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Barack Obama entrou para a história ao colocar o ra- cismo no centro da campanha presidencial nor- te-americana. Em Portugal, a discriminação é tabu e os rostos do êxito das minorias, preferem não ter cor REPORTAGEM DE Christiana Martins E Marisa Antunes (TEXTOS) E Jorge Simão (FOTOGRAFIAS) Elite à prova de racismo Expresso I 29 Março 2008 53 289_JA_SJA_PT

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Barack Obama entrou para a história ao colocar o ra-

cismo no centro da campanha presidencial nor-

te-americana. Em Portugal, a discriminação é tabu e

os rostos do êxito das minorias, preferem não ter cor

REPORTAGEM DE Christiana MartinsE Marisa Antunes (TEXTOS) E Jorge Simão (FOTOGRAFIAS)

Eliteàprovaderacismo

Expresso I 29 Março 2008 53

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FERNANDO KÁ abandonou o curso de

Medicina no quarto ano para assumir

o combate à discriminação racial.

Um exemplo de militância solidária

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«Discriminar, do latimdiscriminare, é,etimologicamente,o acto de diferenciar,distinguir, separar»

S ão a elite negra, in-diana, chinesa e ciga-na de Portugal. Numpaís de maioria bran-ca, de uma forma ou

de outra, a maior parte foi dis-criminada. Mas há vencedores.Não gostam de servir de símbo-lo, perdem a cor quando têmêxito, mas aceitam falar dassuas vitórias e derrotas.

São muitos, mais do que sevê, menos do que deveria ser.Ao contrário do que se passanos Estados Unidos, não os-tentam as origens para alémdaquilo a que são naturalmen-te obrigados quando têm dedar a cara na vida. As diferen-ças unem-nos, assim como acerteza de que falta um passopolítico que os coloque nocentro das decisões. Ah! Eque ninguém ponha em causaa sua portugalidade!

Conhecem-se todos. Quan-do se pergunta por um, os ou-tros respondem e sugeremmais um nome. Nenhum dosrepresentantes das minoriasétnicas ouvido pelo «Expres-so» se surpreende com as re-cusas em falar sobre a discri-minação. Não se revoltam eaté explicam as razões da in-comodidade mascarada dediscrição. António Costa,presidente da Câmara de Lis-boa, com uma pele morenaque não trai a origem goesado seu pai, não quis falar. Joa-

«Aprendi o significado da palavra dignidadeaos oito anos, quando vi o meu pai serlevado pela PIDE e a minha bisavó não odeixou sair de casa de cabeça baixa. Osignificado da palavra discriminação aprendiquando, depois do 25 de Abril, não mequeriam deixar passar na fronteira paraEspanha porque, diziam, já não eraportuguesa. Aprendi o significado da palavraintegração em Paris, quando ajudei aporteira do edifício onde eu vivia a resolver opagamento do frigorífico. E foi na vida queaprendi a ultrapassar o preconceito.DesdeAbril de 2005 que, no gabinete, trato dostemas ligados às migrações. Antes, eraconsultora para a imigração daDirecção-Geral dos Assuntos Consulares eComunidades Portuguesas. Fui consultorada Organização Internacional para asMigrações e assessora do alto-comissáriopara a Imigração e Minorias Étnicas, comfunções no combate à discriminação.Cheguei a Portugal com 13 anos. O meu

pai, Nicolau Martins Nunes, foi o últimodeputado negro do Velho Regime. Nasci naGuiné-Bissau e cheguei a vogal do ConselhoSuperior de Magistratura. Antes da guerra fuiprocuradora-geral adjunta. Depois, assumia direcção das relações internacionais daResistência da Guiné-Bissau, MovimentoBáfatá. Licenciei-me e fiz o mestrado emCiências Jurídicas pela Universidade deParis VIII e tenho pós-graduação em DireitoInternacional aplicado à Economia,Nacionalidades, Condição de Estrangeiros eDireito Humanitário pelo Institut des HautesÉtudes Internationales. Fiz o curso do Centrode Estudos Judiciários. O meu currículo falapor mim, mas não me esqueço da frase deLuther King: «O racismo está moribundo, aquestão é saber quão dispendioso osracistas tornarão o seu funeral». Irrita-meesta história de dizerem que sou minoria. Apopulação portuguesa tem as origens maisdiversas e, por isso, não admito que digamque não sou portuguesa.»

«Compreendi a palavra integração em Paris, com

a porteira, e foi na vida que ultrapassei o preconceito»

Romualda Fernandes, 54 anosADJUNTA DA SEC. EST. DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA

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«Vivo em Portugal há 40 anos e reconheço asminhas origens, mas não me sinto maisguineense do que português. Não souemigrante. Nasci em território português,como D. Duarte de Bragança, que é meuamigo, que nasceu na embaixada na Suíça.Entrei para Medicina e fiz o curso até aoquarto ano, mas a minha formação cristã(estudei para padre) fez-me optar pelocaminho que tenho seguido na Associação deSolidariedade Guineense. Entrei para o PartidoSocialista em 1991 e fui militante até 2003,mas saí, totalmente desapontado. Semprelutei pela integração dos militantes africanos,mas eles só servem para colar cartazes epara votar. É-lhes bloqueadaintencionalmente a ascensão no partido. Nemmesmo quando o PS está no poder se vêemnegros em cargos superiores. Não háassessores negros ou vereadores nascâmaras. Consideramos os britânicos maisracistas, no entanto, vê-se representatividade

em todos os sectores da sociedade. O PS temde começar com as quotas, como nosEstados Unidos. Aqui só há algumacondescendência com os descendentes deindianos. Veja-se o António Costa ou o NaranaCoissoró. No início, tinha muita confiança noAntónio Costa, que foi presidente da FAUL, aFederação da Área Urbana de Lisboa. Mas ofacto de ele pertencer a uma minoria nãotrouxe grandes contributos. É que a questãoracial em Portugal é um tabu. Não se podediscutir o racismo. Mas este existe em todasas sociedades, sejam brancas ou negras.Não me venham dizer que em Portugal nãoexiste racismo. O Alto-Comissariado é umaofensa para a interculturalidade: umorganismo criado para tratar das questões deintegração que praticamente não tem negros.A tendência de muitos africanos queconseguiram destaque é esquecer os outrosafricanos. Encontro mais brancos a lutar aonosso lado do que negros do topo.»

«Os militantes negros só servem para colar cartazes

e votar. É-lhes bloqueada a ascensão no seio do PS»

quim Góis, administrador doBES, também não. Nem Mag-da Vakil, da EDP. Não sur-preende que não queiram na-vegar o renascer da onda do«black is beautiful», afinal, co-mo contam os retratados, hádiscriminação «à portuguesa».

Angolana, em Portugaldesde 1977, Francisca VanDunem foi responsável pelaDirecção de Investigação eAcção Penal (DIAP) de Lis-boa e é procuradora-geral dis-trital. Foi eleita pela maioriados membros do ConselhoSuperior do Ministério Públi-co. O seu nome foi ventiladopara o cargo de Procurado-ra-Geral da República, emsubstituição de Souto Mou-ra. Foi dela a decisão de des-mantelar a equipa que lide-rou as investigações do pro-cesso de pedofilia na CasaPia de Lisboa. Não quis falarao «Expresso», mas cedeu umtexto de homenagem a Cu-nha Rodrigues, de sua auto-ria, em que analisa a discrimi-nação na lei penal em funçãoda raça. Datado de 2001, o do-cumento começa com um do-loroso texto de mãe: «Ne-nhum facto da vida me deutanto a dimensão da violên-cia da discriminação racial co-mo o estupor com que osmeus filhos João e José, cadaum a seu tempo, mas sem te-rem ainda completado ostrês anos, chegaram da escolae, entre o amargurado e o ató-nito, me interpelaram sobrea razão porque a diferença dasua condição racial legitimaoutros a amesquinhá-los emaltratá-los».

Fernando Ká, 40 anosLÍDER DA ASSOCIAÇÃO SOLIDARIEDADE GUINEENSE

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FRANCISCA VAN-DUNEM Portugal

BARACK OBAMA Estados Unidos

ANTÓNIO COSTA

Portugal

RAMA YADE

França

ZEINAL BAVA

Portugal

RACHIDA DATI

França

REPRESENTANTES DAS MINORIAS

étnicas estão a alcançar cargos

de poder em todo o mundo. Estados

Unidos e França lideram a quebra

de tabus. Portugal ainda vai atrás

CONDOLEEZZA RICE

Estados Unidos

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«Nasci no Porto por acidente, três dias depoisestava em Lisboa. O meu avô veio paraPortugal, depois vieram os meus pais, quenasceram na China e para lá voltaram. Eufiquei, com as minhas irmãs. Culturalmentesou português, mas pago o preço de não ser100% nem daqui nem de lá. Quando fui àChina pela primeira vez, com 25 anos,compreendi porque é que os ocidentaisdizem que os chineses são todos iguais. Nãosigo nenhuma religião, mas se tivesse algumaseria budista, não por ser de origem chinesa,mas porque não é tão fundamentalista. Nãome recordo de ter sido discriminado, masquando era criança lembro-me de dizerem:‘Olha o chinês!’. Ensinaram-me a responder:‘Olha o português!’. Mas sempre fui muitopacífico. É aborrecido ter sempre que soletraro meu nome. Nos Estados Unidos, onde fiz odoutoramento em Astronomia e Física, não.Afinal, lá todos têm nomes estranhos. Só vouàs lojas chinesas comprar ingredientes paracozinhar, mas gosto da comida portuguesa.

Não tenho uma explicação para ser cientista.É o lado idealista. Fui trabalhador-estudante edei aulas no Secundário. Dirigi o ObservatórioAstronómico de Lisboa entre 2002 e 2006 enunca pensei em sair de Portugal, mas,depois da licença em Barcelona... Continuo ater carinho por Portugal, mas há uma zangacom o sistema educativo. Às vezes,apetece-me largar tudo e ser voluntário noSOS Voz Amiga. Não me casei nem tivefilhos. Os meus filhos são os meus alunos. É aminha contribuição para o desenvolvimentoda ciência. Há quem ganhe o Nobel, outrosacrescentam pedrinhas ao edifício: grandeparte dos actuais astrónomos portuguesespassaram pela minha mão. Numa próximavida, gostaria de estudar a inteligênciaemocional. Devíamos ensinar a lidar com asemoções porque as pessoas não sabemcanalizar a agressividade do ser humano.Olhar o céu na Europa e na China é diferente:os ocidentais olham de fora, os orientaissentem-se parte da natureza.»

«Culturalmente sou português, mas pago o preço

de não ser 100% nem daqui nem da China»

Investigadores e represen-tantes das minorias étnicasafirmam que a violência ra-cial é, sobretudo, psicológica.Aparece nas palavras, travesti-da de ironia. Serve para fazergraça, é insidiosa. O CódigoPenal Português passou a in-tegrar, desde 1982, disposi-ções específicas contra a dis-criminação racial mas o temanão é um problema nacional.

«Racismo: porque o outronão é como eu, odeio-o. Defacto, odeio a diferença» (KeyContemporary Concepts, JohnLechte)

A 21 de Março comemo-rou-se o Dia Internacional pa-ra a Eliminação da Discrimi-nação Racial, 2008 é o Anodo Diálogo Intercultural. Na-da parece mudar e 2007 foiconsagrado pela Amnistia In-ternacional como o Ano Eu-ropeu da Igualdade de Opor-tunidades para Todos. Segun-do o Eurobarómetro, 64%dos cidadãos europeus dizemexistir preconceito generali-zado. Já a Comissão Euro-peia afirma que se verifica«discriminação racial directae indirecta nos domínios doemprego, habitação, cuida-dos de saúde e acesso aosbens e serviços, afectandoparticularmente pessoas deraça negra e ciganos».O pre-conceito não é, contudo,igual para todos. Zeinal Abe-din Mohamed Bava é, desdeontem, o novo presidente exe-cutivo do grupo Portugal Te-lecom. Chefia dez mil traba-lhadores e é o responsável

Lin Yun, 47anosASTRÓNOMO

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«Sou de Zavala, Moçambique, a terra dosmarimbeiros. A minha mãe estudou numcolégio de freiras. O meu pai era professor ecomo falava fluentemente português e inglês,trabalhou como intérprete no consuladode Joanesburgo. Após a independência,mandaram fechar todos os colégios. Fomosmuito maltratados, sobretudo aquelesque não aderiam a novos movimentos comoa Organização da Juventude Moçambicana.No liceu Salazar, o reitor (que foi professorem Coimbra), deixou de ter autoridadede um dia para o outro e o liceu passou a sergerido por um contínuo. Eu, que sempre quisestudar, percebi logo que as coisas não iamcorrer bem. Quiseram mandar-me paraCuba ou para a Roménia. Acusaram-mede não participar na «reconstrução nacional».Queria vir para Portugal, mas retiraram-me opassaporte. Só passados sete anos conseguifugir para a África do Sul. Estive lá comoclandestino durante dois anos até queconheci o bispo de Braga, D. Eurico DiasNogueira, que me ajudou a vir para cá.Passei muitas dificuldades enquanto tiravao curso de Direito na Universidade Católica.Não tenho ilusões de que há discriminação

em Portugal. Mas uma parte da sociedadenão tem consciência que pratica actosracistas. Olhamos para as pessoas, olhosnos olhos, e percebemos que nem hámaldade... É simplesmente ignorância. Masofende, deixa a pessoa diminuída na suadignidade. Há outros que são racistas pormaldade. Eu tive professores na Católica queeram assim. Eu era o melhor aluno da turma.O pior episódio que me aconteceu, e tivetestemunhas, foi com o professor SoaresMartinez, que me recusou uma oral emDireito Fiscal. E só devido à minha cor.Os meus colegas já tinham alertado que euiria ter problemas com ele. Já o professorJorge Miranda fez precisamente o oposto.No final da oral em Direito Constitucionalchamou todos os alunos e disse que iria daruma nota que nunca tinha dado: 17. Nuncafui discriminado em tribunal. Quando termineio curso, e depois do período de estágio, abrio meu escritório em 1996. Posso assegurarque não conheço nenhum juiz que fosseprejudicar uma das partes num processosó porque é representado por um advogadonegro.Se o advogado for tecnicamente bom,acaba por ganhar os processos...»

«Há casos de racismo por ignorância. Mas ofende

sempre. Também há quem seja racista por maldade»

por uma das maiores empre-sas do país. Disruptivo por na-tureza, será, aos 43 anos, omais jovem presidente da «ca-sa» e o primeiro muçulmanosunita, praticante, e perten-cente a uma minoria étnica.Nasceu em Moçambique eveio para Portugal com noveanos, com os pais e a irmã.Apolítico, acredita na merito-cracia e para ele a raça não éuma questão ou um proble-ma. Apenas um rótulo a mais.Assim como a discriminação.Estudou em Londres, ca-sou-se com uma portuguesa,católica, e é pai de três rapa-zes, educados ecumenicamen-te. Entrou para a PT com 33anos e é o administrador maisantigo do grupo. Acreditaque a religião não pode divi-dir as pessoas, e quando temde se definir, resume-se: por-tuguês e muçulmano. Na pa-rede do seu gabinete daTMN tem um quadro da As-sociação de Trissomia XXI,que apoia, com uma fra-se-símbolo: «Todos diferen-tes, todos espectaculares».

Aexplicação para as di-ferentes formas de lidar como preconceito é simples. Paraa professora da Faculdade deMotricidade Humana Marga-rida Gaspar, que estudou osadolescentes de ascendênciaafricana, «as grandes penaliza-ções dos grupos minoritáriosesbatem-se ou desaparecemquando se controla o estatu-to sócio-económico». Omaior problema é a pobreza.

Este é o ponto central dadiscussão também para o que

Adriano Malalane, 47 anosADVOGADO

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«Venho de Cabo Verde, de São Vicente. Omeu pai tinha posses e a minha mãe era afilha da cozinheira. Quando nasci, a minhamãe foi mandada embora e fiquei com aminha avó até ela morrer. Percebi que se nãoestudasse, estagnava. Provavelmente, estariaa trabalhar numa lojeca... Aos 17 anos vimtirar o curso de Filologia Românica, emLisboa. Passei muita fome, pois a bolsa deestudo não dava para nada. A meio do cursocomecei a dar aulas de alfabetização naAssociação Cabo-Verdiana. Já cá estavammuitos trabalhadores convidados porMarcello Caetano para construir obras comoo metro. Foi quando apareceram ascomunidades da Pedreira dos Húngaros, daDamaia... Até hoje, sou presidente daassembleia-geral da AssociaçãoCabo-Verdiana. A partir dos anos 80, osportugueses perceberam que tinham cáimigrantes e alguns partidos despertaram. Ogrande obreiro da minha vinda para oParlamento foi José Leitão, que fez um

protocolo com várias associações deimigrantes, para discutir a primeiralegalização extraordinária, em 1992. Em1995, Guterres convidou-me para tratar dasquestões da imigração no grupo parlamentardo PS. Hoje sou a primeira-secretária damesa da Assembleia da República esento-me ao lado de Jaime Gama. A lei danacionalidade, aprovada no ano passado, foiuma grande conquista. Tenho orgulho em terparticipado. Foi preciso ir com pezinhos de lã,mas não teve um voto contra. Oscabo-verdianos são vistos como a malta daCova da Moura, mas há muita gente bemintegrada, na Gulbenkian ou em boasempresas. Nunca me senti discriminada,porque disfarço, passo por portuguesa, masjá assisti à discriminação até na minha família,com as minhas irmãs mais escurinhas. Omeu marido é português e tem a mania quesabe mais de Cabo Verde do que eu. Aminha filha canta mornas e fala crioulo, o meufilho nunca disse uma única palavra.»

«Passei muita fome quando cheguei a Lisboa.

Hoje sou a primeira-secretária da mesa da AR»

foi o primeiro alto-comissáriopara a Imigração e MinoriasÉtnicas, José Leitão. «É evi-dente que existem diferençasque têm de ser combatidas e aigualdade de oportunidades éa única resposta para acabarcom a discriminação racial».José Leitão reconhece que naelite os nomes são sempre osmesmos: «António Costa,Francisca Van Dunem, ZeinalBava, Fernando Ká, CelesteCorreia», e diz que o proble-ma «só acaba quando, em lu-gar de meia dúzia, forem cen-tenas». Por isso, defende que«as lideranças políticas tinhama obrigação de incentivar a in-tegração, mas há muita indife-rença». E lembra que Portugaljá foi mais ousado: «Na Assem-bleia Nacional do governo deMarcello Caetano havia a obri-gação de incluir deputados ne-gros. Era manipulação políti-ca, mas também bom senso».

JoséLeitão recorda: «Nofim da década de 80, na Fede-ração da Área Urbana de Lis-boa surge um grupo de diri-gentes socialistas interessa-dos pela questão da integra-ção dos imigrantes». AntónioCosta era o coordenador doprojecto. Acredita, contudo,que há condições para avan-çar com políticas mais pró-ac-tivas, «sobretudo nas esco-lhas, porque, perante a igual-dade de condições, há que op-tar pela diferença».

Também Jorge Malheiros,investigador da Universidadede Lisboa, defende que «a per-tença de classe se sobrepõe àétnica». Explica que os goeses

Celeste Correia, 59 anosDEPUTADA DO GRUPO PARLAMENTAR SOCIALISTA

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«Sou português de corpo e alma, apenascom uma cor diferente. Mas posso ser umexemplo para a comunidade africana. PauloPortas chama-me, na brincadeira, o BarackObama português, o que é um grande elogio.Nunca fui discriminado no PP e passei portodos os patamares. Fui presidente da Jota,na concelhia, distrital e nacional, soucoordenador autárquico do partido,deputado... Os piores exemplos de racismoaconteceram-me no ensino. No liceu tive umprofessor, que era padre, e me dizia: «Parapreto, és muito inteligente».Também na imprensa, que se rege porcritérios muito estratificados, nunca sepondera se há alguém de cor que sejarelevante. Pensa-se sempre que só pode serporteiro, ou serve café, ou é motorista,segurança... Não há a divulgação deexemplos positivos. Se entra um operário ouuma mulher no Parlamento, divulgam, maschega um africano e é ignorado. Com

frequência, tenho vontade de desistir. Masnão nos podemos esconder, nem sentir quea cor da pele é uma fatalidade. Costumavadizer que era a mascote de Silgueiro, Viseu,para onde vim, de Angola, com o meu pai.Tinha seis anos e era diferente, mas sempretentei ver o lado positivo. Fui bem recebidopela comunidade, que me ajudou, até porquesão quase todos familiares. Comecei muitonovo como dirigente associativo. Passei a serum líder cultural na região. Fui presidente datuna, de uma associação recreativa, daassembleia geral do clube local... E desperteio interesse dos partidos. Escolhi o que todosachavam mais improvável. O PP é coerentecom as políticas de imigração que defende.Só se pode dar oportunidade igual aosimigrantes se o país tiver condiçõeseconómicas. O que é mais racional: o PPdizer que se deve receber imigrantes comcritério ou o discurso das portas abertas edepois só ter exemplos de exploração?»

«Os piores exemplos de racismo aconteceram-me

no ensino. Disseram-me: ‘Para preto, és inteligente’»

e os cabo-verdianos são as co-munidades mais miscigena-das: «As suas elites aproxima-ram-se dos poderes coloniais,através da prestação de servi-ços administrativos. Nunca sebateram pela luta contra a dis-criminação. São transnacio-nais, apostaram a sobrevivên-cia na invisibilidade».

Pedro Góis, docente e in-vestigador no Centro de Estu-dos Sociais da Universidadede Coimbra, sublinha o suba-proveitamento dos imigran-tes qualificados: «Em Portu-gal e nos seus países de ori-gem. Vêm estudar áreas emque Portugal não é carencia-do e chegam a um estádio on-de não há como regressar aosseus países».

Até mesmo comunida-des que estão em Portugal des-de o século XV, como os ciga-nos, não conseguem uma inte-gração plena. Serão cerca de de100 mil pessoas e são dos maisexcluídos entre as minorias. Oque Vítor Marques, presiden-te da União Romani Portugue-sa, parece confirmar: «Apesardo sentimento rácico que exis-te em Portugal, mais facilmen-te um indiano, um africano ouum chinês conseguem traba-lho do que um cigano».

O racismo é inculcado nascrianças, é alimentado nas es-colas e perpetua-se no recruta-mento profissional, acusa Ví-tor Marques, um dos poucoslicenciados da comunidade.Os jovens até vão aos cursosde formação, mas, diz, «nãohá quem aceite ciganos paraestagiar. E o Estado é o pri-

Hélder Amaral, 40 anosDEPUTADO DO PARTIDO POPULAR

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«O meu pai era de etnia cigana e sempre fezvida de cigano, vendia calçado nas feiras. Erasupersticioso, não podia ver um sapo...A minha mãe não era cigana e a relação delacom a comunidade sempre foi complicada.Não sei se não foi aceite ou se não o quis ser.A nossa família sempre foi bem vistaem Torres Vedras. Tenho um irmão que éengenheiro. Eu era o filho do ‘Carlos Cigano’e chamava a atenção porque ia ser doutor.A minha mãe era empregada fabril e o saláriodela sempre foi para os nossos estudos. Fizo curso técnico de serralheiro. Quando entreino liceu, descobri a Filosofia. Acabei emDireito, não apreciei o curso, mas gosto deexercer. Não fui especialmente discriminado,mas não nego que o preconceito existe. Comsete anos, um colega disse-me que os paisnão queriam que ele andasse comigo por euser cigano. Os pais da minha primeira paixãotambém não queriam que eu namorassea filha. Fiquei revoltado quando uma prima foibaleada numa rixa entre famílias ciganas.

Alertei a polícia e responderam que ‘sendociganos, que se matassem’. Tinha 15 anos.Até ao início do século XX ainda havialegislação contra os ciganos em Portugale vão ter de passar três gerações paraultrapassar o preconceito. Quando pelaprimeira vez me candidatei à Câmarade Torres Vedras, há seis anos, houveargumentação ética, que no fundo era étnica.Até no seio do PS... A oposição, à bocapequena, alertava os eleitores para o facto deeu ser cigano. A minha expressão de revoltanestas alturas é oposta à da comunidade:em lugar de vomitar, engulo.Nunca reneguei as minhas raízes. Acho queestes comportamentos são por ignorância.Nunca tive dúvidas de que António Costafosse eleito em Lisboa e acho que, se um diao quiser, poderá ser primeiro-ministro.É mais fácil eleger um ‘Obama’ em Portugaldo que nos Estados Unidos. Infelizmentecontinuo a ser um caso raro. Ser ciganoestá-me no sangue, não tenho culpa.»

«Perante situações de discriminação racial, em lugar

de vomitar, engulo. Nunca reneguei as minhas raízes»

meiro a não dar um bomexemplo». A integração falha,sobretudo, pela ausência dosmediadores culturais.

Já Roberto Carneiro,ex-ministro da Educação deCavaco Silva, reconhece que acomunidade chinesa é das me-nos discriminadas em Portu-gal. O professor universitárioafirma ser «evidente que oacesso a cargos de destaquepúblico em Portugal está lon-ge de reflectir a multiplicida-de étnica e sócio-cultural dopaís, nomeadamente na pro-porção demográfica das dife-rentes comunidades sócio-cul-turais residentes».

«Impõe-se aos Estados um deverde protecção dos cidadãos contraformas de discriminação combase na raça, fundada nopostulado de igualdade de todosos seres humanos, princípio emque assenta a generalidade dossistemas políticos e jurídicoscontemporâneos»(Francisca Van Dunem)

O Novo e o Velho Mundo re-lacionam-se de forma comple-tamente distinta com as suasminorias étnicas. Em 2008, oBrasil comemora a passagemde 120 anos desde a publica-ção da Lei Áurea, legislaçãoque aboliu a escravatura, masdados do Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IB-GE) revelam que o rendimen-to recebido pela populaçãonegra é praticamente metadedo da população branca.

O Brasil adoptou a políticade quotas, com o objectivo dediversificar a composição ra-

Carlos Miguel, 51 anosPRESIDENTE DA CÂMARA DE TORRES VEDRAS

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«Já tive tempo para aprender que parasermos iguais temos de ser melhores. Seique sou uma excepção e assumo quea maior parte dos africanos não têm asqualificações exigidas pelo mercado. Não seiqual a pior discriminação, se a causada pelapigmentação, se a da falta de qualificação.Mas não concordo com a vitimização, é umadesculpa. Tinha 26 anos quando saí de SãoVicente, Cabo Verde, e vim para Lisboaestudar Direito, com uma bolsa, que fizquestão de pagar. Nunca perdi um exame.Não sou um perdedor. Acabei o curso com14 valores. Já era casado, tinha dois filhose pensava voltar, mas fiquei. Os estudantesde pele escura eram olhados comcuriosidade. Fui colega de Jorge Sampaio,de Freitas do Amaral, de Jorge Mirandae mantenho estes relacionamentos até hoje.Não senti preconceito porque nuncachumbei e permitiam que eu conversassecom eles. O resto esquecia-se porque havia

igualdade intelectual. Além disso, não estavaem Portugal para olhar a essas questões.Sou até o sócio número seis do Clubede Golfe dos Ingleses. Em 1964 fui convidadopara a Sacor por um professor. Até hoje souquadro da Sacor/Petrogal. Mais tarde, fuipara o Ministério da Indústria como chefede gabinete do secretário de Estado dasFinanças. Queria saber como funcionavao poder. Devo ter sido dos únicos negrosnoGoverno. Bayão-Horta, ex-ministro daIndústria, convidou-me para a administraçãoda Cimpor. Fiquei 19 anos e reformei-me háseis. Em 1968 fundei a Casa de Cabo Verde.Não foi inocente. Queria mostrar quea comunidade tinha membros qualificados.Os cabo-verdianos construíram hospitaise escolas onde não podiam entrar. Há muitosangue, suor e lágrimas nossos em Lisboa.E a minha preocupação esteve semprecom esta gente porque ser elite não éum privilégio, é uma responsabilidade.»

«Não sei qual a pior discriminação, se aquela causada

pela pigmentação, se a da falta de qualificação»

cial da elite, afinal é o paíscom a segunda maior popula-ção negra do mundo, atrásapenas da Nigéria. Mesmo as-sim, a hipótese de um negroingressar na universidade é decerca de 18%, subindo para43% entre os brancos.

Com Lula da Silva na presi-dência do Brasil, há ministrosnegros na Cultura, no Am-biente e no Desporto e umaSecretaria Especial de Políti-cas de Promoção da Igualda-de Racial, mas não há negrosna presidência das grandes em-presas estatais nem das maio-res empresas privadas. O Bra-sil tem até o Dia Nacional daConsciência Negra, mas estescontinuam a morrer mais porhomicídios.

Apesar do fenómeno Ba-rack Obama e das conquistasjá garantidas, os Estados Uni-dos não resolveram o proble-ma da discriminação racial. Se-gundo o jornal «The Washing-ton Post», há cerca de 18 mi-lhões de homens negros nosEstados Unidos, mas, porexemplo, na cidade de NovaIorque, 50% estão desempre-gados. Mesmo Obama é acusa-do de não ser suficientementenegro. O seu outro «pecado» éser Hussein de nome e, em par-te, com origens muçulmanas.É o único senador negro na ac-tual legislatura. A sua bandeiraé dizer que é possível mudar.Será?

Curioso é que nos gover-nos mais à direita se encon-tram alguns dos principais re-presentantes políticos de mi-norias étnicas. Os republica-

Lucas da Cruz, 77 anosADVOGADO E EX-ADMINISTRADOR DA CIMPOR

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«Vim de Angola sozinho, de barco. Ainda nãotinha completado 20 anos e trazia apenasuma bolsa simbólica do governo angolano,que tinha por estratégia premiar os bonsalunos. Fui colega de escola primária dosócio-fundador deste escritório, AgostinhoPereira de Miranda. Já estou há 39 anos emPortugal. Vim para estudar Direito e, quandochegavam as férias, não tinha dinheiro paravisitar a família. Na altura, contavam-se pelosdedos os estudantes negros nasuniversidades portuguesas.Estudei emLisboa e em Coimbra, onde a integração foimelhor, porque éramos considerados quasefamília. Depois cheguei a voltar para Angola,fui magistrado e até estive na direcção daPolícia Judiciária, mas não aguentei e retorneia Portugal porque não me integrei na minhaterra natal. Casei com uma guineense quevivia em Portugal. Aqui, cumpri o serviçomilitar e até carreguei a bandeira nacional.Estive sob o comando de Otelo Saraivade Carvalho e aderi ao Movimento do 25

de Abril. Em Mafra, habituei-me a ouviros comentários de ‘olha o preto da Guiné!’.Profissionalmente, passei pela Presidênciado Conselho de Ministros e pelos ministériosda Justiça e das Finanças, como técnicosuperior aduaneiro. Fui mesmo o primeiroportuguês negro na direcção de alfândegas.Andei pela Covilhã, por Vila Real de SantoAntónio e em Lisboa, e sempre aguenteios olhares de curiosidade. Gosto de meapresentar bem. Mesmo assim, uma vez,um importante empresário português entrouno meu gabinete de director das alfândegase, como só me viu a mim, saiu, dizendoque o director não estava lá. Quando voltoua entrar, expliquei: ‘Sou negro, mas soudirector’. Na altura tinha a jurisdição sobretodos os barcos que entravam no Tejo!Aos meus filhos, de 31, 27 e 25 anos, passoa mensagem de que não se deve recorrerà vitimização. É curioso que cada filho temuma cor diferente, mas são de Lisboa enunca mostraram interesse em ir a Angola.»

«Fui o primeiro português negro na direcção das

alfândegas. Sempre aguentei olhares de curiosidade»

nos norte-americanos exibi-ram Collin Powell e Condo-leezza Rice, Nicolas Sarkozyostenta Rama Yade, muçul-mana de origem senegalesa esecretária de Estado dos Ne-gócios Estrangeiros, ou a po-derosa Rachida Dati, ministrada Justiça, de origem marro-quina e argelina.

Mas quem fala em racismonão se pode esquecer do casode Ayaan Hirsi Ali, a deputadaholandesa de origem somalique perdeu a sua nacionalida-de por ter adulterado o seu no-me durante o processo de natu-ralização. Muçulmana, foi per-seguida por denunciar abusoscontra as mulheres islâmicas.Foi dela, também, o argumen-to do documentário sobreTheo Van Gogh, o realizadorholandês assassinado por umradical muçulmano em 2004.

NaEuropaé impossível fa-zer estudos sobre a real situa-ção das minorias raciais. A Di-rectiva Europeia de 29 de Ju-nho de 2000 estabelece que se«aplica o princípio de igualdadede tratamento entre as pes-soas, sem distinção de origemracial ou étnica». No ponto 6,diz mesmo que a UE «rejeita asteorias que tentam provar aexistência de raças humanas se-paradas». Desde então, todas aspesquisas estão interditas de fa-zer qualquer identificação combase em critérios étnicos. Ape-sar disso, Agostinho de Miran-da, sócio do escritório MirandaCorreia Amendoeira & Asso-ciados, publicita que 31% dosseus advogados são negros por-que acredita na riqueza da mis-

Valdemar Correia, 59 anosADVOGADO

70 29 Março 2008 I Expresso

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«A minha vida mudou com a publicaçãodos Versículos Satânicos. Foi um choquequando cheguei a Portugal, com seis anos,vinda de Moçambique, e as vizinhas da ruada Atalaia chamavam-me ‘retornada’.O fenómeno Salman Rushdie colou-meuma nova identidade. Antes, passavadespercebida, mas os muçulmanostornaram-se potenciais agressores.Uma vez, num jantar, quando disse que eraxiita, a filha de uma amiga respondeu-me:‘Se não te conhecesse, diria que tensuma granada debaixo do rabo’. Como 11 de Setembro, fracturou-se qualquersentimento de unidade. Percebo quemrecusa dar a cara contra a discriminação.Independentemente das pertençasreligiosas, ou das origens geográficas,as pessoas sentem-se portuguesas. Nãose consideram minorias e ficam ofendidas.As diferenças não se sentem quandose nasce, são socialmente construídas. Nãome posso pôr de joelhos e pedir desculpaspor ser quem sou. Sempre fui e souportuguesa. Estudei no Liceu Francês

e nunca entendi quando me perguntavampela pintinha na testa. Fico satisfeita como renascimento de um movimento ‘black isbeautiful’, que inclui os indianos, porque éa construção da auto-estima positiva.Desagrada-me que o poder em Portugalnão reflicta a diversidade étnica do país. Souismaili, sociedade baseada no secretismo,onde, quem não tem sucesso, não existe.Fiz mestrado sobre a representação dasmulheres e descobri que não havia muitasdiferenças entre muçulmanas e portuguesas.Em Londres fiz uma pós-graduação que melevou ao Egipto, aprendi árabe, persa, estiveno Tajiquistão. Tenho uma filha de 10 anose um rapaz de quatro. Ambos frequentamum colégio católico. Ela foi eleita delegadapastoral! Sem dramas, tranquilizou-me:‘É tudo muito parecido’. O grande desafioé lidar com as diferenças e é preciso dotaras pessoas de capacidade de diálogo, atéporque elas estão no hífen:português-indiano-muçulmano-estudante...Não são uma coisa nem outra, sãoo que está no meio.»

«As diferenças não se sentem quando se nasce,

são socialmente construídas. Fui e sou portuguesa»

cigenação: «É uma grande for-ça desta sociedade». Diz que osclientes procuram o escritóriopela quantidade de advogadosoriundos de África e com expe-riência nos mercados africa-nos. Mas reconhece: «Não estáno código genético tratar igual-mente o que é diferente e, porisso, há hostilidade étnica».

«A Constituição da Repúblicaproclama a equivalência detodos os cidadãos em dignidadesocial e proíbe a discriminaçãoem razão da raça, sexo,ascendência, língua, religião,convicções políticas ou outrosfactores similares (Art.º 13.º)».

Para combater as estratégiassubtis do preconceito, o atéhá menos de dois meses AltoComissário para a Imigraçãoe Minorias Étnicas, Rui Mar-ques, diz que «está a ser desen-volvido um código de condu-ta contra a discriminação étni-ca por parte dos directores deRecursos Humanos». Na Sué-cia, por exemplo, já se adopta-ram os currículos anónimos:sem foto, morada e nomecompleto. Só um número.«Para ultrapassar o preconcei-to talvez sejam necessáriasmais duas ou três gerações»,afirma Rui Marques, queacrescenta: «Quando ummembro de uma minoria temsucesso social e profissional,prefere deixar-se absorver pe-la maioria. Ganha direito àtransparência. Era positivoque aceitassem ser líderes deopinião, mas a maioria afas-ta-se do discurso étnico».

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Faranaz Keshavjee, 40 anosCONFERENCISTA E PROFESSORA UNIVERSITÁRIA

72 29 Março 2008 I Expresso

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