2013_ValdirDonizeteDeSantosJunior

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL VALDIR DONIZETE DOS SANTOS JUNIOR A trama das ideias: Intelectuais, ensaios e construo de identidades na Amrica Latina (1898-1914) So Paulo 2013 2 VALDIR DONIZETE DOS SANTOS JUNIOR A trama das ideias: Intelectuais, ensaios e construo de identidades na Amrica Latina (1898-1914) DissertaoapresentadaaoProgramade Ps-GraduaoemHistriaSocialda FaculdadedeFilosofia,LetraseCincias HumanasdaUniversidadedeSoPaulo para obteno do ttulo de Mestre. rea de Concentrao: Histria Social. Orientadora:Profa.Dra.MariaLigia Coelho Prado. So Paulo 2013 3 Autorizoareproduoedivulgaototalouparcialdestetrabalho,porqualquermeio convencional ou eletrnico, para fins de estudo ou pesquisa, desde que citada a fonte. 4 Nome: SANTOS JUNIOR, Valdir Donizete dos. Ttulo: A trama das ideias: intelectuais, ensaios e construo de identidades na Amrica Latina (1898-1914). DissertaoapresentadaaoProgramade Ps-GraduaoemHistriaSocialda FaculdadedeFilosofia,LetraseCincias Humanasparaaobtenodottulode Mestre em Histria. Aprovado em: Banca examinadora: Prof. Dr. ______________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________ Assinatura: _________________________ Prof. Dr. ______________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________ Assinatura: _________________________ Prof. Dr. ______________________________ Instituio: ______________________ Julgamento: _________________________ Assinatura: _________________________ 5 Rosange, minha me, a que primeiro acreditou; E Mrcia, com quem divido a minha histria. 6 AGRADECIMENTOS Embora meu ingresso oficial no Programa de Ps-Graduao em Histria Social da FFLCH-USP tenha ocorrido em fevereiro de 2011, as origens deste trabalho so bem anteriores.Remontamaoanode2007,quando,aindanaGraduao,fizocursode HistriadaAmricaIndependente,ministradopelaProfa.Dra.MariaLigiaCoelho Prado,e,algunsmesesdepois,aseuconvite,comeceiafrequentarasreuniesea trabalharnoProjetoTemticoFapespCulturaepolticanasAmricas:circulaode ideias e configurao de identidades (sculos XIX e XX). Nos quatro anos de vigncia dogrupo,asideiasquedefendonaspginasseguintesforamsendopaulatinamente maturadas.Maisqueisso:conhecimuitagenteboadetantoslugaresdiferentesepude entrar em contato com um debate intelectual de altssimo nvel travado por pessoas to apaixonadasquantoeupelascoisasdaAmricaLatina.Nopoderiacomearesses agradecimentos sem deixar de mencionar essa experincia essencial na minha vida. minhaqueridaorientadora,aprofessoraMariaLigiaPrado,sougratopela acolhida desde os tempos da Graduao, pelas demonstraes de confiana e amizade e porsermeusuporteeparadigmaintelectualnessesanostodos.Nopoderiadeixarde agradecerLigiapornomedesampararnosmomentosmaisdifceisdatrajetria, principalmentenoinciodela,epormeincentivarasempreprosseguirnessa empreitada.Obrigado,Ligia,porsuasreflexesintelectuaiseporsuapaixo contagiantepelascoisasdaAmricaLatina,semasquaisestaDissertaonopoderia existir. professoraMariaHelenaCapelato,comquem tenhoafelicidadedeconviver desdeaGraduao,agradeopelaacolhidasempretoafetuosaeporaceitardialogar comigoemtodasasetapasdestapesquisa.Suascrticas,sugesteseapontamentosno Exame de Qualificao certamente contriburam para que este trabalho encontrasse sua forma definitiva. AosprofessoresGabrielaPellegrinoSoares,HorcioGutierrez,JosAlvesde FreitasNeto,JosLusBeired,KtiaGerabBaggio,MarianaVillaa,MaryA. Junqueira,PedroMeiraMonteiro,SilviaMiskulineStellaMarisScatenaFranco,que nasmaisdiversassituaesmeajudaramaelaborarcaminhosparaestapesquisaeme incentivaram a prosseguir. 7 FundaodeAmparoPesquisadoEstadodeSoPaulo,peloaporte financeiro, sem o qual esta pesquisa no poderia ter sido realizada. Aosmuitosamigosquefiz,primeiramente,noProjetoTemticoCulturae poltica nas Amricas: circulao de ideias e configurao de identidades (sculos XIX e XX) e, posteriormente, no Laboratrio de Estudos de Histria das Amricas (LEHA). Agradeo,especialmente,aAffonsoCelsoPereira,CaiodeSouzaGomes,Carine Dalms,CarlaVivianePaulino,DboraVilleladeOliveira,FlvioFrancisco,Gabriel Passetti,IvaniaMotta,LviaAzevedoRangel,RaphaelMarchesin,RicardoStreiche Tereza Dulci. Aos meus queridos Eustquio Ornelas Cota Junior e Romilda Costa Motta, para almdasquestesacadmicas,pelatrocadeexperinciase,principalmente,pela amizade construda ao longo desses anos. Aos companheiros fefelecheanos e cruspianos Ana Paula Souza, Anderson Silva, AnglicaBeghiniMorales,LeonardoGandia,MrcioRossi,RodolphoRabelloda Rocha,RodolphodeVicenteGomeseYaraMorena,pelassempretoenriquecedoras conversas, pela convivncia e pela amizade cultivada nesses anos. Atodosaquelesque,comosedizpora,notrabalham,sdoaula, especialmente, Bianca Katsumi, Bruno Leut, Denise Berkeras, Dimitri Moreira, Dirceu Ostrowski,FernandoEscobosa,LeandroGaldino,LuizCarlosRodrigues,Mrcio Yoshimura,MuriloFujii,PedroMartinsCriado,PedroSrgioPereira,RafaelRusso Setin, Renato Tanaka, Ricardo Bulgarelli e Rosa Maria Tavares Andrade, pelo interesse sempre demonstrado e pelo dilogo aberto e franco. Roseli Pacito, por ser uma segunda me para mim nos ltimos anos. AnaPacito,aquemagradeonosomentepelocarinhofraterno,apoioe confiana, mas tambmpela inusitada consultoria nutricional que me prestou para este trabalho. Rosngela Pacito, pelo carinho e amizade. BeatrizPereira,minhairmquerida,porcompreender,aturarerespeitara eterna chatice do irmo. Rosange Pereira, pornunca deixar de me incentivar e por mefazer perceber, desdecedo,aimportnciaeoprazerdeestudar.Me,snssabemostodosos obstculosultrapassadosparaqueeupudessechegarataqui.Seexisteumapessoa responsvel por este trabalho, ela voc. Obrigado! 8 MrciaPacito,companheiradetodasashoraseprimeiraleitoradeste trabalho,obrigadoporestarcomigo,pormeapoiaremtodososmomentosepor compreender minhas ausncias. Este trabalho, com muito amor, dedico a voc. 9 Seiquemuitoscondenamumtalardornumaobrade histria,principalmenteseelasededicasescolas;sei queseconsidera indispensvelumahistriacalma,fria, imparcial...Istoequivaleaexigiroimpossvel.Nenhum historiadorverdadeiramenteimparcial.Seriapreciso suporohomemdestitudodesentimento.Essa imparcialidadeelepodesimul-laquantoexposio, evitandocuidadosamenteoscomentrioseosjuzos, tantosobreosacontecimentoscomosobreoshomens. Porvezes,esseesforosignificadefatoodesejodeser justo,mascomumente,istonopassadeumartifcio paraconquistaronimodoleitor.Nessecaso, prefervelumescritorquesejafrancoesincero,edeixe verlogoqualoseucritrio,desdequeelenoproceda comparti-pris,desdequenosejacapazdesacrificara verdade a preocupaes pessoais. Manoel Bomfim, Parecer ao Compndio de Histria da Amrica, de Rocha Pombo, 1897. Decerto,mesmoqueahistriafossejulgadaincapazde outrosservios,restariadizer,aseufavor,queela entretm. Ou, para ser mais exato pois cada um busca seus passatempos onde mais lhe agrada , assim parece, incontestavelmente,paraumgrandenmerodehomens. Pessoalmente,domaisremotoquemelembre,ela sempremepareceudivertida.Comotodosos historiadores,eupenso:semoqu,porquaisrazes teriamescolhidoesseofcio?Aosolhosdequalquerum quenoseja umtolo completo,comquatro letras,todas ascinciassointeressantes.Mastodocientistas encontraumanicacujaprticaodiverte.Descobri-la para a ela se dedicar propriamente o que se chama de vocao. Marc Bloch, Apologia da histria, ou, O ofcio do historiador. 10 RESUMO SANTOSJUNIOR,ValdirDonizetedos.Atramadasideias:intelectuais,ensaiose construodeidentidadesnaAmricaLatina(1898-1914).2013.Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013. Esta pesquisa tem por objetivo analisar a questo da circulao de ideias e a construo de identidades na Amrica Latina a partir de trs ensaios produzidos entre fins do sculo XIX e incios do sculo XX: El porvenir de las naciones hispanoamericanas (1899), do mexicanoFranciscoBulnes(1847-1924);AAmricaLatina:malesdeorigem(1905), dobrasileiroManoelBomfim(1868-1932)eLesdemocratieslatinesdelAmerique (1912),doperuanoFranciscoGarcaCaldern(1883-1953).Pormeiodessestextos, este trabalho procura discutir asconcepes sobre ofazer intelectual presente em cada umdessesautores,oprocessodeelaboraoecirculaodasideiasnosubcontinente emrelaoaosparadigmaseuropeuenorte-americanoeavariedadedeprojetos identitrios existentes na Amrica Latina no umbral do sculo XX. O cotejo desses trs ensaiospermitequeseexpliciteumconjuntodetemaseproblemascomunsque permeavamopensamentopolticonaAmricaLatinadapoca,entreosquais importanteressaltaradiscussosobreolugardosubcontinentenomundodianteda expanso do capitalismo e do imperialismo entre fins do sculo XIX e incios do sculo XX. Palavras-chave:AmricaLatina,intelectuais,circulaodeideias,identidadeslatino-americanas. 11 ABSTRACT SANTOSJUNIOR,ValdirDonizetedos.Anintricatewebofideas:intellectuals, essaysandidentity-buildinginLatinAmrica(1898-1914).2013.Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

I intend to analyze in this research three major essays produced in Latin America in the beginningofthe20thCentury:Elporvenirdelasnacioneshispanoamericanas(1899), by Mexican Francisco Bulnes (1847-1924); A Amrica Latina: males de origem (1905), by Brazilian Manoel Bomfim (1868-1932) and Les dmocraties latines de lAmerique (1912),byPeruvianFranciscoGarcaCaldern(1883-1953).Iwillemphasizethe problemsaroundthecirculationofideasandthebuildingofidentitiesinthe subcontinent.Thecomparisonamongthesethreeessayswillallowmetodiscussa wholesetofcommonthemesandissuesrelatedtopoliticalideasinLatinAmericaat that time and to think about Latin Americas place during the so called Age of Empire.

Keywords: Latin America, intellectuals, circulation of ideas, Latin Americans identities 12 SUMRIO INTRODUO .......................................................................................................... 14 PARTE I SOBRE AS IDEIAS NA AMRICA LATINA CAPTULO 1 Miradas crticas: Os intelectuais latino-americanos no umbral do sculo XX.............................. 32 1.1. Os autores e suas obras................................................................................ 33 1.2. Circulao e recepo.................................................................................. 44 1.3. Questes de crtica: o papel social do intelectual........................................ 50 CAPTULO 2 Na outra margem, Caliban: As democracias latinas da Amrica e seus impasses...................................... 59 2.1. Modernidade e democracia: a ascenso de Caliban..................................... 60 2.2. Democracia: apontamentos sobre um conceito polissmico....................... 69 2.3. A perfeio de inadequados estatutos: a democracia fora do lugar...... 73 2.4. Os vcios da poltica: Estado contra indivduo......................................... 85 2.5. Democracias sem povo na Amrica Latina: prescries e impasses........ 92 2.6. Caliban, o outro: modernidade democrtica e tradio autoritria...........108 CAPTULO 3 Os parasitas da Amrica: Circulao de ideias, retrica poltica e anlise social........................................ 113 3.1. A faanha do sr. Bomfim......................................................................... 113 3.2. Parasitas e parasitismo: os conceitos e seus significados sociais................ 117 3.3. Decadncia e colonizao: o parasitismo ibrico..................................... 124 3.4. A construo e a circulao de uma ideia: o parasitismo colonial........... 134 3.5. O parasitismo colonial e as Antilhas no sculo XIX................................ 141 3.6. O circuito das ideias: dilogos entre a Europa e as Amricas..................... 152 13 PARTE II IDEIAS SOBRE A AMRICA LATINA CAPTULO 4 No labirinto das raas: Identidades e discurso racialista na Amrica Latina......................................... 159 4.1. As trs raas humanas: alimentao nos trpicos e imperialismo............ 160 4.2. A construo retrica da inferioridade: indgenas e negros..................... 174 4.3. A via mestia: vislumbrando o futuro da Amrica Latina........................... 187 4.4. Entre o branqueamento e a assimilao: a imigrao europeia................... 194 4.5. Imigrao e instruo: inferioridade racial e debilidade cultural.......... 203 CAPTULO 5 Identidades em conflito: A Amrica Latina na Era dos Imprios........................................................... 207 5.1. Os nomes da Amrica: as bases da disputa.................................................. 208 5.2. Amricas, americanos e americanismos: mobilizando conceitos..... 217 5.3. O Brasil na Amrica Latina: ser ou no ser?............................................... 223 5.4. Da Doutrina Monroe a 1898: os perigos do imprio......................... 233 5.5. Os projetos de salvao: confederao, unidade e identidades.................... 252 5.6. O lugar da Amrica Latina: notas sobre um debate..................................... 266 CONSIDERAES FINAIS.......................................................................................... 271 FONTES.................................................................................................................... 275 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................... 281 14 INTRODUO OsltimosanosdosculoXIXeosanosiniciaisdosculoXX,mais especificamenteoperodoentreaGuerraHispano-americana(1898)eaeclosoda PrimeiraGuerraMundial(1914),seconstituemcomoummomentoextremamente profcuo para o estudo das ideias na Amrica Latina. A vitria dos Estados Unidos sobre aEspanhaem1898representounosomenteofimdapresenametropolitanados ibricosnaAmrica,masconfigurou-secomoumpassoimportantenoprocessode ascensodafederaonorte-americanacategoriadegrandepotnciamundial, evidenciandoaexistncianessepasdeummpetoexpansionistacapazdedespertar, muitasvezes,preocupaoetemornaselitespolticaseintelectuaisdorestodo continente americano. O triunfo estadunidense que significou a independncia de Cuba sobatutelaianqueeaincorporaodePortoRicoedasFilipinasaosdomniosnorte-americanos, impulsionou, ao sul do Rio Grande, uma intensa reflexo sobre o lugar da Amrica Latina no cenrio mundial da poca. Emboraessanovaarticulaodapolticainternacionaltornasseosadmiradose temidos Estados Unidos da Amrica o outro preferencial nas construes identitrias elaboradasnosubcontinente1,aleituradealgumasobrasescritasnessapocaaponta paraumacomplexidadeediversidademaiordosdiscursossobreaquestodas identidades latino-americanas. Isso porque, nas dcadas que se seguiram emancipao poltica da maior parte dos pases da Amrica Latina, a existncia da chamada Doutrina MonroeeaconsequenteimagemdosEstadosUnidoscomoguardiodocontinente emrelaoapossveispretenseseuropeiassobrearegioforam,muitasvezes, consideradasporintelectuaisehomensdeEstadolatino-americanoscomocondies queinviabilizavamaocorrnciadeintervenesestrangeiras,especificamente europeias,sobreospasesdoNovoMundo.Entretanto,oavanodosprpriosEstados Unidossobreterritrioslatino-americanos,apartirde18982,notadamenteporsua polticaemrelaoaCubaeporseudomniodiretosobrePortoRico,pareciatornar 1Ver,entreoutros,PRADO,MariaLigiaCoelho.Identidadeslatinoamericanas.AYALAMORA, EnriqueePOSADACARB,Eduardo(org.).HistoriageneraldelaAmricaLatina.Vol.VIILos proyectosnacionaleslatinoamericanos:susinstrumentosyarticulacin,1870-1930.1.ed.Paris: UNESCO; Editorial Trotta, 2008. 2Estetrabalhonodesconsideraaexpansoterritorialnorte-americanaaolongodosculoXIX,e, principalmente,levaemconta,porexemplo,aGuerracontraoMxico(1846-1848).Entretanto, considera-seaquitaiseventosdentrodeoutrosmarcosrelacionadosmenosaumimperialismo estadunidense j estabelecido e mais aos conflitos que envolveram a formao dos Estados nacionais nas dcadas posteriores ao processo de emancipao poltica nas Amricas. 15 eminentesnosomentepossveisnovasinvestidasianquessobreosseusvizinhosdo sul, mas tambm sugeria a possibilidade de outros tipos de ingerncia em um contexto noqualasnaesmaisindustrializadasdomundoprotagonizavamumprocessode expanso imperialista que havia se acelerado nas ltimas dcadas do sculo XIX.Inserindoasquestescontinentaisemumaperspectivaglobal,importante ressaltar o paralelismo entre a expanso dos Estados Unidos no final do sculo XIX e o avanocolonialistapromovidopelospasesindustriaisqueperdurouatoincioda PrimeiraGuerraMundial.Esseperodo,chamadopelohistoriadorEricHobsbawmde Era dos Imprios (1875-1914), se caracterizou pelo acirramento das disputas entre as grandespotnciasmundiais,especialmenteGr-Bretanha,Frana,Alemanha,Itlia, Holanda, Blgica, Estados Unidos e Japo, por territrios que lhes proporcionassem, em linhasmuitogerais,matrias-primasabundantes,mo-de-obrabarataemercados consumidoresempotencial. 3Otemor,aindaqueremoto,dequeaAmricaLatina fosse, assim como a frica, a sia e a Oceania, partilhada entre os grandes imprios mundiais no deixou de mover as elites letradas do subcontinente, atentas no somente expansoianque,masaessecontextomaisgeraldeavanocolonialista. 4nesse sentidoqueestetrabalhoadotacomomarcoscronolgicosinicialefinaldeanlise, respectivamente, os anos de 1898, em meio ao impacto da Guerra Hispano-americana e dainflexodapolticaexternanorte-americanaemrelaoaospasesdaAmrica Latina,e1914,inciodaPrimeiraGuerraMundialepontofinaldachamadaErados Imprios. Nessecontexto,emumintervalodemenosdevinteanos,entre1898e1914, diversosintelectuaisbuscaramconstruirinterpretaessobreodesenvolvimento histrico,osdilemasdopresenteeasperspectivasfuturasda AmricaLatina.Embora vriostratassemdetemasnacionais,seustextostinham,muitasvezes,umaclara dimensocontinental.Entreasobrasmaisrelevantesdesseperodopodemsercitadas: Elcontinenteenfermo(1898),dovenezuelanoCsarZumeta;Elporvenirdelas nacioneshispanoamericanas(1899),domexicanoFranciscoBulnes;Ariel(1900),do uruguaioJosEnriqueRod;NuestraAmrica(1903),doargentinoCarlosOctvio Bunge;AAmricaLatina:malesdeorigem(1905),dobrasileiroManoelBomfim; Nuestrainferioridadeconmica(1908),dochilenoFranciscoEncina;Puebloenfermo 3 HOBSBAWM, Eric. A era dos imprios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.4 Essa questo ser mais bem desenvolvida em captulo posterior. Essa preocupao j havia sido notada nosescritosdaintelectualidadebrasileiraemSEVCENKO,Nicolau.Literaturacomomisso:tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. 2 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 104. 16 (1909), do boliviano Alcides Arguedas; El porvenir de la Amrica Espaola (1910), do argentinoManuelUgarte;LaenfermedaddeCentroamrica(1911),donicaraguense SalvadorMendieta;LaevolucinpolticaesocialdeHispanoamrica(1911),do venezuelano Rufino Blanco Fombona; e Les dmocraties latines de lAmerique (1912), do peruano Francisco Garca Caldern. Esses textos se caracterizavam, a despeito de sua diversidade, por serem escritos naformadeensaioseporsearticularem,emmaioroumenorescala,emtornodeum discurso de matriz cientificista e racialista. 5 Em dilogo com as ideias evolucionistas e asanalogiasentrenaturezaesociedade,expressasparadigmaticamentenasobrasde HerbertSpencer,eemcontatocomastesesquedefendiamainferioridaderacial proporcionadapelamestiagem,encontradas,porexemplo,emautorescomooConde deGobineauouGustaveLeBon,osmaisvariadosintelectuaisconstruramsuas interpretaessobreaAmricaLatina. 6Oimpactodetaisvisessobreaproduo ensastica desse perodo pode ser notado, por exemplo, na incorporao das proposies deGustaveLeBon,emobrascomoNuestraAmrica(1903),doargentinoCarlos Octvio Bunge,e Pueblo enfermo (1909), do boliviano Alcides Arguedas, que aliavam astesesracialistasdoautorfrancsaumacompreensodosproblemaslatino-americanosenquantopatologiassociais.Noeraporacasoquealgumasdasprincipais obras escritas nesse perodo destacavam, inclusive em seus ttulos, a enfermidade do continente. 7AAmricaLatinaerarepresentada,emmuitasdessasobras,comoum corpodoente,inspirandoanlisesquesecaracterizavampelaapresentaode diagnsticossobreosmalesqueafligiamaregioepelaprescriodesupostos 5OintelectualfrancsTzvetanTodorovapontaparaumadistinoentreostermosracismoe racialismo. Segundo ele, enquanto o primeiro designaria um comportamento de dio e menosprezo em relao diferena e ao diferente, o segundo se configuraria como uma ideologia alicerada emum discursopretensamentecientfico.Enquantooracismoseriaumcomportamentoantigoedeextenso universal,oracialismocomportariaumconjuntodeideiasnascidasedesenvolvidasnaEuropa ocidentalentremeadosdosculoXVIIIemeadosdosculoXX.VerTODOROV,Tzvetan.Nosotrosy los otros: reflexin sobre la diversidad humana. 3. ed. Mxico: Siglo XXI, 2003, pp. 115-116. Sobre as teorias raciais, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil (1870-1930). So Paulo: Companhia das Letras, 1993, especialmente o captulo 2. 6 Ver HALE, Charles. As ideias polticas e sociais na Amrica Latina, 1870-1930. In: BETHELL, Leslie (org.).HistriadaAmricaLatina,vol.IV:de1870-1930.SoPaulo:Edusp;Braslia:FUNAG,2001; DEVS VALDS, Eduardo. El pensamiento latino-americano en el siglo XX: entre la modernizacin y la identidad. Buenos Aires: Biblos; Centro de Investigaciones Diego Barros Arana, 2000, tomo I Del Ariel aCEPAL(1900-1950);eFELL,Eve-Marie.Delpensamientoracistaaldespertardelaconciencia revolucionria.In:PIZARRO,Ana(org.).AmricaLatina:palavra,literaturaecultura.SoPaulo: Memorial; Campinas: Unicamp, 1994, vol. 2 A emancipao do discurso. 7Soexemplosdessefato,almdePuebloenfermo(1909),deAlcidesArguedas,Continenteenfermo (1898),dovenezuelanoCsarZumeta,eLasenfermidadesdeCentroamerica(1911),donicaraguense Salvador Mendieta. 17 remdiosquepoderiamresultarnacuradosubcontinente. 8Entretanto,importante ressaltarqueemboraasdoutrinascientificistascontinuassempredominantesnesse perodo,essesensaiostambmdialogaram,noumbraldosculoXX,comcorrentes literrias em ascenso no continente como o Modernismo9 de autores como Jos Mart e RubnDaro,etambmcomoutrospressupostosfilosficoscomooidealismo subjacente,porexemplo,aoArieldeJosEnriqueRod,certamenteumadasobras mais relevantes escritas nesse perodo. 10 Essemomentoparticularmentericodahistriaintelectuallatino-americana permitevariadosrecorteseofereceumcardpiomuitodiversificadodeautoresparao estudodequestescomoacirculaodasideiaseaconstruodeidentidadesna Amrica Latina na virada do sculo XIX para o sculo XX. Este trabalho se debruar, demaneiraespecfica,sobreosensaioslatino-americanosproduzidosentre1898e 1914,procurandorealizarumadiscussosobreaspercepes,preocupaese proposiesnelesinscritas.Naimpossibilidadebviadeanalisartodososautoresque escreveramsuasobrasensasticasnesseperodo,trsautoresforamescolhidoscomo fios condutores desta dissertao: o mexicano Francisco Bulnes, autor de El porvenir de lasnacioneshispano-americanas(1899),obrasileiroManoelBomfim,autordeA Amrica Latina: males de origem (1905), e o peruano Francisco Garca Caldern, autor de Les dmocraties latines de lAmrique (1912). Como qualquer seleo, a destes trs intelectuais e seus respectivos textos no deixa de ser arbitrria, embora possvel de ser justificada. Emprimeirolugar,parecenecessriodestacaraimportnciadeseinserirum autorbrasileiro,nocasoManoelBomfim,emumadiscussomaisgeralsobrea construodeidentidadescontinentais.Muitaslinhasjforamescritas,nessesentido, sobreasaproximaesedistanciamentosentreoBrasileaAmricaLatina.Como ressaltaahistoriadoraMariaLigiaCoelhoPrado,eminmerostextos,oBrasile,ao 8Paraautilizaodametforadadoenacomoformadedenunciarosmalesqueafligemo organismo social, ver SONTAG, Susan. Doena como metfora. In: Doena como metfora. AIDS e suas metforas. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. 9Deve-seressaltarque,nomundohispano-americano,Modernismonosignificaomesmoqueno contextobrasileiro.Na AmricaHispnica,trata-sedeummovimentoliterriodefinsdosculoXIXe inciosdosculoXX,deinspiraosimbolista,caracterizadoporseucosmopolitismo,porumaviso aristocrtica da arte. Manifestou-se principalmente na poesia. Segundo Bella Josef, O Modernismo foi a resposta da Amrica hispnica aos processos de modernizao do mundo ocidental, atravs da celebrao de sua cultura, o desenvolvimento de uma ideologia do arielismo para contrabalancear o materialismo do norte e a exaltao aristocrtica da vida. Ver JOSEF, Bella. Histria da literatura hispano-americana. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Francisco Alves, 2005, p. 91. O equivalente ao Modernismo brasileiro no mundo hispano-americano so as chamadas Vanguardas do incio do sculo XX. 10 Sobre a reformulao do discurso cientificista na virada para o sculo XX, ver FELL, op. cit. 18 mesmotempo,no AmricaLatina. 11Essesdoisespaosseconstituem,segundoa autora,comopolosqueseatraemeserepelemdeacordocomcondiespolticas, econmicaseculturaisespecficas.Nessesentido,aanlisedoensaioAAmrica Latina:malesdeorigem,dobrasileiroManoelBomfim,emcontrapontocomtextos contemporneosaeleproduzidosemoutraspartesdocontinentepode,aomesmo tempo,oferecerelementostantoparapensarolugardoBrasilnosdebatessobrea AmricaLatina,quantoparadiscutirdequemaneirasuaobradialogavacomoquese produzia nos demais pases latino-americanos nesse perodo. AssimcomoaopoporManoelBomfim,aseleodosoutrosdoisautores analisados mais detidamente por este trabalho obedeceu alguns critrios importantes em relaoaoquadroaquiproposto.Emconjuntocomoensastabrasileiro,omexicano FranciscoBulneseoperuanoFranciscoGarcaCalderncompemummosaicoque deixaentrevernasobrasescritasnesseperodoumconjuntodeproblemassimilarese, ao mesmo tempo, uma diversidade de perspectivas. Umolharpanormicoparaasobrasdostrsautoresoferece,nessesentido,um cenrioextremamentevariado.FranciscoBulnes,queescreveuseuensaioemmeioao desenvolvimentodaGuerraHispano-americana,secaracterizavapeladefesadeum cientificismomarcadamentespenceriano.Entusiastadospasesanglo-saxes, apresentava uma viso profundamente pessimista em relao ao futuro de uma Amrica tropical e latina, rejeitando qualquer proposta de unio continental. J Manoel Bomfim se utilizava de um discurso balizado em termos pretensamente cientficos para construir umainterpretaohistricaesocialdaAmricaibricapensadaemseuconjunto. Entendiaquesomenteaeducaopoderiaredimirosubcontinentedeseusmalesde origem. Por fim, Francisco Garca Caldern, embora dialogasse com o cientificismo e oetapismodeHerbertSpencer,tambmincorporouemseudiscursotraosdo modernismo e do arielismo. Diferentemente do ensasta mexicano, propunha, a despeito deseupessimismoracial,auniodospaseslatinosda Amricacomoformadefazer frente ao acirramento da corrida imperialista no alvorecer do sculo XX. Merecem ser destacadas, alm disso, a formao acadmica e a carreira seguida porcadaumdosautoresanalisados:Bulneseraengenheiro,Bomfim,mdicoeGarca 11 Ver, entre outros, PRADO, Maria Ligia Coelho. Amrica Latina no sculo XIX: tramas, telas e textos. 2 ed. So Paulo: Edusp, 2004; e O Brasil e a distante Amrica do Sul. Revista de Histria, So Paulo, n. 145,2semestrede2001.Paraconstruiressaafirmao,aautorainspirou-senoautormexicano EdmundoOGormanqueafirmavaqueaAmricaerae,aomesmotempo,noeraEuropa.Cf. O'GORMAN, Edmundo. A inveno da Amrica. So Paulo: Editora da Unesp, 1992. 19 Caldern,diplomata.Emboranoseconsidereaquiquehouvesseumaassociao automticaentretaisaspectoseasposiespolticasdefendidasemseusrespectivos ensaios, no se pode negar o peso que um determinado tipo de formao tem em certas escolhas e interpretaes intelectuais. Sublinhadasessasdiferenasbsicas,interessantenotarnostrsensaios selecionadosparaaanlise,umrepertriodeproblemasmuitosemelhante.Nesses textos,questescomoaapropriaodeideiasestrangeirassupostamente incompatveiscomarealidadelocal,aformaoracialdanaoedocontinente,a mestiagem,aimigraoeasobrevivnciadospaseslatino-americanosdianteda voracidade imperialista das regies industrializadas do globo entre fins do sculo XIX e incios do sculo XX se apresentavam como temas recorrentes. Partindo desses tpicos mais gerais, este trabalho tem como objetivo discutir as questes da circulao de ideias edaconstruodeidentidadesna AmricaLatinaentre1898e1914. Adespeitodas soluesoferecidas,algumasindagaescandentesnessasobrasperpassamaindahoje as discusses intelectuais do subcontinente: qual o lugar da Amrica Latina no concerto internacionaldasnaes?Comopensaraquestodasidentidadesamericanas?Qualo lugar das ideias no subcontinente? possvel falar em uma Amrica Latina? Se sim, o Brasil faz parte dela? Como este trabalho procura demonstrar, uma grande variedade de respostas pode ser dada a essa gama de questes. Apresentadas as linhas bsicas que norteiam este trabalho, fazem-se necessrios aquibrevescomentriossobrealgumasdesuasdiretrizesmetodolgicas, especificamenteemrelaoaostemasdosintelectuais,doensaio,dacirculaodas ideias e da construo de identidades na Amrica Latina. sabido que as diversas cincias humanas j dedicaram muitas pginas ao tema dos intelectuais. O debate vasto e as posies sobre o assunto so mltiplas. Por serem antagnicasedenotaremposturasextremas,asduasrepresentaesmaisrecorrentes sobreessafiguradoumaclaramedidadostermosemqueessadiscussose desenvolve.Deumlado,estointelectualimersonomundodasideiasqueparece descoladodosembatespolticosedasresoluesprticasdocotidianosocial. Dedicando-sesomentesatividadesdointelecto,sintetizadopelametforatantas vezesrepetidadatorredemarfim.Deoutro,estointelectualenvolvidonomundo das lutas polticas, que se vale de seu papel para intervir na sociedade. Em sua atuao, aprticaintelectualseconfundemuitasvezescomaprticapoltica.Trata-sedo prottipo do intelectual engajado. Nos termos de Edward Said, o intelectual encontra-20 sesempreentreessesdoispolos.Deumlado,asolido;deoutro,oalinhamento. 12

Emboraapresentemposturasopostascomrelaoatividadeintelectual,essasduas definiescolocadasemcontrapontoexplicitamosdoisladosdeumamesmamoeda. Exibemumconflitodialticoe,portanto,ainterpenetraoentreateoriaeaprxis, entre a cultura e a poltica. 13 Seessasdiscussessefazempresentesprincipalmentenachamadasociologia dos intelectuais, necessrio se perguntar sobre a utilizao do conceito e sua validade nosmaisvariadoscontextoshistricos.Umprimeiropontoaserdestacadoaesse respeito o fato de queo termo intelectual, da maneira como entendido hoje, teve suasorigensnosltimosanosdosculoXIX.Ahistoriografiafrancesacostuma localizaronascimentodosintelectuais 14emjaneirode1898,comadivulgaodo Manifeste des Intellectuels, assinado por importantes nomes da cena cultural francesa dapocacomomileZola,AnatoleFranceeMarcelProust,porocasiodoclebre affaireDreyfus,quandoojudeunascidonaAlsciaAlfredDreyfus,membrodo exrcitofrancs,teriasidoacusadoinjustamentedetraio.Oposicionamentodesses homensdesabercontraasacusaesfeitasaessemilitaresuaintervenopoltica nessecasosofrequentementeassociadosporessahistoriografiaaosurgimentodo prottipo do intelectual engajado que habitou o sculo XX. 15 Seriaentolegtimoadotarotermointelectualparaoutroscontextosqueno osdosltimospoucomaisdecemanos?Emcoletneadeflegorecentemente publicada sobre a histria dos intelectuais na Amrica Latina, organizada pelo argentino CarlosAltamirano,ahistoriadorabrasileiraLauradeMelloeSouzarecusasua utilizao, em seu artigo sobre os homens de saber a quem a autora prefere chamar de letradosnoperodocolonialnaAmricaPortuguesa.Segundoela,emboraautores como,porexemplo,JacquesLeGoff,emseulivroOsintelectuaisnaIdadeMdia16, 12 SAID, Edward. Representaes do intelectual: as Conferncias Reith de 1993. So Paulo: Companhia das Letras, 2005. 13Paraumaboadiscussosobreotema,verBOBBIO,Norberto.Osintelectuaiseopoder.SoPaulo: Editora da Unesp, 1997. 14 Esse , por exemplo, o ttulo do livro de CHARLE, Christophe. Le naissance des intellectuels, 1880-1900. Paris: Editions de Minuit, 1990. 15HumavastabibliografiaemfrancsparaoCasoDreyfus,destacamosCHARLE,op.cit.;Em portugus, ver WINOCK, Michel. O sculo dos intelectuais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 16 LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Mdia. So Paulo: Brasiliense, 1989. 21 tenham utilizado o conceito sem temor para perodos que no o sculo XX, deve-se ter cautela ao se apropriar de termos como intelectual, com o risco do anacronismo. 17 Emperspectivadiversa,NorbertoBobbioafirmaqueemboraadenominao intelectualsejarelativamenterecente,osproblemasrelativosaointelectual,como substantivoecomoadjetivo,perpassaramahistriadahumanidade,dosgregosaos philosophesfrancesesdosculoXVIII.Paraesseautor,noporqueotermo intelectualnoerautilizadoempocaspretritas,quenohaviapessoasque cumprissemessafunonasvariadassociedades.Segundoele,Hoje,chamam-se intelectuaisaquelesqueemoutrostemposforamchamadosdesbios,doutos, philosophes,literatos,gensdelettre,ousimplesmenteescritores,e,nassociedades dominadas por um forte poder religioso, sacerdotes, clrigos. 18 Embora com respostas distintassdadasporBobbioemsuasreflexessobreointelectual,nasanlisesqueo marxistaitalianoAntnioGramsciproduziunocrcere(1929-1935),essacategoria tambmnoestavarestritaquelasprimeirasdcadasdosculo.Oprprioeixodas tesesdefendidasporesseautor,adistinoentreintelectuaistradicionaise orgnicos,permitiaqueoconceitoabarcasseumarcotemporalquenoestivesse preso s amarras do sculo XX. 19 Embora o alerta de Mello e Souza no deva ser desprezado, possvel pensar a categoriaintelectualdemaneiramaisamplacomomostramostextosdeBobbioe Gramsci. Para tanto, necessrio que no se percam de vista as particularidades desses homens de saber e sua atuao em tempos e espaos distintos. A despeito do fato de os intelectuaisestudadosporestapesquisaserempraticamentecontemporneosdos desdobramentos do Caso Dreyfus, ou seja, do surgimento do intelectual moderno, tais esclarecimentosparecemessenciaisquandosepretendediscutiraquestodos intelectuais na AmricaLatina entre fins do sculo XIX e incios do sculo XX e suas relaes com a poltica e a cultura nesse perodo. Nesse sentido, algumas consideraes acerca dapresena dos intelectuais como objeto histrico devem ser feitas. Em primeiro lugar, importante destacar a diferena entreHistriaIntelectualeHistriadosIntelectuais.Emboraessasduasvertentes 17Cf.SOUZA,LauradeMelloe.Brasil:literaturae'intelectuales'enelperodocolonial.In: ALTAMIRANO,Carlos(ed.);MYERS,Jorge(dir.).HistriadelosintelectualesenAmricaLatina. Volume I: La ciudad letrada, de la Conquista al Modernismo. Buenos Aires: Katz, 2008, pp. 94-95. 18 BOBBIO, op. cit., p. 11. 19GRAMSCI,Antonio.Osintelectuaiseaorganizaodacultura.6ed.RiodeJaneiro:Civilizao Brasileira, 1988. 22 possam se confundir em algumas ocasies20, no so necessariamente interdependentes. A primeira evoca uma diversidade de temticas e abordagens e sua denominao e seus mtodospodemvariarmuitasvezesdeacordocomtradieshistoriogrficas especficas. 21Podeemalgunscasosseconfundir,porexemplo,comahistriadas ideias, das mentalidades, dos conceitos ou mesmo com a histria cultural. Pode discutir aproduointelectual,suadifusopormeiodosmediadoresculturais,oschamados passeurs, e sua recepo. Pode dialogar, enfim, com a histria poltica, social e cultural ecomasmaisdiversascinciassociais,comoaantropologia,acinciapoltica,a sociologia ou a lingustica, remetendo a tradies diferentes e muitas vezes antagnicas como,porexemplo,aHistriaIntelectualnorte-americana,aEscoladeCambridge inglesa, a Histria dos Conceitos alem e vertentes da Nouvelle Histoire francesa. 22 Embora mais restrita, a chamada Histria dos Intelectuais no menos ambgua, acomearpelapluralidadedasdefiniesarespeitodosintelectuais,que,em abordagens como a de Sirinelli, no esto restritos produo, mas tambm mediao cultural.Essetipodeabordagemtemsedebruadosobreasredesesociabilidades construdas por esses homens de saber e por sua circulao nos mundos da cultura e das letras,porexemplo,pormeiodaparticipaoemcongressosedesuacolaboraoem publicaes variadas como livros coletivos ou peridicos. 23 Adespeitodasvariedadestemticaspropostaspelasdiferentescorrentes historiogrficasqueabordamahistriaintelectual,aperspectivaaquiadotadaprocura sededicarsrelaesentreaselitesculturais24,produodeimaginriossociaise circulaodasideias.Osimaginriossociaispodemserdefinidosdeacordocom 20Porexemplo,napropostametodolgicadeSIRINELLI,Jean-Franois.Osintelectuais.In: REMOND, Ren (org.). Por uma histria poltica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. 21Aesserepeito,verBEIRED,JosLus.VertentesdaHistriaIntelectual.In:BARBOSA,Carlos AlbertoSampaioeGARCIA,TniadaCosta(orgs.).CadernosdeSeminriodePesquisaCulturae PolticanasAmricas.Vol.I.Assis:FCL-Assis-UnespPublicaes,2009.Disponvelem: http://www.historia.fflch.usp.br/sites/historia.fflch.usp.br/files/CSP1.pdf. 22 Para se ter uma ideia sobre a variedade de abordagens da Histria Intelectual, ver entre outros, DOSSE, Franois. La marcha de las ideas: historia de los intelectuales, historia intelectual. Valencia: PUV, 2006; DARNTON,Robert.ObeijodeLamourette:mdia,culturaerevoluo.SoPaulo:Companhiadas Letras,1990;CHARTIER,Roger.AHistriaCultural:entreprticaserepresentaes.Lisboa:Difel; RiodeJaneiro:BertrandBrasil,1988;eSOARES,GabrielPellegrino.HistriadasIdeiasemediaes culturais: breves apontamentos. In: JUNQUEIRA, Mary Anne e FRANCO, Stella Maris Scatena (orgs.). CadernosdeSeminriodePesquisaCulturaePolticanasAmricas.Vol.II.SoPaulo: DepartamentodeHistria/FFLCH-USP;Humanitas,2011.Disponvelem: http://www.historia.fflch.usp.br/sites/historia.fflch.usp.br/files/CSP2.pdf. 23 SIRINELLI, op. cit. 24Paraumadiscussosobreaselitesculturais,verSIRINELLI,Jean-Franois.Aselitesculturais.In: RIOUX,Jean-PierreeSIRINELLI,Jean-Franois(orgs.).Paraumahistriacultural.Lisboa:Editorial Estampa, 1992. 23 Bronislaw Baczko, como construes simblicas e representaes do real que resultam daslutassociopolticasequenelasinterferem. 25Vistasporesseprisma,asideiasno sobrevoamarealidadeouestoalheiasaela,mas,pelocontrrio,estofundadasnas disputasentregruposeclassessociais.Asideiase,analogamente,asrepresentaes nelascontidaspodemfuncionartantocomojustificaodeumdeterminadostatusquo quantocomoimportantearmaparatransformaespolticasesociais.Osintelectuais podemsertomados,nessesentido,comoprodutoresdeideiaseformuladoresde imaginriossociais.Consideradoshomensdaculturaporsuaprpriaposiona sociedade, so tambm homens da poltica. Participantes diretos ou indiretos das lutas poltico-partidrias,osintelectuaisatuamemmeioaumtortuosojogoentreessesdois mbitos sociais. As trajetrias dos intelectuais latino-americanos dos sculos XIX e XX soexemplaresdotrfegomuitasvezesambguoentreosmundosdaculturaeda poltica. Assim como sobre o tema dos intelectuais, muitas linhas j foram escritas sobre aquestodoensaio.Paraosinteressesdestetrabalho,cabeperguntar-se, particularmente, sobre as especificidades do gnero e sua insero na produo cultural latino-americana no umbral do sculo XX. Em primeiro lugar, preciso sublinhar que a publicaodosclebresEnsaios(1580-1588-1595),doescritorfrancsMichelde Montaigne(1533-1592),,demaneirafrequente,apontadacomomarcodo aparecimentodognero,emborapossivelmenteseencontremtextosnessesmoldes datadosdeperodosanteriores. 26AolongodosculoXX,aformadoensaiofoi tambmalvodaspreocupaesdeimportantesintelectuaiscomoosalemesGeorg LukcseTheodorAdorno.Lukcsargumentava,emseulivroclssicoAalmaeas formas, que o ensaio, forma propcia para a escrita da crtica, se configurava como um gneroartstico,noqualoprocessodeelaboraoimportavamaisquesuasprprias concluses. Contraposto ao carter acabado do texto cientfico, esse tipo de produo literriarepresentariaumapereneincompletudeeuminacabamentointrnseco. 27 ParaAdorno,emseutextoOensaiocomoforma,oensaionopoderiaser classificadonemcomocincia,nemtampoucocomoarte,mascomoalgo 25 Sobre os imaginrios sociais, ver BACZKO, Bronislaw. A imaginao social. Enciclopdia Einaudi. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1985. 26 Ver, por exemplo, GUERINI, Andreia. A teoria do ensaio: reflexes sobre uma ausncia. Anurio de Literatura,Florianpolis,n.8,2000,pp.11-27.Paraumaediorecentedessetextofundador,ver MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: uma seleo. So Paulo: Companhia das Letras, 2010. 27 LUKCS, Georg. Sobre el esencia y la forma del ensayo. In: El alma y las formas. Mxico: Grijalbo, 1985, pp. 15-39. 24 localizadonosinterstciosdessasduascategorias.Segundoele,diferentementedo discursocientfico,oensaio,entendidocomoformacapazdetrabalharsobrea opacidade de seus objetos, aberto, antidogmtico e errante. Nele, destaca-se o papel da linguagem, entendida no somente como elaborao estritamente esttica, mas como forma de apreenso do mundo. 28 O ensaio , nesse sentido, frequentemente classificado como um gnero hbrido e ambguo, que trafega entre el anlisis y la intuicin, entre el lenguaje expositivo y el metafrico,entreelconocimientoobjetivoylapercepcinntima. 29Almdisso, muitas das anlises sobre esse tema tm destacado que, entre as diversas ambiguidades quepermeiamoensaio,podeserapontadaatensolatente,nessestextos,entrea objetividade e a subjetividade do autor. Beatriz Colombi afirma que as representaes doensasta,ouseja,oevidenciamentodasubjetividadedoautornoensaiopodeser tomadocomoumainstnciafundamentalparaacompreensodognero,yaquede ellas dependen tanto las estrategias de construccin del ethos, orientadas a la persuasin retrica,comodeterminadasfiguraciones(sociales,estamentales,profesionales, gnoseolgicas)quevuelvenfiableeldiscurso. 30Segundoaautora,trsforamos principaistiposderepresentaesconstitudasnoensaiohispano-americanodosculo XIX: a do polemista, a do profeta e a do mestre/professor (maestro). Serumpolemistasignificaria,naconcepodeColombi,escreversempre contraalgoacolnia,atradio,atirania,abarbrie,oatraso,ocaudilhismo,o imperialismo, etc. a partir de uma retrica baseada frequentemente na desqualificao enarefutaodoadversrio.Oprofeta,poroutrolado,secaracterizariapelas antecipaes e vislumbres do futuro, por eso las formas tradicionalmente asociadas a la transmisin del saber, como la mxima, el aforismo o la sentencia son habituales en su discurso. 31 Por fim, o ensasta maestro representaria a figura daquele que ensina, do homem detentor do conhecimento e das luzes. Segundo a autora, o prottipo do ensasta dosculoXXseriaointrpreteque,colocadoemcontatocomasmaisvariadas disciplinas,buscariaexplicarosfundamentosdapsiquenacional.Tomandocomo baseasdistinesapresentadasporColombi,possvelafirmarqueessasquatro caractersticasdoensastalatino-americanodossculosXIXeXXopolemista,o 28ADORNO,TheodorW.Oensaiocomoforma.In:NotasdeliteraturaI.SoPaulo:DuasCidades; Editora 34, 2003, pp. 15-45. 29 OVIEDO, Jos Miguel. Breve historia del ensayo hispanoamericano. Madri: Alianza, 1991, p. 12. 30 COLOMBI, Beatriz. Representaciones del ensayista. The Colorado Review of Hispanic Studies, vol. 5, fall 2007, pp. 25-36. 31 Ibidem, p. 27. 25 profeta, o maestro e o intrprete noeram excludentes, mas podiam se interpenetrar, emmaioroumenorescala,deacordocomascaractersticasdecadaensaio.Essas representaesdoensastaencontravam,decertamaneira,ressonncianostrs ensaiossobreosquaissedebruaessapesquisa.FranciscoBulnes,ManoelBomfime Francisco Garca Caldern ocupavam, em seus textos, ora um desses papeis, ora, outro, suscitandopolmicas,apresentandoperspectivasparaofuturo,prescrevendosolues para os problemas e interpretando a vida poltica e social da Amrica Latina. Estetrabalhotemcomoumdeseusprincipaiseixosanalticosaquestoda circulao das ideias, no somente entre as Amricas, mas tambm entre este continente e a Europa. importante ressaltar aqui que o prprio recorte e a natureza do objeto de estudoescolhidoporestapesquisaimpelemaumareflexoqueultrapassaadiscusso restritaaosespaosnacionais.OsensaiosdeFranciscoBulnes,ManoelBomfime FranciscoGarcaCaldernnoforamconcebidoscomoobrasquetratassem especificamentesobreoMxico,oBrasilouoPeru,porexemplo,mas,emoutro sentido, partiam de uma perspectiva mais ampla que, para alm de comparaes entre os mais variados pases da Amrica Latina, elaboravam uma viso transnacional sobre asconexesentreasvriaspartesdaregio,asquaissearticulavam,emsuas interpretaes,aumquadrogeopolticomaisgeral.Valeapenadestacar,emum primeiromomento,queautilizaodosconceitosdecomparao,conexoe transnacionalidade,entreaspasaqui,emrefernciaaosensaiosanalisadosporesta pesquisa, longe de querer seguir pelas sendas do anacronismo, procura demonstrar que, mesmoquetaisautoresnopretendessem,atporquetaisnomenclaturas historiogrficas no existiam na poca em que escreveram seus ensaios, fazer esse tipo deanlise,taisabordagenspermeavamseustextos,porexemplo,aosereferirem Amrica Latina no a partir de suas diversas naes, tomadas como unidades isoladas, mascomoumespaotransnacional,queemborafossemarcadopeladiversidade, explicitavaconexesevidenteseseapresentava,portanto,comopropcio comparao. Asdiscussesmaisrecentesemtornodahistriacomparada,dahistria conectada e da histria transnacional esto essencialmente relacionadas, nas ltimas dcadas, chamada crise dos paradigmas vivenciada, de maneira geral, pelas cincias humanas32,e,maisespecificamente,aoquestionamentodanaocomoespao 32Paraumaabordagemamplasobreaquestodacrisedosparadigmasnascinciashumanase,mais especificamente,naHistria,verNOVAIS,FernandoA.&SILVA,RogrioForastierida.Introduo: 26 privilegiado para a anlise intelectual. Das trs proposies acima, a chamada histria comparadaairmmaisvelhadasoutrasduasejeraenunciada,porexemplo,na dcadade1920,norescaldodosacontecimentosdaPrimeiraGuerraMundial,por historiadoresparadigmticoscomoHenriPirenneeMarcBloch.SegundoMariaLigia Prado,emborajtenhasidomuitoquestionada,aolongodedcadas,acomparao podeserimportanteferramentaparaoestudiosodaAmricaLatinadesdequeeste consigaescapardasartimanhasdoetnocentrismoedosmodelosconstrudosapriori. Alm disso, importante ressaltar que a anlise comparada deve ter como pressupostos bsicosumconjuntodeproblemascomunseumconhecimentoaprofundadosobrea historiografia dos objetos comparados. 33 Maisrecentes,ashistriasconectadaseahistriatransnacionalse apresentamcomodesdobramentosdasdiscussesrelacionadasaoquestionamentodo espaonacionalcomoprotagonistadosestudoshistricosedascategoriasclssicasde centroeperiferia.Emboranascidasemcontextosacadmicosdiversosas histriasconectadas,naFrana;eahistriatransnacional,nosEstadosUnidos, ambas apresentam como referncia comum a nfase nos movimentos, nas circulaes, nosfluxosenasconexesquetranscendemoslimitesimpostospelasfronteiras nacionais. 34Nadefesadabuscaporconexesnahistria,SergeGruzinski, refutandoahistriacomparada,afirmaanecessidadedesebuscarinterpenetraes entreolocaleoglobal,asquaispodemser,muitasvezes,evidenciadaspelo historiadorpormeiodaanlisesobreacirculaodepessoas,livros,obrasartsticas, ideias,produtos,etc.35,destacando-se,nessesentido,afiguradosmediadores culturais, os chamados passeurs. 36 Entretanto, como ressaltam Maria Ligia Prado, em relao conexo, e Barbara Weinstein, em relao histria transnacional, parece relevantedestacarqueanfasenasconexesounatransnacionalidadedos movimentoshistricosnodeverecusarnecessariamente,comomuitosapregoam,a comparao.NaspalavrasdeWeinstein,ovistransnacional,longedeexpulsara

Para a historiografia da Nova Histria. In: NOVAIS, Fernando A. & SILVA, Rogrio F. da (orgs.). Nova Histria em perspectiva. So Paulo: Cosac Naify, 2011, pp. 7-70. 33PRADO,MariaLigiaCoelho.RepensandoahistriacomparadadaAmricaLatina.Revistade Histria, n. 153, 2 sem. 2005, pp. 11-33. 34 Para uma sntese competente sobre as histrias conectadas e a histria transnacional, ver GOMES, CaiodeSouza.Quandoum murosepara,umaponteune:conexestransnacionaisna canoengajada naAmricaLatina(anos1960/70).DissertaodeMestrado(HistriaSocial).SoPaulo:FFLCH-USP, 2013. A citao pode ser encontrada na pgina 19. 35GRUZINSKI,Serge.Osmundosmisturadosdamonarquiacatlicaeoutrasconnectedhistories. Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 175-195. 36 Ver, nesse sentido, SOARES, op. cit. 27 comparao,permiteumarenovadaabordagemcomparativamaisadequadas preocupaesdohistoriador. 37Estetrabalho,portanto,buscarfrisarasconexes entreasobrasdosautoresanalisadospormeiodeumvistransnacional,sem, entretanto,recusar,quandonecessrioumaabordagemcomparativano especificamenteentreasnaesdaAmricaLatina,masentreasconcepesdos autores analisados por esta pesquisa. Pareceimportanteaindadestacarqueestetrabalhobuscadiscutiraquestoda construodeidentidadesnaAmricaLatinaentrefinsdosculoXIXeinciosdo sculoXX.DeacordocomStuartHall,oprocessodeelaboraoidentitriatem vivenciadotransformaesimportantesaolongodasltimasdcadas.Ointelectual jamaicano localizava, em um primeiro momento, na ascenso da modernidade, a partir doIluminismo,aconstituiodeumsujeitocentradoconstrudopormeiode identidades muito bem definidas em termos sociais, raciais, sexuais, polticos, culturais, etc..Entretanto,Hallafirmaque,nasegundametadedosculoXX,perodochamado pormuitosdeps-modernidadeepeloautordemodernidadetardia,essas identidades teriam se tornado menos evidentes, mais multifacetadas e ambguas, em um contextomaisgeraldecrisedosujeitodoIluminismo. 38Acrisedasidentidades tradicionais e a profuso de identidades mltiplas teriam gerado, no obstante, uma srie de estudos sobre o tema, os quais, muitas vezes, terminavam produzindo, em suas concluses,abordagensdevisessencialistaouexageradamenteparticularizadasem relao a grupos especficos. 39 Entretanto,importantefrisarque,comofenmenodamodernidade,a construodeidentidadesnacionais,polticaseculturaismerecemaatenodo historiador, desde que este se proponha a elaborar uma viso crtica sobre essa questo. Nstor Garca Canclini, questionando abordagens sobre o tema, relativiza, por exemplo, a noo de identidade a partir da discusso sobre os processos de hibridao que no somentequestionaapossibilidadedoestabelecimentodeidentidadespurasou autnticas,mastambmafirmaoriscodadelimitaodeidentidadeslocaisa partirdecritrioscomoalngua,atradioeoscostumes.Noentanto,longede 37 WEINSTEIN, Barbara. Pensando a histria fora da nao: a historiografia da Amrica Latina e o vis transnacional. Revista Eletrnica da ANPHLAC, n. 14, pp. 13-29, jan./jun. 2013. Ver tambm PRADO, Repensando a histria comparada da Amrica Latina, p. 30. 38 HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 39 Esses eram, entre outros, alguns dos argumentos da justa crtica histria das identidades presente em HOBSBAWM, Eric. No basta a histria de identidade. In: Sobre histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 281-292. 28 dissuadir a produo de trabalhos sobre a questo das identidades, como talvez seja a pretensodeGarcaCanclini,algumasdesuasproposiesajudamaesclareceros objetivosdeseuestudopeloshistoriadores.Naspalavrasdoautor,Ahistriados movimentosidentitriosrevelaumasriedeoperaesdeseleodeelementosde diferentespocasarticuladospelosgruposhegemnicosemumrelatoquelhesd coerncia,dramaticidadeeeloquncia. 40Adecodificaodetaismecanismosde construodeidentidadesesuasambiguidades,contradiesepolmicasdevemser, portanto, o objetivo central do historiador que se debruce sobre o tema. Pode-se afirmar, nesse sentido, que as identidades so construes dos discursos e prticas polticas e culturais que se movem e transformam nos interstcios do processo histrico. Defendendo essa posio, Maria Ligia Prado destaca que: Asidentidades,quesoconstruesdodiscurso,constituemoreal,integramojogo conflituoso dos imaginrios e das representaes e, ao mesmo tempo, tocam os coraes edespertamasensaodepertencimentodoindividuoaumacoletividade.Os indivduosquesesentemidentificadosestoafirmandosuasparticularidadesculturais, raciais,degnero,dereligio,declasse eestodeclarandosuaexistnciadiferenciada aomundo.Aoladodessasafirmaespositivas,ignoram,desdenham,discriminam, excluem,atacamooutro,odiferente.Assim,identidade/alteridadeformaumpar indissolvel.Asidentidadesnosoapenasumaquestocultural,maspolticaporque induzem ao e a justificam. Envolvem razo e sentimento, ligando-se umbilicalmente s paixes polticas, s emoes coletivas, que supe amor ou dio a uma determinada causa. Masaconstruodeidentidadesontologicamentecontraditria,poisprecisa apagarasdiferenas,ocultarosconflitosparapermitirumaadesohomognea, harmoniosa e coletiva em oposio a um outro imaginado. 41 Porfim,precisoafirmarque,plenamenteconscientedasambiguidadesedas contradiesinerentesaotermo,bemcomodaexistnciadeoutrosconceitosquecom eleconcorrempelaprimaziadanomenclaturadaregio,estetrabalhoadotaa designao Amrica Latina para se referir antiga Amrica de colonizao espanhola e ao Brasil. A despeito da diversidade que recobre esse espao territorial e cultural, nele 40GARCACANCLINI,Nstor.Introduoediode2001:Asculturashbridasemtemposde globalizao.In:Culturashbridas:estratgiasparaentraresairdamodernidade.4.ed.SoPaulo: Edusp, 2008, p. XXIII 41 PRADO, Identidades latino-americanas, op. cit. 29 se inscrevem semelhanas e particularidades histrias e polticas e temassimilares que perpassamadiscussointelectualquepermiteme,inclusive,sugeremsuautilizao,a qual no se realiza aqui, importante frisar mais uma vez, irrefletidamente. Estadissertaosedivideemduaspartes.Aprimeira,Sobreasideiasna AmricaLatina,compostaportrscaptulosdiscuteaproduo,acirculaoeas concepes elaboradas em torno do tema da construo das ideias no subcontinente. O Captulo1,Miradascrticas:osintelectuaislatino-americanosnoumbraldosculo XX, realiza uma breve apresentao da vida e da obra dos autores analisados por esta pesquisaFranciscoBulnes,ManoelBomfimeFranciscoGarcaCaldern, apresentando, de maneira sucinta, alguns dados sobre a recepo e a circulao de suas obras, e apontado, por fim, as linhas gerais sobre as vises dos trs ensastas sobre sua prpria atividade intelectual. No Captulo 2, Na outra margem, Caliban: as democracias latinas da Amrica eseusimpasses,discutem-seduasquestescentraisqueseinterpenetramdurantea argumentao.Emprimeirolugar,aborda-seoconceitodedemocracianaAmrica Latina, apontado frequentemente como incompatvel com a vida poltica da regio. Em segundo lugar, como consequncia desse tipo de anlise, as relaes ambguas entre as ideiasimportadasearealidadesocialnodiscursointelectuallatino-americano.A exposioprocuradarcontadaconstruodeumaretricaqueestavanabaseda clebretesedasideiasforadolugarequeresultava,muitasvezes,naprescriode regimes ditatoriais para os pases da regio ou na concepo de incapacidade popular de participao poltica. No Captulo 3, Os parasitas da Amrica: circulao de ideias, retrica poltica e anlise social, realiza-se, com base no conceito-chave parasitismo da obra A Amrica Latina: males de origem, de Manoel Bomfim, uma anlise sobre a circulao de ideias entreasAmricaseaEuropa.Concebidapelosestudiososbrasileiroscomoumatese absolutamenteoriginalou,nomnimo,queencontraressonnciaemautoreseuropeus relevantescomoKarlMarxoumileDurkheim,atesedoparasitismodospases ibricossobresuascolniasnaAmricaapresentaumahistriamaiscomplexa, revelando conexes com o contexto de luta pela independncia nas Antilhas em relao Espanha na segunda metade do sculo XIX. Asegundapartedadissertao,IdeiassobreaAmricaLatina,discutea construodasidentidadeslatino-americanasentrefinsdosculoXIXeinciosdo sculoXX,pormeiodeduasquestescentraisnodiscursopolticoeintelectualda 30 poca: o problema racial e a expanso dos Estados Unidos aps 1898. No Captulo 4, No labirinto das raas: identidades e discurso racialista na Amrica Latina, discutem-se a viso dos trs autores sobre os povos indgenas e afrodescendentes da regio, sobre osimpassesdamestiagemesobreosprojetosdeimigraoqueganhavamcorpona retrica do perodo. Apresentam-se ainda, nesse captulo, as relaes presentes, na obra de Francisco Bulnes, entre alimentao e civilizao, buscando evidenciar algumas posiesdoautorsobreoindgenaeomestiodosubcontinente,antecipando,nesse sentido,umavisosubjacenteaseutextosobreasupostadebilidadedasnaesda regiodiantedaexpansoimperialistadospasesindustrializadosqueocorrianesse perodo. Por fim, no Captulo 5, Identidades em conflito: a AmricaLatina na Era dos Imprios, aponta-se para as dimenses polticas e culturais dos conceitos de Amrica Latina,AmricaIbricaeAmricaHispnica,destacandosuautilizaopelos autores analisados por esta pesquisa e apresentando alguns breves apontamentos sobre o lugardoBrasilnaconstruodessasidentidades.Emumsegundomovimentodo captulo,discute-seoimpactodoseventosde1898sobreasconcepesintelectuais latino-americanasemrelaoaosEstadosUnidos,comnfaseemsuavisoarespeito daDoutrinaMonroeenaspossibilidadesdeintervenoeuropeiasobreaAmrica Latina no contexto de expanso imperialista vivenciado pelas naes industrializados da poca.Elabora-se,nessesentido,umadiscusso sobreasrespostaslatino-americanasa esseprocesso,sublinhandoasposiesdosautoressobreostemasdaunidade continentaledasidentidades,emespecialaquelasbaseadasemumcritriode latinidade. 31 PARTE I SOBRE AS IDEIAS NA AMRICA LATINA 32 CAPTULO 1 MIRADAS CRTICAS: Os intelectuais latino-americanos no umbral do sculo XX Unbuencrticonecesitaserfro,despreocupado,no tener enaguas, ni pantalones, ni riquezas, ni pobrezas, ni parientes,niamigos,nimujer,nihijos,nimiedo,ni religin,niprincipiosfijosdeescuela,niteoras literarias, ni fibras suaves y musicales, ni garganta para los suspiros, ni cabeza para los delirios, ni bolsillos para losregalos,nivergenzaparabillonesdebillonesde injurias,niesperanzas,nitemores,niamorpropio,ni inclinacinalosplaceres,nirepugnanciaalos infortunios.Unbuencrticodebeserelprimerodelos buzosdelatradicinydelacienciaparapescarla verdad,elprimerodeloshombreshonradospara examinarla sin ensuciarla y primero de los valientes para proclamarlaenvozmuyaltaaunqueelgnerohumano se le venga encima y sea aprehendido por los gendarmes de todos los ofendidos en el terno huerto de Cetzemani. Francisco Bulnes, El porvenir de las naciones hispanoamericanas, 1899. Habra que discutir aqu un problema curioso de crtica: sevalemsparaelmritodelaobra,elrgido dogmatismoreligiosoaloTolstoi,aloMenndezy Pelayo,filosficoaloTaineoelescepticismo universal,esaligerezadelesprituqueconservasu flexibilidad en la opinin y en el juicio, que huye de todos losyugos,antiguosyrecientes,ycogeslolaflor brillantedelascosas.Unacrticafranca,inspiradapor unidealrobusto,porunaplenaconcepcindelavida, atrae y sugestiona. Al juzgar, no habla de impresin vaga odemariposeointerior;define,construyeciencia, emplea a veces el ltigo juvenalesco. Francisco Garca Caldern, De litteris, 1904. Seriapreciso,acreditamcertoscrticos,umaforma impassvel,fria,impessoal;parataisgentes,todoo argumentoperdeocartercientficosemessevernizde impassibilidade;emcompensaobastariaafetar 33 imparcialidade,paraterodireitoaserproclamado rigorosamentecientfico.Pobresalmas!...Comoseria fcilimpingirteoriaseconclusessociolgicas destemperandoalinguagememoldandoaforma hipcritaimparcialidade,exigidapeloscrticosdecurta vista!... No; prefiro dizer o que penso, com a paixo que oassuntomeinspira;paixonemsemprecegueira, nem impede o rigor da lgica. Manoel Bomfim, A Amrica Latina: males de origem, 1905. 1.1. Os autores e suas obras A virada do sculo XIX para o sculo XX apresenta uma diversidade de ensaios deinterpretaosobrea AmricaLatina.Paracompreenderostextosproduzidosnesse perodo,preciso,emprimeirolugar,posicionarseusautoresnocontextointelectual latino-americanodeento.Especificamente,emconsonnciacomosobjetivosdeste trabalho,fazem-senecessriasbrevesconsideraessobreastrajetriasbiogrficase intelectuais do mexicano Francisco Bulnes, do brasileiro Manoel Bomfim e do peruano Francisco Garca Caldern. *** FranciscoBulnes(1847-1924)foiumdosprincipaisintelectuaismexicanosde finsdosculoXIXeinciosdosculoXX.Formadoemengenharia,foiprofessorda Escola Nacional Preparatria, deputado e senador. Ficou conhecido por integrar o grupo doschamadoscientficos,conjuntodeintelectuaisdoqualfaziamparte,almdele, nomes importantes da vida poltica e cultural de seu pas como Justo Sierra e Jos Yves Limantour,entreoutros.42Oscientficosformavamaprincipalbaseintelectualde sustentaodoPorfiriato(1876-1911),regimepolticoqueperdurounoMxicopor maisdetrintaanos,caracterizadofrequentementepelahistoriografiaporuma 42 O termo cientfico, referncia ao grupo poltico e intelectual apontado como principal fornecedor de umajustificavaideolgicaparaoPorfiriato,foiutilizadopelaprimeiravezapsapublicaodo ManifestodaUnioLiberalem1892.EssemanifestodefendiamaisumareeleiodePorfrioDiaz presidncia da repblica. Tratava-se de uma designao irnica dos opositores desse grupo, logo assumida pelos prprios autores do manifesto. Sobre os cientficos, ver ZEA, Leopoldo. El positivismo en Mxico: nacimiento,apogeoydecadencia.Mxico:FondodeCulturaEconmica,1968;Domesmoautor,El pensamientolatinoamericano.3.ed.Barcelona: Ariel,1976.Paraumavisomaisrecentesobreotema, verLOMNITZ,Claudio.Losintelectualesyelpoderpoltico:larepresentacindeloscientficosen Mxico del Porfiriato a la Revolucin. In: ALTAMIRANO, Carlos (dir.); MYERS, Jorge (org.). Histria delosintelectualesemAmricaLatina:I.Laciudadletrada,delaconquistaalmodernismo.Buenos Aires: Katz, 2008. 34 estabilizaodapolticainterna,porcertamodernizaoeconmicaeporumaforte excluso social. 43 Bulnesatuoucomoidelogonasprimeirasdcadasdesuavidapblica participando, por exemplo, da redao do peridico La Libertad, considerado o primeiro rgo impresso surgido no Mxico a servir como justificativa para o Porfiriato. 44 Anos depois,assinou,aoladodeoutrosproeminentesnomesdaeliteletradadeseupas,no anode1892,umdocumentoqueficouconhecidonahistriamexicanacomo Manifesto da Unio Liberal, que proclamava a necessidade de mais uma reeleio de PorfrioDiaz.Foitambmumdosgrandesexpertosdesuapoca,atuando,muitas vezes, como responsvel pela elaborao de instrumentos legais e pareceres sobre temas comoamineraoeasfinanasduranteogovernodePorfrioDiaz. 45Apartirda publicao de El porvenir de las naciones hispanoamericanas, em 1899, Bulnes passou a se dedicar quase que exclusivamente s polmicas em torno da histria e da sociedade de seu pas. 46 FranciscoBulnespublicouumconjuntodeobraspolmicassobreahistria mexicanaque,jemseusttulos,procuravamexplicitarorestabelecimentoda verdade histrica diante da mentira que, conforme esse autor, vigorava nos crculos intelectuais e no senso comum de seu pas. Em 1904, escreveu, porexemplo, um livro intituladoLasGrandesMentirasdelaNuestraHistria,emquenegavaalgunsdos principais cnones da Histria Mexicana do sculo XIX. 47 PossivelmenteamaiorpolmicadesencadeadaporBulnesnoscircuitos 43 Para uma viso geral sobre o Porfiriato, ver GONZALEZ, Luis. El liberalismo triunfante. In: COSIO VILLEGAS,Daniel(coord.).HistriageneraldeMxico.4.ed.Mxico:ElColgiodeMxico,1994; GUERRA,Franois-Xavier.Mxico:DelAntiguoRegimnalaRevolucin.Mxico:FondodeCultura Econmica,1988,2vols;KATZ,Frederich.OMxico:aRepblicaRestauradaeoPorfiriato,1867-1910. In: BETTHELL, Leslie. Histria da Amrica Latina: de 1870 a 1930, vol. 5. So Paulo: EDUSP; ImprensaOficialdoEstado;Braslia:FundaoAlexandredeGusmo,2002.Paraumbalano bibliogrfico mais recente sobre o tema, ver TENORIO TRILLO, Maurcio e GOMZ GALVARRIATO, Aurora.ElPorfiriato.Mxico:FCE,CIDE,2006.PorfrioDazfoipresidentedaRepblicaMexicana entre1876e1880e1884e1911.Entre1880e1884,oMxicofoigovernadoporManuelGonzlez, aliado poltico de Daz. 44SAEZ,Carmen.'LaLibertad',peridicodeladictaduraporfirista.RevistaMexicanadeSociologa, Vol.48,No.1(Jan.-Mar.,1986), pp.217-236.OperidicoLaLibertadfoipublicadoentreosanosde 1878 e 1884. 45 Sobre as distines entre o intelectual idelogo e o intelectual experto, ver BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. So Paulo: Editora da Unesp, 1997, pp. 71-73. 46HALPERNDONGHI,Tulio.FranciscoBulnes:unitinerrioentreelprogresismoyel conservadurismo.In:ElEspejodelaHistria:Problemasargentinosyperspectivaslatinoamericanas. 2. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 1998, pp. 170-171. 47 Ver JIMNEZ MARCE, Rogelio. La pasin por la polmica: el debate sobre la historia en la poca de FranciscoBulnes.Mxico:InstitutoMora,2003;eBRADING,David.FranciscoBulnesylaverdad acerca de Mxico del siglo XIX. Histria Mexicana, 1996, vol. XLV, pp. 621-651. 35 intelectuaismexicanostenhasedadoemtornodeduasdesuaspublicaes,El verdaderoJurezylaverdadsobrelaIntervencinyelImprio(1904)eJurezylas revolucionesdeAyutlayReforma(1905),queatacavamumadasfigurasmais importantes da histria mexicana do sculo XIX: o ex-presidente ento falecido Benito Jurez(1806-1872). 48EssaspublicaesgeraramrespostasimediatasnoCongresso Nacionalenaimprensa,almdeinmerospanfletoselivrosquerefutavamasideias expostasporBulnesnessestextos.Nomesimportantesdaintelectualidademexicana como Justo Sierra e Andrs Molina Enrquez se pronunciaram, no contexto da polmica, emdefesadamemriadofalecidopresidente. 49Contribuiuaindaparaqueessa contendafosselevadaadianteoCentenriodonascimentodeBenitoJurez comemorado com eventos oficiais pelo governo de Porfrio Daz em 1906. Grande parte dos que participaram dessas comemoraes se esforavam para refutar as afirmaes de Bulnes e defender o legado juarista. 50 EnsaiodeinterpretaosobreaAmricaLatina,Elporvenirdelasnaciones hispanoamericanas foi concebido sob o impacto da Guerra Hispano-Americana (1898), gerandopocaintensasdiscussesnosmeiosintelectuaismexicanos. 51Emborao Mxiconotenhatidoparticipaoefetivanesseconflito,ManuelMorenoFraginals afirmaqueeracogitada,poralgunsmembrosdoPartidoRevolucionrioCubanonos EstadosUnidos,aanexaodeCubarepblicamexicanaemcasodeprolongamento deumaguerraedeumapossvelintervenoestadunidense.provvelqueolder cubano Jos Mart e o presidente mexicano Porfrio Daz tenham conversado sobre essa possibilidade.Entretanto,oMxicodeDazmanteve-seoficialmenteneutronaguerra de 1898. 52

Almdessasquestes,jnosanosanterioreseclosodesseconflito,se 48BULNES,Francisco.ElverdaderoJuarezylaverdadsobrelaIntervencinyelImprio.Mxico: Librera de la Vda. de C. Bouret, 1904; e Jurez y las revoluciones de Ayutla y Reforma. Mxico: Antgua Imprenta de Murguia, 1905. 49 Cf. SIERRA, Justo. Juarez, su obra y su tiempo. 7. ed. [1. ed.: 1906]. Mxico: Editorial Porra, 2004; e MOLINA ENRIQUEZ, Andres. Juarez y la Reforma. 2. ed. [1. ed..: 1906]. Mxico: Instituto Politcnico Nacional, 2005. 50 Ver LUNA ARGUDN, Maria. Cincoformas de representar el passado: A propsito de las polmicas entornodeJurez.HistriaMexicana,vol.LVII,n.3,2008,p.775;e,tambm,PANI,rika.El SegundoImprio:passadosdeusosmltiples.Mxico:CIDE,FCE,2004;e,damesmaautora, Derribandodolos:elJurezdeFranciscoBulnes.In:VASQUEZ,JosefinaZoraida(org.).Jurez: Histria e Mito. Mxico: El Colgio de Mxico, 2010. 51SobreoimpactodaGuerraHispano-Americanaentreosintelectuaismexicanos,verROJAS,Rafael. Retricas de la raza: intelectuales mexicanos ante la Guerra del 98. Histria Mexicana, abr.-jun. 2000, vol. XLIX, n. 04. 52MORENOFRAGINALS,Manoel.Espanha-Cuba-Espanha:Umahistriacomum.Bauru:Edusc, 2005., pp. 348-349. 36 desenhavanosperidicosdopasumafortediscussosobreasuperioridadeou inferioridadedaraalatinaemrelaoraaanglo-saxnica.Essasretricasda raaquecirculavamnoMxicodeentoseexacerbaramcomadeclaraodeguerra dosEstadosUnidosEspanha.Apartirdessemomento,emborapredominassea solidariedade antiga metrpole na imprensa e nos meios intelectuais mexicanos, outras trs posies tiveram destaque nesse perodo. Uma delas defendia a neutralidade ante a disputa entre Espanha e Estados Unidos; outra, que o Mxico se pusesse tanto contra a EspanhacomocontraosEstadosUnidos,poisambossignificariamamanutenodo estatutocolonialdeCuba;e,porfim,haviaosquedefendiamabertamenteaocupao deCubapelosEstadosUnidos.Bulnes,emseusartigosnosperidicosdapoca, defendeu esta ltima posio. 53 Francisco Bulnes colaborou, nesse perodo, com os dois peridicos que tomaram maisabertamenteumaposionorte-americanaduranteaguerra,ElImparcialeEl Mundo.Defendia,emseustextos,oavanodaimponentecivilizacinsajonadiante da decadente civilizacin latina. Nesses artigos, afirmava as vantagens da colonizao deCubapelosEstadosUnidoseascausasdasuperioridadedosanglo-saxesem relaoaoslatinos.Taisartigosqueprovocaramgrandepolmicanoscrculos ilustradosdoMxicoresultaram,noanoseguinte,napublicaodeElporvenirdelas nacioneshispanoamericanasantelasrecientesconquistasdeEuropayNorteamerica: estrutura y evolucin de un continente. 54 El porvenir de las naciones hispanoamericanas, que recebeu inmeras reedies at hoje, foi publicado originalmente pela Imprenta de Mariano Nava em novembro de 1899.Compunha-sepor283pginasedividia-seem15captulos. 55Nesseensaiode interpretao,buscava-seformularumdiagnsticodaenfermidadesocial,cultural, econmicaepolticadassociedadeslatino-americanas,almdeapresentarpossveis remdiosquepudessemservircomopaliativosparaosubcontinenteesuamaldio intrnseca,resultadodesuaorigemlatinaedeseumeionaturalpredominantemente tropical. EmElporvenirdelasnacioneshispanoamericanas,Bulnesconstruiuuma interpretaoquehierarquizavaascivilizaesdomundoapartirdeseushbitos 53 ROJAS, op. cit., p. 604. 54 Ibidem, p. 604. 55 BULNES, Francisco.El porvenir de las naciones hispanoamericanas ante las recientes conquistas de EuropayNorteamerica:estruturayevolucindeuncontinente.Mxico:ImprentadeMarianoNava, 1899. 37 alimentares.Dividia-asemtrscategorias:acivilizaodotrigo,superiorsdemais, predominantenaEuropa;acivilizaodomilho,intermediria,predominantena Amrica;eacivilizaodoarroz,inferiorsoutras,predominanteemdeterminadas regies da sia. Entretanto, se tal diviso alimentar era o que mais chamava aateno emsuaanlise,seutextonoserestringiaaessasquestes.Oautordestacou,assim comomuitosdeseuscontemporneos,aexistnciadediferenasessenciaisentre latinoseanglo-saxes,queseexpressavamnoapenasnasatitudesdeseus respectivospovos,nasatribuiesqueconferiamaoEstadoenasformasdegoverno, mas tambm na relao entre as ideias, a poltica e o desenvolvimento econmico. *** ManoelBomfim(1868-1932)foimdicoformadopelaFaculdadedeMedicina da Bahia, professor da Escola Normal do Rio de Janeiro e, entre 1898 e 1900, diretor de InstruoPblicadoDistritoFederal.Em1902,iniciouseusestudosempsicologiana cidadedeParis,ondecompelidopelasimagensnegativasconstrudaspeloseuropeus sobreasnaeslatino-americanas,iniciouaescritadeseulivroAAmricaLatina: males de origem, obra publicada, no Rio de Janeiro, trs anos mais tarde, em 1905, pela editoraGarnier.Bomfimfoiresponsvelporumavastaobradestinadaaosalunose escolasdoRiodeJaneiro,oschamadoslivrosdeleitura,entreosquaispodemser citados Livro de composio (1899), Livro de leitura (1901), Atravs do Brasil (1910), Primeirassaudades(1920)eCrianasehomens(s/d),ostrsprimeirosemparceria com o poeta Olavo Bilac (1865-1918). Publicou tambm uma espcie de trilogia sobre a formaonacionalbrasileira:OBrasilnaAmrica:caracterizaodaformao brasileira (1929), O Brasil na histria: deturpao das tradies, degradao poltica (1930)eOBrasilnao:realidadedasoberaniabrasileira(1931). 56Almdesses livros,produziudiversostextosrelacionadosquestodainstruopblicaeescreveu materiais didticos. 57 56 VerBOMFIM,Manoel.OBrasilna Amrica:caracterizao daformaobrasileira. Riode Janeiro: Francisco Alves, 1929; Idem. O Brasil na histria: deturpao das tradies, degradao poltica. Rio de Janeiro:FranciscoAlves,1930;eIdem.OBrasilnao:realidadedasoberaniabrasileira.Riode Janeiro: Francisco Alves, 1931. 57SobreManoelBomfim,ver,entreoutros,BOTELHO,Andr.ManoelBomfim:umpercursoda cidadanianoBrasil.In:BOTELHO, AndreSCHWARCZ,LliaMoritz(orgs.).Umenigmachamado Brasil:29intrpreteseumpas.SoPaulo:CompanhiadasLetras,2009;SUSSEKIND,Florae VENTURA,Roberto.HistriaeDependncia:culturaesociedadeemManoelBomfim.SoPaulo: EditoraModerna,1984;eBAGGIO,KtiaGerab.AoutraAmrica:AAmricaLatinanavisodos intelectuais brasileiros nas primeiras dcadas republicanas. Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 1999.Paraumabiografiadesseautor,AGUIAR,RonaldoConde.Orebeldeesquecido:tempo,vidae obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. 38 EmAAmricaLatina:malesdeorigem,seulivromaisconhecido,Manoel Bomfimprocurouconceberumareflexosobreaformaonacionalbrasileiraapartir desuaaproximaocomospaseshispano-americanos.importanteressaltar,nesse sentido, o distanciamento que caracterizou as relaes entre o Brasil e os demais pases latino-americanos ao longo do sculo XIX, especialmente durante a vigncia do Imprio (1822-1889).EmboraoadventodaRepblicaem1889notenhaalterado substancialmente a viso negativa que se tinha sobre a Amrica Hispnica, fez com que novastentativasdeaproximaoemergissemnosmeiospolticoseintelectuais brasileiros. 58 SeacrisedoImprionotrouxeumavisomenosestereotipadadosvizinhos hispano-americanos,aomenospropsnovosolharesnadireoda Amricacomoum todo. Essa nova postura se expressava em uma das frases mais conhecidas do Manifesto Republicano, escrito por Quintino Bocaiva e Salvador de Mendona em 1870: Somos daAmricaequeremosseramericanos.Opontoderefernciaparaosdestinosda polticabrasileirasedeslocavadaEuropaparaa Amrica.Emboraosamericanosa que os autores do Manifesto se referissem fossem preferencialmente os Estados Unidos, emespecialsuaorganizaopolticarepublicanaefederalista,olibelopropunhauma opo pacifista pela 'solidariedade democrtica' com 'os povos que nos rodeiam'. 59 No mesmo sentido, ia um artigo de Rui Barbosa publicado em 1889, s vsperas da queda da monarquia, em que afirmava que para neutralizar a fora desse inimigo impalpvel [umgovernoantipticoaosEstadosamericanos],shaveriaentrensummeio: americanizar a monarquia, isto , republicaniz-la. 60Para as autoridades brasileiras do perodo posterior Proclamao da Repblica, osEstadosUnidosnorepresentavamomesmoperigoqueparaasnaeshispano-americanas.Pelocontrrio,comofimdoImprio,asautoridadesrepublicanas buscaram aproximao com a federao norte-americana. 61 As relaes entre o Brasil e osEstadosUnidossuscitaram,entretanto,importantesdebatesnosmeiosintelectuais brasileirosnasprimeirasdcadasdonovoregime.OPan-americanismofoi,nesse 58 Sobre as vises construdas a respeito das repblicas hispano-americanas aps 1889, ver BAGGIO, op. cit.; e, tambm, CAPELATO, Maria Helena Rolim. O gigante brasileiro na Amrica Latina: ser ou no ser latino-americano. In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta: a experincia brasileira. 2. ed. So Paulo: Senac, 2000.59ManifestoRepublicanode1870citado por ALONSO,ngela.Ideiasemmovimento:agerao1870 na crise do Brasil Imprio. So Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 184. 60 Rui Barbosa, O prncipe consorte (1889) apud MELLO, Maria Tereza Chaves de.ARepblica e o sonho. Vria Histria. Belo Horizonte, vol. 27, n. 45, jan./jun. 2011, p. 122. 61 PRADO, Identidades latinoamericanas, op. cit. 39 sentido, tema de intensa discusso intelectual no perodo, produzindo ao mesmo tempo defesas incisivas, como as de Joaquim Nabuco, e crticas ferrenhas, como as de Oliveira Lima. 62 AsAmricasdespertaram,portanto,noalvorecerdoregimerepublicano,um interesse renovado dos intelectuais e polticos brasileiros. Diversos autores importantes doperodovoltaramseusolhosparaseuprpriocontinenteapsdcadas,duranteo Imprio, de interesse quase que exclusivo sobreos paradigmas e padres europeus. Os EstadosUnidosea AmricaHispnicainspiraramareflexodealgunsdosprincipais intelectuaisbrasileirosdoperodocomoEduardoPrado,JosVerssimo,Joaquim Nabuco,EuclidesdaCunha,ArturOrlando,SlvioRomero,RochaPombo,Oliveira Lima,entreoutros.Embora,duranteessesanos,diversosautoresapresentassemvises sobreaAmricaLatina,omdicosergipanoManoelBomfimfoiumdospoucos entusiastas da regio no pas. 63 AideiadeseescreverumlivrosobreaAmricaLatinateriasurgidopara Bomfim, num primeiro momento, em 1897, quando o ento diretor de Instruo Pblica doDistritoFederal,MedeiroseAlbuquerque,instituiuaobrigatoriedadedocursode Histria da Amrica para a formao de professores. Tendo sido realizado um concurso para escolher o compndio a ser utilizado nessas escolas, Bomfim foi solicitado a dar o parecer ao texto do nico concorrente, o historiador Sebastio da Rocha Pombo. 64 Anos depois de ter aprovado esse manual, o autor sergipano foi convidado, durante sua estada emParis,aescreverparaumperidicoumartigosobreoBrasilea AmricaLatina. Essetexto,umarespostavisonegativaquepredominavanaEuropasobreoslatino-americanos,estnaraizdeAAmricaLatina:malesdeorigem,cujaprimeiraedio contava com 430 pginas e dezoito captulos divididos em cinco sees. 65

Quandodapublicaodesseensaio,ManoelBomfimeraaindaumdospoucos autoresbrasileirosqueseopunhaabertamenteaoracismocientficopredominantenos 62SobreosdebatesintelectuaisemtornodoPan-americanismonoBrasil,verBAGGIO,Aoutra Amrica,op.cit.,especialmenteoscaptulos3e4;DULCI,TerezaMariaSpyer.Asconfernciaspan-americanas(1889-1928):identidades,unioaduaneiraearbitragem.SoPaulo:Alameda,2013, especialmenteocaptulo2;ePRADO,MariaLigiaCoelho.DavieGolias:asrelaesentreBrasile EstadosUnidosnosculoXX.In:MOTA,CarlosGuilherme(org.).Viagemincompleta:aexperincia brasileira. 2. ed. So Paulo: Senac, 2000. 63 Ver BAGGIO, A outra Amrica, op. cit. 64VerBITTENCOURT,Circe.OpercursoacidentadodoensinodeHistriadaAmrica.In: BITTENCOURT,CirceeIOKI,ZildaMrciaGricoli(orgs.).EducaonaAmricaLatina.Riode Janeiro: Expresso e Cultura; So Paulo: Edusp, 1996. 65 BOMFIM, Manoel. Amrica Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. 40 crculos intelectuais da poca. 66 Bomfim entendia que os males de origem do Brasil especificamente,edaAmricaLatina,deumamaneirageral,noseresumiam, portanto,comoerasensocomumentreosintelectuaisdapoca,aumproblemade ordem biolgica e racial, mas, pelo contrrio, de ordem social e histrica. Nesse sentido, seutilizava,demaneiraaparentementeinusitada,doconceitodeparasitismocomo ferramentaparaexplicarasituaodosubcontinente. 67Segundoele,oparasitismo exercidoporPortugaleEspanhanoperodocolonialsobresuaspossessesnas Amricaspodiaserapontadocomofatorchaveparasecompreenderoatrasolatino-americano.Almdessetipodeparasitismo,odomnioparasitrio,dentrodas prprias naes latino-americanas, de um grupo social, o Estado ou as elites nacionais, sobreooutro,apopulaomaispobre,tambmeraapontadocomoexplicaopara situao dos pases latino-americanos no perodo. 68 Nessesentido,Bomfimviaaeducaoeainstruopblicacomomeiospara viabilizaroprogressoeamodernidadenaAmricaLatina. 69Aindainspiradopelas ideiascientificistas,masjapresentandopreocupaesmaiscaractersticasao pensamentosocialdasdcadasposteriores,atribuacincianoumvalorintrnseco, masconsideravasuaimportncianamedidaemqueestapudessecontribuirparaa compreenso e soluo de problemas sociais. 70Embora o texto de Bomfim procurasse apontar os males de origem da Amrica Latina, o autor sergipano, crente na educao comofatordetransformaosocial,apresentavaposturarelativamenteotimistacom relao aos destinos do subcontinente. *** FranciscoGarcaCaldern(1883-1953)foiumdosgrandesintelectuais peruanoselatino-americanosdaprimeirametadedosculoXX.Membrodeuma famliadaelitepolticaeeconmicalimenha,GarcaCaldernerafilhodojurista,ex-reitordaUniversidaddeSanMarcoseex-presidentedarepblicaFranciscoGarca CaldernLanda(1834-1905).Pormotivospolticosnonasceuemterritrioperuano, 66VerVENTURA,Roberto.Estilotropical:histriaculturalepolmicasliterriasnoBrasil(1870-1914). So Paulo: Companhia das Letras, 1991. Sobre o racismo cientfico presente nos meios intelectuais brasileiros no perodo, ver, tambm, SCHWARCZ, op. cit. 67Autilizaoeacirculaodoconceitodeparasitismoserodiscutidasdemaneiramaisdetidano captulo 3. 68 BOTELHO, Manoel Bomfim: um percurso da cidadania no Brasil, op. cit., p. 125. 69VerGONTIJO,Rebeca.ManoelBomfim.Recife:FundaoJoaquimNabuco,2010;eBOTELHO, Andr Pereira. O batismo da Instruo: atraso, educao e modernidade em Manoel Bomfim. Dissertao de Mestrado. Campinas: IFCH-Unicamp, 1997. 70VerGONTIJO,Rebeca.ManoelBomfim,'pensadordahistria'naPrimeiraRepblica.Revista Brasileira de Histria, vol. 23, n. 45, So Paulo, julho-2003. 41 masnacidadechilenadeValparaso.Em1881,nocontextodaGuerradoPacfico (1879-1883) 71, Lima foi ocupada por tropas chilenas, o que obrigou o ento presidente Nicols Pirola a fugir para Arequipa. Em meio crise poltica que se instalou na capital peruana, Garca Caldern Landa foi escolhido presidente da repblica por um conjunto denotveisperuanos.Seugoverno,entretanto,foideposto,emsetembrodomesmo ano, por ordens de Patrcio Lynch, chefe da ocupao chilena em Lima. Em novembro, a famlia Garca Caldern foi enviada prisioneira a Valparaso, no Chile, onde, em 1883, nasceu o autor de Les dmocraties latines de l'Amerique. 72 O perodo da histria do Peru compreendido entre 1895 e 1919, ou seja, entre os anos que se seguiram ao fim da Guerra do Pacfico e a ascenso do presidente Augusto B. Legua, recebeu do historiador peruano Jorge Basadre, a denominao de Repblica Aristocrtica.Principalmenteapartirde1879,novaselites,resultantesdoamlgama entreosgruposdominantesquehabitavamolitoral,dasquaisfaziamparteadvogados proeminentes,professoresuniversitrios,proprietriosdehaciendasaucareirasda costanorteecentral,empresriosegrandescomerciantesligadoseconomiade exportao,passaramaformarasbasesdaprincipalorganizaopolticadopas duranteaRepblicaAristocrtica:oPartidoCivilista.AsForasArmadasque controlaramapolticanacionaldesdeaindependnciaforamreorganizadas, profissionalizadas e submetidas, nesse perodo, aos grupos civis. O predomnio civilista na poltica peruana se caracterizou, de acordo com a historiografia, como um perodo de relativa paz social, estabilizao poltica e modernizao econmica. 73

Em1905,emergindodoseiodessaelitedominante,comeavaadarseus primeirospassosnessepasumageraodeintelectuaisligadosUniversidaddeSan Marcoseaoantigopositivistaconvertidoaoidealismo AlejandroDeusta. Achamada GeneracindelNovecientos,inspiradanosensinamentosdeJosEnriqueRodeno idealismodemileBoutrouxeHenriBergson,reuniuimportantesnomesdacena 71 Confronto armado que envolveu Chile, Peru e Bolvia entre 1879 e 1883. Os trs pases disputavam um territrioricoemguanoesalitre,produtosque,napoca,possuamaltovalordemercado.Oconflito acabouem1883comavitriadoChilesobrePerueBolvia,quelutaramnomesmoladoaolongoda Guerra.SobreaGuerradoPacfico,verCONTRERAS,CarloseCUETO,Marcos.HistriadelPeru Contemporneo. 4. ed. Lima: IEP, 2007. 72SANCHEZ,Luiz Alberto.Prlogo.In:GARCIACALDERN,Francisco.Lasdemocraciaslatinas de Amrica. Creacin de un continente. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979. 73SobreaRepblica AristocrticanoPeru,verCONTRERASeCUETO,op.cit.,pp.199-232;PEASE G. Y.,Franklin.BreveHistriaContemporneadelPer.Mxico:FCE,1995,pp.134-161;KLARN, Peter. As origens do Peru Moderno, 1880-1930. In: BETTHELL, Leslie. Histria da Amrica Latina: de 1870a1930,vol.5.SoPaulo:EDUSP;ImprensaOficialdoEstado;Braslia:Fundao Alexandrede Gusmo, 2002, pp. 317-365. 42 intelectual peruana como Jos de la Riva-Aguero, Victor Andrs Belande e, aquele que foi por muitos anos considerado no mundo hispano-americano como o discpulo dileto e mais influente do autor de Ariel, o prprio Francisco Garca Caldern.Essa gerao apresentava como principais tpicos de seu discurso a necessidade de se alcanar o progresso material, fazia a defesa de uma autoridade poltica estvel e legtimaeapontavaparaaimportnciadaunidadenacionaldiantedafragmentao socialeracial.Esseshomensdesaberpropunhamoestudocientficodarealidade peruana,tinhamposturamoderadamenteanticlericaleeramcrticosdaherana espanhola.Afirmavamtambmqueaeducaodeveriaseguiarporinclinaes cientficas, prticas e industriais e promover a igualdade de oportunidades. 74

MembrodestacadodessachamadaGeneracindelNovecientos,Francisco Garca Caldernconcluiu, em 1903, seu doutorado na Universidad de San Marcos. Em 1905, aps a morte de seu pai, mudou-se com toda sua famlia para Paris, onde ocupou cargos diplomticos e viveu pelas dcadas seguintes, regressando a sua ptria apenas em 1945comofimdaSegundaGuerraMundial.Em1906,publicouemValencia,na Espanha, Hombres e ideas de nuestro tiempo, e, no ano seguinte, em Paris, um de seus livrosmaisimportantes,LeProuContemporain.Essaobra,editadainicialmenteem francs,foiresponsvelporcatalisaredifundirnoexteriorasideiasdessagerao intelectual. Em Le Prou Contemporain, Garca Caldern afirmava que a resoluo dos problemassociaiseraciaisdoPerupassavapelasolidificaodeumalideranaforte provenientedaeliteilustradaperuana.Essaeliteseriaresponsvelporincorporaras massasindgenasmodernizaocapitalistadolitoral,fortaleceroEstadoeatrair investimentos estrangeiros para a economia nacional. 75 Autordeumaproduorelevante,especialmentenasprimeirasdcadasdo sculoXX,FranciscoGarcaCaldernescreveu,em1912,comapenasvinteenove anos,suaprincipalobra.PublicadaemParis,pelaEditoraFlammarion,aprimeira edio em francs de Les democraties latines de lAmerique contava com o prefcio do importantepolticoRaymondPoincar,escritopoucoantesdestesetornarchefedo gabinetedeministrose,noanoseguinte,presidentedarepblicafrancesa.Taledio 74 Ver GIL LZARO, Alicia. Las seas de identidad de un escritor ausente: Amrica Latina e Per en elpensamientodeFranciscoGarcaCaldern.In:GRANADOSGARCA,AimereMARICHAL, Carlos.Construccindelasidentidadeslatinoamericanas:ensayosdehistoriaintelectual(siglosXIXe XX). Mxico: El Colgio de Mxico, 2004; ver, tambm, CONTRERAS e CUETO, op. cit., pp. 224-228. 75 GARCA CALDERN, Francisco. Le Perou Contemporain. Paris: Dujarric e Cia. Editerurs, 1907. Cf. GIL LZARO, op. cit., pp. 139-145; e CONTRERAS e CUETO, op. cit., p. 228. 43 possua383pginasevinteeoitocaptulosdivididosemsetesees. 76Nessaobra, GarcaCalderndestacavaaimportnciadosintelectuaisparaapolticanaAmrica Latinaedefendiaaexistnciadegovernosfortes,elitistaseprogressistascomovia necessriaparasecombateraanarquianosubcontinente.SegundoLuzAlberto Snchez, essa viso conservadora no era exclusiva de Garca Caldern, mas pertencia a toda a gerao elitista e intelectualizada de latino-americanos, seguidora das ideias de Rod.77 Apesar da grande repercusso e circulao desse ensaio na Amrica Latina e de sua imediata traduo para o ingls, em 1913, sob o ttulo Latin America: Its Rise and Progress, surpreende que a primeira verso desse livro em lngua espanhola tenha vindo a pblico apenas em 1979, com a edio publicada pela Coleo Biblioteca Ayacucho. 78 GarcaCaldernfoi,poralgumasdcadas,durantesualongapermannciaem Paris, visto como uma de las voces ms slidas de la intelectualidad [latino-americana] en elestranjero. 79 Em Paris, entre 1912e 1914,foi editor de La Revistade Amrica, responsvelporimpulsionarnaEuropaaconstruodeumaintensaredearielistae francfila, caracterizada por seu pan-latinismo, seu anti-imperialismo e seu elitismo. Em seuprimeiroeditorial,GarcaCaldernconvocavaaeliteintelectualdoultramara ultrapassarasquerelaserivalidadeslocaisquesilenciaramosprofessoresde americanismo,paraquefossepossvelconstruirumaunidadecontinentalna Amrica Latina. 80 *** Inseridosemdiferentescontextosnacionais,dotadosdeformaovariadae defendendodiferentesconcepessobreasquestesdaAmricaLatina,omexicano Francisco Bulnes, o brasileiro Manoel Bomfim e o peruano Francisco Garca Caldern foramresponsveispelaelaboraodeensaiosquebuscavamdiscutirosmalesde origemdosubcontinente,apresentardiagnsticosparaosproblemasdaregioe apontarperspectivasparaoseufuturo.Ostrsensaiostiveram,emmaioroumenor medida,repercussonosubcontinente,circulandonosmeiosintelectuaisefornecendo elementos para novas discusses. 76 GARCA CALDERN, Francisco. Les Democraties Latines de l'Amerique. Paris: Flammarion, 1912. 77 SANCHEZ, op. cit., p. XIV. 78 GARCIA CALDERN, Francisco. Las democracias latinas de Amrica. La creacin de un continente. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979. 79 COLOMBI, Beatriz. Camino a la meca: escritores hispanoamericanos en Paris. In: ALTAMIRANO, Carlos(dir.).HistoriadelosintelectualesenAmricaLatina.BuenosAires:Katz,2008,vol.ILa ciudad letrada, de la conquista al modernismo, p. 551. 80 Ibidem, op. cit. p. 560. 44 1.2. Circulao e recepo Emmaioroumenorescala,osensaiosElporvenirdelasnaciones hispanoamericanas,deFranciscoBulnes;AAmricaLatina:malesdeorigem,de ManoelBomfim;eLesdmocratieslatinesdelAmrique,deFranciscoGarca Caldern,circularamnosmeiosintelectuaisdesuapoca.Emboraarecepodetais obrasnosejaotemaprincipaldestetrabalho,possveltraarbrevementealgumas leituras que se fizeram delas. Emprimeirolugar,importantedestacarointercmbioentretaisensaiose autorese,emquemedida,asideiasquedefendiamforamincorporadasourefutadasa partirdessescontatos.OensaioElporvenirdelasnacioneshispanoamericanas,de FranciscoBulnes,porexemplo,serviucomoumarefernciamexicanaimportantena composiodosensaiosdeFranciscoGarcaCaldernsobreaAmricaLatina.O intelectual peruano se referia a Bulnes, em Les dmocraties latines de lAmerique, como elbrillantehistoriadormejicano,citandosuasobrasparaconstruirosperfisdos presidentesBenitoJurezePorfrioDaz. 81Entretanto,foiemLacreacindeun continentequeGarcaCadernrealizouumaanlisemaisdetidasobreElporvenirde lasnacioneshispanoamericanas,naspalavrasdoensastafrancfilo,aobra americanistadopolmicoautormexicano.Bulnes,segundoointelectualperuano, aplicaba ideas de M. Le Bon y de los socilogos sajones, con la rudeza de los antiguos profetas,enunestudiodesordenadoyvigoroso.Mesclavam-senaanlisedeGarca Caldern crticas e elogios ao ensaio do autor mexicano. Sobre o pessimismo de Bulnes acercadofuturohispano-americano,oautordeLePeruContemporainafirmavaque es excesivo tal vaticinio e, acrescentava, las profecas de Bulnes yerran por excesiva generalizacin. 82 GarcaCalderndestacavanessaobraaimportnciadoexamedetidode FranciscoBulnessobreosvcioslatino-americanos.Comonenhumoutroensaio publicado na Amrica Latina entre fins do sculo XIX e incios do sculo XX, os quais fizerampartedoqueoautorperuanochamoudenovacorrenteamericanista,El porvenirdelasnacioneshispanoamericanasexplicitavaumclaropessimismocom relao ao futuro das naes da Amrica Latina: 81 GARCA CALDERN, Las democracias latinas de Amrica, op. cit., p. 80. 82 GARCA CALDERN, La creacin de un continente [1913], op. cit., p. 254. 45 Nopuedenegarse,encambio,queningnlibroexamincontanvirilfranquezalos viciosamericanos,lamegalomana,elcanibalismoburocrtico,eljacobinismo[]. Bulnes ha dado la verdadera explicacin econmica de las revoluciones sudamericanas. Comonoexistenindustrias,elEstadoalimentalasclasesmedias,ysinosatisfacesus ambiciones,aumentandolospuestosburocrticos,estallanrevueltas.Desulibrose levantauninflexiblepesimismo.Nohallaenestasrepblicasningunadelasvirtudes democrticas:nilaveracidad,porqueseexageranriquezasygrandezas;nilajusticia, porquedominanladesigualdadylaintolerancia,nilaprevisinenlospases latinoamericanostodalaclasemediahatenidoabuelosricosytodalaclasericaha tenido abuelos pobres ni finalmente la cooperacin al bien pblico, porque la envidia queheredarondeEspaalosamericanosatacaacuantossedistinguenenpoltica, ciencias o finanzas. 83 Garca Caldern discordava, entretanto, do pessimismo exacerbado de Francisco Bulnes,semostrandomuitomaisconfiantenoporvirdasnaeshispano-americanas que o autor mexicano: Nosepu