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    Sonhos Lcidos A Experincia Onrica A Experincia Onrica A Experincia Onrica A Experincia Onrica

    ConscienteConscienteConscienteConsciente

    Cleber Monteiro Muniz

    Edio especial para distr ibuio gratuita pela Internet,

    atravs da Virtualbooks, com autorizao do Autor. O Autor gostaria de receber um e-mai l de voc com seus comentrios e crt icas sobre o l ivro. A VirtualBooks gostaria tambm de receber suas crt icas e sugestes. Sua opinio muito importante para o aprimoramento de nossas edies: [email protected] Estamos espera do seu e-mai l . Sobre os Direitos Autorais: Fazemos o possvel para cert i f icarmo-nos de que os materiais presentes no acervo so de domnio pbl ico (70 anos aps a morte do autor) ou de autoria do t itular. Caso contrrio, s publ icamos material aps a obteno de autorizao dos proprietrios dos direitos autorais. Se algum suspeitar que algum material do acervo no obedea a uma destas duas condies, pedimos: por favor, avise-nos pelo e-mail: [email protected] para que possamos providenciar a regularizao ou a ret irada imediata do material do site.

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  • 3

    Sonhos Lcidos A Experincia Onrica Consciente

    Viagens da Conscincia ao Mundo dos

    Sonhos

    Cleber Monteiro MunizCleber Monteiro MunizCleber Monteiro MunizCleber Monteiro Muniz

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA COGEAE

    So Paulo

    2001

  • 4 PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA

    COGEAE

    A Experincia Onrica Consciente

    Viagens da Conscincia ao Mundo dos Sonhos

    Cleber Monte i ro Muniz

    Orientadora: Profa Dra Noely Montes Moraes

    Monografia apresentada como exigncia parcial

    para obteno do ttulo de Especialista

    em Abordagem Junguiana

    So Paulo 2001

  • 5 Para refletir:

    At agora tens pensado que teus cinco sentidos te informam sobre o mundo exterior. No assim, no h tal mundo exterior, nem h tal mundo interior. Estes so ilusrios conceitos que no podem penetrar mais alm das formas. O Real o que no forma, e sendo a Vida, tudo quanto .

    Observa que o arco e as f lechas no apontam em uma mesma

    direo, seno em duas simultneas. Entender e viver esta simultaneidade a primeira rebelio da mente, rebelio que terminar pelo despertar do todo.

    E se refletir um pouco no que trata de expressar esta

    simultaneidade, de pronto percebers tambm que no s teu corpo, seno aquele que vive em teu corpo, que anima teu corpo e que por falta de melhor expresso, aqui chamo de Deus-ntimo invisvel.

    Com teus cinco sentidos, atributos do teu eu-pessoal, do eu-forma,

    no te dado a penetrar mais alm da superfcie das formas. Quando sejas conscientes de que teu Deus-ntimo quem usa teus cinco sentidos, te ser dado a penetrar no signif icado, na Essncia, no Esprito de todas as coisas, que tambm Deus-ntimo.

    (Trecho de uma carta recebida por Armando Cosani e

    constante em seu livro O Vo da Serpente Emplumada)

  • 6

    Agradecimentos - A Snia Regina Dias dos Santos Muniz (minha amada imortal) e a Gabriela sis dos Santos Muniz, os dois maiores amores da minha vida que sempre me compreenderam e tiveram infinita pacincia comigo - Aos meus pais, irmos, familiares: Rubens de Lara Muniz (in memorian), Maria Dalzimar Monteiro, Eliana Monteiro Muniz, Srgio Monteiro Muniz, minhas avs Alice e Eudete, meus primos e tios (tantos!) - Aos meus amigos: Dnei Courel & Vera; Andrea, Paulinho, Vivi, Lilian & Dona Vanja; Prophetic Age; Gugu, John Crazy, Hilton, Tucano e Mendigo; Roberto, Cristiano Claudino & Hosana (in memorian); Henrique, Luzia, Ana Regina Gallo & Emerson; Roseli, Mauro, Luizo, Edson, Renata, Maria Lcia, Silmara, C. S. Brambilla, Marizete, Alessandra, Deise & Simone; Gilberto & Mrcia; Teresa & Daniel Marx; Sueli, Andressa, Daniel Caldeira e tantos outros que levariam muitos volumes para serem mencionados - professora Noely Montes Moraes, que me orientou neste trabalho - Aos professores do curso de especializao em Abordagem Junguiana que comigo compartilharam seus conhecimentos de psicologia analtica: Durval, Helosa e M Ruth - Aos colegas: Ivelise, Dbora, Fernanda, Dado, Francisco, Pedro, Vernica e s Elaines (Soria e Rocha) - A Wellington Zangari, Ftima Regina Machado e o grupo Interpsi da PUC. - A todos os grandes mestres acadmicos e extra-acadmicos que desbravaram os caminhos para o mundo da alma

  • 7

    Este trabalho dedicado a todos aqueles que anelam

    conhecer a realidade dos mundos interiores.

    ( i ) M U N I Z , C l e b e r M o n t e i r o

    (ii) A Experincia Onrica Consciente: Viagens da Conscincia ao Mundo dos Sonhos

    O r i e n t a d o r a :

    Profa Dra Noely Montes Moraes

    P a l a v r a s c h a v e : sonhos conscincia inconsciente mundo imaginal introspeco

    R e s u m o A l g u m a s p e s s o a s d e s p e r t a m d e n t r o d o s s o n h o s e c o m p r e e n d e m q u e s e u s c o r p o s f s i c o s d o r m e m , d e s f a l e c i d o s n a s c a m a s . E s t e u m e s t u d o d e t a i s c a s o s , d o s b e n e f c i o s e d a s p o s s i b i l i d a d e s d e e x p l o r a o q u e n o s a b r e m . N e s t a o b r a , o m u n d o o n r i c o a b o r d a d o c o m o f o r m a p a r t i c u l a r d e r e a l i d a d e , c o m o r e a l s u a p r p r i a m a n e i r a . u m a p o r o p s q u i c a d o m u n d o r e a l . N e l a , n o s e c o n c e b e a r e a l i d a d e c o m o l i m i t a d a a o m u n d o e x t e r i o r n e m o m u n d o i m a g i n a l c o m o i l u s r i o . A f u n o o n r i c a , a l i m i t a o c o g n i t i v a a r e s p e i t o d o s s o n h o s p o r p a r t e d o h o m e m o c i d e n t a l c o n t e m p o r n e o , a s e s t r a t g i a s p a r a o b t e n o d e e x p e r i n c i a s o n r i c a s c o n s c i e n t e s e o s e f e i t o s r e s u l t a n t e s d a s m e s m a s f o r a m a b o r d a d o s t e n d o e m v i s t a a c o m p r e e n s o d o o b j e t o . A o f i n a l , h t r s r e l a t o s d e e x p e r i n c i a s d e s s e t i p o . E s p e r o t e r c o n t r i b u d o , a i n d a q u e e m p e q u e n s s i m o g r a u , p a r a a a m p l i a o d o s h o r i z o n t e s h u m a n o s . D e s e j o q u e e s t a c o n t r i b u i o , a i n d a q u e m o d e s t a , s e j a v e r d a d e i r a e , p o r i s s o m e s m o , v l i d a .

  • 8 ndice:

    Introduo

    1.A realidade do mundo dos sonhos nos tempos antigos e hoje

    2.A funo dos sonhos

    3.O estado no-usual da conscincia extra-vgil

    4.A modalidade lcida de sonhar

    4.1.O que so sonhos lcidos

    4.2.Benefcios proporcionados

    por experincias onricas conscientes

    4.3.A prtica do despertar da

    conscincia intra-onrica

    5.Metodologia

    6.Relatos de experincias onricas conscientes

    Consideraes f inais

    Bibliograf ia

  • 9 Introduo

    H ( . . . ) g r a n d e r i q u e z a e s p e r a

    d a s p e s s o a s q u e s o p e r s e v e r a n t e s e q u e

    p e r s i s t e m e x p l o r a n d o a s d i m e n s e s e a s

    p r o f u n d i d a d e s d a p r p r i a a l m a .

    ( S a n f o r d )

    O tema desta monograf ia conscincia intra-onrica e se relaciona com experincias onricas conscientes, s quais so tambm

    denominadas sonhos lcidos e correspondem a viagens conscientes do ego ao mundo dos sonhos, um mundo de imaginao no interior do

    homem. Optei pela adoo do pref ixo intra para designar especif icamente uma conscincia atuante no interior do prprio sonho e no durante a vigl ia. Desde a adolescncia, gosto muito de ler e de investigar

    empiricamente o assunto.

    Quando criana, eu gostava muito de lutar. Bruce Lee era, para

    mim, o heri mais digno de admirao e no qual eu me espelhava. Aos

    treze anos, t ive um sonho no qual um mestre me ensinava um golpe de

    artes marciais cuja possibil idade de existir eu nunca havia cogitado. O

    golpe, em si, no era muito efetivo, em situao de combate real, mas o

    sonho em que surgiu me chamou a ateno por ter me instrudo sobre

    algo que conscientemente ignorava. Alm do mais, havia uma falha

    tcnica no movimento de contra-ataque ensinado que no pude suprir.

    Comentei tal fato com meu irmo menor e ento subitamente t ivemos um

    insight: o que poderia ser feito se, dentro do sonho que tive, eu me desse

    conta de que estava sonhando? Poderia perguntar ao prprio mestre

    onrico a respeito da falha e ele talvez pudesse me ensinar a super-la.

  • 10 Cogitamos, ainda, a possibil idade de realizarmos durante o sonho os

    desejos mais impossveis. Desde ento o tema me chama ateno.

    Normalmente, quando uma pessoa dorme e sonha, no se d conta,

    naqueles exatos momentos em o corpo est dormindo, de que est

    sonhando. Em tais casos, as reaes do ego ante as cenas que presencia

    sugerem que no compreende que est em um mundo de imagens e

    sonhos desprovido de carter f sico. Quando se depara com um leo

    ameaador, por exemplo, tende a fugir ou f icar aterrorizado. Quando a

    imagem presenciada a de um assassino armado e perigoso, o ego pode

    tentar se esconder com medo ou buscar refgio em algum ponto da cena

    onrica que lhe parea seguro. So fatos que assinalam a ausncia de

    discernimento, por parte do sonhador, de que est interagindo com cenas

    e elementos interiores pois, se houvesse tal compreenso, possivelmente

    a pessoa no se aterrorizaria ante as feras e assassinos. Entenderia que

    estes no podem causar ferimentos f sicos, pelo menos no sentido literal

    da palavra. A fuga, via de regra, se deve ao medo de sofrer danos ao ser

    despedaado por dentes de lees, esfaqueado, perfurado por uma bala

    ou lana, sangrar e at morrer. O teor deste medo (de sofrer leso fsica)

    indica que o signif icado conferido s imagens visualizadas no instante do

    sonho o de algo tridimensional. Caso contrrio, no haveria o medo de

    que o corpo fosse prejudicado. Quem compreende que est sonhando

    sabe que no est f isicamente presente cena que v.

    A fuga de elementos onricos demonstra que o sonhador

    possivelmente os teme, os considera perigosos e deles se protege ou

    distancia. Se no os temesse, os enfrentaria e poderia at interagir de

    com os contedos internos uma forma nova, transcendendo os padres

    vgeis de contato com a psique.

  • 11 Outro indicador do desconhecimento de estarmos oniricamente

    presentes s cenas noturnas a indiferena que apresentamos

    subverso dos nossos princpios lgicos usuais de realidade por certas

    combinaes de acontecimentos. H acontecimentos que ultrapassam o

    limite do possvel no mundo tridimensional e com os quais s vezes

    sonhamos: cavalos falantes, cadveres que gritam etc. Ficamos, muitas

    vezes, indiferentes ao fato desse contedo ser impossvel para o mundo

    da vigl ia e com isso seu carter fantstico no percebido. Em geral,

    no reagimos com estranheza ao carter pouco usual de algumas cenas

    onricas. As imagens representadas em alguns quadros de Salvador Dali

    no so por certo muito comuns no mundo fsico... assim como cachorros

    falantes e esqueletos que tocam violino. Mas no mundo dos sonhos tudo

    possvel e aquilo que aqui seria um acontecimento impossvel, l um

    indicador inequvoco de que estamos em uma dimenso fantstica.

    Mesmo assim, quase nunca nos damos conta da natureza onrica de uma

    cena absurda quando a estamos experimentando, a despeito do fato de

    que o inconsciente nos envia sinais indicadores disso, como ocorreu em

    um sonho relatado por Jung (1963, p.153):

    De repente um pssaro branco baixou; era uma gaivota pequena ou

    uma pomba. Pousou graciosamente na mesa, perto de ns; f iz um sinal

    s crianas para que no se movessem a fim de no assustar o belo

    pssaro branco. No mesmo instante a pomba transformou-se numa menina de oito anos, de cabelos de um louro dourado. (grifo meu)

    A transformao da pomba em garota um indicador do carter

    onrico da cena relatada pois isso jamais se verif icaria nesta realidade

    externa. At onde saibamos, aves no se transformam em garotas, no

    sentido literal da expresso. Por isso podemos af irmar que a

    transformao denuncia para o ego o carter interno do acontecimento

  • 12 presenciado. Do mesmo modo, Filemon, a entidade com quem Jung

    conversava em sonhos (idem), no era uma f igura que se pudesse

    encontrar em qualquer rua do mundo fsico pois era um velho com

    chifres de touro e possua asas semelhantes s do martim pescador,

    com suas cores caractersticas. (p. 162). No se v pessoas assim neste

    mundo.

    A coerncia e a ordem de acontecimentos s quais o ego est

    normalmente acostumado no mundo exterior so muitas vezes diferentes

    e at incompatveis com a forma pela qual se organizam nos sonhos,

    tornando-os incompreensveis se nos limitarmos a tom-los pela via

    exclusivamente intelectual. A linguagem onrica muitas vezes apresenta-

    se ilgica e desordenada, com representaes fantsticas, inacessveis a

    uma compreenso puramente racional. (Farias, 1991)

    As imagens que nos chegam noite muitas vezes apresentam uma

    lgica pouco convencional. Podemos ver vacas voadoras, elefantes

    arborcolas, nossa Anima na forma de uma fada ou de uma bruxa com

    trs cabeas, a f igura arquetpica do puer ou do senex apresentadas sob

    formas estranhas ao nosso estado de vigl ia e, mesmo assim,

    interagirmos com tais elementos interiores como se fossem exteriores e

    pertencessem ao mundo fsico por acreditarmos que o sejam. Raramente

    percebemos que estamos em outro mundo. No atentamos para o fato de

    que certas cenas absurdas para o mundo exterior no o so para o

    mundo interno e que as mesmas podem estar nos indicando, naqueles

    precisos instantes em que dormimos e sonhamos, o lado da existncia em

    que nos encontramos. Considerando que o inconsciente sempre parece

    apontar em alguma direo, o sentido das cenas i lgicas (para o mundo

    fsico) que elabora poderia ser o de despertar a conscincia dentro dos

    sonhos. Para Jung (1963), o inconsciente denuncia processos e nos

  • 13 coloca certas questes que devem, na medida do possvel, ser alvo de

    tentativas sinceras de compreenso:

    (...) se uma idia se oferece a mim (...) - por exemplo, no decorrer

    dos sonhos e nas tradies mticas - devo ento conceder-lhe ateno:

    devo mesmo ter bastante audcia para edif icar uma concepo a seu

    respeito, mesmo que permanea para sempre como uma hiptese

    impossvel de ser verif icada. (p. 262)

    Devemos prestar ateno s idias que nos so oferecidas pela via

    onrica e construir concepes a respeito. No devemos nos evadir,

    fazendo de conta que no existem. o caso das cenas impossveis para

    o mundo fsico: surgem em nosso universo imaginal noite, durante as

    horas do sono, nos sugerindo a idia de que estamos em um lado

    diferente de nossa vida. E a ausncia da compreenso consciente de que

    estamos sonhando quando presenciamos tais cenas uma questo

    decorrente dessa mesma idia. Trata-se de um problema que nos posto

    pelo inconsciente: como podemos estar diante de acontecimentos

    absurdos para o mundo fsico, apenas possveis em sonhos, e no nos

    darmos conta de sua natureza fantstica?

    Mas o discernimento nem sempre est ausente. Conheci pessoas

    que af irmaram saber, algumas vezes, que sonhavam enquanto o seu

    corpo dormia. Disseram ter sonhado conscientemente de vez em quando

    e garantiram que, em certos momentos, sua conscincia f icava

    acordada dentro do sonho, tendo o discernimento do que se passava,

    no sentido em que aqui tratamos. Me comunicaram que se deslocavam

    atravs das cenas onricas mantendo este estado particular de lucidez.

    Encarei o fato como um fenmeno psquico humano natural que valia a

    pena ser estudado.

  • 14

    A referncia atividade intra-onrica consciente aguou minha

    curiosidade a respeito do assunto. O que exatamente me intrigou foi a

    possibil idade de desenvolvermos uma modalidade diferente de

    experincia direta com os contedos ctnicos. Senti muita vontade de

    descobrir se isso realmente existia e formulei a seguinte pergunta: Que

    modif icaes ocorrem nos sonhos de quem sabe que est sonhando? H

    alguma modif icao no contato entre a conscincia e os contedos

    inconscientes nos instantes em que tal lucidez ocorre? Que efeitos

    imediatos o discernimento tem sobre o desenrolar das cenas interiores?

    O teor das vivncias noturnas de pessoas que af irmavam ter sonhos

    lcidos poderia fornecer respostas para as questes acima. Anotaes e

    relatos de vivncias durante o sonho e durante a imaginao ativa

    poderiam ajudar na abordagem do tema e fornecer informaes

    importantes. Util izei-os como recursos para investigar a forma de contato

    que ocorria em casos assim. Ento, alguns aspectos da natureza do

    contato foram revelados pela anlise do contedo dos relatos. A

    psicologia analt ica forneceu instrumentos conceituais adequados para a

    pesquisa: conscincia, inconsciente, sombra, ego, complexo, imagem,

    smbolo, anima/us, arqutipo. Esses elementos se apresentaram nos

    materiais estudados sob formas ou combinaes de formas que no

    existiam no mundo exterior

    Os sonhos nos mostram o que se passa nas pores subterrneas

    da psique. Esta lt ima corresponde a um mundo real que apresenta

    mistrios a serem desvendados. O mundo dos sonhos nos apresenta

    paisagens imaginais nas quais identif icamos pessoas, condies

    atmosfricas, luminosidade, fauna, configuraes geomorfolgicas,

    coberturas vegetais, diversos graus de urbanizao e uma inf inidade de

  • 15 outros elementos. Embora contenham diferenas em relao a seus

    correspondentes exteriores no que se refere forma como se processam

    e se relacionam, os elementos onricos so reais sua prpria maneira,

    isto , enquanto imagens que existem dentro de ns. Paralelamente

    realidade externa, h uma realidade interna cujo funcionamento

    diferente por ser fantstico Jung (apud Saiani, 2000):

    Quando voc observa o mundo, v gente, v casas, v o cu, v

    objetos tangveis. Mas quando voc se observa interiormente, v imagens

    animadas, um mundo de imagens que so, em geral, conhecidas como

    fantasias. Entretanto, essas fantasias so fatos. um fato que um

    homem tinha esta ou aquela fantasia, uma fantasia to tangvel que,

    quando um homem tem uma certa fantasia, um outro homem pode perder

    a vida ou uma ponte pode ser construda. Todas essas coisas foram

    fantasias... Convm no esquecer isto: a fantasia no o nada. (p.34, grifo meu)

    As fantasias precisam ser abordadas como fenmenos reais pois

    isso o que so. Existem verdadeiramente dentro de ns, porm sua

    maneira. Uma fantasia real a seu modo e este modo diverso do modo pelo qual a realidade exterior existe. Assim, h duas formas de

    existir como realidade: externa e a interna. As fantasias existem sob a

    segunda forma. A psique inconsciente possui tanta realidade quanto

    corpos celestes distantes e concretos mas inobservveis diretamente:

    A existncia de uma psique inconsciente (...) to plausvel,

    poderemos dizer, quanto a de um planeta at agora no descoberto, cuja

    presena se deduz pelos desvios de alguma rbita planetria conhecida.

    Infelizmente, falta-nos o auxlio de um telescpio que certif ique sua

    existncia (Jung apud Saiani, p.48)

  • 16

    Talvez as viagens conscientes ao mundo dos sonhos pudessem ser

    o caminho para a construo desse telescpio... As experincias com o

    mundo dos arqutipos so experincias humanas que precisam ser

    acolhidas e compreendidas na medida do possvel. papel da cincia

    investigar fenmenos sem preconceito, inclusive os de tipo onrico. Suas

    cenas expressam acontecimentos que no so perceptveis ao ego

    durante o estado normal de vigl ia. Vemos, desta maneira, que estar em

    um sonho estar nas regies sombrias da nossa prpria existncia, no

    sentido de que sombra a ausncia da luz da conscincia tal como a

    conhecemos. O ego sonhador que compreende que est inserido em outra

    dimenso da sua vida nos mesmos instantes em que o corpo dorme, tem

    diante de si uma possibil idade nova de obteno de conhecimento: o

    contato direto com os complexos nos instantes em que se personif icam e

    se manifestam oniricamente na forma de pessoas, animais, elementos

    naturais etc. Abre-se, assim, um leque de possveis experincias

    conscientes e no usuais em torno do qual surgiu a indagao:

    Poderia o sonho lcido fornecer algo diferente e novo, um

    conhecimento interior adicional ao que se tem pela via comum e que lhe

    completasse?

    Na modalidade usual de sonho, a personif icao onrica dos

    complexos e a abordagem consciente dos mesmos se do em momentos

    diferentes, so separadas por um lapso de tempo: contatamos as zonas

    profundas noite sem a conscincia de o estarmos fazendo e apenas

    aps o despertar, pela manh ou quando o sono termina, nos damos

    conta de termos estado no outro lado da fronteira entre os dois mundos.

    Geralmente, abordamos conscientemente um contedo psquico apenas

    aps o decorrer de sua apario sob forma onrica, usando para isso os

  • 17 recursos da anotao e da gravao a partir das lembranas que

    preservamos. Isso muito diferente de estar consciente dentro do prprio

    sonho.

    A f inalidade desta pesquisa foi auxil iar a compreender como se

    processa o contato do ego com contedos psquicos subterrneos no

    estado particular de lucidez intra-onrica. Parecia haver um caminho que

    nos conduzisse a um modo muito direto de interao com elementos do

    mundo interior e que talvez nos proporcionasse novos conhecimentos a

    respeito do que se passa nas profundidades da alma, viabil izando um

    meio de explorao interna diverso do normalmente uti l izado e abrindo

    portas na via do auto-conhecimento. Tambm cogitei a possibil idade de

    tentar abordar o mundo dos sonhos de maneira similar dos navegantes

    e exploradores de todos os tempos: sondando seus vales, mares,

    montanhas e habitantes, descobrindo o que ocultam. Considerei

    importante penetrar em tal campo porque a investigao poderia

    demonstrar, ou no, a existncia de uma via alternativa de contato. O

    sonhador que fosse capaz de discernir que estivesse sonhando talvez

    pudesse, sem ter que deixar o sonho, interagir com os elementos

    psquicos de modo mais consciente do que se no o soubesse.

    Considerei que, se a modalidade no-usual de interao direta com

    os elementos subterrneos da psique atravs dos sonhos lcidos fosse

    constatada, um novo horizonte poderia se abrir para aqueles que

    quisessem conhecer a si mesmos: o de viajante onrico, explorador das

    paragens interiores no sentido literal do termo. As viagens poderiam ser

    fonte de emoes novas e auto-conhecimento. Eis uma das possveis

    uti l idades da pesquisa.

  • 18 O trabalho investigatrio desta monograf ia foi o de ajudar a

    elucidar este ponto. Para tanto, analisei relatos de pessoas que

    garantiram ter tais lampejos particulares de lucidez e tentei conhecer a

    natureza dos sonhos que tinham.

    1. A realidade do mundo dos sonhos nos tempos antigos e hoje

    I w a s b u t a t r a v e l e r f l o a t i n g

    e n d l e s s t h r o u g h t h e s e a o n t h e o t h e r s i d e

    o f k n o w l e d g e t h r o u g h t h e p l i a n c y o f

    d r e a m .

    ( S o l i t u d e A e t u r n u s )

    Nos tempos antigos, os sonhos eram considerados como a

    expresso de um mundo verdadeiro e diferente deste mundo vgil em que

    vivemos. O lado espiritual da vida era visto como importante e real, ao

    contrrio do que ocorre hoje. As vises onricas eram tomadas como o

    contato do homem com a dimenso desconhecida de sua existncia.

    Disso decorria a grande importncia atribuda aos sonhos nas culturas

    antigas e confirmada por Sanford (1988) ao abordar a questo da

    depreciao do onrico nos dias atuais:

    (...) enquanto nosso tempo ignora e despreza o assunto dos

    sonhos, nos tempos antigos eles eram muito mais valorizados. Tanto

    quanto conheo, no existe nenhuma cultura antiga na qual os sonhos

    no fossem vistos como extremamente importantes. (p.12)

  • 19 Ao contrrio do que se v na cultura moderna, em que no se

    presta ateno cuidadosa aos sonhos e se os considera desprezveis, o

    homem antigo atribua importncia extrema s experincias onricas.

    Essa valorizao demonstra que eram entendidos como portadores de

    alguma forma de realidade pois do contrrio no seriam tomados em

    tamanha considerao. No se d importncia ao que no existe. At

    mesmo uma mentira ou um boato precisam existir, ainda que seja sob a

    forma de uma idia vaga na cabea de algum, para que se d a eles

    alguma importncia.

    Os comportamentos irracionais do homem, presentes ainda no

    mundo de hoje, seriam, para os primitivos, sinais da existncia de uma

    realidade espiritual que envolveria foras que os ultrapassavam. Tais

    foras, incompreensveis, moveriam os seres humanos e os arrastariam a

    comportamentos subversores do controle consciente, sendo, alm disso,

    parte de um universo invisvel e poderoso mas acessvel por meio dos

    sonhos, nos quais tambm irromperiam. O mundo espiritual manifestado

    em sonhos corresponderia a uma forma especf ica de realidade que seria

    sinalizada pelo comportamento humano irracional. Haveria l igao entre o

    ato de nos comportarmos como se estivssemos possessos e os sonhos

    pois um seria sinal do outro:

    O comportamento humano no racional e a humanidade se

    comporta em todo o mundo como se fosse possessa. Para o homem

    primitivo tudo isso era sinal bvio da realidade do mundo espiritual que lhe aparecia nos sonhos. (...) Persistimos em nosso materialismo racionalista, sob a iluso de que somos racionais e os outros no. Se h

    distrbios em nossos sentimentos e em nossa afetividade, atribumos a

    causa ao que os outros nos fazem e continuamos pensando que s tem sentido o que nos parece lgico e racional, que s real o que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e provamos. Os sonhos tem

  • 20 sentido, mas um sentido que no lgico. So muito reais, mas sua realidade no apreendida por nenhum dos sentidos do nosso corpo. (idem, p. 14, grifos meus)

    Nos dias atuais, acreditamos que aquilo que no compreendemos

    no existe. Segundo essa forma de pensar, a existncia no possuiria um

    aspecto desconhecido, um lado no entendido; o incompreensvel seria

    inexistente. Levada ao extremo, tal idia nos leva a crer que sabemos

    tudo, que no h mistrios. Trata-se de uma violenta inf lao egica. Em

    decorrncia dessa inf lao, rechaamos o mundo dos sonhos enquanto

    modalidade especial de realidade por no compreend-lo. Nosso

    ceticismo arbitrrio no nos permite aceitar a existncia daquilo que no

    conseguimos compreender atravs dos cinco sentidos, os nicos

    instrumentos que sabemos usar cognitivamente. Ignoramos que o

    problema est em ns e no no mundo onrico e que temos uma

    conscincia adormecida e medocre que nos impede de experimentar

    outras realidades. No colocamos ateno sincera na limitao dos

    nossos sentidos usuais. No percebemos os sonhos diretamente pelos

    rgos sensoriais externos e, por tal razo, pensamos que no existem,

    nos esquecendo de que a realidade possui nveis ou facetas usualmente

    no-sensoriais. Em tais condies, tudo se passa, para ns, como se o

    usualmente no-sensorial fosse o nada. Se isso fosse verdade, no

    haveria um espectro contendo sons inaudveis e feixes luminosos

    invisveis ao olho nu, detectveis apenas com o uso de equipamentos

    modernos.

    Nem mesmo a religio conseguiu ampliar nossa conscincia na

    direo de captar mais diretamente as realidades internas, apesar de

    aparentemente se posicionar contra o arbitrrio ceticismo reinante. A

    igreja (...) j poderia nos ter resgatado dessa fi losofia materialista e

  • 21 arrogante, se ela mesma no tivesse renegado suas prprias tradies

    e, como tudo o mais, sucumbido ao materialismo racionalista dos nossos

    dias.(...) Ao enfatizar a vida da instituio mais do que a da alma, deixou

    de lado os sonhos.(...) Foi o que minou a base da vida espiritual da

    igreja, expondo-a ao mesmo materialismo e racionalismo que ela

    combatia e que se estendeu pelo mundo inteiro. A igreja preferiu ignorar

    o fato de que a rejeio aos sonhos ia contra a viso contida na bblia e

    no cristianismo primitivo. (ibidem, p.14).

    O signif icado que o mundo dos sonhos possui para os religiosos de

    hoje seria completamente estranho s comunidades crists do sculo I

    Ao recha-lo, a igreja teve suas bases espirituais minadas. A vitalidade

    espiritual perdeu seu alicerce.

    Certos sonhos que servem de fundamento s experincias religiosas

    possuem impresses de realidade to impactantes que chegam ao ponto

    de aterrorizar o sonhador (Sanford, 1988). Eles (..) parecem carregados,

    de modo especial, com energia psquica. So os sonhos chamados

    numinosos. A palavra vem do latim numen, que signif ica a divindade ou

    a fora espiritual atuante. Dizemos que experimentamos algo numinoso

    quando isso parece nos levar a participar da natureza de uma realidade espiritual diferente , que existe para alm de nossa natureza pessoal. (...) A santidade de Deus a prpria numinosidade. [Rudolf ]

    Otto enfatiza que, diante do Deus de Israel, o homem sente temor,

    admirao, horror, enfim, sente o ser prprio de criatura. A numinosidade

    constitui a matria-prima da experincia religiosa. (pp. 33-34, grifo meu).

    Experincias onricas numinosas nos do a sensao de

    participarmos de uma realidade transpessoal. Sentimos estar em contato

    com algo verdadeiro que est alm de ns mesmos e nos ultrapassa.

  • 22 Obviamente, a experincia no provocaria terror se seu contedo no

    fosse tomado como real.

    Segundo a Bblia, a realidade transcendente se revela ao homem

    durante as horas do sono, embora ele no perceba:

    (...)Deus fala de um modo, sim, de dois modos mas o homem no

    atenta para isso.

    Em sonho ou em viso de noite, quando cai o sono profundo sobre os homens, quando adormecem na cama , ento lhes abre os ouvidos e lhes sela a sua instruo, para apartar o homem do seu

    desgnio e l ivr-lo da soberba; para guardar a sua alma da cova e a sua

    vida de passar pela espada. (J 33. 14-18, grifo meu)

    Deus instrui o homem dentro do mundo onrico e o torna receptivo

    Sua instruo. O protege e ajuda a evitar a morte e a espada do inimigo.

    Isso no seria possvel se o mundo dos sonhos fosse tomado como irreal.

    Na autobiograf ia do f i lsofo e telogo persa do sculo XI, Al-

    Ghazzali (apud James, 1995), a realidade dos sonhos chega a ser vista

    como a de um estado similar ao de Deus e que fornece o dom da

    profecia. Al Ghazzali considerava que:

    Deus aproximou o profetismo dos homens ao dar-lhes um estado

    anlogo a Ele em seus caracteres principais. Esse estado o sono. Se disssseis a um homem sem nenhuma experincia com um fenmeno

    dessa natureza que existem pessoas capazes, em dados momentos, de desmaiar de modo que paream mortas e que [nos sonhos] ainda percebam coisas que esto ocultas, ele o negaria [e exporia suas

  • 23 razes para isso]. No obstante, suas alegaes seriam refutadas pela

    experincia real. (p. 253)

    Segundo Harnisch (1999), os sonhos, enquanto acontecimentos

    pertencentes a uma realidade paralela vgil, eram levados a srio pelos

    ndios da Amrica do Norte. Os Sioux acreditavam que o mundo fsico era

    apenas uma sombra do onrico, o qual chamavam de mundo real, como

    vemos na histria de Cavalo Doido (Brown, 1987):

    Desde o tempo da juventude, Cavalo Doido soubera que o mundo

    onde viviam os homens era apenas uma sombra do mundo real. Para

    chegar ao mundo real t inha que sonhar e, quando estava no mundo real,

    tudo parecia f lutuar ou danar. No seu mundo real, seu cavalo danava

    como se estivesse furioso ou doido e por isso que se chamou Cavalo

    Doido. Aprendera que, se sonhasse consigo no mundo real antes de ir

    para uma luta, poderia resistir a qualquer coisa. (p.210)

    Segundo a histria, foi por meio do conhecimento adquirido em

    sonhos que Cavalo Doido venceu sua maior batalha.

    Para os antigos, o mundo dos sonhos apresentava conexes com o

    mundo externo. Uma conexo de tal natureza pode ser encontrada em um

    relato de Enoch, infelizmente depreciado pela igreja e pouco divulgado, a

    respeito dos momentos que antecederam sua viagem atravs dos sete

    mundos celestes:

  • 24 No primeiro dia do primeiro ms, estava eu sozinho em minha

    casa descansando no meu leito, quando adormeci. E quando estava adormecido, uma grande tristeza tomou conta do meu corao e chorei durante o sono, e no podia entender que tristeza

    era aquela ou o que iria acontecer-me.

    E ento me apareceram dois homens, extraordinariamente grandes,

    como eu nunca vira antes na Terra; suas faces resplandeciam como o sol,

    seus olhos eram como uma chama e de seus lbios saa um canto e um

    fogo variados, de cor violeta na aparncia; suas asas eram mais

    brilhantes do que o ouro, suas mos mais brancas do que a neve.

    Eles estavam em p, na cabeceira do meu leito e puseram-se a

    chamar-me pelo nome.

    Acordei e vi claramente aqueles dois homens, de p, na minha

    frente.

    (O l ivro dos Segredos de Enoch 1: 4-8)

    Os homens que Enoch viu em sonho estavam na cabeceira de sua

    cama. Ao acordar, ele diz ter visto os mesmos homens sua frente. De

    acordo com o relato, parece haver ocorrido uma sincronicidade: ele

    sonhou com algo e logo em seguida vivenciou a mesma cena no mundo

    externo. Os mesmos homens vistos por Enoch durante o sonho eram os

    que estavam em p prximo sua cama quando ele acordou.

    O contato com o mundo espiritual na ausncia da vigl ia tambm

    pode ser encontrado em uma revelao de Isaas. O profeta teve uma

    viso durante a qual perdeu os sentidos externos, se manteve em silncio

    e foi dado como morto pelos que o observavam:

    E enquanto Isaas falava sob a inspirao do Esprito Santo, e

    todos o escutavam no mais profundo silncio, o seu esprito foi elevado

  • 25 acima dele mesmo, e ele no mais enxergou os que estavam em p

    diante dele.

    E seus olhos permaneciam ainda abertos, mas a sua boca no

    proferia mais palavras, e o seu esprito foi levado acima dele mesmo.

    Ele, no entanto, vivia ainda; mas estava imerso numa viso celeste.

    E o anjo que lhe fora enviado para revelar-lhe esta viso no era

    um anjo deste f irmamento, nem um desses anjos gloriosos deste mundo:

    era um anjo descido do stimo cu.

    E o povo que l se encontrava com a assemblia dos profetas

    acreditou que a vida de Isaas t inha-lhe sido subtrada.

    E a viso do santo profeta no foi deste mundo aqui, mas uma viso

    do mundo misterioso no qual no permitido ao homem penetrar.

    (O Livro da Ascenso de Isaas 6: 10-15)

    De acordo com o escrito, nos momentos em que os olhos de Isaas

    deixaram de captar as pessoas sua frente, houve uma viso de outro

    mundo, misterioso e impenetrvel. Seus olhos se mantiveram abertos

    durante o contato, um possvel indicador de que seu estado era o de um

    sonmbulo ou algo semelhante. O fato do povo reunido julg-lo sem vida

    um indicador de que certas funes corporais tpicas de quem est vivo,

    como o movimento e a fala, haviam sido suspensas (cadveres

    normalmente no se movem). O estado do seu corpo no era vgil uma

    vez que no havia conscincia da realidade externa. A mesma ausncia

    de conscincia ocorre no sono usual, no sonambulismo, no desmaio, na

    meditao, no transe ou no coma: em todos esses estados o

    funcionamento das exo-percepes interrompido e o corpo desfalece.

    Entendo que a conscincia deixou o mundo exterior e penetrou na

    dimenso onrica ou fez algo muito prximo a isso, pois o profeta no

    dava sinais de estar acordado. O universo onrico existe paralelamente ao

    fsico sob a forma psquica (os mundos interno e externo so simultneos

  • 26 e paralelos) e, em geral, quando se abandona um se vai para o outro.

    Em todo caso, o mundo acessado na experincia foi considerado real, o

    que favorece a af irmao de que os antigos no depreciavam a realidade

    interior.

    Como se v, os estados em que a conscincia deixava o corpo

    fsico eram a ponte para a realidade espiritual. As experincias que se

    tinha durante o sono funcionavam como portas ou portais, atravs dos

    quais o homem poderia contatar outras realidades, distintas da usual. O

    universo alm dos limites do estado vgil no era considerado irreal e

    nem visto como algo vago e ilusrio. O fato de ser tratado como uma

    forma de manifestao divina demonstra que era tomado em considerao

    seriamente.

    A experincia mstica era obtida enquanto se dormia. E nesse

    estado se poderia obter a autoridade de quem teve uma revelao de

    Deus. Uma autoridade de tal natureza, proporcionada pela experincia

    religiosa profunda, pode, segundo Will ian James (1995) chegar a destruir

    as bases da formal concepo lgico-racional de realidade pois os (...)

    estados msticos, quando bem desenvolvidos (...) quebram a autoridade

    da conscincia no mstica ou racionalista, que se baseia apenas no

    intelecto e nos sentidos. Mostram que esta no passa de uma espcie de

    conscincia. Abrem a possibilidade de outras ordens de verdade nas quais, na medida em que alguma coisa em ns responda vitalmente a

    elas, possamos continuar l ivremente a ter f. (p. 263, grifo meu).

    Para ele, h vrias formas de conscincia que do acesso a vrios

    t ipos de realidades e a religiosa, aquela que se tem nos estados msticos,

    seria uma. Deste modo, as experincias religiosas possuiriam um

    fundamento real, peculiar ao tipo de conscincia que lhes corresponde, e

  • 27 no falso. Foi o que ocorreu com Enoch e Isaas, que tiveram

    experincias religiosas em estado extra-vgil e autnticas sua maneira,

    desde um ponto de vista espiritual.

    Atualmente, a valorizao dos sonhos parece estar retornando. O

    ceticismo arbitrrio, f ixo na dvida unilateral e que busca adaptar os fatos

    teoria (crena) e aos mtodos ao invs de adaptar estes lt imos s

    evidncias, est retrocedendo e a realidade do mundo onrico sendo

    levada em considerao. Sanford (1988) entende que hoje a cincia est

    investigando com mais cuidado e seriedade os desafios cognitivos que

    lhe so lanados pelos sonhos:

    Atualmente, estamos nos aproximando da mudana. Durante o

    sculo XX, o sonho volta a se tornar objeto vlido de estudo e

    investigao. E temos, por exemplo, as pesquisas srias relativas ao

    sono e aos sonhos que comearam a ser feitas depois da Segunda

    Guerra Mundial. (p.15)

    Compreender a importncia de explorar o mundo dos sonhos ao

    invs de esquivar-se ingenuamente dos problemas postos pelo mesmo

    ampliar as fronteiras da cincia. tambm aproximar-se mais da viso

    de Isaas, Enoch, J, dos povos grafos atuais e das culturas antigas e

    pags, recuperando as bases verdadeiramente espirituais do

    cristianismo primitivo, descartadas pela igreja .

    A idia de um mundo interior real comparti lhada por Saiani (2000)

    para quem o pressuposto de que a realidade objetiva e o puramente

    subjetivo diferem preconceituoso uma vez que a realidade abrange

    eventos f sicos e psquicos. Isso signif ica que existem objetos psquicos

    assim como existem objetos f sicos e que nem sempre o psquico

    subjetivo.

  • 28

    Alm disso, Jung entendia que o eu est contido em um mundo, que

    esse mundo era a alma e que seria razovel atribuir-lhe a mesma

    validade que se atribui ao mundo emprico uma vez que um to real

    quanto o outro. Segundo seu pensamento, a psicologia deveria

    reconhecer que o f sico e o espiritual coexistem na psique e que, por

    razes epistemolgicas, esse par de opostos foi cindido pelo homem

    ocidental (1986).

    Dentro do homem h um universo verdadeiro, feito de imaginao,

    que se faz notar incessantemente por meio de pensamentos, sentimentos,

    recordaes e dos sonhos, quando ento se faz mais espesso e tangvel.

    um mundo no qual a cincia est penetrando aos poucos e que

    pertence dimenso desconhecida do esprito humano. Ns a chamamos

    de inconsciente porque no temos, usualmente, contatos conscientes e diretos com a mesma (Sanford, 1988):

    (...) eis uma teoria bsica sobre os sonhos: originam-se em outra dimenso de nossa personalidade a qual, pelo fato de no termos conscincia da mesma, chamada de inconsciente. (p.29, grifo meu)

    Alm desta dimenso em que vivemos durante a vigl ia, h outra: a

    dimenso do inconsciente. As regies de onde os sonhos provm

    parecem ainda ser pouco acessveis investigao cientf ica no nosso

    atual estgio de desenvolvimento. Entretanto, a considerao sria dos

    mesmos enquanto realidade passvel de estudo livre e os relatos de

    pessoas que os experimentam conscientemente podem abrir novas portas

    e ajudar a dissipar a ignorncia ainda reinante no campo, alm de ocupar

    um espao que de outra forma poderia ser destinado ao charlatanismo e

    s mistif icaes irresponsveis.

  • 29 2. A funo dos sonhos

    In s t range v is ions and through the

    w indows o f dreams we so lemnly gaze beyond

    (So l i tude Aeturnus )

    Entre as funes dos sonhos, podemos destacar a compensao das carncias da vida consciente e a revelao de contedos ctnicos

    individuais, coletivos e transpessoais.

    A vida consciente no plena. O ego vgil no permite a expresso

    de todas as tendncias arquetpicas. Como no podem ser extintas, as

    tendncias excludas se expressam no universo onrico, no qual os

    impulsos contrrios aos presentes conscincia so satisfeitos. Nele se

    cumprem desejos diametralmente opostos aos conhecidos ou aceitos

    (Jung, 1938). O inconsciente compensa a limitao da vida egica

    expressando nos sonhos aquilo que no tem chance de expresso na vida

    consciente. Os smbolos onricos apontam para partes de ns mesmos

    que atuam fora do campo da conscincia.

    Segundo Jung (1979), o inconsciente est em constante atividade

    na vigl ia ou no sono. Seu trabalho compensatrio no cessa quando

    dormimos. O fato de algumas pessoas no se lembrarem do que sonham

    no signif ica que o inconsciente f ique inativo durante a noite: h pessoas

    que falam dormindo mas no se lembram de terem sonhado. A fala

    assinala uma atividade mental cuja ocorrncia desconhecida pelo ego.

    O lado obscuro da psique no para de funcionar e de suprir as carncias

    no atendidas na vida consciente. So necessidades que fazem parte do

    si mesmo e tambm nos pertencem.

  • 30 medida em que estudamos os sonhos, assimilamos contedos

    internos antes no expressos por terem sofrido represso para adaptao

    scio-cultural ou por nossa vida nunca lhes ter dado o seu lugar devido.

    Nem todos os contedos inconscientes foram reprimidos. A represso

    pressupe um desenvolvimento prvio, ainda que incipiente, e h

    contedos que nem sequer chegaram a se desenvolver.

    Esta , ento, uma das funes do sonho: regular o funcionamento

    da psique permitindo a expresso daquilo que no encontra espao na

    existncia vgil.

    Outra funo onrica a revelao dos contedos ctnicos. Jung

    (1938) considera que o sonho demonstra o que escondemos. Os

    contedos mais secretos so acessados por meio de sua anlise. um

    heraldo de lo inconsciente, que nos descubre los secretos ocultos a la

    consciencia1 (p. 38).

    O caminho do auto-conhecimento onrico. Temos que tri lh-lo se

    quisermos descobrir pensamentos, associaes e tendncias

    subterrneas que se do sem a participao da conscincia. No mundo

    onrico h contedos autnomos, que se movimentam e atuam de modo

    independente da nossa vontade, possuindo intencionalidade prpria. Ao

    estud-los, estaremos estudando o que se passa nas profundidades de

    ns mesmos:

    Os sonhos contm imagens e associaes de pensamentos que

    no criamos atravs da inteno consciente. Eles aparecem de modo

    espontneo, sem a nossa interveno e revelam uma atividade psquica

    1 um arauto do inconsciente , que nos descobre segredos ocul tos a conscincia.

  • 31 alheia nossa vontade arbitrria. O sonho , portanto, um produto

    natural e altamente objetivo da psique, do qual podemos esperar

    indicaes ou pelo menos pistas de certas tendncias bsicas do

    processo psquico. Este lt imo, como qualquer outro processo vital, no

    consiste numa simples seqncia causal, sendo tambm um processo de

    orientao teleolgica. Assim, podemos esperar que os sonhos nos

    forneam certos indcios sobre a causalidade objetiva e sobre as

    tendncias objetivas, pois so verdadeiros auto-retratos do processo

    psquico em curso. (Jung, 1979, p. 7)

    O controle das emoes, como o do sistema visceral, de difcil

    acesso e percepo. nesse momento que se apresenta a importncia

    dos sonhos, como ddiva da natureza a f im de que possamos, atravs

    das experincias vivenciadas a cada noite, entrar em contato conosco

    mesmos e, desta forma, aprender a l idar com nossas emoes profunda e

    obscuramente entranhadas em nosso organismo. (Mendes, 1998, s/p.)

    Jung considera que todo sonho possui um sentido, ainda que no o

    compreendamos. Mesmo os que nos paream ridculos e

    incompreensveis apresentam um direcionamento a ser descoberto

    (1938), o qual nos revela o novo.

    No sono REM, ocorre uma diminuio das exopercepes

    acompanhada pela preservao das endopercepes (Mendes, 1998).

    Nesse estado, o mundo interior pode ser percebido apesar da desconexo

    sensorial com o meio externo:

    Nesse estgio, o indivduo se encontra num ativo estado de

    recuperao mental e psicolgica, abrigado por um profundo relaxamento

    do tnus muscular e desconectado das informaes sensoriais

  • 32 presentes no meio externo, exceto a audio. Nesse instante, se pode ento mergulhar nos sonhos. Neste estgio vai aflorar um oceano

    de emoes e ento pode-se perceber e conscientizar-se do verdadeiro eu, detectando assim os problemas que precisam e podem ser

    trabalhados atravs dos sonhos. (s/p, grifo meu)

    Sendo o inconsciente um manancial inesgotvel, at onde se saiba,

    de dados acumulados ao longo da histria, pode nos informar a respeito

    de ns mesmos ou do mundo exterior em que vivemos. fonte de auto-

    conhecimento e de conhecimento. H muito para descobrir a respeito de

    quem somos e do mundo em que estamos inseridos. Uma possvel via de

    acesso ao manancial onrica.

    Uma demonstrao de como o inconsciente pode fornecer

    informaes por meio de sonhos encontrada na histria de Cavalo

    Doido. A vitria na luta contra o general Crook, chamada pelos ndios de

    A Batalha em q u e a M o a S a l v o u s e u I r m o , f o i v e n c i d a p o r q u e

    e s t e s l a n a r a m m o d e u m a n o v a t t i c a d e g u e r r a ,

    d e s c o n h e c i d a a t p a r a o s s o l d a d o s , e o b t i d a p e l o c h e f e d u r a n t e

    u m s o n h o ( Brown,1987). A estratgia inesperada confundiu totalmente

    Crook e seus homens, dando a vitria aos Sioux. Cavalo Doido sonhou

    com a estratgia, a aplicou na batalha e venceu. A importncia dada por

    ele ao mundo dos sonhos no o levou a uma fuga do mundo da vigl ia. Ao

    contrrio, forneceu-lhe conhecimento adicional e necessrio para a

    superao de um problema que envolvia suas obrigaes enquanto chefe

    guerreiro e protetor das famlias que aceitavam o seu direcionamento e

    autoridade.

    Pelo caminho dos sonhos, tri lhamos a senda do auto-conhecimento

    e da descoberta do universo interior, ao longo da qual segredos so

  • 33 revelados e a realidade fantstica resignif icada at um nvel religioso

    ou mesmo alm dele. Os sonhos so a porta para o inf inito. Nesse

    sentido, so o terreno onde a experincia religiosa pode se movimentar

    (Hil lman ,1984): O p r o g r e s s i v o c o n t a t o a m i s t o s o c o m o s o n h o p r o m o v e a

    r e u n i o d a s p a r t e s s e p a r a d a s d a p s i q u e , o q u e c o n f i g u r a u m

    l u g a r h a b i t v e l e d e a m p l a m o v i m e n t a o p a r a a e x p e r i n c i a

    r e l i g i o s a . ( p p . 5 8 - 5 9 )

    Embora nem toda forma religiosa prestigie o sonho, muitas o

    apreciam de modo especial e encontram nele o terreno favorvel para o

    desenvolvimento de suas experincias. Isso se deve reunio, pelo

    caminho onrico, de pores da psique que antes estavam isoladas. a

    reunio do anteriormente isolado que abre espao para experincias de

    teor mstico. O crescimento da intimidade com o mundo dos sonhos

    permite um contato direto com entes arquetpicos e mitolgicos que o

    povoam. Esses entes, ou contedos, no se revelam conscincia

    quando o sonho desprezado. Nesse caso permanecem dela apartados.

    Assim, uma das funes do sonho dar vazo ao impulso religioso

    natural, satisfazendo necessidades de conforto e respeito com relao

    existncia de foras que nos ultrapassam e podem, de acordo com a

    crena da maior parte das religies, nos proteger, condenar, castigar,

    perdoar, salvar e/ou receber antes e depois da morte.

  • 34 3 . O e s t a d o n o - u s u a l d a c o n s c i n c i a e x t r a - v g i l

    I b e g i n a g a i n a s t h e w o r l d o u t s i d e e n d s

    L o v e S p i r a l s D o w n w a r d s

    Estar desperto dentro de um sonho (no sentido literal da expresso)

    estar em um estado no usual de conscincia. A modalidade de

    discernimento e alerta que se tem durante sonhos lcidos pouco comum

    na sociedade em que vivemos, no muito freqente. Para a maioria das

    pessoas seria um estado de conscincia alterado, modif icado.

    Para alguns estudiosos, o funcionamento consciente usual, aquele

    que a maioria das pessoas possui no estado normal de vigl ia, no o

    nico existente. o que af irmou Will ian James em uma obra conhecida

    por muitos ( apud Capra, 2000):

    Nossa conscincia normal do estado de viglia - a conscincia racional, como a denominamos - constitui apenas um tipo especial de conscincia , ao passo que, ao seu redor, e dela afastada por uma pelcula extremamente tnue, encontram-se formas potenciais de

    conscincia inteiramente diversas (p. 31, grifo meu).

    Alm do funcionamento consciente normal da vigl ia, ou seja,

    aquele que se tem quando o corpo fsico est acordado, o ser humano

    possuiria, em estado latente, outras modalidades de despertar. Seriam

    modalidades de conscincia extra-vgeis, presentes nas horas em que o

    homem no estivesse acordado. Obviamente, se no correspondem

    conscincia de vigl ia, tudo indica que James se refere a uma conscincia

    durante o sono.

  • 35 Experincias conscientes nas quais se ultrapassa o mundo

    tridimensional seriam conhecidas pelos msticos do oriente, os quais (...)

    parecem estar em condies de atingir estados no-usuais de conscincia

    nos quais transcendem o mundo tridimensional da vida cotidiana de modo

    a experimentar uma realidade mais elevada, multidimensional. Assim, Aurobindo refere-se a uma mudana sutil, que faz com que a vista veja

    numa espcie de quarta dimenso. (Capra, 2000, p. 133, grifo meu).

    O mundo tridimensional no seria o nico passvel de

    experimentao consciente. Outros nveis dimensionais tambm fariam

    parte da realidade e poderiam ser acessados pela conscincia alterada.

    Poderamos incluir aqui o mundo onrico pelo fato dele no ser

    tridimensional: seus elementos componentes no possuem, desde um

    ponto de vista f sico e externo, as caractersticas que chamamos largura,

    altura e comprimento. As imagens noturnas no podem ser medidas em

    centmetros ou pesadas e, no obstante, so reais pois esto vivas

    dentro de ns.

    O homem possuiria recursos internos para acessar o que no pode

    ser visto, ouvido, tocado e palpado com o corpo fsico pois suas

    experincias multidimensionais transcendem o mundo dos sentidos

    (idem, p. 228), ou seja, conduzem ao contato com o que est alm do

    universo sensorial. As f iguras arquetpicas que surgem em sonhos

    possuem formas e, algumas vezes, cores. H uma forma de viso

    psquica que nos permite detalhar caractersticas morfolgicas

    relacionadas com as imagens sonhadas. Porm, bem sabemos que uma

    modalidade de viso no pertencente aos cinco sentidos externos. Os

    transcende e, ainda assim, pertence ao ser humano uma vez que est

    presente nos relatos onricos.

  • 36 Referindo-se a estados no-usuais de conscincia em culturas

    primitivas, antigas e aborgenes, Grof (1998) nos diz que nelas (...)

    existe a idia de que esta realidade visvel no a nica existente, h

    outras realidades paralelas onde existem espritos, demnios, elementos

    arquetpicos ou mitolgicos, entidades encarnadas, animais de poder e

    assim por diante. (s/p.)

    As referidas culturas no conceberiam como aberrante ou absurda

    a idia de que o mundo fantstico , sua maneira, real. Paralelamente

    realidade visvel, haveria uma realidade invisvel que poderia ser

    acessada conscientemente (atente-se para o fato de que a af irmao do

    estudioso com relao a estados de conscincia e no de inconscincia; ele no est tratando de processos que se do sem a

    presena da lucidez). Tal realidade corresponderia ao mundo imaginal e

    poderia abranger tambm seu aspecto onrico pois seria habitada por

    entes arquetpicos fantsticos e mitolgicos, os quais sempre surgem em

    sonhos.

    Corroborando essa viso, Harnisch (1999) af irmou que os ndios

    da Amrica do Norte consideravam os sonhos como vises de uma outra

    realidade, que para eles traava um paralelo com o seu mundo desperto. De uma forma parecida compreendiam-se os sonhos na China. Atribua-se-lhes uma elevada qualidade vivencial e estes eram

    vivenciados com uma intensidade to extraordinria que as pessoas se

    perguntavam: qual ser pois a verdadeira realidade: o sonho ou aquilo

    que se vivencia no estado de vigl ia? (p.7, grifo meu)

    Nas culturas mencionadas, o universo dos sonhos e o universo vgil

    so paralelos. Cada um real sua maneira.

  • 37 Ao empreender uma descida consciente s profundidades do

    oceano interior, o homem penetraria em um mundo real, verdadeiramente

    existente, embora sob outra forma. Sobre este pormenor, Jung (1984)

    escreveu:

    muito difcil acreditar que a psique nada representa ou que um

    fato imaginrio irreal. A psique s no est onde uma inteligncia

    mope a procura. Ela existe, embora no sob uma forma fsica. um

    preconceito quase ridculo supor que a existncia s pode ser de

    natureza corprea [f sica]. Na realidade, a nica forma de que temos

    conhecimento imediato a psquica. Poderamos igualmente dizer que a

    existncia fsica pura deduo uma vez que s temos alguma noo da

    matria atravs de imagens psquicas, transmitidas pelos sentidos.

    (p. 14)

    A existncia psquica seria real e vlida como a f sica e talvez at

    mais. Conclui-se, por extenso, que adentrar a uma cena onrica

    conscientemente adentrar a um mundo feito de imaginao mas nem

    por isso menos verdadeiro. A realidade imaginal interna paralela

    externa.

    Nas j mencionadas culturas antigas e primitivas so (..) criados

    espaos para que (...)[as experincias em estados de conscincia no-

    usual] possam ser vivenciadas com segurana e mtodos para se

    desenvolverem com intensidade. Nesses estados alterados de

    conscincia que nascem a rica mitologia e a espiritualidade daqueles

    povos. Estados no-usuais de conscincia so uti l izados por culturas

    ancestrais para (...) [a realizao de] coisas prticas e corriqueiras tais

    como encontrar objetos ou pessoas perdidas ou para localizar rebanhos

    de animais a serem caados, inclusive elas desenvolveram cerimnias

  • 38 para aumentar ainda mais a capacidade de modificar a conscincia,

    com objetivos bastante prticos. (Grof, 1998, s/p.).

    A realidade invisvel seria acessada conscientemente e seu acesso

    estaria fortemente ligado ao cotidiano prtico e concreto desses povos,

    os quais teriam inclusive aperfeioado ritos para intensif ic-lo e nele

    minimizar a exposio a possveis perigos. A conscincia assim alterada

    teria uma util idade no mundo tridimensional: caa e localizao de

    pessoas perdidas. Ela no serviria a uma fuga da realidade externa mas a

    completaria. O universo mtico brotaria de seu seio e por ele os homens

    se orientariam.

    Entretanto, haveria em nossa cultura uma limitao que a tornaria

    avessa a tais experincias e a levaria a tom-las como estranhas:

    Ns no apenas patologizamos estas prticas como tambm

    proibimos a uti l izao de substncias ou cerimnias que possam levar

    mudana de estados da conscincia. Por exemplo, dentro da psiquiatria

    saxnica no h uma distino clara entre misticismo e estgios

    psicticos. Em geral, esta diferena de viso de mundos entre as

    sociedades tradicionais e a nossa sociedade industrial/ocidental

    explicada pela superioridade fi losfica da nossa viso l imitada de

    mundo. Depois de trabalhar 40 anos nessa rea do conhecimento, minha

    opinio sobre isso que esta diferena de viso de mundo tem mais a ver

    com a enfermidade e com a ignorncia da cincia ocidental em relao

    aos estados no-usuais de conscincia. (idem)

    Assim, nossa dif iculdade em lidar com os estados incomuns se

    deveriam a bloqueios culturais fortes, relacionados com a possesso

    coletiva por complexos de superioridade e que exerceria seus efeitos

  • 39 principalmente sobre a cincia, aliada uma atrof ia ritualstica. A

    incapacidade, presente na cincia em moldes eurocntricos, de

    diferenciao entre a experincia mstica e os estgios psicticos seria

    decorrente desse estado enfermo e da ignorncia ocidental com relao a

    formas de conscincia presentes em culturas antigas, primitivas e

    orientais e aos meios de se desenvolv-las. A ausncia de espao na

    modernidade para o cult ivo prtico e alternativo da conscincia teria

    ocasionado uma atrof ia dos seus estados no-usuais em modo no-

    patolgico e estabelecido entre ns e outros povos um abismo. Em

    virtude desse abismo, no seria possvel a correta comunicao de certas

    experincias pois os relatos de teor extra-sensorial (tais como aparies

    de entes fantsticos ou viagens a outros mundos) seriam vistos por ns

    como manifestao de ignorncia pura e simples. Ao invs de

    considerarmos cuidadosamente tais manifestaes desde o mesmo ponto

    de vista cultural que as origina, como corresponderia a uma postura

    legit imamente cientf ica, imporamos na abordagem das mesmas nossa

    viso de mundo, nos esquecendo de que a realidade no se adapta aos

    nossos caprichos tericos. Seramos surdos e cegos para certas

    experincias psquicas pelo fato de no as enxergarmos tal como so

    mas sim como nos parecem. Ao abord-las, veramos nelas apenas os

    nossos prprios pontos de vista. A cincia ocidental relutaria em

    reconhecer que a espiritualidade algo importante e profundo, (...) parte

    da psique humana e no apenas uma questo de falta de educao

    cientf ica (ibidem).

    Essa confuso a respeito da natureza de certas experincias

    conscientes transcendentais preservadas e aperfeioadas em outras

    culturas atravs dos sculos se deveria l imitao do alcance do nosso

    intelecto:

  • 40 Quando se trabalha com estados no-usuais de conscincia,

    comeamos a entender melhor esta confuso e vamos chegar ao que

    Jung j havia descoberto h anos: o intelecto parte da psique e esta

    csmica, abriga tudo o que existe. No podemos entender, com o

    intelecto, como funciona a psique de uma outra pessoa (...). (Grof, 1998,

    s/p.)

    A abordagem exclusivamente intelectual seria um obstculo que

    dif icultaria a compreenso do funcionamento psquico de algum. E,

    parece-me, isso sobremaneira vlido no caso desse algum pertencer a

    um contexto cultural completamente adverso ao nosso. Por abrigar tudo o

    que existe no universo, a psique precisa ser abordada tambm sob

    prismas no-intelectuais. Isso no signif ica que o intelecto seja intil mas

    parcial. abordagem intelectual, dever-se-ia acrescentar outras que na

    sociedade atual no so uti l izadas. Se buscamos a totalidade, no

    podemos aderir teimosamente a apenas alguns instrumentos cognitivos.

    Entre as abordagens vlidas est a simblica, com sua via analgica que

    nos permite conceituar e expressar intelectualmente aquilo que

    inacessvel mente racional. A metfora a ponte entre o compreensvel

    e o incompreensvel e nos permite a comparao. Uma demonstrao

    analgica torna o obscuro menos incompreensvel.

    Para Jung (1984) a extroverso excessiva dos dias atuais levaria a

    uma negligncia para com os acontecimentos internos, inclusive dentro

    da cincia. Nos diz:

    o preconceito, muito difundido, contra os sonhos, apenas um dos

    sintomas da subestima muito mais grave da alma humana em geral. Ao

    magnfico desenvolvimento cientf ico e tcnico de nossa poca,

    correspondeu uma assustadora carncia de sabedoria e introspeco.

  • 41 verdade que nossas doutrinas religiosas falam de uma alma imortal,

    mas so muito poucas as palavras amveis que dirige psique humana

    real; esta iria diretamente para a perdio eterna se no houvesse uma

    interveno especial da graa divina. Estes importantes fatores so

    responsveis em grande medida embora de forma no exclusiva pela

    subestima generalizada da psique humana.

    (pp. 18-19)

    Embora tivssemos grande desenvolvimento tcnico, teramos

    grande atraso introspectivo. Haveria uma averso bem difundida contra

    as viagens do ego s vastides profundas do si mesmo e isso decorreria

    da ignorncia a respeito da natureza da alma. Nem mesmo as nossas

    religies seriam capazes de preencher essa lacuna. Haveria uma

    subestima da psique e um preconceito contra os sonhos. Os sonhos

    lcidos no seriam, portanto, cult ivados ou vistos com bons olhos em

    nossa sociedade.

    Entretanto, nos dias atuais a cincia estaria se abrindo para a

    possibil idade de se desligar a conscincia dos rgos sensoriais externos

    e transp-la para alm dos mesmos, mas essa abertura seria ainda

    incipiente (Grof, 1998):

    A tanatologia vem estudando casos de cegueira congnita, em que

    as pessoas que viveram experincias fora do corpo descrevem o que acontece na sala de operaes ou em outros locais e, quando voltam,

    descrevem o que viram, as explicaes so confirmadas, s que quando

    retornam ao corpo fsico, continuam cegas como antes. Estas

    experincias continuam sendo negadas pela comunidade cientf ica. (s/p,

    grifo meu)

  • 42 As pessoas investigadas seriam cegas. No teriam, portanto, o

    poder da viso externa mas, durante cirurgias, visualizariam os

    acontecimentos da sala de operaes em que estavam e at

    acontecimentos fora dela e isso seria passvel de confirmao. As

    imagens obtidas sem o recurso dos olhos seriam comparadas s

    realidade visvel e haveria uma correspondncia entre ambas: de alguma

    maneira os pacientes saberiam o que se passava nas imediaes. O fato

    dessa percepo no-usual acontecer em salas de operaes sugere que

    a pessoa estaria dormindo ou desmaiada experienciando, provavelmente,

    uma modalidade no-usual de sonho.

    Algumas pessoas com maior aprimoramento intelectual seriam

    especialmente sensveis a ponto de perceberem outras realidades

    conscientemente. A experincia que Grof (idem) teve principalmente com

    pessoas que tm grande treinamento cientf ico e f i losfico e que tm Q.I. muito desenvolvido, (...)[foi] que estas, quando em trabalho com estados no-usuais de conscincia, entram em contato com experincias

    espirituais e msticas. E elas, no podendo negar a realidade espiritual,

    comeam a se interessar pelas tradies mstico-religiosas, tanto no

    oriente quanto no ocidente. (s/p, grifo meu).

    No seriam apenas pessoas pertencentes a culturas grafas ou

    atrasadas que experienciariam conscientemente as realidades

    paralelas, entre as quais podemos incluir a dimenso onrica. Isso parece

    reforar ou sugerir a idia de que o funcionamento consciente que

    consideramos no-usual arquetpico e est latente mesmo nas pessoas

    ocidentais e intelectuais. Para que ele se desenvolvesse, precisaria ser

    contatado e ativado. O aperfeioamento cientf ico-f i losf ico e a

    inteligncia no o excluiriam. O que o excluiria seria o preconceito, o qual

    resultaria em negligncia e impediriam o seu cult ivo. No obstante, o

  • 43 prprio Grof (ibidem), um cientista que teve formao materialista em

    um pas do leste europeu, af irmou transcender conscientemente os

    limites do corpo fsico sob efeito do LSD. Referindo-se a uma experincia

    feita na clnica em que trabalhava, o estudioso relatou:

    Quando estava no ponto mximo do experimento, no ponto mais

    intenso do efeito daquela substncia, eles me chamavam, para que se

    fizesse a experincia do monitoramento das [minhas] ondas cerebrais.

    Deitado com uma luz estetoscpica na minha frente, de repente me senti

    como que no meio de uma exploso atmica. Hoje analiso que o que eu

    vivi mesmo, naquele momento, foi a luz inicial da minha conscincia, que

    foi catapultada para fora do meu corpo... e em um instante eu sa da

    clnica, sa de Praga e sa para fora do planeta. Minha conscincia era o

    reflexo de tudo que existia no universo. E aumentando a intensidade da

    experincia com o aparelho, fui voltando ao meu corpo fsico. (s/p.)

    Esta experincia apresenta contedos semelhantes aos de certas

    experincias em meditao e de um sonho tido pelo prprio Jung (1963)

    no qual ele nos relata ter voado at deixar o planeta Terra e v-lo das

    alturas. interessante notar que a experincia de Grof apresenta o

    abandono temporrio das percepes sensoriais corporais pela

    conscincia, pois do contrrio a mesma no poderia ser lanada para fora

    do corpo fsico, da clnica e da capital da antiga Tchecoslovquia. Ser

    lanado para fora de algo deix-lo e, portanto, entendo que a

    conscincia deixou as funes sensoriais externas do corpo fsico (fato

    que, obviamente, no seria possvel sem que este, no decorrer da

    experincia, perdesse o estado vgil; caso contrrio no se diria que a

    conscincia saiu do corpo).

  • 44 Quando dormimos em situaes comuns, sem recursos qumicos

    adicionais, e adentramos s regies onricas, as percepes externas

    cessam, nos casos em que no h sonambulismo, do mesmo modo que

    na experincia de Grof. Evidenciamos, assim, que o abandono do corpo

    fsico pela conscincia um ponto comum s experincias mencionadas.

    Quando adormecemos, deixamos de perceber muitas coisas que se

    passam conosco: que estamos deitados, mal posicionados, que temos

    saliva escorrendo pela boca, que roncamos etc. Provavelmente, ningum

    negaria que durante o sono as funes sensoriais externas f icam muito

    reduzidas e que na morte elas param. O relato de Grof parece ser um

    caso de experincia onrica consciente sob o efeito da droga.

    A atuao da conscincia dentro do sonhos e relativamente

    desligada dos sentidos corporais pode irromper durante certos pesadelos

    (Sanford,1988):

    A participao da conscincia num sonho responsvel pelo fato

    de as pessoas dizerem s vezes que despertam dos sonhos pela prpria

    vontade, especialmente quando se tornam aterrorizadores. s vezes

    ouvimos das pessoas: Eu disse para mim mesmo para despertar, e o

    fiz. (p. 56)

    As pessoas diriam a si mesmas, principalmente durante sonhos

    terrveis, que deveriam despertar e por este meio sairiam da cena onrica

    indesejvel. Para que o ego chegue ao ponto de diz-lo para si mesmo,

    preciso que tenha o discernimento de estar dormindo. Ningum afirmaria

    que precisa acordar se no compreendesse que sonha.

    A modalidade especial de conscincia seria uma variante da

    capacidade de interferir conscientemente no contedo dos sonhos,

  • 45 programando-os previamente. Isso facultaria ao ego a chance de

    modif icar sua forma de reagir ao contato com os elementos onricos,

    desde que no tentasse impor seus caprichos ao inconsciente (idem). Ao

    modif icar as reaes no sonho, a pessoa poderia adquirir experincias

    novas:

    Uma das variaes do sonhar programado chama-se sonhar com

    lucidez. Convida-nos a nos tornarmos despertos no sonho ou, por

    outras palavras, a sermos capazes de reconhecer, no sonho, que

    estamos sonhando. Dizem que isso nos capacitaria a redirecionar nossos

    sonhos. Se conseguirmos faz-lo no sentido que quisermos, ou se formos

    capazes de dar ao sonho um final agradvel ou favorvel, no meu modo

    de pensar, isto seria uma grande perda (...). Contudo, se esse estado de

    vigl ia for uti l izado com o objetivo de termos oportunidade de mudar

    nossas reaes no sonho e podermos escolher outras respostas [e no

    apenas as mesmas de sempre, aquelas nas quais nos mecanizamos e s

    quais estamos apegados] , o assunto j diferente. Nesta hiptese,

    teramos uma forma de imaginao atuante, o que seria [um] processo

    auxil iar (...)[na interao com os contedos psquicos que esto se

    expressando e personif icando durante o sonho]. H grande diferena

    entre tentar manipular o inconsciente para adapt-lo nossa fantasia e

    alterar as respostas de nosso ego de acordo com o que est acontecendo

    em volta, e devemos nos lembrar e aproveitar essa distino. (p.57, grifo

    meu)

    A lucidez no decorrer do sonho deveria ser aproveitada, isto ,

    explorada. Seria um fator auxil iar no processo de auto-conhecimento,

    desde que o ego a uti l izasse corretamente ao invs de impor ao sonho os

    seus caprichos.

  • 46 No nvel psquico profundo, seria possvel at mesmo transcender

    conscientemente o nvel pessoal e experimentar-se como parte da

    mitologia dos povos ou confundir-se com a fora criadora da natureza

    (Grof, 1998):

    Em estado transpessoal voc pode ser qualquer t ipo de

    experincia, entre f icar com o ego - a identidade- at o princpio criador.

    Podemos nos experienciar como seres mitolgicos ou em nveis

    mitolgicos de conscincia - onde o ser humano definido como um campo de possibil idades sem limites. (s/p, grifo meu).

    Haveria a possibil idade de nos experimentarmos conscientemente

    num nvel mitolgico: sermos unos com os heris lendrios e, ao mesmo

    tempo, termos conscincia do teor daquilo que estamos experimentando.

    Um nvel mitolgico de conscincia um estado psquico no qual somos

    conscientemente uma f igura mitolgica.

    Possuiramos vrios nveis conscientes em nosso interior que

    poderiam ser conhecidos particularmente pelo homem que olha para

    dentro e explora a sua conscincia em seus vrios nveis (Capra, 2000,

    p. 227). A existncia de vrios nveis de conscincia dentro do homem e

    a possibil idade de acesso aos mesmos signif icaria que no apenas uma

    modalidade de conscincia, a do estado normal de vigl ia, seria a

    realmente existente em ns mas que haveria outras, conhecidas h muito

    tempo pelos orientais. Seus msticos exploraram, atravs dos sculos,

    vrios modos de conscincia e as concluses a que chegaram so, com

    frequncia, radicalmente diferentes das idias sustentadas no ocidente

    (idem, p. 225).

  • 47 Deste modo, o nvel onrico, que corresponde s camadas mais

    profundas da psique, poderia apresentar funcionamentos conscientes,

    faculdade no exclusiva do ego vgil.

    De acordo com os estudiosos mencionados, haveria uma realidade

    invisvel: a do mundo imaginal. Uma realidade que estaria fora do

    universo consciente imediatamente acessvel ao ego durante o estado

    normal de vigl ia mas que poderia ser atingida fora dele, sob condies

    especiais nas quais o funcionamento da conscincia fosse alterado.

    4 . A m o d a l i d a d e l c i d a d e s o n h a r ( a n o u s u a l l u c i d e z i n t r a - o n r i c a )

    4.1. O que so as experincias onricas conscientes ou sonhos lcidos

    Ao la rgo a inda arde a barca da fantas ia e

    o meu sonho acaba tarde, de ixa a a lma de v ig ia .

    Ao la rgo a inda arde a barca da fantas ia e o meu

    sonho acaba tarde; acordar que eu no quer ia .

    (Madredeus)

    As viagens conscientes ao mundo dos sonhos so tambm

    denominadas sonhos lcidos. O requisito exigido para se definir um

    sonho como lcido o fato da pessoa que sonha reconhecer tal fato

    enquanto dorme. A conscincia do carter onrico de uma experincia

    pode ser simultnea ocorrncia da prpria experincia. Quando a

    simultaneidade entre conscincia e sonho ocorre, diz-se que a pessoa

    tem um sonho lcido:

  • 48

    Sonho lcido aquele no qual voc est conscientemente

    informado do fato de que est sonhando (Harary & Weintraub, 1993,

    p.35)

    A definio bsica do sonho lcido no requer nada mais do que

    tornar-se consciente de voc est sonhando. (Lucidity Institute, 1996,

    s.p/)

    Sonhar lcido sonhar enquanto voc sabe que est sonhando.(..)

    Normalmente, a lucidez comea no meio de um sonho, quando o

    sonhador percebe que o que est sendo vivido no ocorre na realidade

    fsica; um sonho. (idem, s/p.)

    Um sonho lcido , portanto, um sonho na qual h o discernimento

    de se estar dentro dele. O termo foi cunhado por Frederik van Eeden

    (1913), o qual uti l izou palavra lcido com o signif icado de discernimento

    ou clareza mental sobre o que est se passando. A simultaneidade

    entre essa compreenso e a ocorrncia do sonho indispensvel. Essa

    forma particular de lucidez envolve a percepo de que no se est

    participando conscientemente de uma realidade pertencente ao mundo

    fsico. Muitas vezes, o despertar de conscincia acontece no decorrer do

    processo onrico: a pessoa no inicia o sonho conscientemente mas disso

    se d conta enquanto dorme. Aps entrar no mundo interior

    inconscientemente, alguma vivncia, talvez estranha aos padres da

    realidade externa, pode chamar ateno do sonhador para o fato de estar

    do outro lado da existncia, alm do umbral da vida vgil.

    Nesses sonhos os acontecimentos que transcendem a lgica da

    realidade externa s vezes funcionam como indicadores do carter

  • 49 onrico das imagens. Eles auxil iam no desenvolvimento da lucidez pelo

    fato de serem tpicos de uma realidade fantstica, diferindo do que seria

    coerente e possvel para a realidade tridimensional:

    Muitas vezes esta percepo conseguida pela observao do

    sonhador de um evento que impossvel ou improvvel de acontecer,

    como o encontro com um falecido ou voar com ou sem asas. Algumas

    vezes as pessoas se tornam lcidas sem observar nenhuma pista

    particular no sonho; de repente, elas se do conta de que esto

    sonhando. Poucos sonhos lcidos (segundo a pesquisa de LaBerge e

    colaboradores, em torno de 10%) so o resultado de se retornar do

    estado de vigl ia diretamente para um sono REM sem a quebra da

    continuidade da conscincia. (Lucidity Institute, 1996, s/p.)

    Encontro com mortos e certos vos so estranhos ao mundo da

    vigl ia usual. Entretanto, em certos casos eles so tpicos do mundo dos

    sonhos, subversor da lgica formal. As cenas tpicas da realidade

    fantstica levam o sonhador a reconhecer a natureza do que est

    presenciando. Ele reconhece o sonho pelos seus sinais peculiares: os

    acontecimentos impossveis para a realidade fsica. Essa uma forma de

    despertar no sonho. Em outros casos as pessoas levam a conscincia

    desta realidade para aquela sem interrupo no seu f luxo, isto , num

    estado de discernimento contnuo no qual no h perda temporria da

    lucidez. Entretanto, na maioria das vezes h uma quebra pois as pessoas

    esto conscientes no mundo vgil, perdem a conscincia e a recuperam

    novamente dentro do sonho. Essa recuperao pode advir de imagens

    que contenham estranhas combinaes de elementos que denunciem ao

    ego seu esquecimento em atentar para o carter onrico da realidade

    presente na qual est inserido enquanto o corpo dorme ou simplesmente

  • 50 pela conscientizao direta disso, sem a observao prvia de

    elementos denunciadores.

    Segundo Hil lman(1984), nossos sonhos possuem contedos que

    reclamam ateno. H animais, pessoas e lugares interiores que querem

    ser vistos e reconhecidos. Ele sugere que, caso queiramos, nos tornemos

    amigos do sonho para participar dele, entrar em suas imagens e animo,

    querer conhec-lo melhor, entend-lo, brincar com ele, viv-lo, carreg-

    lo, familiarizar-se com ele (p. 58). Isso implica em estud-lo e descobr-

    lo, aumentando pouco a pouco a intimidade, estreitando os laos da

    amizade. Desta forma, conhecemos as caractersticas tpicas e podemos

    reconhecer o amigo sempre que ele voltar, isto , sempre que os

    contedos onricos se mostrarem a ns. O que Hil lman sugere que ns

    participemos do sonho ao invs de permanecermos ignorantes de sua

    existncia. Para tanto, os prprios contedos onricos se revelam a ns

    enquanto tal mas normalmente no lhes prestamos a ateno devida e

    no atendemos sua reclamao.

    Quando estamos lcidos, reconhecemos o nosso amigo, sabemos

    que o sonho sonho. O ato de participar, brincar, viver, familiarizar-se e

    entrar nas suas imagens se torna fato. Os sinais tpicos do mundo onrico

    recebem ateno e so reconhecidos. medida em que nos

    familiarizamos mais e mais com os nossos sonhos, aprendemos a

    reconhec-los como tal nos momentos em que esto se processando e

    no apenas depois, quando acordamos.

    Os sonhos costumam revelar sua natureza extra-f sica e fantstica

    por meio de combinaes de imagens que desafiam a lgica do mundo

    externo. como se ele dissesse ao ego: No est vendo? Voc est em

    um sonho. Isso no acontece no mundo tridimensional!

  • 51

    No absurdo que os acontecimentos onricos se dem de modo

    diferente dos acontecimentos f sicos (Harnisch, 1999) pois os princpios

    que regem estes lt imos nem sempre regero aqueles:

    As leis cientf ico-naturais de causalidade esto suspensas no

    sonho. (p. 16)

    As dimenses de tempo e espao no tem a mesma validade com

    que estamos acostumados em nossa conscincia desperta. (idem)

    Isso explica a presena de elementos atpicos para o mundo

    tridimensional. So justamente os elementos estranhos, que se mostram

    como possibil idades exclusivamente onricas, que chamam a ateno do

    sonhador e o ajudam a despertar a conscincia:

    Est a sonhar. De repente, algo acontece que o faz perceber que est a sonhar. Talvez ocorra algo que no pode suceder na realidade, como voar, ou ter sexo com a pessoa dos seus sonhos. Portanto, ei-lo consciente de que est a dormir e a sonhar, mas a coisa continua!

    Sabe que isto no real, e que no sofrer conseqncias, pelo que

    pode fazer o que lhe der na gana. Violao, pilhagem, massacres! Tem o

    que pediu. Se o pensa, tem-no. O seu pensamento controla as aes. O

    nico problema que fica to excitado que acorda! (Carrol, 2001, s/p,

    grifo meu)

    A experincia consciente pode promover uma descarga de libido

    represada com a diferena de que, estando consciente, a pessoa pode

    se dar conta desse fato no momento em que ocorre. A pessoa pode fazer

    tudo o que desejar e isso inclui aquilo que sofre restries neste mundo.

  • 52 Se temos um desejo cuja satisfao pode repercurtir contra ns,

    podemos realiz-lo no mundo dos sonhos.

    Nas experincias onricas conscientes h o conhecer com referido

    por Edinger (1999), aquele contato simultneo entre sujeito e objeto de

    conhecimento. Para ele, tomar conscincia conhecer com,

    participando desse processo como sujeito e objeto simultaneamente.

    Isso exige o ver e o ser visto ao mesmo tempo. O sujeito domina o objeto

    pelo poder logico com muito esforo e o objeto passa a ser vt ima do

    conhecedor.

    Nos sonhos lcidos somos simultaneamente sujeito (pois estamos

    participando e observando os acontecimentos onricos) e objeto (pois a

    nossa psique e seus contedos psquicos esto em funcionamento). O

    sujeito conhecedor e o objeto de conhecimento esto simultaneamente

    presentes um ao outro. Em tal circunstncia o contato direto. Isso no

    ocorre durante o sonho usual porque nele o carter onrico das cenas

    descoberto apenas pela manh, aps o sono. A falta de discernimento

    durante o sonho nos impede de estud-lo in loco e nos deixa a via

    indireta do estudo posterior como alternativa restante.

    Uma simultaneidade obtida no sonho lcido: aquele que conhece

    est presente e aquilo que est sendo conhecido tambm. H duas

    presenas em um mesmo instante. Quando o sonho e seu estudo esto

    separados temporalmente, ou seja, quando um ocorre noite e o outro

    durante o dia, no h simultaneidade e, portanto, no h o conhecer

    com.

    Vrios estados ou graus de conscincia desperta podem se

    apresentar nos sonhos lcidos. De acordo com a intensidade da lucidez,

  • 53 a compreenso da realidade presente pode ser mais ou menos

    profundidade:

    Contudo, a qualidade da lucidez varia enormemente. Quando a

    lucidez atingida em um alto grau, voc est consciente de que tudo que

    experienciado est acontecendo na sua mente, que no existe um

    perigo real, e que voc est dormindo na cama e ir despertar em breve.

    Com um nvel baixo de lucidez voc pode ter a certeza de que est

    sonhando, talvez consiga voar, ou modificar o que estiver acontecendo,

    mas no ter a percepo suficiente de que as pessoas so

    representaes onricas, ou que no pode ser ferido, ou que est

    realmente na cama. (Lucidity Institute, 1996, s/p.)

    As proezas realizadas dependem do grau de discernimento obtido.

    Algumas vezes consegue-se viajar pelo ar, mudar o rumo dos

    acontecimentos e no temer ferimentos e perigos. Quando a compreenso

    no muito clara isso no possvel.

    Harnisch (1999) chama essa modalidade de sonhos de sonhos

    inteligentes e faz referncia ao trabalho que a pesquisadora norte-

    americana Patricia Garf ield desenvolve sobre a formulao ativa de

    sonhos seguindo o princpio de govern-los em seu prprio processo.

    Para tanto ela sistematizou exerccios que levam o sonhador a tomar

    conscincia dos sonhos nos momentos em que acontecem. Entretanto,

    Sanford (1988) no aceita a proposta da pesquisadora no que se refere

    manipulao total dos contedos onricos pelo ego por no dar espao

    para as colocaes do inconsciente. Deixa claro, por outro lado, que no

    contra a lucidez no sonho em si mesma mas apenas ao seu uso com a

    f inalidade exclusiva de atender s aspiraes egicas. Segundo sua

    concepo, o uso recomendvel do discernimento proporcionaria a

  • 54 chance de realizarmos o que chama de imaginao atuante por meio

    da qual aproveitaramos e exploraramos a oportunidade de modif icarmos

    as reaes do ego aos acontecimentos circundantes. Isso o mesmo que

    se faz em uma imaginao ativa (Sanford, 1987), prtica na qual a

    conscincia participa ativamente.

    possvel que o controle absoluto do sonho pela conscincia

    egica reprima as necessidades inconscientes (Harary & Weintraub,

    1993). Portanto, o discernimento deve ser uti l izado para permitir maior

    expresso e assimilao dos contedos sombrios por meio da interao

    lcida e no para impor-lhes nossas aspiraes .

    H uma diferena entre reconhecer o sonho e control-lo. Pode-se

    adquirir a lucidez sem conseguir (ou querer) controlar o contedo da

    experincia, l imitando-se apenas a contempl-la e sent-la. O controle

    depende da auto-confiana e esta depende da profundidade do

    discernimento:

    Lucidez e controle dos sonhos no so a mesma coisa. possvel

    ter lucidez e um pequeno controle sobre o contedo onrico e,

    opostamente, ter um grande controle sem uma conscientizao explcita

    de que se est sonhando. No obstante, tornar-se lcido em um sonho

    como aumentar deliberadamente sua influncia sobre o curso dos

    eventos. Uma vez que voc saiba que est sonhando, voc pode escolher

    realizar alguma atividade que s seria possvel em sonhos. Voc sempre

    tem a possibil idade de escolher o grau de controle que quer exercer, ou o

    t ipo dele. Por exemplo, voc pode continuar fazendo qualquer coisa

    quando se torna lcido, com o conhecimento adicion