2011203776 Erickinson Bezerra de Lima

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L’HISTOIRE DU SOLDAT DE IGOR STRAVINSKY: UM ESTUDO ANÁLOGO ENTRE SUBJETIVIDADE E OBJETIVIDADE INTERPRETATIVA Aluno: ERICKINSON BEZERRA DE LIMA UFRN [email protected] Prof. Dr. ANDRÉ LUIZ MUNIZ OLIVEIRA UFRN [email protected] Resumo: O presente trabalho busca compreender a pseudo dicotomia entre os aspectos objetivos e subjetivos concernentes a interpretação musical e a intervenção que ambos incidem sobre o processo de preparação e execução da obra, para elucidar os fatos teremos por base a obra L’Histoire du Soldat confrontando-a com os ideais interpretativos de Igor Stravinsky enquanto compositor e interprete da obra em tela. Palavras-chave: Interpretação, objetividade, subjetividade, Stravinsky. L’HISTOIRE DU SOLDAT OF IGOR STRAVINSKY: A STUDY ANALOGUE BETWEEN SUBJECTIVITY AND OBJECTIVITY INTERPRETATIVE Abstract: This study aims to understand the dichotomy between the pseudo objective and subjective aspects pertaining to musical interpretation and intervention, both focus on the preparation and execution of the work, to elucidate the facts will be based on the work L’Histoire du Soldat comparing it with ideals interpretation of Igor Stravinsky as a composer and interpreter of the work in screen. Keywords: Interpretation, objectivity, subjectivity, Stravinsky. 1 SUBJETIVIDADE VERSUS OBJETIVIDADE INTERPRETATIVA O início do século XX foi fecundo em manifestações artísticas desde as diversas vertentes (artes visuais, a música, a literatura, o teatro, etc.) que incidiram uma série de questionamentos e reflexões sobre si próprias, que vem por redefinir/aperfeiçoar ou alterar os limites acerca dos princípios conceituais que os regiam até então, assim, abriram novas portas à modernidade estruturadas sobre uma multiplicidade de linguagens e estilos. Ao que se refere aos princípios conceituais inerentes à música, de forma mais abrangente, ocorre à redefinição da linguagem tonal e das estruturas formais que a fundamentam, sobre qual o declínio

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  • LHISTOIRE DU SOLDAT DE IGOR STRAVINSKY: UM ESTUDO

    ANLOGO ENTRE SUBJETIVIDADE E OBJETIVIDADE

    INTERPRETATIVA

    Aluno: ERICKINSON BEZERRA DE LIMA

    UFRN [email protected]

    Prof. Dr. ANDR LUIZ MUNIZ OLIVEIRA

    UFRN [email protected]

    Resumo: O presente trabalho busca compreender a pseudo dicotomia entre os aspectos objetivos e

    subjetivos concernentes a interpretao musical e a interveno que ambos incidem sobre o

    processo de preparao e execuo da obra, para elucidar os fatos teremos por base a obra

    LHistoire du Soldat confrontando-a com os ideais interpretativos de Igor Stravinsky enquanto

    compositor e interprete da obra em tela.

    Palavras-chave: Interpretao, objetividade, subjetividade, Stravinsky.

    LHISTOIRE DU SOLDAT OF IGOR STRAVINSKY: A STUDY ANALOGUE BETWEEN

    SUBJECTIVITY AND OBJECTIVITY INTERPRETATIVE

    Abstract: This study aims to understand the dichotomy between the pseudo objective and

    subjective aspects pertaining to musical interpretation and intervention, both focus on the

    preparation and execution of the work, to elucidate the facts will be based on the work LHistoire

    du Soldat comparing it with ideals interpretation of Igor Stravinsky as a composer and interpreter

    of the work in screen.

    Keywords: Interpretation, objectivity, subjectivity, Stravinsky.

    1 SUBJETIVIDADE VERSUS OBJETIVIDADE INTERPRETATIVA

    O incio do sculo XX foi fecundo em manifestaes artsticas desde as diversas

    vertentes (artes visuais, a msica, a literatura, o teatro, etc.) que incidiram uma srie de

    questionamentos e reflexes sobre si prprias, que vem por redefinir/aperfeioar ou alterar os

    limites acerca dos princpios conceituais que os regiam at ento, assim, abriram novas portas

    modernidade estruturadas sobre uma multiplicidade de linguagens e estilos. Ao que se refere

    aos princpios conceituais inerentes msica, de forma mais abrangente, ocorre redefinio

    da linguagem tonal e das estruturas formais que a fundamentam, sobre qual o declnio

  • sobreveio a partir do cromatismo wagneriano se alargando pelo perodo ps-romntico, alm

    de desbravar novas possibilidades rtmicas, de timbres, instrumentos percussivos e

    eletrnicos. msica, diferentemente das artes consideradas criadas em definitivo

    (escultura, arquitetura, cinema, pintura) precisa ser recriada para ser vivida (DART, 2000, p.

    03), ou seja, a obra musical no ter viabilidade se no for traduzida atravs de processos

    interpretativos, estes consistindo nos procedimentos de preparao, performance e execuo

    adotados pelo sujeito interprete, que por sua vez, atua como uma espcie de mediador entre a

    obra e o ouvinte/apreciador.

    O processo de interpretao consiste num movimento que vai pouco a pouco

    representando os esquemas de uma imagem destinada a revelar a verdadeira

    realidade da obra; pe-nos prova comparando-os, de tempos em tempos, com as

    descobertas que a obra fornece se devidamente interrogada; descarta os falsos,

    integra os incompletos, corrige os inexatos, melhora os defeituosos e escolhe os

    adequados; cuida de no afrouxar a ateno, de evitar a impacincia e a precipitao,

    de conservar sempre aberta a possibilidade do confronto e da verificao [...], isto ,

    a precisa imagem que preside verificao e d a obra como ela quer aparecer e

    revela sua realidade verdadeira e profunda. (PAREYSON, 2001, p. 227).

    A terminologia interpretao, em mbito musical, est continuamente empregada

    com a mesma acepo dos termos performance e execuo, devido ao estreito grau de

    parentesco que atribumos a estas palavras, como exemplificado nas expresses: Precisamos

    trabalhar sua performance - A ideia boa, mas a performance no (LIMA; APRO;

    CARVALHO, 2006, p. 12) e, do mesmo modo na frase: A performance do solista estava

    impecvel. Se substitussemos o termo performance nas frases explicitadas, pela palavra

    execuo ou interpretao, tais locues aparentemente no perderiam seu sentido, contudo,

    estas palavras diferem em sentido etimolgico. (idem, ibidem)

    O termo performance, em linhas gerais, descrito no dicionrio Houaiss como

    conjunto de ndices auferidos experimentalmente que define o alcance ideal de algo;

    desempenho. (HOUAISS, 2001, p. 2187) e, acepo de execuo pode ser compreendida

    como passar do projeto ao ato; realizao, [...] dar cumprimento s decises passadas em

    julgamento (HOUAISS, 2001, p. 1283).

    A definio de interpretao est sujeita a diversos pontos de vista,

    exemplificados como: limitaes impostas ao msico, ou aquelas que este se impe a si

    mesmo em sua funo prpria, que de transmitir msica ao ouvinte (STRAVINSKY, 1996,

    p. 112); ou, interpretar procurar um significado que est oculto nas notas musicais, sob as

    notas e alm das notas (TEMIANKA apud LAGO, 2011, p. 268). Tambm observamos a

    definio da expresso interpretao em trs dicionrios distintos de termos musicais, no

  • primeiro The new Grove Dictionary, coloca-o como termo usado na linguagem musical com

    referncia compreenso de uma pea musical (DAVIES; SADIE, 2001, p. 497, traduo

    nossa); enquanto, no New Harvard Dictionary of Music, aborda a definio de interpretao

    musical como aspectos da performance de um obra que resultam da realizao particular do

    executante sob as instrues do compositor, como previsto na notao musical (RANDEL,

    1999, p. 399, traduo nossa) e, segundo o Dicionrio Oxford de Msica, expe que o

    mencionado termo o mero ato de execuo, implicando a participao do julgamento e

    personalidade do interprete (KENNEDY, 1994, p. 350). Logo, Lima argumenta:

    Temos na interpretao a ideia da mediao, a traduo, a expresso de um

    pensamento. Portanto, a interpretao musical pressupe por parte do executante a

    escolha das possibilidades musicais contidas nos limites formais do texto e a

    avaliao dessas possibilidades. (LIMA; APRO; CARVALHO, 2006, p. 12)

    A partir desta perspectiva, possvel compreender a interpretao como uma ao

    que precede s aes da performance e execuo, pois, a interpretao , antes de tudo, fruto

    do pensamento (APRO, 2006, p. 25), uma reflexo sobre os caminhos a serem abraados

    para a viabilidade da obra, consequentemente, a execuo seria o ato de por em prtica a

    posio reflexiva tomada na interpretao, colocando a obra em prtica, e a performance o

    desempenho desta execuo.

    Porm, diante das informaes at ento descritas, possvel analisar diversas

    questes que permeiam a essncia conceitual da interpretao musical, consequentemente, os

    procedimentos de preparao e execuo de uma obra. Questes que despertam uma

    complexa problemtica da qual sobrevm os mais importantes aspectos estticos, histricos e

    tcnicos, e que a princpio podemos resumir em trs questes: O que se entende por

    interpretao ou execuo de uma obra musical? Seria uma traduo da obra em sua essncia

    entregue subjetividade daquele que a executa? Ou seria o anseio pela fiel reconstruo da

    vontade do compositor? Tais indagaes nos conduzem a uma resposta bvia, da qual muitos

    optariam seguir como a interpretao ideal, assim por muitas vezes submetendo-se no

    tentame de reconstruir fielmente a idealizao do compositor.

    Neste intento, possvel formular que a interpretao musical encontrasse

    dividida sobre duas subjacentes, a subjetividade interpretativa e a objetividade interpretativa,

  • onde ambas afluem em dois caminhos distintos convergindo numa relao dialtica1

    conflitante sobre a obra musical, uma vez que: se a interpretao estiver especificamente

    norteada em direo a uma viso unificada na objetividade ela , no fundo, somente uma

    aproximao: ela nunca atinge o corao do seu objeto, no faz mais que girar em torno dele,

    deixando escapar a sua essncia [...] e limitando-se a um conhecimento impreciso e

    imparcial (PAREYSON, 2001, p. 224); por outro lado, se a interpretao for estruturada de

    modo singular, sob as impresses pessoais do interprete sobre a obra, ser o reino da

    subjetividade e da relatividade: ela no nos d a realidade do objeto, mas a imagem que ns

    fazemos nele, ou com o sobrepor-lhe as nossas mutveis reaes e, por isso, vendo-o atravs

    de uma lente deformante. (PAREYSON, 2001, p. 225). Em suma, o impasse conflitante

    entre subjetividade versus objetividade na interpretao musical, inserta uma disparidade

    conceitual inerente autenticidade interpretativa, de modo que se permite questionar, Que

    caminho o interprete deve seguir para chegar interpretao ideal? e ainda, Existe de

    fato uma interpretao ideal concernente obra musical?

    A interpretao musical , indiscutivelmente, uma coisa sria [...] j que o interprete

    pode, logo de uma vez to bem levar nas catacumbas do olvido e da indiferena

    humana, a maior das obras primas, como exalt-la e transporta-la ao cimo da

    admirao do pblico, segundo que ele a penetrou ou no, na sua verdadeira e

    profunda significao. (TAGLIAFERRO apud LEITE, 2001, p. 94)

    O elo da objetividade interpretativa repreende a interpretao como expresso

    musical das emoes pessoais e dos sentimentos individuais (DORIAN, 1986, p. 29), em

    respaldo que o interprete no deve por impresses pessoais sobre a obra, de modo que este

    poderia atravs desta atitude distorcer as intenes do compositor, assim, qualquer

    interpretao por mais artstica que seja, no baseada sobre um estudo meticuloso do texto e

    das exigncias do compasso e do ritmo, no pode dar bons resultados nem deixa de ser

    desordenada (TAGLIAFERRO apud LEITE, 2001, p. 94). Do mesmo modo, o compositor

    Igor Stravinsky (1882-1971) delineia argumentaes fundamentando o dever da

    impessoalidade do interprete perante a obra, conotando a objetividade interpretativa como o

    nico caminho coerente a ser adotado, declarando que o talento do executante reside

    precisamente na sua capacidade de ver o que contm em realidade a partitura, e no,

    1 A relao dialtica aqui mencionada coloca em evidencia as questes dialgicas pertinentes s tenses entre

    subjetividade e objetividade interpretativa, assim, expondo a dialtica da interpretao, de forma sistemtica, numa perspectiva semitico-pragmtica, a partir das regras que regem a tenso existente entre as estratgias que

    o autor projeta na prpria obra, de um lado, e as reais interpretaes realizadas pelo [interprete] de outro. (KIRCHOF, 2003, p.184)

  • certamente, em sua deciso de encontrar nela o que gostaria (STRAVINSKY, 1998, p. 75,

    traduo nossa). Assim, o pensamento objetivista de Stravinsky define o papel do interprete

    privando-o da interveno subjetiva, no entanto, possvel observar contradies

    argumentativas ditas por ele mesmo ao que concerne a este papel.

    Para exemplificar tomemos por base o aspecto objetivo da interpretao musical

    de fidelidade partitura. De fato, o interprete s pode realizar os procedimentos de preparao

    e execuo de uma obra se este pr-se em leitura partitura, que em linha gerais, constituda

    de um conjunto de smbolos visuais que transmitem as intenes do [compositor] ao seu

    interprete (DART, 2000, p.03) No entanto, nesta leitura onde reside o problema em

    detrimento ao pensamento objetivista de fidelidade interpretativa partitura, pois, de acordo

    com Dorian (1986, p. 22) alguns elementos interpretativos no podem ser expressados pela

    notao musical, o que torna a partitura um meio incompleto de representar as intenes dos

    compositores, desta forma se torna inevitvel a interveno subjetiva do interprete sobre a

    obra, de tal modo, descreve Stravinsky:

    Porm, por mais que seja escrupulosa a notao de uma pea musical, por mais

    cuidado que se tenha contra qualquer ambiguidade possvel, utilizando as indicaes

    de andamento, nuances, fraseado, acentuao e assim por diante, ela sempre contm

    elementos ocultos que escapam a uma definio precisa. [...] A realizao desses

    elementos , assim, uma questo de experincia e intuio; em suma, do talento

    daquele a quem cabe apresentar a obra. (STRAVINSKY, 1996, p. 112)

    Neste sentido, como ser objetivo a algo que escapa de uma definio precisa do

    que contm em sua realidade? , Stravinsky reconhece as limitaes da partitura, cedendo

    interveno intuitiva do interprete de suprir esses limites. A intuio implica em ter uma

    viso subjetiva (BUITONI, 2007, p. 01), o que pe em contradio a objetividade

    Stravinskiana de fidelidade partitura. Exemplificando acerca de tais limitaes Baremboim

    expe:

    E, Portanto, voc no pode falar de fidelidade. E tentar reproduzir objetivamente o

    que est impresso e nada mais no s impossvel e, portanto, no existe fidelidade , como tambm um ato de covardia, porque significa que voc no se deu ao trabalho de entender as inter-relaes e as dosagens [...] o texto diz

    crescendo; a indicao crescendo est escrita verticalmente em toda a partitura, mas,

    se todos os instrumentos da orquestra comeam o crescendo no mesmo instante voc

    no ouve todos. Evidentemente as trompas, os trompetes e os tmpanos vo cobrir o

    resto da orquestra. Portanto esse conceito fidelidade ao texto na msica muito mais

    relativo [...] no sentido de que se peca por omisso. [...] Em outras palavras, se o

    texto diz crescendo para a orquestra inteira e, como regente, voc deixa todos os

    instrumentos participarem, voc est sendo fiel ao texto, mas peca por omisso:

    omite muitas coisas porque elas no so mais ouvidas. (BAREMBOIM; SAID,

    2003, p. 126)

  • A partitura comporta os aspectos subjetivos e objetivos em sua estrutura, fato

    exemplificado por James Ross (apud WINTER; SILVEIRA, 2006, p. 66), onde a constituio

    rtmica, altura das notas, por exemplo, compreendem os aspectos objetivos, e as marcaes de

    andamento (Allegro, Adgio, etc.), e notaes de dinmicas correspondem aos aspectos

    subjetivos. Assim, a dualidade contida na partitura entre os mencionados aspectos podem

    induzir a subjetividade interpretativa, pois [...] a notao musical, e a nomenclatura utilizada

    junto a ela, uma representao grfica [...] qualitativa dos elementos sonoros, e no

    quantitativa e, assim, a interpretao dessa partitura (notao musical) consequentemente,

    subjetiva (KAYAMA apud WINTER; SILVEIRA, 2006, P. 66).

    Ao imergir no fator da subjetividade interpretativa, Adorno (2004, p. 226-227)

    elucida que no renuncia a mediao subjetiva do interprete como elemento ativo no processo

    construtivo da obra, visto que o interprete enquanto sujeito cognoscente possui variveis

    emocionais e reflexivas diante de determinadas situaes, assim, a composio est sempre

    marcata, do princpio ao fim. Sua objetividade disposio subjetiva, tensa at alcanar o

    aspecto de uma legitimidade humana (ADORNO, 2009, p. 154), ou seja, por mais que o

    intrprete busque traduzir fielmente, na execuo da obra, as condies arquitetadas pelo

    compositor, a obra sempre estar sujeita sua subjetividade no momento da preparao e

    execuo; pois, a subjetividade interpretativa possui, por sua vez, agenciamentos que

    comportam dimenses [...] materiais e mesmo inconscientes. (LABOISSIRE, 2007, p. 97).

    Por conseguinte, Pareyson (2011, p. 224-226) aborda questes bastante

    pertinentes, no que diz respeito, ao valor da intepretao mediante a obra a ser executada, ele

    ressalta que a interpretao possui carter infinito e estar sujeita sempre a uma nova

    idealizao, por isso nunca vai se encontrar acabada e definitiva. A obra em si permite as mais

    variadas interpretaes sem nunca se limitar em nenhuma delas, ou seja, as interpretaes so

    mltiplas, mas a obra continua inalterada em sua essncia. Descreve ainda que diante desse

    fato, nenhum intrprete possui o monoplio sobre a obra, apenas conhecimento em um

    aspecto de sua totalidade. E tal aspecto vai se tornando cada vez mais relevante na medida em

    que o intrprete nos procedimentos de preparao, performance e execuo possui a

    concordncia de procurar analisar suas investigaes interpretativas para conhecer mais

    profundamente a obra. A interpretao, enquanto processo investigativo evidencia-se opinies

    que a cada nova leitura modifica as perspectivas introduzidas, assim como Pareyson expe a

    seguir:

  • O processo de interpretao no fechado, porque logo, sob a solicitao de novos

    pontos de vista, intencionalmente buscados ou casualmente ocorridos, novas

    descobertas premem, uma reviso se impe, e o processo se reabre com toda uma

    nova trajetria de propostas, verificaes, descobertas, revelaes. (ibidem, p. 228)

    A multiplicidade da interpretao, descrita por Pareyson (2001, p. 234), converge

    diretamente na unicidade da obra, pois entre esta multiplicidade encontra-se a pessoalidade de

    cada intrprete, a qual no pode ser tratada como inferior devido seu carter arbitrrio, mas

    sim como nico rgo que o intrprete dispe para penetrar na obra e colher sua realidade

    (idem, ibidem).

    Diante do que foi delineado nesta abordagem podemos inferir a existncia de uma

    pseudo dicotomia entre subjetividade e objetividade inerente a autenticidade interpretativa,

    pois na verdade ambas sempre iro coexistir no intrprete enquanto sujeito cognoscente e na

    obra enquanto objeto passvel multiplicidade das interpretaes. Para exemplificar a

    presente discusso ser feita uma relao fundamentada concernente obra LHistoire du

    Soldat, onde confrontaremos o Stravinsky compositor versus Stravinsky interprete.

    2. SUTE LHISTOIRE DU SOLDAT

    A msica s vezes me aparece em sonhos, mas s em uma ocasio fui capaz de

    anota-la. Isto se deu durante a composio de LHistoire dum Soldat, e fiquei surpreso e feliz com o resultado. No apenas a msica me apareceu, como tambm a

    pessoa que a executava estava presente no sonho. Uma jovem cigana sentada beira

    da estrada. Trazia uma criana ao colo e tocava um violino para entret-la

    (STRAVINSKY; CRAFT, 2010, P. 11)

    Em perodo ainda afligido pela Primeira Guerra Mundial, o compositor das obras

    LOiseau de Feu (1910), Petrushka (1911) e Le Sacre du Printemps (1913), viu-se obrigado a

    reduzir o efetivo orquestral que utilizava nas suas composies em somente sete instrumentos

    solistas, violino, contrabaixo; clarinete, fagote; trompete, trombone e um percussionista, e o

    seu ballet em apenas trs bailarinos, na idealizao de uma composio para um grupo

    itinerante, devido as limitaes econmicas remissivas guerra. Stravinsky se encontrava

    exilado na Sua quando comps a obra LHistoire du Soldat em 1918, sobre libreto de C. F.

    Ramuz (1878-1947). A trama influenciada pelos contos russos, e tambm pela prpria

    situao que o mundo estava vivenciando, descreve a historia de um soldado que recebe

    quinze dias de folga do front, e os utiliza para retornar a seu pas de origem e reencontrar sua

    princesa e sua me, mas, durante o caminho o soldado cruza com o diabo, que lhe oferece em

  • troca do seu violino (o nico bem que possu), um livro que trar riquezas e felicidades. No

    entanto, a concepo da obra em seu desenvolvimento faz-nos supor a vitria do soldado

    sobre o diabo, mas, Stravinsky opta por um final inusitado, onde o soldado vende sua alma ao

    diabo e jamais retorna a sua casa e a ver sua amada. Desta forma, a abordagem da obra foi

    muito oportuna (e mantm-se atual), pois traduziu em msica o acirramento de valores

    maniquestas daquele perodo [...] numa clara aluso ao dos governos tirnicos e

    cerceamento da liberdade na Europa contempornea da obra. (BORM, 2001, p. 133).

    A Histoire du Soldat revela-se como o verdadeiro centro da obra de Stravinsky,

    mesmo pelo fato que dar construo musical ao significativo texto de Ramuz

    conduz aos umbrais da conscincia desta situao. O heri, um prottipo daquela

    gerao de depois da Primeira Guerra Mundial, em cujas filas o fascismo recrutava

    suas hordas prontas ao, fica arruinado porque no acata o mandamento do

    desocupado, isto , viver somente o instante. A persistncia da experincia nas

    recordaes um inimigo mortal dessa autoconservao que alcanada com

    extino de algum. (ADORNO, 2009, p. 148).

    A obra em sua verso completa foi composta para ser narrada, tocada e danada,

    porm, existem duas verses menores elaboradas pelo prprio compositor, que no incluem

    dana e narrao. Verso para violino, clarinete e piano com cinco movimentos e, uma Sute

    que preserva nove movimentos e a instrumentao original, da qual, utilizaremos nesta

    abordagem, e que est estruturada da seguinte forma em relao sua verso completa:

    Tabela 1 - Relao dos movimentos da obra LHistoire Tabela 2 - Relao dos movimentos da verso sute

    du Soldat LHistoire du Soldat

    Fonte: O Autor, 2012.

    Sute LHistoire du Soldat 1 Marcha do Soldado

    2 Msica a beira do riacho

    3 Pastoral

    4 Marcha Royal

    5 Pequeno Concerto

    6 Trs Danas: (Tango, Valsa e Ragtime).

    7 Dana do diabo

    8 Grande Coral

    9 Marcha triunfal do diabo

    Fonte: O Autor, 2012.

    LHistoire du Soldat (narrada, tocada e danada)

    1 Marcha do Soldado

    2 Msica a beira do riacho (msica para cena 1)

    3 Pastoral (msica para cena2)

    Msica a beira do riacho (Reprise 1)

    Msica a beira do riacho

    (msica para cena 3)

    Marcha do Soldado (Reprise)

    4 Marcha Royal

    5 Pequeno Concerto

    6 Trs Danas (Tango, Valsa e Ragtime).

    7 Dana do diabo

    8 Pequeno coral

    9 Cano do diabo

    10 Grande Coral

    11 Marcha triunfal do diabo

  • A escolha da obra Histoire du Soldat para confrontar os aspectos subjetivos e

    objetivos inerentes a interpretao, no se deve apenas ao fato do perodo histrico em qual

    foi composta, mas, a soma deste fator com as inconsistncias averiguadas pelo que foi escrito

    por Stravinsky enquanto compositor e, o que foi posto em prtica pelo mesmo, enquanto

    interprete de sua prpria obra; cruzando as informaes estritamente determinadas por ele na

    partitura da obra em tela, com as trs gravaes da Sute realizadas em 1932, 1954, e 1961

    pelo prprio compositor e, um vdeo que mostra a seo de gravao de 1954.

    Na estreia da obra em 1918, executada em sua verso completa pelo regente

    Ernest Ansermet (1883-1969), foram utilizados os manuscritos originais na execuo. A

    primeira partitura editada da Histoire du Soldat, foi publicada em 1920 pela editora Editions

    des Cahiers Vaudois, porm, apresentava inconsistncias averiguadas pelo prprio Stravinsky,

    como por exemplo, no havia meno do nome do compositor, e na instrumentao havia

    uma flauta e no se fazia aluso ao clarinete e ao trombone. (CARR, 2005, p. 6, traduo

    nossa). Em 1924 publicada pela J.W. Chester Music, uma nova edio, baseada em um

    manuscrito com correes realizadas por Stravinsky em 1920, mas, apresentava

    irregularidades na notao rtmica principalmente na parte da percusso. A edio corrigida s

    foi publicada pela Chester Music em 1987, intitulada de Authorised New Edition (imagem

    1) baseada no manuscrito de 1918 e por correes observadas na partitura de 1924

    (CHESTER MUSIC, 1987, p. III). Esta ultima edio de 1987, a nica que preserva as

    informaes estritamente determinadas por Stravinsky, no manuscrito (1918), para a execuo

    da obra, assim, a teremos como base para confrontar tais informaes com as gravaes

    realizadas pelo compositor.

    Imagem 1 - Capa da J.W. Chester Music

    Authorised New Edition

    Fonte: Chester Music, 1987.

  • Apresentando em sua estrutura sete solistas, que correspondem ao violino,

    contrabaixo e clarinete; fagote, percusso, trompete e trombone; a primeira instruo que

    Stravinsky expe na partitura da obra, concerne disposio destes na orquestra, apesar da

    orquestrao preservar instrumentos representantes de cada naipe, o compositor determina

    uma formao atpica elucidada em uma ilustrao contida na partitura, onde a pequena

    orquestra fica em formao de V (imagem 2), que em relao a posio do regente temos a

    sua esquerda o violino, contrabaixo e trombone, frente do regente somente o fagote e, a

    direita a percusso, trompete e o clarinete.

    Imagem 2 - Disposio da orquestra indicada por Stravinsky

    Fonte: Chester Music, 1987, p. IV.

    Contudo, ao analisarmos as imagens do vdeo elaborado pela Columbia Records

    (imagem 2), durante a seo de gravao em 1954, possvel observar que Stravinsky no

    colocou em prtica o que ele mesmo determinou acerca da disposio dos instrumentistas na

    orquestra, organizando estes da seguinte forma em relao posio do regente (imagem 3): a

    esquerda, violino, fagote e por trs destes o contrabaixo, no centro; trombone e, a direita,

    clarinete e trompete, por trs de toda a orquestra a percusso.

    Imagem 3 -: Disposio da orquestra durante seo de gravao em 1954

    Fonte: Records..., 1954b

  • Para melhor exemplificar a disposio da orquestra empregada durante a seo de

    gravao por Stravinsky, elaboramos uma figura elucidativa:

    Imagem 4 - Figura elucidativa da disposio da orquestra

    durante seo de gravao em 1954.

    Fonte: Autor, 2012

    O ritmo a vertente preponderante que caracteriza toda a obra stravinskyana, o

    que Adorno interpreta como um ndice da qualidade impecvel da msica de Stravinsky.

    (ADORNO apud KOGLER, 2009 p. 81). Assim, o mesmo elucida:

    Ele o primeiro a no ter mais utilizado a percusso para iluminar simplesmente as

    perspectivas harmnicas, mas a ter sido sensvel a todas as nuances de sua

    sonoridade. O fim da Sagrao e o de A histria do soldado permanecem, desse

    ponto de vista, inigualados. A ideia especfica, plenamente concreta, da sonoridade a

    ser obtida alia-se aqui a uma diferenciao extremamente fina do timbre do

    instrumento em A histria do soldado, as de diferentes tipos de caixas. (ADORNO apud KOGLER, 2009 p. 81).

    Em LHistoire du Soldat, Stravinsky utiliza o que se refere de percusso

    mltipla, que por sua vez, constitui uma vertente interpretativa na qual um executante rene

    diversos instrumentos para serem tocados alternada ou simultaneamente por necessidade

    imposta pela obra (MORAIS; STASI, 2010, p. 61). A utilizao desta vertente o reflexo

    das restries adotadas pelo compositor em relao quantidade de executantes, regida pelas

    necessidades econmicas alusivas a guerra. Os instrumentos percussivos exigidos na obra

    correspondem a duas caixas, dois tom-tons, bumbo, pandeiro, tringulo e prato suspenso

    (CHESTER MUSIC, 1987, p. VII) instrumentos tpicos da linguagem do jazz e reunidos na

    ento bateria que emergia nos grupos jazzsticos (MORAIS; STASI, 2010, p. 61). A

    segunda contradio observada referente s indicaes escritas pelo compositor na partitura,

    em relao com o vdeo, est ao que se refere organizao dos instrumentos percussivos.

  • Stravinsky determina esta organizao atravs de uma ilustrao (imagem 5), expondo que os

    instrumentos devem ser alinhados em formao de cruz.

    Imagem 5 - Organizao dos instrumentos percussivos indicada por

    Stravinsky na partitura.

    Fonte: Chester Music, 1987, p. VI.

    Ao analisarmos tais indicaes, possvel observar que nelas no h meno

    referente disposio do pandeiro, de um tom-tom, prato e tringulo, o que reflete em

    detrimento ao pensamento objetivista do compositor, de modo que a ausncia desta

    informao afere a inevitvel interveno subjetiva do interprete na organizao destes

    instrumentos. Do mesmo modo que na execuo da obra durante a seo de gravao da obra,

    no posta em prtica a disposio concernente aos instrumentos percussivos (imagem 6),

    determinada pelo compositor.

    Imagem 6 - Disposio dos instrumentos de percusso durante seo de gravao em 1954

    Fonte: Recording..., 1954a.

    A intepretao musical para Stravinsky, notoriamente ao que se refere a suas

    prprias obras, constituiu para ele uma preocupao, J disse muitas vezes que minha

  • msica deve ser [...] executada, e no para ser interpretada. E vou continuar a dizer isto

    porque nela no vejo nada que exija interpretao (STRAVINSKY; CRAFT, 2010, p. 98).

    . O fator impresso em suas palavras inerente interveno do sujeito enquanto interprete,

    de forma que este poderia distorcer suas reais intenes impostas na obra, assim, para

    Stravinsky a msica deve ser transmitida e no interpretada, porque a interpretao revela a

    personalidade do intrprete e no a do autor, e quem pode garantir que tal executante ir

    refletir a viso do autor, sem distoro?. (STRAVINSKY, 1998, p.75, traduo nossa)

    Apesar de serem averiguadas declaraes contraditrias do prprio Stravinsky alusivas

    interveno do interprete perante a obra (elucidada nesta abordagem no capitulo anterior),

    Stravinsky concerne a suas gravaes a afeio de suplemento interpretativo indispensvel

    msica impressa (idem, 2010, p. 98), pois, de acordo com o prprio compositor (idem, 1998,

    p. 151), o desgnio dessas gravaes eliminar elementos interpretativos advindos do acaso

    relativos subjetividade interpretativa. Assim, Stravinsky expe a respeito de suas gravaes:

    Eu assinei um contrato por vrios anos com a grande Columbia Gramophone

    Company, para a qual fui exclusivamente gravar o meu trabalho, tanto como pianista

    e maestro, ano a ano. Este trabalho muito me interessou, por aqui, [...] eu era capaz

    de expressar todas as minhas reais intenes com exatido. Em consequncia, estas

    gravaes, muito bem sucedidas do ponto de vista tcnico, tem a importncia de

    documentos que podem servir como guia para todos os executantes da minha

    msica. (idem, 1998, p. 150)

    Stravinsky definiu indicaes em LHistoire du Soldat para serem adotadas pelos

    seus interpretes quando a obra for executada em sua verso sute. Eis as indicaes.

    Tabela 3 - Tabela demonstrativa dos compassos a serem omitidos.

    Sute LHistoire du Soldat

    Movimentos Compassos a serem omitidos

    Marcha do Soldado

    10, 62,63 e 87

    Pastoral

    44* ao Fim.

    * Ao executar o compasso 44 retornar da capo,

    finalizando o movimento ao termino do compasso 15.

    Fonte: O Autor, 2012.

    As indicaes correspondem a omisso de compassos em dois movimentos, no

    primeiro, a Marcha do Soldado, deve ser omitido o compasso de numero 10, os compassos 62

  • ao 63 e, o de numero 87; e no terceiro movimento denominado Pastoral, os compassos aps o

    44 devem ser omitidos, e a partir deste, retornar da capo tendo o termino no compasso de

    nmero 14. Ao confrontar as mencionadas indicaes com as gravaes da obra, interpretada

    pelo prprio compositor, observamos inconsistncias em sua execuo com relao ao que ele

    mesmo determinou na partitura.

    Desta forma, na gravao da sute realizada em 1932, Stravinsky no movimento A

    Marcha do Soldado, executa todas as indicaes por ele definidas, no entanto, omite

    compassos dos quais no foram indicados, sendo estes do compasso de nmero 91 ao fim e,

    referente ao movimento Pastoral ele no realiza suas prprias indicaes, sendo o movimento

    executado at o compasso 44. Referente gravao do ano de 1954, a nica discrepncia em

    relao partitura, corresponde a no omisso do compasso de nmero 10 do movimento A

    Marcha do Soldado. Na ultima gravao da sute, realizada por Stravinsky em 1961, ele no

    excuta nenhuma das indicaes referentes aos compassos a serem omitidos em ambos os

    movimentos, porm, retoma a omitir compassos dos quais no foram determinados, estes

    correspondentes (como sucedido na gravao de 1932), aos compassos de 91 ao fim do

    primeiro movimento.

    Outro caso observado nas trs gravaes da Sute LHistoire du Soldat,

    corresponde aos andamentos adotados por Stravinsky na execuo da obra, relacionando-os

    com o determino destes na partitura. Logo, para melhor expor este caso, elaboramos uma

    tabela com os andamentos abordados em cada movimento da sute, com referencia na

    partitura em analogia com as gravaes da obra.

    Tabela 4 - Relao dos andamentos da gravao comparados com as marcas metronmicas grafadas na partitura

    Movimentos

    Partitura Ed.

    Chester Music

    (1987)

    Gravao

    1932

    Gravao

    1954

    Gravao

    1961

    1 Marcha do soldado = 112 = 112 = 122 = 116 2 Msica a beira do riacho = 100 = 92 = 94 = 100 3 Pastoral = 48 (=sempre) = 60 = 52 = 42 4 Marcha Royal = 112 = 112 = 118 = 116 5 Pequeno Concerto = 120 = 118 = 132 = 118 6 Trs Danas

    Tango = 80 = 72 = 76 = 80

  • Valsa = = 184 - 192 = 189 = 180 = 180 Ragtime = = 184 - 192 = 168 = 172 = 168

    7 Dana do Diabo (Incio at o compasso 62)

    = 138 = 132 = 148 = 132

    Dana do Diabo (a partir do

    compasso 62 ao fim)

    = 124 = 142 Nesta gravao, o andamento

    deste

    movimente se

    mantm do incio ao fim.

    8 Grande Coral = 54 = 63 = 58 = 58 9 Marcha Triunfal do diabo = 112 = 114 = 132 = 122

    Fonte: O Autor, 2012. .

    Stravinsky delineia a seguinte argumentao correspondente ao andamento na

    obra musical:

    Acho que toda composio musical deve necessariamente possuir seu andamento

    (pulsao) nico: a variedade de tempi (andamentos) vem dos executantes que

    muitas vezes no esto bastante familiarizados com as composies que executam,

    ou tm um interesse pessoal em interpret-las de uma certa maneira.

    (STRAVINSKY; CRAFT, 2010, p. 97)

    Nesse sentido, como ponto inicial ponderamos o stimo movimento, denominado

    Dana do Diabo. Analisando a execuo do respectivo movimento, sucedida nas gravaes de

    1932 e 1954, verificasse que ocorre uma queda de andamento a partir do compasso 62 ao fim

    do movimento, esta sbita mudana no se encontra determinada na partitura da obra, ao

    mesmo tempo em que, nenhuma das gravaes da Dana do Diabo, Stravinsky segue marca

    metronmica grafada por ele na partitura. Estas inconsistncias fundamentam, novamente,

    colocando em contestao o pensamento objetivista de fidelidade partitura de Stravinsky,

    onde o mesmo enquanto interprete de sua obra no foi fiel ao seu prprio texto. Dentro desta

    perspectiva, Adorno evidencia:

    significativo o fato de que Stravinsky, logo que formulou a pretenso objetiva,

    teve que montar sua armadura com supostas fases pr-subjetivas da msica ao invs

    de fazer evoluir sua linguagem formal, [...] de sua prpria condio de consequncia

    e de sua prpria disponibilidade de material [...]. indiscutvel o esteticismo

    subjetivo da atitude objetiva [...] (ADORNO, 2009, p. 155).

  • De forma mais ampla, em referncia aos demais movimentos da sute, apenas a

    Marcha do Soldado e a Marcha Royal, so executados na gravao de 1932 em concordncia

    com o andamento explicitado na partitura, o mesmo ocorre na execuo de 1961, somente nos

    movimentos Msica a Beira do Riacho e o Tango. A execuo de 1954, nenhum dos

    movimentos executado de acordo com as determinaes metronmicas requisitadas na

    partitura, tendo no movimento A Marcha Triunfal do Diabo uma significativa varivel de 20

    bpm em relao a esta.

    A tabela comparativa dos andamentos entre as gravaes, no s converge

    dubiamente em contradio o que dito por Stravinsky e, o que o mesmo coloca em prtica,

    como tambm estabelece relao ao pensamento de Pareyson (2001, p. 224) de que no h

    interpretao definitiva, onde a obra em cada processo interpretativo [...] reabre-se, e tudo

    recolocado em questo; mesmo aquilo que se conservou da primeira interpretao

    profundamente mudado, acolhido num novo contexto [...] (idem, ibidem). Pode ser levado

    ainda em considerao, o intervalo de tempo entre as gravaes, visto que o contexto

    psicolgico e os valores sociais eram distintos, em cada poca, o que exerce de certa forma,

    influncia sobre as aes interpretativas. Apesar de Stravinsky enquanto interprete no

    executar suas prprias determinaes (como j explicitado), a obra no perde o seu sentido

    diante de suas trs interpretaes, ou seja, a multiplicidade das execues refrata, mas no

    rompe a unicidade e identidade da obra (PAREYSON, 2006, p. 237).

    3. CONSIDERAES FINAIS

    O trabalho que ora se finalizamos partiu da necessidade de confrontarmos

    a Subjetividade e a Objetividade Interpretativas, especificamente na interpretao da msica

    composta a partir do Sculo XX. Nesse sentido optamos pela LHistoire Du Soldat, pea

    impar na nova esttica que comeava a se consolidar a poca. Tambm Stravinsky singular

    nessa confrontao, tanto por ter deixado escritos importantes sobre sua viso da interpretao

    da msica, como por ter atuado como regente de suas prprias composies, o que nos

    possibilitou fazer uma segunda, mas no menos importante confrontao:

    teoria versus prtica.

    Assim, o percurso foi dividido em duas partes: uma de articulao terica, onde

    visualizamos as questes da subjetividade e objetividade luz tanto da filosofia quanto da

    histria e onde termos como interpretao e performance, caros a compreenso do

  • trabalho, so tratados a partir de obras de referncia. A segunda parte detm-se a obra em si e

    tece uma anlise das trs performances registradas pelo prprio Stravinsky em comparao

    com as informaes anotadas nos manuscritos.

    A anlise comparativa das informaes contidas na partitura, e das gravaes do

    prprio autor, nos levam a evidenciar que o ato de execuo de carter objetivo, to defendida

    por Stravinsky, no so uma verdade inquestionvel. Parmetros de andamento e de cortes de

    compassos, no caso da verso sute, foram despeitados, como pode se visualizado nas tabelas

    3 e 4 do presente trabalho.

    Acreditamos que toda a anlise e compreenso do contexto composicional so

    balizadores importantes para o processo de se interpretar a LHistoire Du Soldat, mas uma

    execuo que intencione excluir por completo a mediao do executante (no nosso caso

    especfico, do regente) no factvel. Fatores psico-acsticos, de mediao tcnico

    instrumental, como no caso da organizao dos instrumentos de percusso, terminaro por

    determinar alguma modificao na hora da execuo. Isso no significa que dever haver um

    afastamento do que foi preconizado pelo autor. Mesmo que ocorra a interveno subjetiva do

    interprete em suprir dimenses das quais a partitura no imprime em sua essncia, a

    subjetividade no pode constituir um caminho nico, porque toda obra musical possui

    fundamentaes intelectuais, ou seja, um conjunto de caractersticas particulares que, ao

    serem colhidas e confrontadas, oferecem ao interprete um conjunto satisfatrio de subsdios

    artsticos que, por intermdio dos quais se torna possvel construo de uma interpretao.

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