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Sonia Regina de Mendonça * A dupla dicotomia do ensino agrícola no Brasil (1930-1960) Introdução As sociedades de classes têm seu sistema de ensino marcado pela dualidade enquanto expressão assimétrica das relações so- ciais e de poder. Esse traço se agudizou, sobretudo, sob a égide do capitalismo e, no caso da sociedade brasileira, assumiu cará- ter extremamente doloroso ao longo de toda a sua história. Se, por um lado, é fato que, no decorrer do século XX, nossa Edu- cação experimentou grandes alterações, complexificando-se proporcionalmente às alterações no padrão de modernização, por outro, sua natureza dual se manteve como característica basilar, refletindo o permanente favorecimento à acumulação capitalista. Em meio a este quadro adquire relevância o ensino agrícola, uma das mais cabais manifestações de tal dualismo, atravessado, como sugere o título deste texto, não apenas pela Sonia Regina de Mendonça é professora do Programa de Pós-gra- duação em História da UFF e “Cientista de Nosso Estado” pela Faperj ([email protected]).

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  • Sonia Regina de Mendona*

    A dupla dicotomia do ensino agrcola no Brasil (1930-1960)

    Introduo

    As sociedades de classes tm seu sistema de ensino marcado

    pela dualidade enquanto expresso assimtrica das relaes so-

    ciais e de poder. Esse trao se agudizou, sobretudo, sob a gide

    do capitalismo e, no caso da sociedade brasileira, assumiu car-

    ter extremamente doloroso ao longo de toda a sua histria. Se,

    por um lado, fato que, no decorrer do sculo XX, nossa Edu-

    cao experimentou grandes alteraes, complexificando-se

    proporcionalmente s alteraes no padro de modernizao,

    por outro, sua natureza dual se manteve como caracterstica

    basilar, refletindo o permanente favorecimento acumulao

    capitalista. Em meio a este quadro adquire relevncia o ensino

    agrcola, uma das mais cabais manifestaes de tal dualismo,

    atravessado, como sugere o ttulo deste texto, no apenas pela

    Sonia Regina de Mendona professora do Programa de Ps-gra-duao em Histria da UFF e Cientista de Nosso Estado pela Faperj ([email protected]).

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    polarizao que ope o trabalho manual ao trabalho intelectu-

    al como tambm por aquela que antagonizou duas agncias da

    sociedade poltica dele incumbidas: o Ministrio da Agricultura

    e o da Educao, particularmente no perodo compreendido

    entre 1930 e 1950.

    No obstante, a historiografia especializada escassa e pouco

    historicizante parece desconhecer a importncia dessa mar-

    ca dual e sua relao com a diviso social do trabalho no de-

    senvolvimento capitalista, referindo-se, quase sempre, ora a ini-

    ciativas extremamente contemporneas no tocante ao objeto,

    ora se referindo, indistintamente, suposta existncia de uma s

    modalidade de educao rural que tem sua origem atrelada

    ao movimento de 1930 e criao do Ministrio da Educao e

    Sade (MES), em 1931. Tudo parece ter-se passado como se este

    ramo de ensino tivesse nascido da clarividncia de assessores

    dos novos grupos no poder, encarregados de implant-lo com

    vistas ao resgate do arcasmo atribudo ao homem do campo.

    Diante desse quadro genrico, pretendemos, em primeiro lugar,

    tecer algumas consideraes acerca dos equvocos consagrados

    pela historiografia dedicada ao ensino agrcola entre os anos

    1930 e 1950, tentando contribuir para desnaturalizar a suposta

    distribuio indiferenciada do conhecimento regulada pela l-

    gica dominante. Em segundo lugar, focalizaremos um dos epi-

    sdios mais patentes de conflitos intra-estatais, relativo dispu-

    ta travada entre o Ministrio da Agricultura e o Ministrio da

    Educao pelo controle de tal modalidade de ensino. Desse

    modo, o ponto de partida da presente reflexo a crtica es-

    cassa politizao da temtica que encontramos na literatura es-

    pecializada, uma vez que o movimento de 1930 no significou

    uma ruptura, mas, sim, a continuidade de prticas perpetradas

    pela Pasta da Agricultura quanto ao ensino rural, a ela subordi-

    nado at a aprovao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao

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    Nacional, de 1961, a qual passou a centralizar no Ministrio da

    Educao todos os ramos de ensino no pas.

    O ensino agrcola na Primeira Repblica

    A origem dessa precoce interferncia estatal junto agricultura

    relaciona-se abolio da escravido, marco do processo de

    transio ao capitalismo no Brasil (Velho, 1979) mediante a re-

    definio das formas de trabalho compulsrio no campo, o que

    originou uma indissolvel e contraditria aliana entre grandes

    proprietrios rurais e sociedade poltica. Diante disso, um dos

    aspectos centrais da atuao do Ministrio da Agricultura na

    Primeira Repblica consistiu em implantar uma poltica de ensi-

    no agrcola calcada num conjunto de prticas de arregimentao

    de mo-de-obra, marcadas pelo autoritarismo inerente cons-

    truo do mercado de trabalho no pas. Simultaneamente, a

    conjuntura gestada pela abolio mobilizaria setores diversos

    de grandes proprietrios mormente aqueles vinculados a

    complexos agrrios menos dinmicos a se articularem para

    reagir ao temor desorganizao da produo, mediante a cons-

    truo de uma representao genrica de crise da agricultura1

    que visava dar conta, segundo a origem de seus enunciantes, de

    situaes regionais especficas (Mendona, 1997).

    Seria em torno dessa representao que se organizariam inme-

    ras entidades patronais agrrias visando formular alternativas

    crise destacando-se dentre elas a Sociedade Paulista de Agricul-

    tura/Sociedade Rural Brasileira (paulistas) e a Sociedade Na-

    cional de Agricultura (fluminense). Enquanto as primeiras re-

    presentavam o ncleo dinmico da acumulao cafeeira do pa-

    s, a segunda entidade agremiava setores agrrios distintos, so-

    1 Para facilitar a leitura e compreenso do texto, optei por usar o it-lico como forma grfica atribuda a toda e qualquer expresso de poca ou trechos documentais.

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    bretudo do eixo Nordeste/Sul que, desde fins do sculo XIX,

    enfrentavam obstculos para colocar seus produtos no mercado

    internacional. Assim, enquanto os fazendeiros paulistas viam

    na imigrao macia de italianos a soluo da crise, os proprie-

    trios da SNA alocavam-na na diversificao da agricultura e

    na recriao do Ministrio da Agricultura (MA), gerando uma

    acirrada competio poltica intraclasse dominante agrria no

    perodo qual se perpetuaria no tempo.

    Veculo e veiculador de propostas modernizantes elaboradas por

    fraes da classe dominante agrria brasileira secundarizadas

    no bloco no poder, o MA no cuidaria das demandas oriundas

    da grande burguesia paulista, viabilizando polticas agrcolas

    favorveis aos setores da SNA, dentre elas sua poltica de ensino

    agrcola calcada na arregimentao de mo-de-obra e justificada

    em nome da Educao tida como capaz de produzir o chamado

    trabalhador nacional. Gerou-se uma leitura da realidade que, no

    apenas atribua ao arcaico homem do campo a responsabilidade

    pela crise, como tambm preservava a estrutura fundiria e legi-

    timava modalidades de interveno pedaggica junto a ele, evi-

    tando sua fuga ao mercado. A atuao do MA no sentido de

    construir e fixar o trabalhador nacional materializou-se em duas

    instituies: Aprendizados Agrcolas (AAs) e Patronatos Agr-

    colas (PAs) responsveis pela preparao de trabalhadores aptos

    ao manejo de mquinas e tcnicas modernas de cultivo, ensinando-

    lhes, sobretudo, seu valor econmico (MA, 1913: 67).

    Os Aprendizados ministravam curso elementar com dois anos

    de durao, visando fornecer a aprendizagem dos mtodos racio-

    nais do trato do solo, bem como noes de higiene e criao animal,

    alm de instrues para o uso de mquinas e implementos agrcolas

    (Idem, 1911: 57). Mantinham ainda um curso de primeiras le-

    tras, teoricamente destinado a aprimorar a qualidade tcnica de

    seu pblico-alvo: jovens entre 14 e 18 anos, comprovadamente

    filhos de pequenos agricultores. Funcionando sob regime de

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    internato, os AAs contavam com instalaes semelhantes s e-

    xistentes numa grande propriedade agrcola, dando suporte a

    um ensino eminentemente pragmtico e de formao para o tra-

    balho. Entre 1911 e 1930, o Ministrio manteve de cinco a oito

    Aprendizados, espalhados por distintas regies do pas, matri-

    culando anualmente entre 150 e 250 jovens. Sua maior incidn-

    cia, no entanto, verificou-se nas regies aucareiras e cotonicul-

    toras do Norte e do Nordeste, contempladas com 50% desses to-

    tais, em resposta articulao existente entre os proprietrios da

    SNA e o Ministrio, cujo alto escalo seria por ela preenchido.2

    A despeito de seu nmero reduzido, a importncia dos Apren-

    dizados residiu em difundir os princpios do ensino agrcola co-

    mo instrumento do poder, material e simblico, dos grupos

    dominantes agrrios sobre o trabalhador rural, j que, colocan-

    do porta do rurcola um saber presidido pela noo de pro-

    gresso, naturalizava-se a oposio entre uma agricultura mo-

    derna e outra arcaica, bem como a subordinao desta

    primeira, sendo ambas despidas de seu contedo de classe. Os

    Aprendizados mantinham seus internos numa imobilidade

    prpria a viveiros de mo-de-obra, onde fazendeiros da vizi-

    nhana recrutavam, gratuitamente, trabalhadores para tarefas

    sazonais (Mendona, 1999).

    Em certas circunstncias, entretanto, as instituies de ensino

    agrcola do Ministrio funcionaram como meio de interveno

    junto a categorias sociais pouco vinculadas agricultura, ser-

    vindo como paliativo questo social urbana. Este foi o caso

    dos Patronatos Agrcolas (PAs), criados em 1918 em resposta

    conjuntura gerada pela Primeira Guerra Mundial. Rurais por

    necessidade e agrcolas mais por convenincia do que por voca-

    o j que o trabalho no campo era visto como nico meio de

    2 Dos 11 titulares da Pasta entre 1910 e 1930, cinco provinham de es-tados do Norte e do Nordeste.

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    preservar sua auto-subsistncia e manuteno3 os Patronatos

    abrigariam a infncia rf desvalida da cidade do Rio de Janeiro, a-

    tendendo a interesses de segmentos urbano-industriais empe-

    nhados em construir uma imagem profiltica da Capital Fede-

    ral. Associando as noes de ensino prtico e defesa militar, a

    lei que criava os Patronatos deixava claro seu escopo, malgrado

    a retrica filantrpica que os justificava: eles consistiam numa

    alternativa s instituies prisionais urbanas, tidas como degra-

    dantes e infames. No entanto, produziriam outro tipo de detento,

    terapeuticamente disciplinado por essas escolas de trabalho que

    serviam de freio s tendncias anrquicas intolerveis atribudas ao

    novo agente social, o proletariado (apud Oliveira, 2003: 56). Os

    Patronatos eram ncleos de ensino profissional destinados a ha-

    bilitar seus internos em horticultura, jardinagem, pomicultura,

    pecuria e cultivo de plantas industriais, mediante cursos pro-

    fissionalizantes fornecidos a menores rfos, entre 10 e 16 anos,

    recrutados pelos chefes de polcia e juzes da capital federal.

    A dupla importncia dos Patronatos, a despeito de seu pequeno

    nmero como instrumento de profilaxia social e fornecedor

    de mo-de-obra para setores agrrios menos dinmicos pode

    ser percebida atravs de alguns indicadores. Entre 1918 e 1930,

    o total de PAs saltaria de cinco para 98, distribudos por quase

    todos os estados da Federao. Seu papel na arregimentao de

    trabalhadores rurais adquire relevo atentando para dois outros

    aspectos: sua abrangncia nacional e sua concentrao tambm

    nas regies Nordeste e Norte que contariam, em 1930, com 38%

    3 O decreto 12.893 de fevereiro de 1918 que criou os Patronatos esta-belecia que o que se espera, pelo lado financeiro, que sejam ao mesmo tempo campos de demonstrao e campos de produo. mister que tenham lucros e deixem resultados, subsistindo por si prprios. Mi-nistrio da Agricultura, 1918: 141, grifos no original.

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    do total dessas instituies, abrigando 2.300 jovens provenien-

    tes do Rio de Janeiro, contra os 3.200 alocados no Sudeste.4

    Estado e ensino agrcola aps-1930

    Esses comentrios iniciais subsidiam a constatao de que a po-

    ltica de ensino agrcola praticada pelo MA contou com uma

    soluo de continuidade aps 1930, contrariamente ao que a-

    ponta a historiografia especializada. A rigor, nem o ensino tc-

    nico rural seria uma inovao dos novos grupos no poder,

    nem 1930 deve continuar figurando como marco cannico da

    total redefinio dos rumos da Educao brasileira.

    Outra continuidade pode ser observada na consagrao da

    primeira grande dualidade vigente no sistema de ensino do pa-

    s: a que atribua o nvel primrio como responsabilidade dos

    governos estaduais e municipais, enquanto os ramos secund-

    rio e superior caberiam Unio. Com isso, mantinha-se e am-

    pliava-se o fosso existente entre o ensino primrio de cunho al-

    fabetizante e popular, destinado ao grosso da populao, e o

    ensino secundrio e superior, voltados formao de setores

    mdios e grupos dominantes. Se essa dualidade continuou

    segmentando a educao aps 1930, mais grave ainda ela se ve-

    rificaria com relao ao ensino profissional em geral, estigmati-

    zado pela marca de Caim do trabalho manual e dotado de

    um cunho parcelar e incompleto. Em verdade, a principal ca-

    racterstica das reformas executadas pelo ministro da Educao

    Gustavo Capanema, a despeito de sua retrica em contrrio,

    consistiu em ratificar o ensino secundrio como formador das

    elites condutoras do pas e o ensino profissional como formador

    do povo conduzido (Werle, 2005: 34).

    4 Os demais 62% dispersavam-se por sete estados, com nfase, em incios da srie, para o do Rio de Janeiro. Ministrio da Agricultura, 1918 e 1930.

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    A conjuntura histrica marcada pelos efeitos da crise de 1929,

    pelo crescimento populacional e pelo desenvolvimento da in-

    dustrializao junto economia e sociedade brasileiras torna-

    ria imperioso alterar o sistema de ensino. At porque toda uma

    gerao de especialistas de novo tipo os assim chamados pro-

    fissionais da educao consolidados no decorrer dos debates e

    reformas de ensino realizados por alguns governos estaduais

    na dcada de 1920 e organizados, no mbito da sociedade civil,

    em torno da Associao Brasileira de Educao (fundada em

    1924), assomaria o campo educacional, disputando com polti-

    cos tradicionais, intelectuais catlicos e profissionais liberais a

    imposio de um novo projeto educacional legtimo.

    Concomitantemente, a vitria dos setores dominantes agrrios

    at ento secundarizados assegurada pela Revoluo de 1930

    significaria, em princpio, a vitria dos grupos agremiados pela

    SNA e dirigentes do MA. Nesse sentido, sua poltica de edu-

    cao agrcola seria ratificada, apesar da emergncia de um

    novo foco de conflitos intra-estatais a partir da criao, pelo go-

    verno provisrio, de dois novos Ministrios: o do Trabalho, In-

    dstria e Comrcio (MTIC) e, sobretudo, o da Educao e Sade

    (MES). Os quadros deste ltimo, em especial, revelaram-se im-

    portantes antagonistas, j que a nova Pasta fora incumbida no

    s de nacionalizar o ensino primrio em sua verso alfabetiza-

    dora (Paiva, 1983), como de centralizar a gesto sobre todo e

    qualquer ramo do ensino. Integrados por representantes de ex-

    trao sociopoltica ecltica, os dirigentes do MES congregari-

    am, sobretudo, os educadores profissionais, vistos como capazes

    de gerir cientifica e pedagogicamente este campo. O novo Minist-

    rio, ao qual se costuma atribuir o pioneirismo em qualquer

    modalidade de iniciativa educacional no perodo, passaria a

    disputar com o da Agricultura as atribuies sobre o ensino a-

    grcola, ao considerar que as escolas primrias incluindo a-

    quelas situadas no campo deveriam afastar-se do ensino tc-

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    nico ou vocacional, em nome do equvoco pedaggico de so-

    brecarregarem as crianas com a preparao para o trabalho.

    Em face da criao dos dois novos Ministrios, a Pasta da Agri-

    cultura sofreria uma reforma da qual se destacou a constituio,

    em 1938, de um rgo especialmente voltado para assuntos e-

    ducacionais: a Superintendncia do Ensino Agrcola (SEA), di-

    retamente subordinada ao ministro, a qual, em 1940, incorpora-

    ria o ensino da Veterinria (tornando-se Seav). Seu escopo con-

    sistia em orientar e fiscalizar o ensino agrcola e veterinrio em

    seus diferentes ramos e graus, com especial cuidado no tocante

    ao exerccio da profisso agronmica, cujos diplomas seriam

    por ela registrados e reconhecidos.

    O Decreto-Lei 23.979 de maro de 1933 redefiniria algumas das

    instituies at aqui encarregadas do ensino agrcola. Os anti-

    gos Patronatos, por exemplo, passaram para a alada do Minis-

    trio da Justia, originando o Servio de Assistncia ao Menor

    (SAM), de carter semelhante ao vigente na Primeira Repblica.

    J os Aprendizados seriam reclassificados segundo nova tipo-

    logia institucional que previu at a aprovao da Lei Orgnica

    do Ensino Agrcola (Loea), em 1946, pelo Ministrio da Educa-

    o trs tipos distintos de cursos: a) o ensino agrcola bsico5

    com trs anos de durao e destinado a formar capatazes valen-

    do-se de clientela composta por jovens a partir de 14 anos, com

    primrio completo, preservando o carter de escola de traba-

    lho (Salles, 1941: 333); b) o ensino rural com durao de dois

    5 Nesse sentido, quase todos os antigos Aprendizados seriam reen-quadrados como Escolas Agrcolas Bsicas, oferecendo, simultanea-mente, o ensino rural, o ensino agrcola e os cursos de adaptao, co-mo por exemplo o AA Manuel Barata (Par); o AA Vidal de Negreiros (Paraba); os AAs de So Bento e Garanhuns (ambos em Pernambuco; o AA Benjamim Constant (Sergipe) que, de Patronato tornou-se AA, ministrando ensino rural e de adaptao; o AA Sergio de Carvalho (Bahia), dentre vrios outros.

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    anos e formador de trabalhadores rurais, a partir de um pblico

    de crianas com mais de 12 anos, que j tivessem recebido al-

    guma instruo primria, totalmente baseado em aulas prticas;6

    e finalmente c) os cursos de adaptao esses, sim, uma inova-

    o quanto ao perodo anterior, uma vez que no mais se diri-

    giam a crianas e adolescentes, mas ao chamado trabalhador em

    geral, via de regra adulto e sem qualquer diploma ou qualificao

    profissional prvia. Justamente por isso, os cursos de adaptao

    no contavam com calendrios formais, sendo organizados em

    qualquer poca do ano e marcados por sua rpida durao, es-

    tando a matrcula ao alcance de todos, sem distino de sexo ou idade

    (Salles, 1941: 314). Os novos estabelecimentos de ensino agrco-

    la se, por um lado, perdiam seu cunho semiprisional em detri-

    mento de uma dimenso profissionalizante e centrada no tecni-

    cismo, por outro, no seriam de fato bafejados pela propalada

    preocupao com o fim do analfabetismo. Em contrapartida,

    denotando descontinuidades com a situao vigente at 1930, a

    Seav implantaria cursos supletivos no mesmo esprito com que

    foram concebidos os cursos de adaptao, dotados da novidade

    de destinarem-se, exclusivamente, a adultos. 7

    6 O Ensino Rural, na medida em que acabaria por fornecer, pari passu s habilidades tcnicas, a prpria alfabetizao, dividia-se em dois ciclos de um ano cada, sendo ministradas, no primeiro ano, disciplinas como lngua ptria, aritmtica, noes de geografia e cartografia, his-tria ptria, desenho a mo livre, noes de agricultura elementar e mquinas agrcolas, bem como, nas disciplinas estritamente prticas (contempladas com carga horria equivalente ao dobro das aulas te-ricas), olericultura, fruticultura, jardinocultura e trabalho na oficinas. J no segundo ano constavam as disciplinas: portugus, aritmtica, noes de cincias fsicas e naturais, desenho linear, noes de criao de animais domsticos e, nas aulas prticas, habilitaes em avicultu-ra, apicultura, sericicultura, piscicultura e trabalhos em oficinas.

    7 Tal inflexo no pode ser descolada da primeira Comisso Brasilei-ro-Americana, a de Produo de Gneros de Primeira Necessidade, de

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    A brecha para a redefinio do ensino agrcola no rumo da ca-

    pacitao do trabalhador rural adulto provocaria reaes da

    parte dos dirigentes do Ministrio da Educao que, em incios

    de 1945, lanariam em resposta a Campanha de Educao de

    Adultos, coordenada pelo diretor do Instituto Nacional de Es-

    tudos Pedaggico (Inep), Loureno Filho. Financiada com re-

    cursos da Unio, estados, territrios e Distrito Federal, a Cam-

    panha tinha por meta instalar 10.000 classes de ensino supletivo,

    destinadas a adolescentes e adultos analfabetos, contando com 25%

    das verbas oriundas do Fundo Nacional de Ensino Primrio,

    criado em 1942 (RBEP, 1947: 32). O alcance desta Campanha,

    entretanto, seria basicamente urbano, destinando-se a operrios

    e trabalhadores da cidade, a despeito dos titulares da Pasta con-

    tinuarem reivindicando para sua alada todas as instituies de

    ensino existentes no pas. Em plena dcada de 1940, insistiria o

    ministro Capanema que

    Em abono da transferncia de todos os estabelecimentos de ensino profissional para o MES diria, primeiro, que se trata de uma providncia administrativa racionalizadora, recla-mada pelo princpio da unidade de direo; e segundo, que no pedagogicamente certo que a Educao da mocidade continue a ser feita sem unidade de mtodos, de programas e de tcnicas, pois o resultado disto a confuso e a esterili-dade (Arquivo Capanema, rolo 28, fotograma 566).

    Em contraste com o empreendimento do MES, o MA dispunha

    de escassos recursos para suas instituies de ensino agrcola

    1942 e que ser abordada adiante. Segundo o ministro Apolnio Sal-les, Adotou-se recentemente a intensificao de cursos supletivos, para promover uma educao direta e generalizada de todos que dela necessi-tem, em qualquer idade e de ambos os sexos. Tem-se procurado corri-gir o erro de se supor que s devem ser objeto da obra educativa os que se encontram ainda em idade propriamente escolar, desprezando-se todos aqueles que no tiveram oportunidade de freqentar escolas ou a elas no podem voltar para cursos regulares. (MA, 1943: 327).

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    contando, alm de seu reduzido oramento, com a contribuio

    de alguns governos estaduais, que sediavam, em regime de

    convnio, um de seus trs tipos de escolas. Seriam constantes as

    reclamaes de que o Ministrio da Educao e Sade, atravs do

    Conselho Nacional de Servio Social, distribui pequenssimos auxlios

    para algumas escolas de agricultura (MA, 1942: 328).

    A disputa Ministrio da Agricultura versus Ministrio da Edu-

    cao ganharia novos contornos a partir do envolvimento dos

    Estados Unidos na Segunda Grande Guerra, donde resultou a

    assinatura do primeiro de um conjunto de tratados firmados

    entre aquele pas e a Pasta da Produo, originando a Comisso

    Brasileiro-Americana para a Produo de Gneros Alimentcios

    em 1942. Ela atuaria em parceria com instituies de ensino a-

    grcola ministeriais de modo a acelerar a formao dos traba-

    lhadores rurais que maximizariam a produo dos gneros de

    primeira necessidade necessrios ao esforo de guerra. Junto

    a esta experincia inicial de cooperao nasceriam os primei-

    ros clubes agrcolas no Brasil, dos quais trataremos adiante.8

    Por enquanto, importa reter que as prticas do MA com relao

    ao ensino agrcola, at este momento, ainda se destinavam,

    predominantemente embora no mais exclusivamente for-

    mao tcnica de jovens e adolescentes, dentro do esprito

    pragmatista que marcara sua atuao.

    8 A rigor, a campanha do Ministrio da Agricultura em prol da mul-tiplicao de Clubes Agrcolas iniciou-se em 1940, aps o retorno de alguns de seus tcnicos, todos eles agrnomos, de viagem de estudos aos Estados Unidos. Assim, o Relatrio Ministerial, de 1945, acusa o registro, junto Pasta, de 886 Clubes entre 1 de janeiro de 1940 e 1 de junho de 1944, que teriam como contrapartida o fornecimento de adu-bos, sementes etc. pela Seav. Ministrio da Agricultura, 1945: 392.

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    Estud.soc.agric., Rio de Janeiro, vol. 14, no. 1, 2006: 88-113. 100

    Os novos rumos do ensino agrcola

    Historicamente, Estados Unidos e Amrica Latina, apesar de

    vizinhos, mantiveram laos muito mais estreitos com a Europa

    do que entre si. S recentemente a conjuntura econmica e pol-

    tica sobredeterminaria novo desenho s relaes entre ambos.

    A Poltica da Boa Vizinhana do presidente Roosevelt, nos

    anos 1930, estreitou os contatos com a Amrica Latina atravs

    do Institute of Inter-American Affairs (IIAA), criado em 1942 e

    responsvel pelo primeiro programa de assistncia tcnica

    destinado a melhorar as condies de sade, educao e agri-

    cultura na Latino-amrica (Leavitt, 1964: 221). Segundo alguns

    autores, o Servio de Cooperao norte-americano funcionaria

    como entidade de fundos e equipes mtuos, porm dotada de

    organizao semiministerial, mobilizada em funo de projetos

    especficos, sempre envolvendo os governos latino-americanos

    em seu co-patrocnio. Seu status semigovernamental conferiu-

    lhe razovel liberdade para suplantar as resistncias usuais s

    inovaes contidas na aplicao desses projetos, sendo elas

    dirigidas por tcnicos norte-americanos.

    J o Programa do Ponto IV, lanado na gesto Truman em 1949,

    representaria a consolidao do primeiro compromisso norte-

    americano com a assistncia tcnica em larga escala, sendo exe-

    cutado pela Technical Cooperation Administration (TCA) que

    fundou novas instituies como a Foreign Operations Adminis-

    tration (FOA) e a International Cooperation Administration

    (ICA), j em incios da dcada de 1950. Especialistas afirmam

    que a popularidade do Ponto IV deveu-se, em parte, ao orgu-

    lho norte-americano de sua capacidade de compartilhar um

    avanado kwow-how tcnico a ser aplicado em pases menos in-

    dustrializados, com custo mnimo. Por certo a histria dos pro-

    gramas de cooperao estrangeira evidenciou que a tcnica

    em si mesma no seria suficiente para produzir as mudanas

    sociais necessrias ao desenvolvimento, uma vez que no

  • Sonia Regina de Mendona*

    101

    consideravam nem a necessidade de treinamento de seus ope-

    radores locais, nem a necessidade de aprovao de leis agrrias

    desconcentradoras da propriedade, especialmente no caso do

    Brasil, onde a resistncia dos grupos agrrios a qualquer altera-

    o fundiria no pas constante, at os dias de hoje.

    Por outro lado, uma vez que o Ponto IV previa ainda impedir o

    avano do comunismo na Amrica Latina, construindo o cor-

    do sanitrio tpico da recm-inaugurada Guerra Fria, cabe

    inquirir se o desenvolvimento pretendido seria capaz de i-

    munizar contra o vrus do comunismo, uma vez que, na ver-

    dade, o Programa partia do princpio que a pobreza resultava

    da ignorncia e da falta de capitais. Ele desconsiderava que no

    se estava diante de escolhas voluntrias, porm de um conjunto

    de circunstncias, muitas delas de carter estrutural. Logo, os

    limites impostos por uma ordem social tida como arcaica de-

    veriam ter sido levados em conta, bem como o fato de que os

    pases ajudados eram pobres em funo de contradies

    inerentes a sua histria e estrutura fundiria.

    Muitos autores se perguntam a razo de o Programa no ter

    atendido diretamente aos pases no desenvolvidos median-

    te, por exemplo, a melhoria dos termos de intercmbio comer-

    cial entre os pases, definindo-se prticas mercantis mais favo-

    rveis aos produtores latinos. Controvrsias parte, a explica-

    o do xito do Ponto IV parece residir no fato de ter definido a

    Educao como um de seus principais instrumentos, o qual, por

    seu turno, ao alocar sua funcionalidade na categoria racionali-

    dade, tornaria o Programa mais facilmente aceito pelos grupos

    dominantes locais, uma vez que no se tocaria na estrutura

    fundiria do pas. Com isso, no apenas minimizavam-se po-

    tenciais conflitos de classe no campo, como contribua-se para o

    crescimento econmico (Carnoy, 1974: 160).

  • A dupla dicotomia do ensino agrcola no Brasil (1930-1960)

    Estud.soc.agric., Rio de Janeiro, vol. 14, no. 1, 2006: 88-113. 102

    Ao mesmo tempo, os projetos educacionais implantados pelo

    Ponto IV, ao assegurarem aos grupos denominados margi-

    nais um pequeno acesso escolarizao, acenavam-lhes com

    a dupla promessa de participarem dos excedentes gerados pela

    exportao e de integrarem-se ao setor moderno da economi-

    a. Aqueles que, ao contrrio, permanecessem excludos desta

    possibilidade, continuariam estigmatizados como incapazes,

    no por sua condio de classe, mas por sua falta de habilida-

    des tcnicas.

    De posse dessas informaes que devemos analisar as altera-

    es verificadas no Ensino Agrcola no Brasil desde a aprovao

    dos acordos iniciais firmados com os Estados Unidos. Dentre

    elas destaca-se, em primeiro lugar, a adoo, pelo MA, de um

    planejamento de mdio prazo, justificado em nome do cum-

    primento das deliberaes da Terceira Conferncia Interameri-

    cana de Agricultura, reunida em Caracas em 1945. Pela primei-

    ra vez se definiria um Plano Quadrienal de Trabalho visando

    projetar-se at incios da dcada de 1950, sem perder-se de vista

    que este um Ministrio de produo e sua finalidade precpua ori-

    entar, fomentar e defender a produo agropecuria (MA, 1946-50: 8).

    No tocante educao rural, o Plano contou com o suporte de

    um novo acordo, firmado em outubro de 1945 entre o MA e a

    Fundao Interamericana de Educao e com vigncia prevista

    para o perodo de janeiro de 1946 a junho de 1948. A delonga

    no depsito dos fundos brasileiros junto ao Banco do Brasil fa-

    ria, entretanto, com que o tratado tivesse seu incio adiado por

    um ano. Seus objetivos seriam: a) desenvolver relaes mais n-

    timas com docentes do ensino agrcola dos Estados Unidos; b)

    facilitar o treinamento de brasileiros e americanos especializa-

    dos em ensino profissional agrcola; c) programar atividades no

    setor da educao rural que fossem do interesse das partes con-

    tratantes (Agreement on Rural Education, 1945: 14).

  • Sonia Regina de Mendona*

    103

    Desse acordo surgiu a Comisso Brasileiro-Americana de Edu-

    cao das Populaes Rurais (CBAR), rgo gerenciado pelo

    MA e atuante a partir de 1947, mediante a proliferao de Cen-

    tros de Treinamento de Operrios Agrrios, espalhados por to-

    do o pas, com nfase no Norte e Nordeste. A Comisso realiza-

    ria, ainda, estudos em sociologia rural e educao visual, alm

    de implementar as Semanas Ruralistas durante as quais, guisa

    de pedagogia pelo exemplo, a Seav distribuiria prmios em

    materiais como colmias, equipamento avcolas, sementes, fer-

    ramentas etc., fornecendo meios de trabalho para estabeleci-

    mentos sem recursos.

    A concretizao do programa de cooperao deveria ainda

    incluir: o fornecimento, pelos Estados Unidos, de um grupo de

    especialistas em ensino agrcola; a realizao, em cooperao

    com autoridades brasileiras, de estudos e pesquisas atravs de

    viagens de educadores e tcnicos nacionais Amrica do Norte;

    o treinamento local de professores de ensino tcnico agrcola; a

    aquisio de equipamentos e material de ensino dentre eles r-

    dio e cinema, alm de misses rurais ambulantes. Em contra-

    partida, todas as dotaes materiais pertencentes CBAR seri-

    am de propriedade do governo brasileiro (clusula VIII).

    Um dos mais significativos desdobramentos da CBAR consistiu

    em definir como obrigao do MA fundar clubes agrcolas que

    funcionariam junto s escolas primrias do meio rural. Embora

    os primeiros clubes tenham sido implantados em 1942, somente

    com a Comisso seriam institucionalizados como uma modali-

    dade de difuso de ensino rural sob alada do Ministrio, junto

    ao qual deveriam registrar-se de modo a obter subsdios. O as-

    pecto contraditrio da nova instituio residiria no fato de ser

    ela acoplada s escolas primrias regulares ligadas ao Minist-

    rio da Educao/governos estaduais e municipais, abrindo-se

    novas arestas polticas entre ambas as Pastas.

  • A dupla dicotomia do ensino agrcola no Brasil (1930-1960)

    Estud.soc.agric., Rio de Janeiro, vol. 14, no. 1, 2006: 88-113. 104

    Diante da conjuntura inaugurada pela CBAR em 1945, o Minis-

    trio da Educao aprovaria a Lei Orgnica do Ensino Agrcola

    (Loea) parte de um pacote formado pelo conjunto das leis

    orgnicas de cada ramo de ensino9 lanando as bases de uma

    nova orientao para a educao profissional rural que previa

    tanto a reorganizao das instituies de ensino at ento exis-

    tentes ensino agrcola bsico, ensino rural e cursos de adapta-

    o quanto a criao de novas onde o ensino seria estrita-

    mente objetivo e os alunos aprendero fazendo (Loea, 1946:

    37). A Lei Orgnica impunha, ainda, a ampliao do nmero de

    matriculados nos estabelecimentos subsidiados pela Pasta da

    Agricultura, projetando um aumento de 1.500 para 2.500, entre

    1946 e 1947.

    Ainda em 1947, novo decreto seria sancionado pelo MES pre-

    vendo a adaptao dos antigos estabelecimentos do MA em

    cinco novas modalidades de instituies: 1) Escolas de Iniciao

    Agrcola destinadas ao ensino elementar de 1o. e 2o. anos do

    primeiro ciclo de ensino agrcola (correspondente fase inicial

    do curso primrio regular) s quais seriam equiparados alguns

    antigos AAs; 2) escolas agrcolas encarregadas de ministrar o

    ensino de iniciao agrcola e o curso de mestria, compreen-

    dendo o 3o. e 4o. anos do primeiro ciclo (correspondente fase

    final do curso primrio regular) e incluindo os AAs de Pernam-

    buco, Alagoas e Rio de Janeiro; 3) escolas agrotcnicas res-

    ponsveis pelos cursos tcnicos e pedaggicos do segundo ciclo

    de ensino agrcola (correspondentes ao ensino secundrio regu-

    lar), bem como pelos cursos de extenso e aperfeioamento em

    que seriam transformados os AAs de Barbacena (Minas Gerais),

    Bananeiras (Paraba) e Pelotas (Rio Grande do Sul); 4) cursos de

    9 Tal legislao foi aprovada entre 1945 e 1946, constando da Lei Or-gnica do Ensino Primrio; do Ensino Secundrio; do Ensino Industri-al e do Ensino Comercial.

  • Sonia Regina de Mendona*

    105

    aperfeioamento, especializao e extenso encarregados de

    ministrar o ensino agrcola e veterinrio atravs de cursos regu-

    lares de aperfeioamento e especializao tcnica dos quadros

    de carreira do MA, alm de cursos avulsos de extenso uni-

    versitria e, por fim, os 5) os centros de treinamento (CTs) in-

    cumbidos de formar trabalhadores rurais, habilitados para o

    desempenho eficiente da atividade agrcola (MA, 1946-50: 347).

    No primeiro ano de funcionamento da CBAR foram fundados

    38 Centros de Treinamento com 1.000 matriculados. Alm de

    plos qualificadores de mo-de-obra, os Centros respondiam

    pela produo de alimentos e animais para o auto-

    abastecimento dos alunos em sua quase totalidade adultos

    bem como para a venda nas comunidades vizinhas. Os CTs fo-

    ram os que mais nfase mereceram da CBAR, tendo-se multi-

    plicado aps 1946 atravs de novos convnios entre a Comisso

    e inmeras agncias do Governo Federal, dos governos estadu-

    ais e da prpria iniciativa privada.10 Mesmo aps o fim da vi-

    gncia da CBAR, em 1948, muitas das atividades por ela inau-

    guradas tiveram prosseguimento, sendo seu saldo financeiro

    aplicado na manuteno dos CTs.

    Logo, as instituies de ensino agrcola criadas sob a CBAR

    consagraram, definitivamente, a Escola Agrcola como Escola

    para o Trabalho, embora algumas se dedicassem a aperfeioar

    quadros dirigentes do MA. A mais expressiva redefinio pro-

    movida pela Comisso consistiu no privilegiamento da educa-

    o de adultos em detrimento da de crianas e adolescentes,

    funcionando como um marco na alterao dos rumos do ensino

    10 Nesse caso firmaram-se dez convnios entre a CBAR e colgios ou instituies religiosas, destinando-se sete a formar trabalhadores ru-rais, um para preparar professores rurais, um para formar economis-tas domsticas e um para habilitar tratoristas. Ministrio da Agricultu-ra (1946-50: 345-6).

  • A dupla dicotomia do ensino agrcola no Brasil (1930-1960)

    Estud.soc.agric., Rio de Janeiro, vol. 14, no. 1, 2006: 88-113. 106

    agrcola no Brasil, tendncia esta que seria ratificada na dcada

    de 1950 mediante novos tratados Brasil-EUA, como por exem-

    plo a Campanha Nacional de Educao Rural (CNER) de 1953.

    Quanto aos Clubes Agrcolas, pode-se afirmar terem sido uma

    das mais duradouras iniciativas da CBAR. Se os debates da d-

    cada de 1920 polarizaram-se em duas vertentes, a dos defenso-

    res da escola primria regular de cunho formativo geral iden-

    tificados com o Ministrio da Educao e dos advogados do

    ensino vocacional desde o nvel elementar no caso dos tcni-

    cos do MA , patente que a disputa poltica entre os grupos

    ligados a ambas as Pastas resultou no fato das atribuies esta-

    tais sobre o ensino agrcola terem-se superposto e mesclado,

    gerando sistemas paralelos de gerenciamento e administrao

    da atividade. Assim, embora o ensino primrio permanecesse

    constitucionalmente definido como direito de todos os cida-

    dos, a cargo de governos estaduais e municipais, o esforo al-

    fabetizador via rede escolar regular somente teve sua viabilida-

    de assegurada pelo apoio do MES e seu Fundo Nacional de En-

    sino Primrio. Paralelamente, caberia ao MA apenas implantar

    as vrias modalidades de escolas agrcolas tecnicistas e voca-

    cionais, embora estas tambm fornecessem o ensino de primei-

    ras letras.

    A proliferao dos clubes agrcolas ilustra as contradies exis-

    tentes ao introduzir uma nova dualidade ao j dicotmico sis-

    tema de ensino brasileiro. Isto porque, apesar de definidos co-

    mo entidades extra-escolares incumbidas de divulgar conhe-

    cimentos sobre a vida no campo, funcionavam em anexo s es-

    colas primrias da zona rural e, em certos casos, da prpria ci-

    dade. Dessa forma, os grupos escolares encontravam-se, simul-

    taneamente, vinculados ao MES e dotados de apndices geri-

    dos pelo MA. Segundo seus tcnicos,

    Como instituio escolar o clube agrcola dos que mais se recomendam, especialmente nas escolas do interior, contri-

  • Sonia Regina de Mendona*

    107

    buindo para a melhor identificao da escola com as peculiarida-des regionais e a formao de uma esclarecida mentalidade rura-lista, propiciando criana a iniciao no trabalho (MA, 1946-50: 351, grifos no original).

    Se em 1940 o nmero de clubes era irrisrio, em 1947 havia

    1.450 deles registrados no MA (Lima et al., 1949: 52-53), desti-

    nados a incutir no esprito da criana o amor terra e s suas ddi-

    vas. Os clubes eram vistos como complemento necessrio e

    imprescindvel, pois se

    educar preparar para a vida, a alfabetizao por si s no sa-tisfaz; preciso despertar nos cidados de amanh o gosto pe-las atividades produtivas, orientando-os para os trabalhos a-grcolas, de modo a criar nos jovens, desde a tenra infncia, a conscincia de seu valor como fatores positivos na sociedade (Idem: 3, grifos no original).

    A seus scios, denominados pequenos ruralistas, eram atribudas

    vivncias nicas, posto que somente adquiridas no exerccio de

    atividades como a produo, cooperao e administrao inter-

    na, tidas como fundamentais para a verdadeira educao democr-

    tica.11 Seus professores, por seu turno, auto-concebiam sua atu-

    ao como um servio de catequese destinado a acostumar a juven-

    tude a compreender o que a responsabilidade.

    Os clubes eram obrigados a enviar relatrios anuais ao MA,

    fornecendo subsdios para a constante atualizao da cartilha

    que era nacionalmente adotada por todos eles, Brincar e Apren-

    der de Fleury Filho. Suas reunies envolviam a participao de

    11 Os clubes agrcolas baseavam-se em seus congneres norte-americanos, os Clubes 4-H (head, heart, hands and health) criados em 1937, cujos objetivos, dentre outros, eram dignificar o trabalho ma-nual e engrandecer a profisso do agricultor; desenvolver o esprito de cooperao na escola, famlia e coletividade; incentivar a policultura; formar hbitos de economia; organizar uma cooperativa para a venda dos produtos das plantaes e criaes dos scios. Idem: 35-36.

  • A dupla dicotomia do ensino agrcola no Brasil (1930-1960)

    Estud.soc.agric., Rio de Janeiro, vol. 14, no. 1, 2006: 88-113. 108

    familiares e vizinhos dos clubistas, sendo registradas em a-

    tas-padro fornecidas pelo Ministrio, que exercia estrito con-

    trole sobre suas atividades. Segundo agentes envolvidos nesse

    processo, contra essa mstica do ler, escrever e contar que toda

    gente pensa que deva ser com exclusividade a funo da escola que

    voc tem que lutar, professora. Ensine aos garotos sob sua orientao a

    viverem a vida do campo (Idem: 48, grifos na fonte). Em fins da

    dcada de 1950, os clubes agrcolas continuavam em pleno fun-

    cionamento, supostamente contribuindo para o ajustamento da

    escola primria rural ao meio a que pertence, totalizando 2.183 no

    ano de 1958.

    A presena norte-americana na educao rural no Brasil seria

    consideravelmente ampliada nos anos 1950 atravs de novos

    acordos com o MA, dos quais resultaram a Campanha Nacional

    de Alfabetizao Rural (1953) e a fundao do Escritrio Tcni-

    co de Agricultura Brasil-Estados Unidos (1954). Na nova con-

    juntura, alguns tratados seriam firmados com o Ministrio da

    Educao. No entanto, os acordos da dcada de 1950 inaugura-

    ram uma nova modalidade de cooperao, baseada na im-

    plantao de instituies de assistncia tcnica ao trabalhador

    do campo, materializadas no recm-criado Servio Social Rural

    do MA (1955).12 Em relao ao Escritrio Tcnico de Agricultu-

    ra, 58 convnios foram assinados com 80 entidades pblicas e

    privadas, como por exemplo 12 Associaes de Crdito e Assis-

    tncia Rural (MA, 1960: 108). No campo da educao propria-

    mente dita, a prioridade passou a residir na concesso de bolsas

    de estudo nos EUA, destinadas a especialistas do Ministrio.

    Segundo o diretor do Servio de Informao Agrcola, o cerne

    12 O Servio Social Rural visava introduzir mudanas culturais e tecnolgicas no meio rural, utilizando as tcnicas de organizao e desenvolvimento de comunidades. Trata-se de pr em prtica um conjunto de regras e mtodos com grupos humanos para alcanar um melhor nvel econmico e social das populaes. Idem:19-20.

  • Sonia Regina de Mendona*

    109

    dos trabalhos do ETA a extenso rural, prestando decisivo apoio a

    todas as Associaes de Crdito e Assistncia Rural que atualmente

    atendem a perto de 100 mil famlias em doze estados da Federao (I-

    dem: 111, grifos na fonte).

    Como se v, na dcada de 1950 o ensino agrcola seria ressigni-

    ficado, deixando de lado prticas escolares destinadas a crian-

    as e adolescentes e ratificando a assistncia tcnica e financeira

    a lavradores, presidida pela noo de comunidades, que de-

    veriam ser organizadas por meio do movimento associativis-

    ta.13 Ainda assim, as agncias envolvidas insistiam em atribuir a

    suas prticas um cunho eminentemente educativo e no poltico,

    posto operarem com comunidades rurais e no mais com traba-

    lhadores individualmente. Seu lema um homem, uma mulher e

    um jipe resumiria seu papel de preparar as populaes do campo

    para agirem por si prprias mediante o aproveitamento de lderes das

    comunidades (Idem: 21). O teor poltico dessas novas prticas

    educacionais evidente, sobretudo considerando-se que foi

    ao longo dos anos 1950 que os trabalhadores rurais iniciaram

    seu processo de mobilizao poltica organizada em prol da re-

    forma agrria, atravs das Ligas Camponesas, fator mais que

    suficiente para explicar o redirecionamento impresso na coo-

    perao norte-americana.

    13 O Servio de Economia Rural do Ministrio da Agricultura, tam-bm criado como prolongamento da CBAR, acusou, em 1960, a pre-sena de 71 novas Associaes Rurais que se somaram s 1.752 at en-to existentes, envolvendo um total de 218.400 scios. Igualmente digno de nota seria o movimento associativista desenvolvido junto juventude rural, que contava com 1.500 Clubes Agrcolas, congregan-do cerca de 60.000 jovens. Idem: 16.

  • A dupla dicotomia do ensino agrcola no Brasil (1930-1960)

    Estud.soc.agric., Rio de Janeiro, vol. 14, no. 1, 2006: 88-113. 110

    Comentrios conclusivos

    Se as disputas em torno da educao agrcola no Brasil atingi-

    ram seu primeiro apogeu na dcada de 1920, elas no se esgota-

    riam a. As antinomias que atravessavam o campo dos debates

    sobre o ensino rural se perpetuaram mesmo aps 1945, em ple-

    na conjuntura de redemocratizao do pas. Um de seus mai-

    ores exemplos consistiu no apenas na aprovao da Lei Org-

    nica do Ensino Agrcola em 1946, mas sobretudo no fato de ter

    sido aprovada em separado dos demais ramos de ensino, con-

    sagrando, de forma cabal, um dos termos da disputa enuncia-

    da: a educao rural como algo especial, como educao para

    o trabalho, vertente essa que seria ratificada pela aproximao

    Brasil Estados Unidos mediante a proliferao de acordos de

    cooperao firmados entre agncias de ambos os pases.

    No perodo posterior a 1930, consagrou-se, ademais, a manu-

    teno da tutela simultnea do Ministrio da Educao e do

    Ministrio da Agricultura sobre tal modalidade de ensino, esta-

    belecendo-se uma espcie de diviso sociopoltica do traba-

    lho entre ambas as Pastas, na tentativa de superar uma dispu-

    ta que deixava entrever a importncia poltica da manuteno

    do status quo das classes sociais na agricultura brasileira. A

    complexidade da questo implicou, na prtica, a dupla dualiza-

    o do ensino agrcola no pas, segundo a qual a primeira dico-

    tomia referia-se preservao da herana que consagrava o en-

    sino primrio como responsabilidade dos estados e dos muni-

    cpios, juntamente com o ensino secundrio, enquanto o ensino

    superior ficava a cargo da Unio. J o segundo dualismo era

    uma criao dos novos tempos e dizia respeito ao fato do en-

    sino agrcola constituir-se numa modalidade de ensino especial,

    tutelado por duas agncias estatais com propostas algo diversas.

    O conjunto de iniciativas abordadas no trabalho demonstra o

    quanto a educao rural adquiriu, no decorrer do sculo XX,

  • Sonia Regina de Mendona*

    111

    novos contornos, voltando-se, pouco a pouco, para a qualifica-

    o da mo-de-obra adulta do campo em detrimento da criana

    e da escola regular. O ensino agrcola, tal como redefinido nos

    debates e prticas das dcadas de 1930 a 1950, sofreria uma in-

    flexo de seu sentido escolar passando a adquirir outro, de cu-

    nho assistencialista num duplo registro: como assistncia tcni-

    ca e como assistncia social propriamente dita. Nessa resignifi-

    cao, ele consagrava-se no apenas como instrumento de ne-

    gao dos conflitos sociais no campo, mas tambm como ratifi-

    cador da identidade subalterna do trabalhador rural, em rela-

    o a todos os demais trabalhadores.

    Referncias bibliogrficas

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    agrcola no Brasil (1930-1960). Estudos Sociedade e Agricultura,

    abril 2006, vol 14 no. 1, p. 88-113. ISSN 1413-0580.

    Resumo: A discusso sobre o ensino agrcola no Brasil teve seu

    apogeu, nos anos 1920, em meio a um debate entre a vertente

    defensora do ensino agrcola alfabetizador e a que o postulava

    como educao para o trabalho. Entre anos 1930 e 1950, essa

    controvrsia envolveu inmeras agncias do Estado. A conjun-

    tura do ps-Segunda Guerra Mundial propiciou a aproximao

    Brasil-EUA. Da resultou um conjunto de acordos de coopera-

    o responsveis tanto pela consolidao da vertente rurali-

    zadora do ensino agrcola, quanto por sua redefinio, trans-

    mutando-se sua dimenso escolar em assistncia tcnica.

  • Sonia Regina de Mendona*

    113

    Nesse registro, o ensino agrcola no Brasil consolidou discur-

    sos e prticas tecnicistas como instrumentos da negao dos

    conflitos no campo consagrando uma identidade subalterna do

    trabalhador rural.

    Palavras-chave: Agricultura, ensino agrcola, Brasil-EUA, ex-

    tensionismo rural.

    Abstract: (The double dichotomy of agricultural teaching in Brazil,

    1930-1960). Discussion of rural education in Brazil reached its

    climax during the 1920s, amidst a debate over the defense of

    agricultural literacy training and the defense of education for

    work. Between the 1930s and 1950s, this controversy involved

    innumerable State agencies. The post- War context facilitated

    ties between Brazil and the United States. From this arose a

    group of cooperation treaties, responsible not only for

    consolidation of the ruralizing vector in agricultural teaching,

    but also for its redefinition, transmuting its scholarly dimension

    into technical assistance. In this realm, agricultural teach-

    ing in Brazil consolidated technically oriented discourses and

    practices as instruments of denial of the existence of social

    conflicts in the countryside, consecrating a subaltern identity of

    rural workers.

    Keywords: Agriculture, rural education, Brazil-US, rural

    extensionism.