3. O corpo que desafia a escola - A transgressão travesti · a importância do reconhecimento das...
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3. O corpo que desafia a escola - A transgressão travesti
A discussão que perpassa a construção dos corpos transgressores da
heteronormatividade possui, para nós, forte relação com as espacialidades vividas,
conforme defendemos no capítulo 1. Assim, estabelecemos um paralelo entre as
interdições experimentadas pelas travestis e um processo de “montagem” do
corpo que materializa a não conformação ao padrão binário. E, neste momento, a
fim de darmos prosseguimento aos questionamentos que desestabilizam (a partir
da compreensão dos elementos discursivos), estruturam e reafirmam ‘as verdades
basilares’ de organização do espaço, voltaremos a nossa atenção à escola básica.
A ideia ancorada no que compõe feminilidades e masculinidades faz da
escola mais que um espaço de transmissão de conhecimentos ou de sociabilidades,
no período da infância/adolescência. Corroboramos com Louro (2010) quando a
autora discute, pela crítica à formação de ‘homens e mulheres de verdade’, a forte
carga simbólica que as concepções de gênero conferem às aprendizagens que nos
remetem ao que foi construído como uma das principais funções da escola,
registradas inclusive nas memórias da autora, através da produção “de um homem
e de uma mulher ‘civilizados’ capazes de viver em coerência e adequação”
(LOURO, 2010, p.18). Dessa forma, argumentaremos que este se torna também
um espaço de regulação, atravessado por normas que permeiam a ‘educação’ dos
corpos.
A partir da ideia de Louro (2010), sobre a formação de homens e mulheres
civilizados, destacamos a obrigatoriedade estabelecida na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – LDB (Lei n° 9.394/ 1996)33
, que aponta no Art.
22° como finalidade da educação básica “desenvolver o educando, assegurar-lhe a
formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe
meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”.
Assim, mesmo que não façamos uma discussão profunda do conceito de
cidadania, recorremos a Gorczevsk e Martin (2011) tanto para apontar uma
cidadania que nas suas origens não contemplou bases iguais para homens e
33
Disponível em: portal.mec.gov/arquivos/pdf/ldb.pdf (Acesso realizado em março de 2015)
52
mulheres34
, quanto para a partir da concepção de “nova cidadania” compreender
a importância do reconhecimento das identidades de gênero e a orientação sexual,
para os autores sob as bases do multiculturalismo35
.
Assim, a partir de Louro (2010) consideramos a escola um espaço
atravessado pelo gênero, onde as reflexões sobre as construções sociais do
masculino e do feminino ganham sentido desde a sua estrutura, onde salas de aula,
corredores, banheiros e a organização da educação física nos indicam uma ordem
que se relaciona com as práticas educativas. Essas construções, pautadas em
relações de poder, conforme colocou Foucault (1988), mostram a importância de
pensar esse espaço como produtor de discursos, ou seja, para nós, estrutura e
práticas cotidianas falam de gênero, reproduzem hierarquias e fazem parte do
ambiente de formação de crianças e adolescentes.
Dessa forma, a contribuição de Foucault (1988) no que tange à escola,
enquanto instituição protagonista na regulação, conformação e disciplinamento
dos corpos será problematizada à luz das relações de poder que estão impressas
nas memórias das travestis neste tempo/ espaço. Nesse sentido, o corpo enquanto
lugar de afirmação da identidade é marcado nessa espacialidade tanto pelas
transmissões de conhecimento e práticas de comportamento quanto pelas
resistências materializadas desde pequenas subversões. A escolarização dos
corpos não fala assim apenas dos conteúdos curriculares, ela expressa um padrão
concebido de homem e mulher, e reafirma a heterossexualidade como uma norma
a ser seguida.
34
O conceito de cidadania, que segundo Gorczevski e Martin (2011), esteve limitado a uma noção
permeada de privilégios e desigualdades contidas na escolha ou definição de quem era considerado
cidadão não foge ao padrão hegemônico estabelecido do homem branco heterossexual. 35
Apesar das críticas, que podem ser encontradas no próximo capítulo, entre a associação do
multiculturalismo e do ‘respeito à diversidade’, consideramos relevante a proposta de Gorczevski e
Martin (2011) sobre uma cidadania que para ser exercida na plenitude garante a liberdade de
manifestação e de identidade individual, sem que para isso, sejam excluídos da participação
coletiva, como reiterado na passagem a seguir: “não obstante a existência de processos coletivos
de socialização, a identidade individual está assegurada, respondendo a livre decisão de cada
indivíduo, no pleno exercício da sua autonomia de vontade” (GORCZEVSKI; MARTIN, 2011,
p.99). O que na relação com o espaço escolar, além de pretender a participação de todos, pois
segundo os autores só assim é possível desfazer as relações com privilégios (contidos na cidadania
excludente de outros tempos) firma um compromisso com a redução das desigualdades
experimentadas em função dos marcadores de gênero e sexualidades.
53
Assim, as normas regulatórias de gênero perpassam vivências, currículos e
memórias assentadas nesse espaço, ou seja, os conteúdos ensinados e repetidos
não estão desvinculados dos deboches e violências dirigidos a quem não se
adéqua ao padrão binário, visto que a ausência das práticas mais básicas como a
do uso do nome social36
ou do simples ato de se ir ao banheiro (reprodução da
polarização espacial homem/mulher ao pautar a educação básica na linearidade
entre sexo, gênero e desejo), reflete a necessidade de se repensar a escola como
um lugar que, conforme entendeu Foucault (1988), sempre falou, da forma mais
exaustiva, da sexualidade das crianças. Segundo esse autor:
Seria inexato dizer que a instituição pedagógica impôs um silêncio geral ao sexo
das crianças e dos adolescentes. Pelo contrário, desde o século XVIII ela
concentrou as formas do discurso nesse tema; estabeleceu pontos de implantação
diferentes; qualificou os interlocutores. Falar do sexo das crianças, fazer com que
falem dele os educadores, os médicos, os administradores e os pais
(FOUCAULT, 1988, p.36).
Nesse sentido, cabe a análise de como as hierarquias de gênero estão
presentes no espaço escolar, pois a multiplicação discursiva do sexo ‘se comporta’
de diferentes formas em espaços distintos, ou seja, concordamos que a escola fala
(e sempre falou) das normas regulatórias de gênero, mas ela o faz de forma
particular, escolhe e prepara quem pode falar, reproduz a organização binária em
sua estrutura e impõe através da disciplinarização dos corpos o lugar adequado a
cada um, a exemplo da definição de horários para os ‘pequenos’ e os ‘grandes’ no
recreio; além de reproduzir as expectativas de comportamento para meninos e
meninas, naturalizando e construindo, através de uma leitura que se apropria da
biologia, um discurso linear entre a sexualidade e os desejos.
Portanto, a sexualidade compõe este espaço, apesar de silenciada,
reprimida e controlada, de forma que as concepções de gênero dão o tom da
linearidade que estrutura a sociedade e que será, neste capítulo, mais uma vez
36
Segundo Junqueira (2010), quando discute a importância do no nome social no âmbito escolar:
“o nome social não é um apelido e representa o resgate da dignidade humana, o reconhecimento
social da legitimidade de sua identidade tal como ela se percebe” (p.6). Destacamos a partir de
Rasera, Rocha e Teixeira (2012) que o nome social quando atrelado aos serviços de saúde cumpre
uma estratégia de reconhecimento que legitime no contato com o outro “uma existência subjetiva e
social”, ademais os autores acreditam ainda que a iniciativa do Ministério da Saúde (em resposta
as pressões sofridas) tenha colaborado para deflagrar outras “leis municipais e estaduais referentes
ao uso do nome social nas escolas” (p.174). Portanto, as normativas que envolvem o uso do nome
social, nos espaços da escola ou da saúde, refletem notadamente a necessidade de reconhecimento
identitário.
54
deslocada a fim de dar a visibilidade a outras identidades. Portanto, pretendemos
discutir o espaço escolar e seu vínculo com os conceitos de gênero e sexualidades
para, desta maneira, pensar na dimensão pública da escola enquanto direito
fundamental de todos, o que vai de encontro com a marginalização experimentada
por quem não se adéqua ao padrão binário e heteronormativo.
3.1. O papel da escola na construção do corpo ideal para a sociedade heteronormativa
A escola pode ser pensada como uma instituição que difere os sujeitos e
colabora com a construção de classificações. Dessa forma, a própria frequência já
se configura como uma maneira de distinção, pois segundo Louro (2012) estas
seriam as diferenças “externas”, uma vez que o critério seria quem frequentou ou
quem não frequentou a escola. O tratamento dirigido em função do nível de
escolaridade, na busca de emprego ou mesmo na obtenção de um status é um bom
exemplo. Além disso, no interior do ambiente escolar também são construídas
formas de classificação, ou seja, a partir das distinções entre meninos e meninas,
negros e brancos, homossexuais ou heterossexuais as trajetórias espaciais serão
marcadas pelas diferenças, porém, nossa proposta é analisar como essas
diferenças tornam-se desigualdades.
A discussão de identidade e diferença, nesse momento, contribui na
problematização do que nomeamos como diferente e para isso recorremos a Silva,
T. (2013), que faz uso do arcabouço da linguística para mostrar de que forma a
negação do outro está presente na construção da identidade, de maneira que a
afirmação cotidiana, por exemplo, do não gostar de roupas de menino, afirma
simultaneamente o gosto por roupas de menina. Já as desigualdades materializam-
se na utilização dessas diferenças em um determinado contexto de valorização /
desvalorização, possibilitando compreender de que forma são construídos os
discursos de exclusão quando se trata de alguém que contraria as expectativas que
relacionam sexo e gênero, em um ambiente heteronormativo e binário.
Assim, para pensar a inteligibilidade do corpo travesti é preciso entender
as construções que o excluíram e os espaços que lhes foram interditados. Para nos
referirmos à inexistência do corpo travesti na escola, o faremos a partir de um
55
diálogo com Foucault (1988), que assim considera “o que não tem direito a
manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra que enuncia sua inexistência”
(p.94). Pensando no exemplo anterior – a ‘obviedade’ da escolha entre roupas de
menino e roupas de menina diretamente ligadas às identidades masculinas e
femininas - excluímos a possibilidade de compreensão de um corpo que não se
adeque à polarização dominante. Afinal, o gosto por determinada roupa
condiciona sexo e gênero? Não pretendemos aqui nos debruçar sobre juízos de
valor e sim nos questionar onde estão essas identidades no espaço escolar.
Nesse sentido, as relações de poder estão materializadas na
impossibilidade de se pensar além da lógica binária, em que a associação
compulsória entre sexo feminino e expressão de gênero feminina, por exemplo,
(vistas, hegemonicamente, como a única possibilidade de constituir-se enquanto
sujeito e integrar a sociedade), condicionam a inexistência do corpo travesti nesse
espaço, até mesmo no nível da linguagem, do pensado e dito.
É importante, portanto, retomar as definições de corpo neutro e corpos
marcados feitas por McDowell (2000). Para essa autora, as marcas são impostas
pelas relações desiguais materializadas espacialmente, ou seja, a matriz de
pensamento heterossexual distingue os corpos transgressores quando estes tornam
pública sua orientação sexual. E a função da escola de regulação e
disciplinamento dos corpos muito nos diz sobre as formas de moldar e escolarizar
as atitudes, em função do padrão concebido em outra escala, mas que carece da
repetição cotidiana para se afirmar.
Essa repetição cotidiana a fim de controlar os corpos e reiterar o padrão é
necessária, segundo Louro (2010), pois estas não são superfícies inertes e
passivas, onde são apenas inscritas normas regulatórias. A concepção de poder
trabalhada por Foucault (1988) já nos chama atenção para a resistência na
construção da sexualidade. E, nesse sentido, a discussão sobre o corpo travesti e o
espaço escolar pode ser entendida a partir da relação estabelecida por Butler
(2010), que aponta que a construção pautada nos constrangimentos e regulações
nunca se completa, pois “os corpos não se conformam, nunca completamente, às
normas pelas quais sua materialização é imposta” (BUTLER, 2010, p.154).
56
A heteronorma não está expressa apenas na escola, todavia de acordo com
a afirmação de Facco (2011), como essa instituição compõe um microuniverso
social acaba por reproduzir as práticas discriminatórias oriundas do padrão
heteronormativo em suas salas de aula, pátios, corredores ou banheiros. E em
consonância com as relações desiguais de poder, os argumentos pautados nas
ciências biológicas e médicas se apresentam como verdades que embasam as
justificativas para patologização do corpo travesti e para as explicações entre as
diferenças físicas e ‘comportamentais’ de meninos e meninas.
O lugar de socialização, aprendizagens e pertencimento torna-se então
muitas vezes, segundo Silva (2008), um “treinamento” para a vida das travestis,
por dar mostras da violência que será sofrida mais tarde, em outros espaços. A
preocupação de educar os corpos relaciona-se, dessa maneira, à internalização do
certo e errado, ou do normal e anormal, e isto é inscrito nos corpos e repetido nas
expressões de afeto heterossexuais que são consentidas no espaço público. Na
escola, as relações afetivas devem ser ocultadas, notadamente aquelas que não
correspondem aos anseios dominantes na sociedade.
Na escola despreparada para discussão sobre corpos e sexualidades, o
ocultamento surge muitas vezes como uma tática do estigmatizado que pretende
evitar a violência. Quando de forma contrária este assume o “lugar da
ambiguidade”, “a fronteira” nos termos de Louro (2013), há a desorganização e
divisão do ambiente. Segundo Facco (2011), “ninguém sabe muito bem o que
fazer diante daquele corpo que, ao desafiar o padrão, o modelo reprodutivo de
sexualidade, coloca em xeque essa normatividade, fazendo com que alguns a
questionem” (p.27).
A escola trabalhada aqui é então produtora de verdades, espaço de
reafirmação de normas, criadora de discursos e, para isso, conta com o que
Foucault (1988) nomeou de ‘qualificação dos interlocutores’ através de uma
relação de poder pautada no saber, nos conhecimentos trabalhados e nos sujeitos
“exemplares” que figuram as aulas e materiais didáticos. Assim, essas configuram
formas de repetir o imperativo heterossexual e invisibilizar “os outros” no espaço
escolar. Nas palavras de Foucault (1971), essas se apresentam como táticas de
controlar os discursos:
57
Existe, creio, um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controle dos
discursos. Não se trata desta vez de dominar os poderes que eles detêm, nem de
exorcizar os acasos do seu aparecimento; tratase de determinar as condições do
seu emprego, de impor aos indivíduos que os proferem certo número de regras e
de não permitir, desse modo, que toda a gente tenha acesso a eles. Rarefacção,
agora, dos sujeitos falantes; ninguém entrará na ordem do discurso se não
satisfizer certas exigências, ou se não estiver, à partida, qualificado para o fazer
(FOUCAULT, 1971, p.10).
A ‘rarefação dos sujeitos falantes’ impõe assim novas hierarquias quando
nos referimos aos discursos sobre sexualidade. A não adequação não está restrita a
um pecado ou a um crime, pois estas leituras nos remetem a outros ambientes.
Porém, a qualificação dos interlocutores é fundamental para entender a relação
entre os espaços em que falamos ou não de sexo.
Assim nos chama atenção a afirmativa de Nikaratty (2013) de ter
apanhado na escola por não ser heterossexual, na frente de uma professora e esta
não ter feito nada para impedir. Assim, mesmo que não seja possível aprofundar
este assunto nesta pesquisa, destacamos a necessidade de repensar também as
formações não só docentes, mas de todo corpo técnico da escola com objetivo de
dar visibilidade às relações entre a vivência nesse espaço e as construções
identitárias nas suas relações com identidade de gênero e orientações sexuais.
O espaço escolar foi e é, portanto, intimamente relacionado à formação
dos sujeitos, constituindo-se um lugar composto por valores morais e que reitera
as normas regulatórias de gênero. Segundo Louro (2012),
À escola foi atribuída, em diferentes momentos, a produção do cristão; do
cidadão responsável; dos homens e das mulheres virtuosos/as; das elites
condutoras; do povo sadio e operoso, etc. Certamente não se esperava que ela
desempenhasse sozinha essas tarefas, embora, com muita frequência, elas lhe
fossem explícita e pontualmente endereçadas (p.94).
Assim, se as paredes, currículos e práticas escolares estão permeados por
concepções de gênero e sexualidade, aqueles colaboram com a formação de
homens e mulheres, marcando quem está à margem ou exerce uma ‘espacialidade’
pautada no corpo concebido como ‘neutro’ ou ‘normal’. Nesse sentido,
acreditamos que para entender a construção do corpo ideal para a sociedade
heteronormativa, não podemos negligenciar o espaço escolar. Voltamos à fala de
Louro (2012) para pensarmos na escola enquanto responsável (mesmo que não
58
isoladamente) pela reprodução da sociedade, mais uma vez evidenciando que a
experiência nesse espaço vai além dos conteúdos formais.
A organização espacial e a reprodução das normas de gênero estão
relacionadas tanto para manutenção dos corpos disciplinados quanto nas
transgressões que dão visibilidade a outras identidades e novas formas de
participar do cotidiano escolar. Consideramos, portanto, fundamental entender
como a organização escolar brasileira e as desigualdades de gênero contribuem
para produção de “homens e mulheres de verdade”.
Cartografias que falam de gênero: a organização escolar
Julgamos importante fazer uma breve análise da organização escolar
brasileira visando apontar momentos e espaços nos quais os marcadores de gênero
e sexualidade já se colocavam como elementos presentes na organização dos
espaços e na definição de currículos. Não pretendemos, porém, fazer uma
investigação profunda sobre a história da educação no Brasil, mas sim marcar
elementos que colaborem com a compreensão dos paralelos que faremos entre a
escola (estrutura e currículo) e o que entendemos como a construção dos padrões
de homens e mulheres na sociedade heteronormativa.
Desde o período colonial, segundo Ribeiro (1982), a escola já aparece
como um elemento de distinção social entre os ‘escolarizados’ e os ‘não
escolarizados’, assim a autora chama atenção para a característica excludente do
sistema de ensino, onde filhos de colonos e filhos de índios, por exemplo, terão
graus de instrução diferentes. Nesse contexto, a necessidade de escolarização de
uma minoria reflete a intenção de formar um grupo capaz de fazer uma mediação
com a metrópole.
Soma-se a isso, segundo Ribeiro (1982), a importância da religião,
notadamente na participação dos jesuítas que forneciam uma formação intelectual
com características rígidas na forma de pensar e interpretar a realidade. Além
disso, os recursos destinados à educação também ajudaram a traçar essas
hierarquias, pois, além do favorecimento aos filhos dos colonos, existia também,
segundo a mesma autora, uma predileção pelos futuros sacerdotes em detrimento
59
dos leigos. A religião marca, dessa forma, a educação tanto pela diferenciação
quanto pelo controle, através da catequese que propagava a fé católica e tornava o
índio mais “dócil”, civilizado.
As desigualdades atreladas ao gênero ficam a cargo da educação feminina
restrita ao “ensino de prendas domésticas e boas maneiras” (RIBEIRO, 1982,
p.29). Assim, as relações sociais constituídas que dão base para as classificações
vão sendo conjugadas ao sistema de ensino, diferenciam-se os que estudam e os
que não estudam, perpetuando-se as diferenças entre “filhos de colonos” e “filhos
de índios”. Ou seja, a identidade masculina é atravessada por outros marcadores
como o da raça. As hierarquias entre feminino e masculino também são
destacadas na diferença dos conteúdos trabalhados, assim com na base da relação
estabelecida por McDowell (2000) entre gênero, espaço público e privado.
Apontamos aqui para os cuidados domésticos (associados ao espaço privado) e os
conteúdos impostos às mulheres, que vão ao encontro da argumentação de
McDowell (2000):
Como ya he apontado, tales divisiones, especialmente las que separan lo público
de lo privado, siempre han estado asociadas a las divisiones de género, que,
supuestamente, son esferas <naturales> de cada uno de los sexos. Uno de los
mayores logros de los estudios feministas desde hace unos veinte años há sido
deconstruir y desnaturalizar tales divisiones (MCDOWELL, 2000, p.56) 37
.
Já no que Ribeiro (1982) chamou de fase Pombalina (1759-1827), a
mudança do ensino jesuítico para a valorização de uma formação voltada aos
interesses do Estado em detrimento dos religiosos, exemplifica um dos aspectos
das Reformas empreendidas. Essas tiveram, ainda, como um dos seus
rebatimentos uma formação “modernizada” em que a proibição do ensino público
ou privado sem licença, os exames para o exercício de docentes, foram
considerados pontos positivos, entretanto, novamente, as mudanças destinam-se à
elite colonial masculina.
Destacamos que o tipo de escola aqui trabalhada localizava-se, naquela
época, majoritariamente, nas casas dos professores e, segundo Cardoso (2003),
37
‘Como já apontei tais divisões, especialmente as que separam o público do privado, sempre
estiveram associadas às divisões de gênero que, supostamente, são esferas ‘naturais’ de cada um
dos sexos. Um dos maiores ganhos dos estudos feministas dos últimos vinte anos foi desconstruir e
desnaturalizar tais divisões’. Tradução literal da autora.
60
poucas vezes nas construções anteriormente ocupadas pelos jesuítas. Assim, não
há necessidade de um prédio para haver escola, apesar de existir por parte do
governo fiscalização da casa-escola, em relação a sua estrutura. Com relação ao
conteúdo, a segmentação por gênero é reiterada pela autora:
Quanto ao ensino do sexo feminino, seguia o que estipulava o art.6º, ‘com
exclusão das noções de geometria e limitando a instrução de aritmética só as
quatro operações’, de acordo com o artigo 12 da mesma lei, que por outro lado
determinava que as mestras ensinarão também as prendas que servem à economia
doméstica (CARDOSO, 2003, p.130).
A fala de Cardoso (2003) relaciona o ensino para as mulheres às prendas
domésticas, e nos possibilita pensar na naturalização entre espaço privado e sexo
feminino. Para direcionar essa associação ao espaço escolar, destacamos a partir
de Louro (2012), que consideramos as distinções entre atividades de meninos ou
de meninas como construções sociais. E com base nisto, posteriormente
compreendemos as naturalizações que atravessam os espaços, e marcam as
relações com o feminino ou o masculino.
Além disso, a reflexão de McDowell (2000) pode ser enfatizada pela
colocação de Bourdieu (2012), visto que quando aquele autor discute a dominação
masculina o aponta como um dos seus princípios: a naturalização da visão
androcêntrica. E, para isso, é fundamental entender a relação entre espaço e
gênero, ou seja, as hierarquias construídas entre masculino e feminino são
também materializadas. De acordo com Bourdieu (2012), “é a estrutura do espaço,
opondo lugar de assembleia ou de mercado, reservado aos homens, e a casa,
reservada às mulheres” (p.18). O exemplo apresentado nos serve de base também
para pensar a própria organização dos espaços no interior da escola, como
meninos e meninas se organizavam para além da sala de aula ou ainda quais as
definições de atividades desempenhadas e lugares de preferência, sem abdicar da
sua relação com o que foi concebido em função do gênero. Pretendemos, dessa
forma, indicar o quanto a cultura interfere nas escolhas e gostos, que muitas vezes
foram associados apenas à condição biológica. Louro (2012) ajuda a perceber
essas naturalizações, relacionando-as ao espaço escolar. Nas palavras da autora:
Tal “naturalidade” tão fortemente construída talvez nos impeça de notar que, no
interior das atuais escolas, onde convivem meninos e meninas, rapazes e moças,
eles e elas se movimentam, circulem e se agrupem de formas distintas.
61
Observemos, então, que eles parecem “precisar” de mais espaço que elas,
pareciam preferir “naturalmente” as atividades ao ar livre. Registramos a
tendência nos meninos de “invadir” aos espaços das meninas, de interromper suas
brincadeiras. E, eventualmente, consideramos tudo isso, de algum modo inscrito
na “ordem das coisas” (p.64).
Assim, o ensino das prendas domésticas citadas por Cardoso (2003) são:
bordar, marcar, coser, música e dança, o que nos coloca a importância do espaço
privado para construção do que se espera do feminino e da sua espacialidade
marcando, especificamente, o espaço da casa como seu lugar. Essas mesmas
aprendizagens já nos indicam, porém, a existência de ‘mestras’, visto que as
mulheres ficariam responsáveis por ensinar as turmas femininas.
A função docente, apesar de constar de concurso para o exercício, requer
dos interessados “atestados necessários sobre a sua boa conduta, fornecidos pelo
pároco e pela polícia, além de outros atestados opcionais, todos recomendando o
candidato para o cargo pretendido” (CARDOSO, 2003, p.133, 134). Os valores
morais avaliados para a contratação de professores reforçam a importância que a
escola possui na manutenção dessas regras e, mais que isso, no papel do professor
como um exemplo. A reflexão de Louro (2012) nos serve de base para
compreender a relação entre a reprodução dos padrões de comportamento e a
importância da figura do docente:
Não basta que o mestre seja conhecedor dos saberes que deve transmitir, mas é
preciso, que seja ele próprio, um modelo a ser seguido. Por isso o corpo e a alma
dos mestres, seus comportamentos e seus desejos, a sua linguagem e seu
pensamento, também precisam ser disciplinados. O mestre – e o jesuíta é o
exemplo mais perfeito – é cuidadosamente preparado para exercer o seu ofício
(LOURO, 2012, p.96).
Já no período republicano destacamos, com base em Ribeiro (1982), a
Reforma Benjamin Constant, por seus princípios de liberdade e orientação de um
ensino laico em detrimento de outro religioso e pela gratuidade da escola
primária. Entretanto, os altos índices de analfabetismo ainda marginalizavam boa
parte da população, reiterando, como forma de classificação, os ‘incluídos’ e os
‘excluídos’ do sistema escolar.
Assim, segundo Ribeiro (1982) a tensão entre a manutenção de uma
pequena parcela instruída da população e o ideário republicano de participação
62
política38
no qual o mínimo de conhecimento era necessário, até mesmo pelo
contexto de desenvolvimento que exigia ao menos o letramento, representam,
entretanto, continuidades, pois atendem aos interesses de uma elite local. Nesse
sentido, a educação passa a ser também considerada uma ferramenta importante
na busca da superação de um sistema pautado na ignorância popular.
Dessa forma, na fase anterior ao governo Getúlio Vargas, segundo Ribeiro
(1982), a assimilação da Escola Nova marcou a exigência de uma democratização
do ensino, ou seja, da ampliação da rede de instituições. Isto não representa,
entretanto, que a figura da mulher tenha deixado de ser invisibilizada tanto nos
textos de referência, que fazem menção ao “homem brasileiro”, quanto nas
discussões relacionadas à necessidade de uma ‘escola primária integral’. O
exemplo da reforma vivida no ensino primário baiano ilustra essa ausência no
debate:
Será sobretudo educativa buscando exercitar nos meninos os hábitos de
observação e raciocínio, despertando-lhes o interesse pelos ideais e conquistas da
humanidade ministrando-lhes noções rudimentares de literatura e história pátria,
fazendo-os manejar a língua portuguesa como instrumento de pensamento e
expressão” (NAGLE, 1974, p.212 apud RIBEIRO, 1982, p.94).
As questões de gênero relacionam-se, assim, com a história da organização
escolar brasileira, na qual destacamos a invisibilidade da mulher nos textos que
nortearam as mudanças curriculares, visto que as modernizações no campo
educacional relacionavam-se com o desenvolvimento do país, especificamente
ligado às transformações iniciadas na estruturação de um modelo nacional-
desenvolvimentista, que valorizaria a industrialização. Isto relaciona novamente
espaço público e a ausência do feminino, e nos traz a naturalização de um espaço
por excelência do homem, ou seja, é ele quem precisa estar preparado para atuar.
A preocupação com a democratização do ensino perpassa, segundo
Magaldi (2003), a organização de um sistema nacional de educação e uma nova
38
Ribeiro (1982) coloca que a escassez de informações estatísticas relativas à educação aponta
para o que chamou de ‘não prioridade’ ou desinteresse “em relação à organização escolar com
objetivo de atender à população em sua totalidade” (p.80). Entretanto, é possível colocar que nesse
período o desenvolvimento do ensino primário exprime a seguinte relação por mil habitantes: 18
em 1889, 41 em 1920, 54 em 1932. Dessa forma, apesar de triplicar o número de alunos que
ingressaram no ensino primário no período, ainda segundo Ribeiro, isso não representou mais que
o atendimento de um terço da população.
63
concepção para o próprio ato de educar que, neste momento, acaba por ser
pautado em uma perspectiva mais científica. De forma que a exemplo das novas
concepções de higiene e saúde pública, que deveriam ser trabalhadas nas escolas e
repetidas no espaço da casa, favorecem a atuação das mães como agentes de
civilização. Para o exercício desta atividade, segundo a mesma autora, existe a
necessidade da realização de reuniões periódicas, a fim de ‘formar’ as mães e, de
alguma maneira, padronizar as falas e reforçar o discurso da escola.
Observamos neste contexto uma inversão no papel da mulher que,
historicamente marginalizada na produção do conhecimento, agora exerce um
papel de centralidade nas relações de poder, notadamente atrelada ao espaço da
casa. Assim, o ‘ato de educar’ passa pela atuação da mãe, enquanto responsável
pelo cuidado com a educação do filho. As espacialidades da escola e da casa são
compreendidas como complementares na formação dos indivíduos.
Voltamos a nos questionar sobre as formas de atuação do poder no espaço
escolar, afinal centro e margem variam em função do gênero e são alterados
também em relação ao foco de análise, visto que a mesma escola que protagoniza
uma construção de conhecimento masculina abriga a centralidade do feminino na
relação com os ‘atos de educar’, uma prática cotidiana fundamentalmente
formativa. Louro (2012) dedica um capítulo do seu livro para discutir o ‘gênero da
docência’ e faz uma análise sobre a relação gênero / escola:
a atividade escolar é marcada pelo cuidado, pela vigilância e pela educação,
tarefas tradicionalmente femininas. Além disso, os discursos pedagógicos (as
teorias, a legislação, a normatização) buscam demonstrar que as relações e as
práticas escolares devem se aproximar das relações familiares, devem estar
embasadas em afeto e confiança, devem conquistar a adesão e o engajamento dos/
as estudantes em seu próprio processo de formação. Em tais relações e práticas, a
ação das agentes educativas devem guardar, pois, semelhanças com a ação das
mulheres no lar, como educadoras de crianças e adolescentes. Ao contrário,
dizem outras/os, a escola é masculina, pois ali se lida fundamentalmente com o
conhecimento – e esse conhecimento foi historicamente produzido pelos homens
(LOURO, 2012, p.92, 93).
Através das desigualdades de gênero é possível perceber diferentes formas
de viver o espaço, porém, mais que isso, a experiência espacial varia também nas
relações sociais estabelecidas, de forma que “cuidado”, “afeto” e “família” trazem
para o feminino (ou melhor, para o que assim foi construído como feminino),
64
outra forma de participar da escola. Os conhecimentos curriculares historicamente
ocultados para as mulheres não anulam os saberes transmitidos no espaço da casa.
Nesse sentido, mais do que a herança das “prendas domésticas” que compõem os
conteúdos restritos às meninas, vemos nos ‘atos de educar’ uma forma de
tensionar as relações de poder no espaço escolar.
No caminho dos tensionamentos entre gênero e escola, o ‘Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova’, de 1932, escrito por Fernando de Azevedo e
assinado por vários professores, destaca a compreensão da educação como “uma
função social e um serviço essencialmente político que o Estado é chamado a
realizar com a cooperação de todas as instituições sociais” (RIBEIRO, 1982,
p.101).
E a partir de Libâneo, Oliveira e Tschi (2012) acrescentamos que o
manifesto defendia uma escola pública, laica, obrigatória e gratuita o que coaduna
com a mobilização, apontada por Ribeiro (1982), em prol de uma educação
igualitária na qual não exista distinção entre os sexos, conforme o próprio texto do
manifesto:
O sistema escolar deve ser estabelecido nas bases de uma educação integral;
comum para alunos de um e outro sexo e de acordo com suas aptidões naturais;
única para todos, e leiga, sendo a educação primária (7 a 12 anos) gratuita e
obrigatória; o ensino deve tender progressivamente à obrigatoriedade até os 18
anos e à gratuidade em todos os graus (RIBEIRO, 1982, p.101).
Assim, o debate sobre a organização educacional brasileira opôs uma
orientação tradicional composta por educadores católicos, subordinados ao ensino
religioso e que apresentavam defesas em busca da manutenção da educação
segmentada pelo sexo, e outra representada, notadamente, por educadores
influenciados por “ideias novas”39
, que defendiam, ainda segundo Ribeiro (1982),
39
Essas ideias estão relacionadas ao movimento ‘Escola Nova’, que tem suas bases nas sociedades
europeia e norte-americana, e no Brasil, segundo Ribeiro (1982), representaram a busca por
adequar o rompimento com o modelo agrário a realidade escolar.
A teoria educacional, pautada no modelo Escola Nova, nos serve para refletir sobre os problemas
oriundos da adaptação de uma teoria a um espaço/ contexto social e político diferenciados. Assim,
Ribeiro (1982) faz uma crítica à ideia concebida de um ‘tipo ideal de homem’ que não leva em
consideração as desigualdades sociais experimentadas no Brasil, o que segundo a autora favorece
então o grupo dominante. Para nós, a crítica a um modelo de homem, em especial tendo como
contexto a organização escolar brasileira, está pautada nas desigualdades já problematizadas de
acesso à educação e nas relações hierárquicas de gênero construídas desde os tempos do ‘Brasil
colônia’. Assim, mesmo que a teoria argumente para uma nova forma de seleção com base nas
65
a laicidade, a coeducação, gratuidade e responsabilidade pública no sistema de
educação. Esse documento integra uma preocupação com a democratização do
ensino que teve início na república e que, em especial para a geografia, apresenta
rebatimento na garantia de acesso e na análise de políticas que preservem a
igualdade de direitos. É possível, dessa forma, traçar um paralelo entre as
discussões sobre os incluídos e os excluídos do sistema escolar, letrados e
analfabetos; e perceber que as hierarquias de gênero perpassaram essa trajetória.
A manifestação por uma educação igualitária em 1932, no tocante às
desigualdades entre os conteúdos ensinados a meninos e meninas tem
rebatimentos nos espaços naturalizados na vida adulta, ou seja, é para nós um
passo na direção da reivindicação, por repensar os lugares a partir dos novos
contextos e direitos.
Encaminhado em 1948 o anteprojeto da lei de diretrizes e bases, com o
objetivo de ampliar o acesso à escola, teve como um dos principais pontos de
debate a divergência entre as tendências centralizadoras e descentralizadoras de
gestão escolar. Destacamos que, segundo Ribeiro (1982), a crítica dirigida à
centralização teve, por motivos diferentes, o apoio dos educadores católicos mais
tradicionais e dos educadores de ‘ideias novas’. Os primeiros embasavam sua
justificativa através da relação entre os direitos da família, a garantia de liberdades
individuais e indiretamente preocupava-se com os interesses da igreja em
detrimento dos do Estado, enquanto os segundos defendiam a partir de princípios
pedagógicos a necessidade de resguardar as diferenças regionais e individuais que
seriam suprimidas na centralização.
A lei que seria aprovada apenas em 1961 (antes disso ainda é alvo de outro
ponto de debates) dessa vez, relacionada à necessária escolha entre a valorização
da escola pública ou privada, que mais uma vez torna claro o embate entre os
conservadores e os educadores de ‘ideias novas’. Assim, utilizaremos uma parte
capacidades biológicas, ou seja, a fim de minar a velha estrutura do sistema educacional (de
sentido aristocrático), as aptidões ‘naturais’ substituiriam as razões econômicas e sociais
(anteriormente valorizadas). Porém, essa proposta também é vista por nós com ressalvas, visto que
acreditamos, pautados em Louro (2012), que muitas dessas naturalizações estão carregadas de pré-
concepções atreladas às construções de gênero. Conforme discutimos ao longo deste capítulo, a
construção das escolhas e gostos não está livre dos constrangimentos impostos pela sociedade
heteronormativa.
66
do que, segundo Ribeiro (1982), ilustra a argumentação utilizada em prol dos
princípios particulares:
Do ponto de vista pedagógico, a Igreja Católica acusa a escola pública de ter
condições de desenvolver somente a inteligência e, enquanto tal instrui, mas não
educa. Ela não tem uma filosofia integral de vida [...] Assim a escola confessional
seria a única que teria condições de desenvolver a inteligência e formar o caráter,
ou seja, educar (RIBEIRO, 1982, p.150).
De acordo com o exposto anteriormente, por nós, sobre a construção dos
corpos ideais para a sociedade heteronormativa, e sua relação com as concepções
que são reproduzidas na escola, a exigência de uma educação que não só forme o
caráter como conduza a uma filosofia de vida, se apoia também na religião, fato
que não é novo na história da educação brasileira.
Dessa forma, através de uma conversa com uma das travestis, em janeiro
de 2015, temos a oportunidade de exemplificar, à luz do presente, a
contextualização que tem sido feita, visto que na análise das identidades que
foram marginalizadas e excluídas em função da não adequação de gênero à busca
por uma escola laica40
, também fica representada na fala de Bia, que se preocupa
com a relação entre preceitos religiosos e mais motivações para as brincadeiras de
“mau gosto”, nas palavras da entrevistada:
Eu acho que o primeiro erro taí, a escola só explica a ideologia, a construção, o
nascimento da religião católica, e se você fala de uma deveria falar de todas, até
por que o catolicismo ensina que o homem foi criado pra a mulher e pra procriar,
fazer filhos na terra e nisso você para. Gente, por favor o ser humano é muito
mais que isso (Bia, entrevista realizada em janeiro de 2015).
Assim as tensões vividas para aprovação da lei de diretrizes e bases (1961)
representam, muitas vezes, reações às tentativas mais progressistas, onde a
educação pública e gratuita deve ser garantida para todos, e a partir do histórico de
organização da escola como espaço excludente ratificamos a proposta de pensar as
40
Cabe esclarecer que a fala de Bia, não foi direcionada por nós, no sentido de fazer algum
questionamento sobre as relações entre a vivência na escola e religião (conforme pode ser
inclusive percebido no anexo com as questões norteadoras das entrevistas). De forma, que esta
colocação surge como uma das proposições e necessidades que, a partir do olhar da entrevistada,
contribuiriam para modificar o cenário da escola básica. Assim, apesar das relações entre
religiosidade, educação brasileira e identidades transgressoras, não constituírem o eixo central
deste trabalho, acreditamos que essa colocação contribua não só para exemplificar, na vivência de
Bia, um dos reflexos da pequena historização feita neste subcapítulo, como também pode motivar
estudos e reflexões futuras.
67
vivências dos corpos que não se adéquam como uma forma de questionar a
estrutura binária materializada na construção deste ambiente.
Após a década de 1960, segundo Lima (2013), os movimentos sociais
exerceram influência na produção dos discursos que conjugam educação e
sexualidade, chegando mesmo a colocar a educação sexual como uma
obrigatoriedade. Entretanto, o contexto da ditadura militar cerceou os debates e
representou um retrocesso, tornando o ensino de educação sexual facultativo e
relegando a família a responsabilidade por transmitir e formar os cidadãos em
relação às bases morais.
No contexto de enfraquecimento do regime militar, destacamos a partir da
década de 1980, uma revalorização da discussão nas escolas, apesar de muito
ligadas ao campo da saúde / prevenção, fato justificado pela necessidade de
discutir a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis (DST), em especial
a AIDS. Weeks (2012) faz uma crítica à exploração da doença como uma forma
de demonstrar os “limites do corpo” em relação à vivência da sexualidade. Assim,
a doença que ficou conhecida, naquela época, por “devastar o corpo”, foi utilizada
pelos comentaristas (dentre eles jornalistas) como uma “vingança da natureza
contra aqueles que transgrediam seus limites” (WEEKS, 2012, p.37), o que mais
uma vez traz os estudos sobre as sexualidades na escola para o campo biológico.
É possível, porém, notar uma preocupação em relacionar o cotidiano da
escola, que é composto por múltiplas identidades com os conteúdos aprendidos, e
para isso a orientação do estudo da sexualidade como um tema transversal, na
década de 1990, e não como uma disciplina reafirma, segundo Lima (2013), sua
importância. Nesse momento, a discussão sobre a construção do corpo travesti é
elucidativa, pois não pode ser restrita a uma análise disciplinar, esta é dotada de
simbolismos que vão além das mudanças físicas representadas pela ingestão de
hormônios ou pela colocação de próteses de silicone. A discussão sobre as
identificações de gênero e sexualidades atravessam os espaços da escola e não
podem ser condicionadas a estudos biológicos.
Atualmente, já na elaboração do Plano Nacional para Educação, que tem
sua vigência entre 2011 a 2020, dentre as metas prioritárias destacamos a terceira,
68
que visa reduzir as desigualdades educacionais e para isso estabelece como uma
de suas estratégias “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por
preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de gênero”
(PNE 2011/2020, p. 26).
No mesmo contexto, as Diretrizes Curriculares Nacionais (2012), no Art.
5°, organiza o Ensino Médio, independente da forma da oferta, baseado na
educação em direitos humanos como princípio nacional norteador, chamando
atenção para o respeito aos princípios da dignidade humana, da igualdade de
direitos e do reconhecimento e valorização das diferenças e diversidades, de
forma que, mesmo não garantindo a mudança das práticas e atitudes no interior
das escolas, tais medidas representam avanços para pensar novas vivências nesse
espaço.
3.2. Conflitos no cotidiano escolar: existo mas não me vejo na escola
É nesse cenário que analisaremos o corpo travesti desconstrutor de
binarismos, que se soma à discussão sobre a redução da homofobia na escola, já
presente em uma das metas do Plano Nacional da Educação (2011-2020), a
preocupação com a não exclusão ou invizibilização dessa identidade. Nesse
sentido, relacionamos a organização da escola, discutida no subcapitulo anterior,
de sua estrutura aos contextos políticos e culturais, que possuem seus
rebatimentos no próprio cotidiano escolar.
Assim, a partir da compreensão da escola como espaço marcado,
historicamente, pela exclusão e, simultaneamente, atravessado por questões de
gênero e sexualidades, buscamos relacionar a identidade travesti e as vivências
espaciais no ambiente escolar. Destacamos que para isso, além da bibliografia
que nos referenda, realizamos trabalhos de campo com um grupo composto por
nove pessoas que se identificaram como travestis41
. Assim, além dos
procedimentos já abordados na introdução deste trabalho é importante pontuar que
41
No anexo A é possível encontrar uma tabela com algumas informações básicas das
entrevistadas, que mesmo preservando as identidades das mesmas, oferece como subsídio
elementos como “idade” e o “período em que saíram da escola”, o que talvez, colabore com a
interpretação do leitor de alguns fragmentos de falas que serão discutidos neste e no terceiro
capítulo da pesquisa.
69
todas as entrevistadas iniciaram o processo de transformação dos corpos ainda no
período escolar, o que não significa que isso ocorreu de forma homogênea.
Porém, essa informação nos revela que os relatos que serão trabalhados ao longo
do texto, não podem ser desvinculados das memórias de violência atreladas a não
linearidade de gênero e sexualidade.
Nesse sentido, corroboramos com Silva e Junckes (2009) quando destacam
a importância de considerar as memórias do espaço escolar “articulando os
acontecimentos passados interpretados à luz do presente, permanentemente
negociadas intersubjetivamente na construção identitária” (p.157).
E, através do diálogo com Ferreira (2011), chamamos atenção para a
relação entre as identidades que não se adéquam e o espaço, visto que a
argumentação da autora versa sobre a importância deste para visibilidade das
identidades homossexuais:
em particular as identidades homossexuais tem uma forte relação com a dimensão
espacial, as marchas de orgulho, as vizinhanças auto-organizadas, com ambiente
amigável para gays e lésbicas, os espaços públicos específicos anunciados como
seguros e livres de discriminação, bem como as negociações de identidades
relacionadas com os espaços (assumir a orientação sexual apenas em locais
específicos) tem como fator comum a dimensão espacial (FERREIRA, 2011,
p.43).
Mesmo que Ferreira (2011) não faça referência especificamente à
identidade travesti, acreditamos que as negociações entre espaços e identidades
sirvam de base também para pensar o processo e mudança corporal vivido pelas
travestis bem como as dificuldades de permanência na escola, que a exemplo de
outros espaços, reproduz a lógica binária. Em consonância com o que abordamos
no capítulo 1, os corpos não são inertes ou essencializados, de forma que as
subjetividades atreladas ao feminino vão ocorrendo de forma processual
conforme, inclusive será possível visualizar nas construções associadas aos
espaços da escola e discursos reproduzidos com base neste ambiente.
Com relação à linguagem, algumas vezes as entrevistadas se referiram ao
passado no masculino, a exemplo do que colocou Luciana (2015) “eu era um bom
aluno, nossa, falei aluno, se bem que naquela época ainda era né”. O que não
70
anulou também algumas correções feitas pelas próprias entrevistadas enquanto
falavam com a finalidade de afirmar a identidade feminina.
Foucault (1988), ao discutir a multiplicação das falas sobre sexualidade,
afirma a escola como local de destaque para reflexão sobre esses discursos nos
corredores, banheiros, na organização dos alunos. Assim, as funções de controle e
disciplinamento exercidas nesse espaço são fundamentais para manutenção da
ordem estabelecida. Para isso, utilizam-se inclusive, marginalizações e pequenas
punições sofridas por quem desvia. Lembramos que, segundo Butler (2002), os
corpos encontram, paradoxalmente, nas mesmas tentativas de normalização a
força de resistência, que só pode ser compreendida na existência do sexo como
um ideal regulatório, ou seja, o sexo também atua como uma força para
materialização do gênero, e para nós, nessa relação o constrangimento dos corpos
travestis está na subversão da expectativa imposta na lógica binária de que sexo e
gênero devem “concordar” para construção de um corpo “normal”. Portanto, a
escola quando atua na conformação dessas identidades ao que é socialmente
aceito nessas bases, silencia as “identidades trans” para afirmar a outra.
A partir de Lima (2013) trazemos a dimensão política da identidade na
medida em que, no espaço da escola, as negociações de centro e margem,
atreladas ao padrão heterossexual e aos que não se adéquam, variam definindo
lugares e não lugares no interior desse ambiente. Nas palavras da autora:
É desta forma que as identidades sociais e culturais se manifestam de forma
política, na medida em que determinados grupos sociais, por sua posição dentro
da rede social, ocupam lugares centrais e têm a chance não só de representar a si
mesmo, como de representar os diferentes de si mesmo, subordinando, negando
ou excluindo as suas manifestações. Essa dinâmica é sempre marcada por
relações de poder que definem o que está ou não dentro da normalidade (LIMA,
2013, p.137).
O corpo escolarizado vai sendo moldado, o padrão se impondo e sendo
imposto através de práticas performativas, porém não sob uma superfície inerte. A
resistência é condição para o exercício do poder e não pode ser assim exterior a
ele. Mesmo com os silenciamentos, outras sexualidades se fazem presentes na
escola e arriscamos dizer que isso ratifique a preocupação com a vigilância e a
manutenção de uma ordem naturalizada, assim Louro (2012) chama atenção para
quem pertence a esse lugar.
71
A escola delimita espaços, servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que
cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o “lugar” dos
pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através dos seus quadros e
crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles que deverão ser modelos e
permite, também, que os sujeitos se reconheçam (ou não) nesses modelos
(LOURO, 2012, p.62).
O conceito de identidade figura, dessa maneira, mais uma vez nossa
discussão, pois este é um momento de reconhecimento e exclusão, que se faz a
partir de uma identidade hegemônica e considerada normal. Por isso,
argumentamos pautados em Tomaz Silva (2013) que o desejo heterossexual não é
alvo de discussões, este é tão naturalizado que se torna invisível na hora dos
questionamentos, como se esta fosse a única possibilidade. Concordamos com o
autor quando afirma que:
a normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no
campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente
– uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras
identidades são avaliadas e hierarquizadas (SILVA, T., 2013, p. 83).
Quando colocamos que a heterossexualidade é compulsória, estamos
justamente fazendo alusão a uma naturalização que não permite questionamento
ou discussão, já que essa sexualidade foi construída como “o certo” e na escola
um olhar mais atento percebe as restrições ligadas às diferenças de gênero,
expectativas relacionadas aos comportamentos de meninas são afirmadas nos
detalhes, nas interrupções que exigem que elas “tenham modos” ou nas tentativas
de constrangimento observadas, por exemplo, nos comentários sobre o menino
que só anda com as meninas. Surgem assim algumas classificações como: “ele/a é
estranho/a”.
A partir disso, consideramos importante contextualizar o momento da
descoberta da diferença e, simultaneamente, da marginalização sofrida por quem
não figura o centro das abordagens disciplinares. Assim, a partir da publicação
organizada por Silva, Ornat e Chimin (2013) recorremos a fala da travesti
Nikaratty (2013) para exemplificar o que foi trabalhado por Hall (2013) e Tomaz
Silva (2013) ao atrelarem a descoberta da sua identidade em relação ao “outro”.
Este, ao negar a identidade dissidente para afirmar a sua, chegou ao extremo da
violência física.
72
Caiu a ficha mais ou menos com uns oito anos de idade. Eu vi que era diferente
porque eu comecei a apanhar na escola. Não que eu vi, as outras crianças me
obrigaram a ver. Porque para mim eu era uma pessoa normal, eu era um ser
humano. Aí com oito anos eu já comecei a apanhar, apanhei até oitava série
(NIKARATTY, Leandra, 2013, p.40).
Portanto, se a escola “cala” ela mostra quem é considerado estranho e
afirma um padrão de normalidade, expressando isso das mais diversas formas.
Não nos referimos apenas à estrutura, mas às práticas representadas pela omissão
em situações de violência física e simbólica. Nomear alguém como estranho e
anormal implica, necessariamente, que se tenha como base um contrário imposto
como modelo, ou seja, o recurso linguístico utilizado por Hall (2013) não só
elucida o exposto com Nikaratty (2013) como será usado para analisar a fala de
Bia transcrita de uma entrevista realizada por nós em 2015:
eu não gostava da escola pois é um ambiente muito hostil, para quem não segue o
padrão. Foi hostil comigo por que eu era um menino loirinho, de olho claro,
bonitinho e, na época, “afeminado”. No primeiro dia de aula ok, no segundo eu já
era o viadinho da sala, no terceiro o viadinho da escola (Bia, entrevista realizada
em janeiro de 2015).
Assim, mesmo compreendendo a partir de Hall (2006) a identidade como
algo inacabado, fluído e interpelado ao logo da vida por outras identificações,
naquele momento ele foi classificado como “viadinho” e no ambiente escolar esta
característica se sobrepôs as outras, ou seja, mesmo que o sujeito também seja
marcado pela raça, classe social, religião e não exista homogeneidade nessas
relações, vamos destacar aqui, que ele teve suas memórias atreladas ao ambiente
escolar, principalmente por não se adequar ao padrão heterossexual.
As violências e classificações perpassam por gêneros e sexualidades de
forma que a ocultação da identidade homossexual é, segundo Facco (2011), uma
das estratégias utilizadas para reduzir as hostilidades na escola. Essa é também
uma das faces da inexistência que trabalhamos baseados em Foucault (1988), que
joga entre as possibilidades de não existir ou de existir na sombra, no segredo, ou
seja, se interditar a identidade quando lhe é tirada a possibilidade de se
materializar, de forma que, segundo Massey (2013), se o espaço pressupõe a
diversidade, essa de forma análoga existe na sua relação com o lugar.
73
A frequência obrigatória na escola compõe o texto de ocultações da
identidade e cria, na relação com a fuga, pequenos esconderijos, lugares onde o
estigmatizado se sente livre dos olhares que controlam e medem suas posturas.
Segundo Facco (2011), o sentimento de prisão condiciona a vivência na escola,
visto que um deslize representaria a descoberta do teatro feito em relação à
sexualidade. A mesma autora afirma que, muitas vezes, por essas razões, o
estigmatizado prefere o isolamento, o que nos remete à fala de Bia (2015) “eu
gostava, me sentia bem na biblioteca, lá não podia acontecer nada comigo, podia
ficar quieta”. As relações de tolerância e aceitação são, dessa forma, vistas com
ressalvas, pois carregam as hierarquias e desigualdades em função da sexualidade.
Os sentimentos e memórias trazem, portanto, os lugares de pertencimento,
a exemplo da biblioteca para Bia. Chamamos atenção, porém, que a existência
desses lugares está relacionada, à naturalização e estigmatização que compõem o
espaço escolar. Através das estratégias para “desaparecer”, vemos a possibilidade
de significar novos espaços, criar lugares.
Torna-se clara, então, a relação de ocultamento de orientações sexuais
diferentes da heterossexual como formas de defesa ou tentativa de aceitação. Em
contrapartida, o espaço de aprendizagem e desenvolvimento da crítica é marcado
por medos, violências, aversão. A geografia colabora, portanto, com o estudo de
um espaço permeado por sentimentos diversos em função de marcadores de
gênero e sexualidades, e aponta para modelagem de corpos e estigmatizações que
fazem parte das memórias dos sujeitos. Recorremos à Louro (2012) para entender
a relação entre identidade e lugar.
O olhar precisa esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se
nas pessoas, nos seus gestos, suas roupas; é preciso perceber os sons, as falas, as
sinetas e os silêncios; é necessário sentir os cheiros especiais; as cadências e os
ritmos marcando os movimentos de adultos e crianças. Atentas/os aos pequenos
indícios, veremos que até mesmo o tempo e o espaço da escola não são
distribuídos nem usados – portanto, não são concebidos – do mesmo modo por
todas as pessoas (LOURO, 2012, p.63).
O debate sobre ocultações e segredos carece de outra análise que
contemple a “publicização” de outras identidades no espaço escolar. Assim, as
cobranças e questionamentos para que o aluno “se defina” partem do princípio
que se existe um sexo, este deve ser nomeado, e mais que isso, a educação dos
74
corpos e o seu controle devem ser pautados pela sua definição. Foucault (1988)
sugere que sexualidade perpassa toda existência do sujeito:
Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está
presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ele é o princípio
insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no
seu corpo já que é um segredo que se trai sempre (FOUCAULT, 1988, p.50).
A citação de Foucault (1988) reafirma a preocupação relatada por Facco
(2011) das reações que uma sexualidade homossexual pode motivar na escola. A
heterossexualidade encontra-se, dessa forma, no cerne das coisas, e segundo
Junqueira (2012), compõe concepções curriculares e motiva a incorporação das
normas nos corpos. Um lugar privilegiado para a socialização de crianças e
adolescentes, a partir das questões identitárias já citadas, pode tornar-se um lugar
de medo, constrangimentos e culpas. Assim, para direcionar a reflexão
especialmente para a sexualidade das crianças, citamos um trecho da poesia de
Pedro Barroso:
“Tanta falta, tão escondida
tanta mentira mentida
tanta busca de aprender
e a vontade a mandar,
e os adultos a não querer
e as coisas a acontecer...
depois vem o corpo e manda;
vem a sorte e o acaso
mais a vida convivida
que nos ensina sabores
preferências e valores
coisas que vão dar azo
a uma culpa indefinida...”
Para nós, a citação ilustra a força das normas regulatórias, especialmente
em um ambiente formativo, no qual as falas e as regras tomam, muitas vezes, o
peso de verdades. O sentimento de culpa, além disso, é intimamente ligado ao fato
do estigmatizado não se encontrar no padrão. Segundo Facco (2011), a vontade de
“corrigir” as atitudes que não são aceitas, além do sentimento de insatisfação,
pode culminar em violências com outras pessoas que tenham o mesmo estigma,
com o objetivo de mostrar a todos o repúdio a uma identidade que está oculta.
75
Foucault (1988) ao falar da sexualidade das crianças reforça os
dispositivos de controle e vigilância debatidos por pedagogos e pais, a fim de
reprimir o assunto, ou seja, a vigilância implica em, a qualquer sinal de descoberta
do que foi construído como segredo, em outras táticas de regulação. Dessa forma,
quando a família e a escola demonstram a importância de esconder aquele “erro”,
de corrigir outra forma de falar, andar, se vestir, estão reafirmando diretamente a
norma. Assim concordamos com Goffman (2013) quando afirma que o estigma é
uma perspectiva gerada, em função de normas não cumpridas
Também está implícita em uma forma de cooperação tácita entre os normais e os
estigmatizados: aquele que desvia pode continuar preso a norma porque os outros
mantêm cuidadosamente o seu segredo, fingem ignorar sua revelação ou não
prestam atenção as provas, o que impede que o segredo seja revelado; esses
outros, em troca, podem permitir-se ampliar seus cuidados porque o
estigmatizado irá, voluntariamente se abster de exigir uma aceitação que
ultrapasse os limites que os normais consideram cômodos (GOFFMAN, 2013, p.
141).
Assim, no momento da entrevista, Bia ao falar sobre as violências que
viveu na escola comenta que não adiantava nada ir à Direção: “quando eu
reclamava, diziam: mas também né, você não pode ser desse jeito aí dá nisso,
tenta engrossar a voz, andar direito” (2015). A resposta do diretor ilustra a
inversão que justifica a violência e, ao contrário do que aponta Facco (2011), (em
relação às violências contra os homossexuais) quando afirma que os processos
discriminatórios costumam ser sutis dificultando sua identificação, as violências
sofridas aqui não foram escamoteadas.
Nesse sentido, outra entrevistada, Priscila, afirma que não acredita que
procurar a Direção da escola possa “resolver algo”, visto que nas palavras dela “o
assunto não é deles, isso tem que ser resolvido por nós [alunos] ou não tem
solução”, a entrevistada segue ainda comparando a situação de violência sofrida
por uma colega com as que ela enfrentava, antes de decidir sair da escola:
Não tem nenhuma mudança que eu acredite que vá resolver o problema, quando
falei para minha mãe que não ia mais para escola, expliquei que, muitas vezes
depois que os meninos me tacavam as coisas fui reclamar com diretor. Para
minha mãe não foi surpresa, porque ele [o diretor] já tinha chamado ela na escola
e dito que, se aquilo continuasse, eu poderia ir a policia reclamar, ele me daria um
papel para isso. E foi o que ele fez, mas eu não quis ir. Não acredito em nada
disso. Por exemplo, uma vez uma menina foi filmada pelo namorado transando e
ele mostrou o vídeo para todo mundo na escola. O diretor fez a mesma coisa,
76
falou pra ela ir à delegacia, ela foi, ficou um tempo sem aparecer, o menino foi
suspenso uns dias e depois voltou tudo ao “normal”, ela só não estava indo pela
vergonha mesmo, ou seja, não aconteceu nada! (Priscila, entrevista realizada em
fevereiro de 2015).
Assim, os relatos de Priscila representam parte das violências que, segundo
a entrevistada, a levaram inclusive a sair do colégio mesmo diante de um cenário
de “vida escolar compulsória”, conforme trabalha Facco (2011)42
. As
perseguições feitas por um grupo de meninos estão refletidas, inclusive, nos
documentos que segundo ela ainda não voltou para buscar visando evitar
encontrá-los.
Os espaços da escola fazem parte, portanto, das memórias das travestis e
materializam sentimentos de pertencimento e rejeição. Ademais, apresentam-se
como uma forma de compreender o cotidiano escolar através de outro olhar, tendo
em vista o número reduzido de trabalhos que se dedicam a perturbar a organização
da escola, pautada na linearidade já discutida aqui. Para isso, elencamos espaços e
momentos de maior relevância, em função dos relatos das travestis que compõem
o grupo focal e do objetivo de desvelar os discursos que marginalizaram e
excluíram as travestis do espaço escolar.
O “pátio” – A hora do recreio
O horário do “recreio” ou intervalo entre as aulas é tradicionalmente
apontado como momento de relaxamento, descanso e brincadeira, que,
aparentemente, seria relacionado a lugares de pertencimento, descontração e
alegria. Porém, quando nos referimos à sexualidade atravessando a escola e a
heterossexualidade como compulsória não excluímos as brincadeiras como uma
forma de reprodução desses valores.
A partir da fala de Bia, que diz nem mesmo “ir para o recreio”, em
referência ao espaço do pátio da escola, com medo das perseguições demonstra o
que Junqueira (2012) discutiu sobre a capacidade de ora camuflar ora explicitar
42
Recorremos a seguinte fala de Facco (2011) “a vida escolar, pelo menos nas grandes cidades, é
compulsória” (p.22) para destacar que as experiências de exclusão e violência são reforçadas, visto
que o estigmatizado não pode parar de frequentar aquele local.
77
insultos e violências que acabam por compor memórias e inscrever-se, segundo o
autor, nos corpos da vítima. Assim nas palavras de Bia (2015):
Às vezes eu não ia pro recreio, pois me tacavam as coisas: quando era biscoito
com café com leite, me tacavam o bendito do biscoito. Quando era macarrão com
salsicha me tacavam a salsicha. Eu só não apanhei na escola porque tinha um
grupo de meninas que me defendiam (Bia, entrevista realizada em janeiro de
2015).
Entendemos a representação do pátio da escola também como um território
no sentido simbólico, um espaço de referência para a construção de identidades, o
que não anula as relações de poder e as disputas, que podem ser visualizadas no
relato de Bia, quando ela prefere não ir ao pátio devido ao medo gerado pelos seus
agressores. Haesbaert (2011) entende que o território é idealizado e diz que o
mesmo não pode ser definido apenas por um princípio material de apropriação,
mas sim contemplando um princípio cultural de identificação ou pertencimento.
Assim, o espaço / momento do recreio é complexificado, visto que opõe o
descanso, o intervalo entre as aulas e a experiência das violências. Recorremos
ainda a Junqueira (2012) para nos referir ao que o autor chamou de ‘pedagogia do
insulto’, que imprime através das tensões e medos uma forma de controlar os
corpos, condicionando-os na medida em que qualquer “falha” na demonstração de
masculinidade remete a novas perseguições.
É até difícil saber qual era o pior momento, acho que era ter que andar pela
escola, pois como eu disse, os meninos me tacavam aquelas frutas que caem das
árvores e minha escola era cercada por uma mata mesmo, tinham muitas
frutinhas. Isso sem falar nas piadas que eram frequentes, os risinhos, as vezes que
ficavam me gritando: “viado, gordo”. Como disse, por isso parei de estudar
(Priscila, entrevista realizada em fevereiro 2015).
A fala de Priscila nos remeteu ao primeiro relato de violência que ouvimos
em uma conversa realizada ainda em 2011 e, mesmo que naquela ocasião o
espaço escolar não tenha sido o foco da pesquisa, a entrevistada destacou o
momento como um dos piores já vividos por ela, assim Estrela coloca:
O pior dia da escola foi quando me tacaram cascas de laranja. Foi pior porque as
cascas pareciam não acabar, eu corria e eles corriam atrás de mim, me tacando as
casca e rindo alto. Lembro de todo mundo olhando. Só depois, já em casa, me dei
conta que aquilo só foi possível porque eles pegavam as cascas do chão e me
atiravam de volta. Na hora não pensei nisso (Estrela, entrevista realizada em
2011).
78
O banheiro entre violências: “eu não ia mais, desisti”
O banheiro representa materialmente uma divisão binária do espaço, ou
seja, a estrutura construída através das relações com as concepções de gênero
expõe claramente masculino ou feminino. O binarismo nos remete, portanto, a
“inexistência”43
dos corpos travestis, ao concretizar a impossibilidade de uso
deste espaço por identidades que não se adéquem. Nesse sentido, o processo de
naturalização é desvelado no entendimento das ‘regras da escola’ que não
permitem o uso do banheiro feminino, de forma que a patologização ou a
anormalidade dos corpos, encontra-se na afirmação da própria identidade travesti.
Destacamos a partir de Junqueira (2012) que essa “classificação” possui
também um papel “educativo”, no sentido que direciona e naturaliza as diferenças
de gênero, com base na perspectiva que conjuga de forma coerente (para
heteronorma) sexo e construção do corpo. Os dispositivos de poder são assim
analisados pelo autor:
A espacialização é um dos procedimentos cruciais dos dispositivos de poder. É
um dos aspectos centrais do currículo e se verifica na esteira dos processos de
divisão, distinção e classificação que este continuamente opera. A violação do
direito ao acesso ao banheiro é um exemplo que mostra que processos de
espacialização são acompanhados de naturalizações sutis, que se desdobram em
interdições e segregações (JUNQUEIRA, 2012, p.6).
Em confluência com os processos apontados pelo autor, destacamos o
espaço como um dos elementos que ‘formam’ os corpos de acordo com as normas
hegemônicas, e para isso mantém no seu “exterior constitutivo” a patologizaçao
dos corpos travestis. Portanto, a provocação que delimita o início de nossa análise
sobre essa espacialidade “entre violências” faz referência aos relatos obtidos em
campo, polarizado fundamentalmente entre as agressões (físicas, verbais,
simbólicas) e as invisibilidades, conforme é possível observar em alguns
fragmentos:
Eu não ia, só ia em casa mesmo. Não era permitido usar o ‘das meninas’, os
inspetores não deixavam. E o ‘dos meninos’ não tinha condições iam ficar me
zoando. Uma vez eu fui e me trancaram lá dentro (Priscila, entrevista realizada
em fevereiro de 2015).
43
A inexistência é trabalhada de acordo com a proposta de Foucault (1988), conforme colocamos
na apresentação deste capítulo.
79
Não ia, só em casa, ou, se eu estivesse muito apertada, esperava todo mundo
entrar na sala e quando via o pátio vazio ia rapidinho. Uma amiga em outra escola
há pouco tempo me falou que ela tinha a chave do banheiro dos professores e
podia ir, mas também não gosto dessa idéia, porque é um tipo de exclusão. Esse
para mim era o pior momento da escola (Mônica, entrevista realizada em
fevereiro de 2015).
Pra eu ir ao banheiro sozinho era um inferno por que ou tinha menino querendo
me bater ou tinha menino querendo me abusar sexualmente, se fosse mais velho,
maior que eu (Bia, entrevista realizada em janeiro de 2015).
A fala de Priscila, em destaque, chama atenção pelo fato da mesma
entrevistada, no ‘encontro dialogado’ com o grupo44
, ter exposto que no trajeto de
casa para escola tinha que pegar dois ônibus, fato que muitas vezes motivou seus
atrasos e faltas. O que reitera para esta entrevistada a dificuldade de ir ao banheiro
na escola, visto que mesmo com o tempo despendido no deslocamento somado às
horas de permanência na escola, raras às vezes ela usou o banheiro masculino.
Já a relação entre as falas de Mônica e Bia exemplificam a dupla dimensão
da violência observada, visto que enquanto a primeira coloca que não ia ao
banheiro ou o fazia quando todos estavam em sala (em momentos estratégicos), a
segunda expõe as tentativas de agressão física e tentativas de violência sexual.
Ademais, a proposição oferecida na escola de uma amiga de Mônica, a utilização
de banheiro separado, também não é aprovada pela entrevistada. Essa tentativa,
para nós, também não pode ser vista como solução, visto que mantém nas relações
sócioespaciais as bases desiguais, porém retomaremos essa temática com mais
detalhes no próximo capítulo.
Dialogamos também com Silva e Junckes (2009) que enfatizam as “trocas
simbólicas de exercício de identidade de gênero” que permeiam este espaço. De
forma, as pessoas que subvertem o padrão binário “são excluídas do ritual ou
incorporadas de forma subordinada, inferiorizada” (p.162). Dentre os rituais aos
quais os autores fazem referência citamos as performances masculinas, das quais
pela não identificação de gênero, as travestis não fazem parte.
44
Conforme o exposto na introdução desta pesquisa, realizamos um encontro em grupo composto
pelas colaboradoras vinculadas ao projeto Vira-Vida no qual além de apresentar nosso trabalho foi
possível observar, principalmente através das participações (perguntas e comentários) alguns
elementos que compunham o cotidiano das entrevistadas no período escolar
80
A partir do texto “Basura y género, Mear/ Caga. Masculino/ Femenino”
de Preciado (2009) é possível fazer provocações a respeito de quais seriam de fato
as “funções” do banheiro? De forma que um local para ‘despejo de dejetos’ acaba
convertendo-se, através de inscrições simbólicas em lugar para controlar e
reafirmar no sentido de refazer, reiterar as normativas de gênero. A autora
exemplifica ainda através dos símbolos nas portas que podem ser imagens (como
um bigode e uma flor) ou mesmo palavras (damas e cavalheiros) representantes de
um dos pólos que estruturam a norma.
Assim, a advertência a qual Preciado (2009) recorre no texto “Eh, usted:
se ha equivocado de baño, los de caballeros están a la derecha” chama atenção
para vigilância exercida também por quem está utilizando o banheiro feminino. A
partir de símbolos inscritos nos corpos esta vigilância se concretiza no julgamento
se há ou não coerência entre corpo e gênero. Para nós, assim como outras
aprendizagens (curriculares), os banheiros da escola também se fazem exemplo da
vigilância e das aprendizagens normativas45
. Traçamos um diálogo com a teoria a
partir das colocações das entrevistadas: Monica, Priscila e Rosa, que afirmaram
que as próprias meninas não gostavam que elas utilizassem aquele banheiro.
A quadra e as aulas de educação física: Um exercício para corpos disciplinados
A nossa preocupação em abordar os espaços da escola, destacando as
memórias do grupo focal e estabelecendo as relações entre os processos de
normatização ancorados nas concepções de gênero, quando especificamente
relacionados à educação física são marcados desde as práticas cotidianas,
exemplificadas pela divisão da turma em dois grupos (meninos e meninas), até as
próprias concepções que segundo Louro (2012) estão atreladas a um processo de
individualização que colabora com avaliação dos corpos, assim, geralmente, nas
palavras da autora:
45
Entendemos, porém que o banheiro enquanto espaço significado através das relações de gênero
e práticas sexuais possui outras “funções”, até mesmo contraditórias ou subversivas estas, porém
serão abordadas no próximo capítulo, em função do enfoque teórico que busca estabelecer o
diálogo entre os “novos usos” e as criatividades queer.
81
Estratégias típicas da aula permitem que o professor ou professora exercite um
olhar escrutinador sobre cada estudante, corrigindo sua conduta, sua postura
física, seu corpo, enfim, examinando-o constantemente. Alunos e alunas são aqui
particularmente observados, avaliados e também comparados uma vez que a
competição é inerente à maioria das práticas esportivas (LOURO, 2012, p.79).
Portanto, apesar de já termos defendido que a escola básica falou e fala de
sexualidade, não apenas reproduz, mas também produz concepções de gênero.
Corroboramos com Louro (2012) que o momento da educação física “parece ser
um palco privilegiado para manifestação de preocupação com relação à
sexualidade das crianças” (p.78). É nesse contexto que traremos as falas das
entrevistadas, onde sete (do total de nove) relataram que durante o seu período
escolar, as aulas eram divididas entre “meninos” e “meninas” durante a prática de
esportes.
De forma que nos propomos a pensar através das expectativas
(construídas) que compõem as diferenças entre os gêneros e o espaço da quadra,
quando usado para aula da disciplina em questão. Para isso, nos remetemos às
expectativas que permeiam as masculinidades e sua relação com a prática de
esportes, assim dialogamos com Louro (2012) que ao discutir a formação dos
meninos, aponta que para eles os exercícios físicos aparecem como “naturais” ou
“instintivos”.
Entretanto, ao transgredir as normas binárias de gênero, os corpos travestis
deixam de ser inteligíveis, o que subverte e desvela as limitações desse cenário de
avaliação, em relação ao grupo focal. Utilizamos as entrevistas realizadas com Bia
(2015) e Tamara (2015) para exemplificar a obrigatoriedade de realizar as
atividades em conjunto com os meninos:
Ah, na educação física eu era um desastre! Mas por mais que eu não fosse boa eu
tentava, por exemplo, nos primeiros dias eu tentava jogar futebol, mas ficava
nítido pra todo mundo que não dava, porque se eu ficava na linha eu só me
machucava, no gol eu não conseguia pegar a bola, só sofria frango, aí os outros
meninos começavam a falar “tira o viado”... “mas é uma moça mesmo” (Bia, em
entrevista realizada em janeiro de 2015).
Eu detestava a educação física meus irmãos faziam e eu não. Eles adoravam
futebol, aliais, diziam que “homem que é homem tem que gostar de futebol,
jogar, assistir, ter um time... aí que eu ficava pior, eu era horrível e acho que
todos percebiam uma “áurea rosa” em mim (Tamara, em fevereiro de 2015).
82
De forma que as falas exemplificam a importância conferida às atividades
para afirmar a masculinidade (construída) a exemplo do futebol (que deve ser bem
jogado ou ao menos inspirar interesse, torcida). Além disso, diante de um
desempenho abaixo do esperado, as entrevistadas colocam a associação ao
feminino (desvalorizado) ou a homossexualidade, que acabam tornando-se
motivos para piadas e insultos.
Além disso, outro aspecto a ser observado, com base nos trabalhos de
campo, foi que a impossibilidade de fazer as aulas junto com as meninas não foi
apenas vinculado a uma questão de prática esportiva diferenciada, ou seja, uma
preferência de jogar vôlei ao invés de futebol, por exemplo. Esta representou
também uma obrigatoriedade de convívio com os meninos. De forma que
recorremos à fala da entrevistada Luciana, para exemplificar também as
colocações de Tamara e Rosa, “eu tinha verdadeiro pânico da educação física
porque as meninas não estavam lá pra me defender” (Luciana, entrevista realizada
em janeiro de 2015).
Essa relação de “defesa” colocada em função do convívio com o grupo das
meninas nos remetem a discussão de Costa (2011) sobre as ‘microteriorializações
de sujeitos orientados para o mesmo sexo46
’, onde o autor afirma que as
expressões que não estão adequadas à norma ainda precisam de uma “apropriação
grupal do espaço público” com a finalidade de defender os sujeitos que sozinhos
estariam mais vulneráveis às violências. Dessa forma, guardamos as devidas
proporções em função das distinções entre os espaços da escola e da rua e, além
de não pretendermos também discutir os tipos (ou “gravidade”) das violências,
contudo acreditamos que este seja um elemento importante para trabalhar os
sentimentos vinculados a este momento/espaço e a territorialização da prática
esportiva vinculada ao gênero.
Em consonância com a argumentação que vincula a prática esportiva ao
sentimento de isolamento por não estar próximo ao grupo das meninas,
46
Destacamos que mesmo que o autor refira-se a sujeitos orientados para o mesmo sexo, não
fazendo menção especificamente às subversões de gênero, acreditamos que o diálogo seja profícuo
tanto por entendermos as transformações dos corpos travestis como um processo iniciado (mas não
concluído) nesse momento/espaço da escola, quanto por evidenciar as microterritorializações em
função dos desejos e afetividades, que não se encaixam a norma.
83
dialogamos também com Tuan (1980), quando discute a familiaridade envolvida
entre os seres humanos pertencentes a um grupo, que segundo o autor implica no
reconhecimento entre “nós” e “eles” relacionando-se, por conseguinte as
diferenças entre o “lugar familiar” e “território estranho”.
Dessa forma, a masculinidade vinculada à observação dos corpos
representa a reprodução da construção linear e binária que conjuga sexo e gênero
como uma justificativa para separação das turmas, conforme é possível observar
ao longo das entrevistas realizadas com Priscila e Mônica:
Eu odiava a educação física. Eu repeti por causa disso, não ia às aulas. A
professora não me deixava fazer aula com as meninas. Ela era escrota e me falou
que eu tinha um “piru” no meio das pernas, então deveria fazer aula com os
meninos, querendo ou não. Eu nem levava roupa pra trocar, ficava sentada
olhando e ela me dava falta (Mônica, entrevista realizada em fevereiro de 2015).
Eu não fazia aula de educação física e a professora sabia o por quê. Com essa
professora, fiz aula só uma vez e como eu não queria fazer aula com os meninos
ela me colocou pra correr sozinha enquanto todo mundo olhava. Fiquei com
vergonha e fui. Depois disso não fiz mais aula, assim eu também evitava de ter
que ir ao vestiário (Priscila, entrevista realizada em fevereiro de 2015).
Até tinham uns meninos que ficavam até tarde lá [no vestiário] para olhar os
outros tomando banho, isso já no final porque “só os que gostavam” ficavam até
tarde. Mas eu nunca gostei, tinha medo, vergonha. Não fazia aula e já evitava isso
também, não precisava ir pro vestiário (Mônica, entrevista realizada em fevereiro
de 2015).
Assim, o destaque dado à genitália na fala de Priscila e o relato de Mônica
que afirma não fazer as aulas por um “motivo conhecido” da docente, novamente
são relacionados à concepção de corpo essencializada, que conjuga a definição de
masculino a presença do pênis.
Entretanto, não vamos aprofundar as discussões sobre as práticas
vinculadas aos vestiários, pois durante os relatos das entrevistadas esta
espacialidade foi evidenciada apenas por Mônica, à medida que as demais ou
recusavam-se a fazer as aulas e com isso evitavam trocar de roupa47
ou colocaram
47
Priscila e Mônica afirmaram durante grande parte do período escolar não faziam as aulas de
educação física; Luciana, Tamara e Bia colocaram que após o início do ano letivo já começavam a
justificar as faltas ou tentar alguma forma de dispensa das aulas, o que é desatacado pela fala de
Tamara “o professor de educação física era o mesmo, então depois de muita justificativa furada,
ele mesmo não me cobrava mais presença, ele e eu sabíamos qual era o meu “problema” (Tamara,
entrevista realizada em fevereiro de 2015). Assim, apesar dos questionamentos de outros alunos
sobre a ausência de Tamara das aulas práticas a mesma fazia trabalhos para justificar a nota. Essa
84
que pela ausência de vestiário, as trocas quando feitas ocorriam nos banheiros,
que já discutimos neste capítulo.
Apontamos, apesar das ressalvas feitas na nota nº47, como ponto de
confluência as tensões vividas em função da não adequação de corpos e
identificações à lógica binária em relação a espaços e práticas cotidianas. O que
nos remete a discussão de Veiga-Neto (2014) sobre os desdobramentos que
relacionam o poder disciplinar a construção de corpos dóceis, porém sem que isso
implique em sinônimo de obedientes, pois para ele significa:
falar em corpos maleáveis e moldáveis; mas não se trata, aí, de uma modelagem
imposta, feita à força. Ao contrário, o que é notável no poder disciplinar é que ele
“atua” ao nível do corpo e dos saberes, do que resultam formas particulares tanto
de estar no mundo – no eixo corporal – quanto de cada um conhecer o mundo e
nele se situar no eixo dos saberes (VEIGA-NETO, 2014, p.71).
Assim, a fala do autor coaduna com a importância das inscrições
simbólicas (para nós, feitas nos espaços da escola) que reiteram as normas de
gênero, a exemplo do que foi discutido através dos binarismos exemplificados nos
banheiros e nas aulas de educação física. Recorremos ainda ao mesmo autor para
trabalhar as subjetividades presentes nas práticas reproduzidas nesses espaços
(somados ao pátio), que ao representar aprendizagens, reiteram, fazem parte e
produzem as naturalizações das divisões entre meninos e meninas na escola
básica.
Entretanto, por esses mesmos corpos não serem “obedientes” ou inertes,
sugerimos que a partir das vivências cotidianas existem possibilidades de
resistências e subversões, entendidas desde as produções dos corpos às
criatividades que dão novos usos aos espaços. Assim, no próximo capítulo
analisaremos discursos e lugares nas suas relações com a diferença, sendo esta
trabalhada conforme propõe Silva, T (2013) como um ponto de chegada, ou seja,
nos referimos à diferença que constrói as relações socioespacias e não apenas
como produto das mesmas.
experiência da elaboração de trabalhos escritos para substituir as práticas foi relatada também por
Luciana e Bia, pouco antes de saírem da escola. Portanto, destacamos que para evitar
generalizações fizemos uma breve descrição que visa fornecer elementos para compreensão do
espaço da quadra, vinculado à educação física.