portanto, destacamos que para evitar

generalizações fizemos uma breve descrição que visa fornecer elementos para compreensão do

espaço da quadra, vinculado à educação física.

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