2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

download 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

of 141

Transcript of 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    1/141

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    Programa de Ps-Graduao em Histria

    DISSERTAO

    A REPRESSO OFICIAL AO JOGO DO BICHO:

    UMA HISTRIA DOS JOGOS DE AZAR EM PORTO ALEGRE

    (1885-1917)

    CARLOS EDUARDO MARTINS TORCATO

    Porto Alegre, julho de 2011.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    2/141

    CARLOS EDUARDO MARTINS TORCATO

    A REPRESSO OFICIAL AO JOGO DO BICHO:

    UMA HISTRIA DOS JOGOS DE AZAR EM PORTO ALEGRE

    (1885-1917)

    Dissertao apresentada como requisitopara obteno do ttulo de Mestre, peloPrograma de Ps-Graduao em Histriada Universidade Federal do Rio Grandedo Sul.

    Professora Orientadora: Dra. Regina CliaLima Xavier.

    Porto Alegre, julho de 2011.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    3/141

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    4/141

    CARLOS EDUARDO MARTINS TORCATO

    A REPRESSO OFICIAL AO JOGO DO BICHO:

    UMA HISTRIA DOS JOGOS DE AZAR EM PORTO ALEGRE

    (1885-1917)

    Dissertao apresentada como requisitopara obteno do ttulo de Mestre, pelo

    Programa de Ps-Graduao em Histriada Universidade Federal do Rio Grandedo Sul.

    Professora Orientadora: Dra. Regina CliaLima Xavier.

    Aprovado em ____ / ____ / 2011

    BANCA EXAMINADORA:

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Luis Antnio Francisco de Souza

    Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho

    ___________________________________________________________

    Prof. Dr. Karl Martin Monsma

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    ___________________________________________________________

    Prof. Dr. Silvia Regina Ferraz Petersen

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Porto Alegre, julho de 2011.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    5/141

    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de iniciar os agradecimentos, seguindo os ensinamentos da vulgata marxista,

    pelas pessoas e instituies que tornaram esse trabalho possvel com seus financiamentos.

    Agradeo, portanto, ao Programa de Ps-graduao em Histria da UFRGS por ter me

    concedido uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    (CNPq), fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa.

    Foram, entretanto, meus pais que me deram todas as condies para conseguir essa

    bolsa. Eles que acreditaram e sempre foram meus fiis financiadores. Por isso, gostaria de

    dedicar esse trabalho aos dois.

    Fundamental para a pesquisa, porm no ligado ao financiamento, so os colegas e os

    professores que me sugeriram fontes. Nesse ponto ningum se compara professora Cludia

    Mauch, pois ela indicou todas os Relatrios Policiais utilizados ao longo do texto. E no

    foram poucos! Tambm gostaria de agradecer ao colega Guilherme Aragon por ter me

    mostrado o caminho dos discursos legislativos. Ao amigo e parceiro de tricolor Fagner Santos

    pela indicao dos debates do Cdigo Civil. Por ltimo, mas no menos importante, colega

    Gislaine por sempre se lembrar dos jogos e dos vadios nas suas pesquisas nos jornais.

    Sabemos que no possvel separar a infraestrutura da superestrutura como

    acreditavam os vulgares marxistas. Por isso gostaria de fazer um justo agradecimento quelesque criaram o caldo cultural onde a dissertao foi forjada.

    Regina Clia Lima Xavier. Tu s minha inspirao! Gostaria que soubesse que levarei

    comigo sua inquietao crtica.

    Os colegas que participaram das discusses da linha de pesquisa em Relaes de

    Dominao e Resistncia sabem a importncia das crticas para o fortalecimento do trabalho.

    Por isso, agradeo a minha orientadora por ter levado a frente essa ideia no momento crucial

    da escrita da dissertao. Aos meus colegas pelas leituras atentas e a disposio ao debate. Em

    especial ao Felipe Bohrer pela discusso sobre os mapas e os territrios de Porto Alegre.

    Gostaria de agradecer aos pesquisadores que fazem parte do Grupo de Trabalho em

    Histria do Crime e da Justia Criminal do RS pelos encontros realizados e os debates

    promovidos.

    Instigante e provocador foi o debate iniciado com o Grupo de Pesquisa Violncia e

    Cidadania, particularmente a oportunidade de participar da I Conferncia Nacional de

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    6/141

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    7/141

    Comendo lista na esquina do pecadoO Nicanor era reserva de bicheiro

    Crioulo bom se dava bem com a curriolaE l na escola dava bola no pandeiro

    Mas derrepente o Nicanor saiu em frenteDesceu o morro

    E botou banca de bacanaO delegado no distrito anda cabreiro

    Porque o Nicanor bicheiroNunca mais entrou em cana

    Ele que tinha um dente sAgora est de dentadura

    No mais garfo de doceiroAgora boca de fartura

    E pra mostrar a toda genteQue tem dente na fachada

    At quando v desastreO Nicanor cai na risadahahahahahahahahahah

    Nicanor Belas Artes Joo Nogueira

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    8/141

    LISTA DE FIGURAS E GRFICOS

    Figura 01 Organizao Administrativa de Porto Alegre em 1901................... .................... 30

    Figura 02 Territrios da zona urbana de Porto Alegre em 1906. ........... ............................. 32

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    9/141

    LISTA DE TABELAS E QUADROS

    Tabela 01 Populao de Porto Alegre por sexo.......... ...................... .............. .................... 28

    Tabela 02 Perfil social dos rus segundo sexo ................................................................... 96Tabela 03 Perfil social dos rus segundo nacionalidade.......... ...................... .......... ........... 98

    Tabela 04 Perfil social dos rus segundo cor da pele ......................................................... 98

    Tabela 05 Resultados dos processos-crimes.......................................................................99

    Tabela 06 Distribuio espacial dos processos-crime.......... ............. .......... ...................... 108

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    10/141

    RESUMO

    A presente dissertao aborda a relao que se estabeleceu entre as prticas dos jogos de azar

    e o papel dessas prticas nos debates pblicos sobre a modernizao. Foram dois tipos de

    fontes primrias analisadas: os discursos legislativos proferidos no campo poltico e as fontes

    da polcia e da justia criminal, estas ltimas retratando a represso s prticas ldicas.

    Percebeu-se que, entre os jogos de azar perseguidos, o jogo do bicho assumiu um lugar de

    destaque no conjunto da documentao. O problema social dos jogos de azar, entretanto,

    remonta ao sculo XIX. Desde essa poca esses jogos se apresentam tanto como incitadores

    de cdigos de virilidade (compartilhados inclusive com a polcia), quanto como um delicado

    problema pblico, pois era imoral o Estado lucrar com o vcio atravs das loterias. O jogo do

    bicho canaliza a ateno das autoridades a partir do final do sculo XIX, graas a sua

    popularidade e a sua abrangncia nacional. Entre 1904-6, ocorreu uma campanha repressiva

    ao jogo do bicho, em Porto Alegre, que colocou em evidncia as formas de controle social

    existentes naquela poca. As mudanas na polcia e na justia criminal promovidas pelo

    governo do Rio Grande do Sul, em fins do sculo XIX, ampliaram o poder de penalizao do

    Estado atravs do fortalecimento das autoridades policiais. Percebeu-se, tambm, que as

    autoridades policiais que comandavam as aes repressivas, posteriormente, se aliaram aos

    banqueiros perseguidos durante a campanha de 1904-6, o que denota a corrupo policial.

    Palavras-chave: jogos de azar; jogo do bicho; polticas pblicas; justia criminal; polcia.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    11/141

    ABSTRACT

    This dissertation addresses the relationship established between the practices of gambling and

    the role of these practices in public debates on modernization. Two types of primary

    sources were analyzed: the legal speeches made in the political field and the sources of police

    and criminal justice, the latter depicting the repression of recreational practices. It was noticed

    that, among the persecuted gambling games, the numbers game (Brazilianjogo do bicho) was

    placed in an outstanding position according to the analyzed documentation. The social

    problem of gambling, however, dates back to the Nineteenth Century. Since that time these

    games are seen both as instigators of codes of masculinity (inclusively shared with the

    police), and as a delicate public issue, since it was immoral for the State to make profit

    through the lotteries. The numbers game became one of the main authorities concerns from

    the end of the Nineteenth Century on due to its popularity and its national

    scope. Between 1904-1906, there was a repressive campaign against the numbers game in

    Porto Alegre (southern Brazil), which highlighted the forms of social control existing at the

    time. The changes in police and in the criminal justice promoted by the government of the

    State of Rio Grande do Sul in the late Nineteenth Century increased the States power

    to penalize by strengthening police authorities. It was also noticed that the police

    authorities who commanded the crackdown later allied themselves with the bankers who were

    pursued during the campaign of 1904-1906, which denotes police corruption.

    Keywords: gambling; numbers game; public policy; criminal justice; police.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    12/141

    LISTA DE ABREVIATURAS

    APERGS - Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do SulPRR - Partido Republicano Rio-grandense

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    13/141

    SUMRIO

    1. INTRODUO ............................................................................................................. 11

    1.1 Apresentao do tema............................................................................................... 111.2 Inquietaes Tericas ............................................................................................... 16

    1.3 Notas sobre a histria poltico-institucional da polcia e da justia criminal no Rio

    Grande do Sul .................................................................................................................... 19

    1.4 Geografia urbana e demogrfica de Porto Alegre.. ....................... ......... .................... 25

    2. CAPTULO 1: OS JOGOS DE AZAR NO RIO GRANDE DO SUL NO SCULO XIX:

    Sua importncia como elemento de sociabilidade e o problema moral da explorao do vcio

    pelo Estado ..........................................................................................................................36

    2.1 Introduo ................................................................................................................ 36

    2.2 Os jogos e as sociabilidades viris: os limites do policiamento ........... ............. ......... .. 37

    2.3 As loterias e o dilema moral da explorao do vcio pelo Estado .......... .................... 42

    2.4 Os jogos de azar e a Repblica ................................................................................. 52

    2.5 Concluso................................................................................................................. 58

    3. CAPTULO 2: O ESCANDALOSO JOGO DO BICHO: A historiografia, a trajetria dojogo do bicho na capital federal, as primeiras manifestaes desse jogo em Porto Alegre e as

    possibilidades de controle na dcada de 1890....................................................................... 60

    3.1 Introduo ................................................................................................................ 60

    3.2 O jogo do bicho: histria e historiografia. ................................................................. 61

    3.3 O jogo do bicho em Porto Alegre no final do sculo XIX e incio do sculo XX....... 65

    3.4 Os mecanismos de controle social utilizados na represso oficial............... ............... 71

    3.5 Concluso................................................................................................................. 84

    4. CAPITULO 3: A CAMPANHA OFICIAL CONTRA O JOGO DO BICHO (1904-1906):

    As mudanas legais e o fortalecimento da autoridade policial; capito Orlando Motta e o

    modo justiceiro de ao policial; o banqueiro Joo Serro e os limites do proibicionismo. ... 85

    4.1 Introduo ................................................................................................................ 85

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    14/141

    4.2 A lei Alfredo Pinto: ampliao do poder policial ...................................................... 86

    4.3 A reforma judiciria do Rio Grande do Sul: o Cdigo de Processo Penal de 1898..... 91

    4.4 A campanha oficial contra o jogo do bicho (1904-1906) e a atuao do capito

    Orlando Motta.................................................................................................................... 96

    4.5 Os limites do proibicionismo: a corrupo policial e os debates sobre direitos

    individuais no Cdigo Civil.............................................................................................. 107

    4.6 Concluso............................................................................................................... 122

    5. CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 123

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.......................................................................... 127

    6.1 Fontes Primrias..................................................................................................... 1276.1.1 Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul........................ .................. 127

    6.1.2 Arquivo Histrico do Rio Grande do Sul ....................................................... 129

    6.1.3 Arquivo Histrico Moyses Velhinho................. ......................................... .... 129

    6.1.4 Biblioteca da Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.......... 129

    6.1.5 Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do

    Sul 130

    6.1.6 Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS)........ ......... 130

    6.1.7 Internet ..........................................................................................................130

    6.2 Bibliografia ............................................................................................................ 131

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    15/141

    11

    1. INTRODUO

    Tratei de expressar com o vermelho e o verde as

    terrveis paixes humanas (...) o caf um lugar

    onde as pessoas podem se arruinar, enlouquecer

    ou cometer um crime, definiu em O caf de

    noite (1888). Vicente Van Gogh.

    1.1 Apresentao do temaNo dia 14 de novembro de 2010, o jornal Correio do Povo divulgou matria sobre o

    carter dos jogos ilegais em Porto Alegre e no Brasil. A reportagem especial abordou o

    problema a partir de inmeras frentes: mostrou o drama dos viciados; as tticas usadas pelos

    proprietrios desses estabelecimentos para enganar a Polcia; o esforo despendido pelo

    Ministrio Pblico; os projetos de lei que esto sendo discutidos sobre o assunto; bem como, a

    comparao com a situao da Inglaterra e dos Estados Unidos.

    O leitor leigo pode estranhar o fato de um trabalho de histria que tratar do sculoXIX e incio do sculo XX comear com a enunciao de um problema social contemporneo.

    O historiador atento s vicissitudes do trabalho histrico ficar tentado a apontar o possvel

    anacronismo de comparaes entre sociedades com mais de cem anos de diferena. Sensvel a

    todas as dificuldades desta proposta mostrar-se- que os problemas contemporneos so frutos

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    16/141

    12

    das limitaes de um projeto penal que possu constituio nos fundamentos do Estado

    moderno.

    No Brasil, os ltimos vinte anos foram marcados pela instaurao de um ordenamento

    social baseado nos preceitos democrticos. Promulgou-se a Constituio Cidad, em 1988,

    porm logo se percebeu que a democracia ultrapassa a mera participao poltica nos ritos

    eleitorais. So vrios os entraves que ainda impedem que as polticas pblicas sejam

    orientadas pelo respeito e pela promoo da agncia. 1 Mais do que uma prerrogativa escrita

    em um cdigo ou uma dimenso do direito, ela uma prtica e como tal s pode ser

    verificada a partir de experincias concretas.

    Os ndices apontam para a proliferao da violncia em diversos espaos sociais,

    invertendo a tendncia do processo civilizador evidenciado por Norbert Elias. As explicaes

    para esse fenmeno so variadas: fragmentao social fruto das polticas de segregao,precarizao do trabalho, crise dos mecanismos de controle sociais tradicionais (famlia,

    escola, fbricas, religio, justia criminal), entre outros (SANTOS, 2004).

    A incapacidade demonstrada pelo Estado em dar uma resposta ao problema da

    violncia na sociedade e a seletividade do sistema penal voltado aos segmentos pobres e

    estigmatizados resulta na perda de legitimidade das instituies responsveis pela

    segurana. O sistema poltico no inerte a este cenrio, buscando reagir com propostas de

    mudanas. Essas propostas, entretanto, so feitas de forma bastante fragmentada e na maioria

    das vezes so motivadas pelo clamor da opinio pblica amplificada pela atuao da grande

    mdia. Sem levar em conta as variveis que provocam as situaes de violncia, a resposta

    comum do poder pblico o aumento da punitividade atravs do recurso penal que

    corresponde ao aumento das penas e diversificao das condutas sociais proibidas.2

    1 A maioria dos estudos polticos sobre a democracia se limita a analisar o regime poltico e suas instituies.Segundo ODonnell, o perigo de ampliar o conceito de democracia demasiadamente reside na indeterminao

    conceitual. Para evitar isso, ele prope como parmetro da anlise uma concepo de ser humano como agente.Ver. ODONNELL, Guillermo. Notas sobre la democracia en Amrica Latina. In: ODONNELL, Guillermo(org). La Democracia en America Latina: El debate conceptual sobre la democracia. New York: Programa de lasNaciones Unidas para el Desarrollo, 2004, p.11-82.2 O recurso s normas penais para solucionar os conflitos pode ser verificado na legislao corrente. No Brasil,so exemplos destes recursos a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei de combate do crime organizado. Ver:AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Tendncias do controle penal na poca contempornea: reformas penais noBrasil e na Argentina. So Paulo em Perspectiva. v.18, n.1, p.39-48, 2004.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    17/141

    13

    A reportagem sobre a ilegalidade dos jogos de azar que abre essa introduo no foi

    publicada ingenuamente, pois tramitava em fase final na Cmara dos Deputados um projeto

    de Lei que visava legalizar os jogos de azar. Menos de um ms depois desta publicao, o

    polmico projeto foi levado para votao. Os acalorados debates acrescidos de manifestaes

    contundentes do Ministrio Pblico e da Polcia Federal contra o projeto foram decisivos para

    sua rejeio. A histria no se repete, mas determinados fenmenos sociais so recorrentes:

    optou-se novamente pelo proibicionismo para resolver esse problema social.3

    A histria que ser apresentada nas linhas que seguem ocorre em um cenrio

    enormemente distinto deste que foi anunciado acima, porm apresenta um aspecto de inegvel

    continuidade. Veremos que as atribuies legais dos delegados, o funcionamento do

    judicirio, as estratgias de defesa das pessoas, as tenses originadas das aes policiais e os

    discursos que fundamentaram a resposta estatal ao problema dos jogos de azar possuem as

    particularidades prprias da sociedade do sculo XIX e incio do sculo XX. Porm, a

    despeito disto tudo, a opo pelo recurso penal foi, e continua sendo, a maneira usual de

    resolver os problemas decorrentes da existncia de prticas sociais no adequadas

    modernidade.

    O tema central da presente dissertao a relao entre a prtica dos jogos de azar e o

    seu papel nos debates pblicos sobre a modernizao do Brasil, especificamente Porto Alegre.

    A partir desse interesse se realizou uma pesquisa exploratria na coleo Processo-crime

    Tribunal do Jri, disponvel para consulta no Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande doSul (APERGS), para descobrir possveis inseres dos jogos de azar no mbito da Justia

    Criminal. Nessa pesquisa foram contabilizados 1.398 processos-crime, entre 1856-1910,

    correspondendo totalidade dos processos-crimes da coleo analisada no perodo

    delimitado. Ao longo de toda a srie analisada, foram encontrados 48 processos-crimes

    envolvendo jogos de azar. Entre 1904-05, foram encontrados 29 processos-crimes contra o

    3 Projeto de lei disponvel em:

    Acesso em: 01 fev. 2011.

    Discusses do projeto disponvel em:

    Acesso em: 01 fev. 2011.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    18/141

    14

    jogo do bicho, nmero que representa aproximadamente 60% das incidncias desse tipo de

    crime em toda a srie analisada.

    O resultado encontrado trs alguns questionamentos. Por que ocorreu essa

    concentrao de processos-crimes no perodo entre 1904-5? Qual foi o contexto social e

    poltico que permitiu a insero dessa prtica no mbito da Justia Criminal? Quem eram as

    pessoas levadas a julgamento? Quais foram os discursos que permitiram a definio dos jogos

    de azar como um problema social? Quais as solues utilizadas para resolver esse problema?

    Na tentativa de solucionar esses problemas se avanou na pesquisa emprica por dois

    caminhos: Por um lado, se buscou novas ocorrncias de processos-crimes na coleo

    Processo-crime Porto Alegre do APERGS. Foram vasculhadas 731 referncias de

    processos-crimes e encontradas 19 ocorrncias de jogos de azar.4 Por outro lado, a partir da

    legislao citada no interior dos processos-crimes, se procurou as legislaes e as discussesocorridas no mbito legislativo que tinham relao com o tema de pesquisa.

    A pesquisa emprica descrita acima teve um acrscimo inestimvel proveniente das

    inmeras indicaes de fontes feitas pelos colegas de profisso. Foram graas e esse

    acrscimo que se incorporou s discusses o projeto de proibio das loterias (1885) e o

    debate sobre a incluso do tema dos jogos de azar no Cdigo de Civil (1905). Foram graas

    aos Relatrios Policiais5 selecionados e cedidos pela professora Claudia Mauch que foi

    possvel estender a anlise da Justia Criminal para a Polcia. Essas e outras indicaes foram

    fundamentais na definio do universo documental da pesquisa e no alcance da anlise

    realizada.

    As fontes localizadas no deixam dvida que a campanha repressiva contra o jogo do

    bicho, realizada em Porto Alegre, entre 1904-5, no teria sido possvel se no fosse a

    tradicional preocupao sobre a influncia dos jogos de azar na populao. A prtica de jogos

    de azar est ligado ao cio e capacidade de usar o tempo e o corpo de maneira autnoma.

    Ao longo da histria da humanidade possvel perceber que o usufruto do cio era um dos

    4 Esta coleo possui algumas particularidades que dificultam o rastreamento dos registros. Seus cadernos dereferncia no esto em ordem cronolgica e abarcam longos perodos: os cadernos pesquisados(1,18,31,38,39,42) correspondem processos-crimes diversamente distribudos entre os anos de 1848-1958.5 Relatrios Policiais foram institudos com o Cdigo de Processo Penal do Rio Grande do Sul (1898) parasubstituir os Inquritos Policiais. Na prtica, a diferena entre eles bastante sutil.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    19/141

    15

    principais sinais de distino das classes dominantes (BENATTE, 2002, p.182-186). Foi

    somente com a ascenso da sociedade burguesa que o trabalho passou a se tornar valor

    essencial na constituio social, assim incluindo tambm as elites (BENATTE, 2002, p.110-

    113). Essa valorizao do trabalho foi fundamental para a constituio do jogo como um

    problema social (BENATTE, 2002, p.192-194).

    Objetivar-se tambm reconstituir o contexto social e poltico que permitiu a definio

    dos jogos de azar como um problema social, tomando como marco inicial os debates na

    Assemblia Legislativa sobre o projeto do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) de

    proibio das loterias estaduais em 1885.

    Conforme veremos, a campanha repressiva que ocorreu em 1904-5 s foi possvel

    graas a uma srie de mudanas institucionais, feitas entre 1890-1900, que ampliou a

    autoridade policial. O projeto poltico republicano, representado pela superao da escravidoa partir da emergncia do cidado, precisa ser compreendido pelas prticas e pelas

    experincias sociais. A autoridade era percebida como libertria em alguns contextos, pois era

    necessria em locais onde as pessoas eram consideradas incapazes de exercer sua autonomia

    (COOPER; HOLD; SCOTT, 2005, p.58-74).6

    O exerccio da autoridade, durante os anos de 1904-5, na campanha repressiva contra

    o jogo do bicho gerou resistncias nas esferas jurdica, social e poltica. O uso excessivo da

    fora e as constantes violaes de direitos individuais que acompanhavam as aes policiais

    geraram tenses importantes, decretando a falncia do recurso Justia Criminal como meio

    de solucionar esse problema.

    A experincia adquirida nessa campanha estatal contra o jogo do bicho gerou uma

    situao paradoxal: por um lado, percebe-se a emergncia de princpios liberais no mbito da

    justia, percebidas nos debates para elaborao do Cdigo Civil; por outro lado, o controle do

    jogo por parte da polcia adquire uma nova configurao, baseada em arranjos extralegais

    com os empresrios do jogo. O Capito Orlando Gaudis Ferreira da Motta, responsvel pelas

    6 Os autores indicados problematizam essa questo a partir do contexto do Haiti.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    20/141

    16

    aes de rua na campanha repressiva de 1904-5, ascende na carreira burocrtico-militar:

    promovido a Major e a Delegado, especializado nas questes do vcio.7

    Assim, os debates ocorridos em torno da elaborao do Cdigo Civil e os novos

    arranjos entre os policiais e os banqueiros, percebidos no ano de 1916, tambm se tornam

    importantes referncias para a anlise proposta. Assim, se tomar como marco temporal final

    da presente dissertao o ano de 1917, data da promulgao do Cdigo Civil.

    O mago das dificuldades em realizar o projeto de codificao do direito civil no

    Brasil eram as disputas em torno da definio do conceito de cidadania. Essas dificuldades,

    presentes em todos os pases da poca que buscavam edificar uma ordem liberal, tiveram no

    Brasil como fator complicador o papel que a populao pobre, especialmente os africanos e

    seus descendentes, teria na sociedade moderna que se constitua. Outros temas, entretanto,

    tambm tiveram importncia nos debates em torno do Cdigo Civil, como a necessidade de seestabelecer registros civis, a caracterizao das relaes familiares, o status jurdico das

    mulheres, etc (GRINBERG, 2002, p.318-320). A presente dissertao pretende demonstrar

    que tambm a relao do Estado perante a prtica dos jogos de azar foi tema polmico no

    contexto de elaborao do Cdigo Civil.

    Buscar-se- apresentar, abaixo, algumas discusses tericas que serviram de

    inspirao para a presente dissertao. Faz-se necessrio tambm oferecer ao leitor uma breve

    introduo sobre o contexto social, poltico e institucional do Rio Grande do Sul e,

    especificamente, de Porto Alegre.

    1.2 Inquietaes TericasA abordagem do tema apresentado buscou dialogar com algumas discusses

    promovidas por Michael Foucault nos cursos que tratam sobre a governamentalidade

    (FOUCAULT, 2008(a); FOUCAULT, 2008(b)), particularmente os temas da razo de Estado

    e as tecnologias de poder que agem sobre as populaes urbanas (mecanismos jurdicos,disciplinares e de segurana). (FOUCAULT, 2008(a), p.315-488; FOUCAULT, 2008(b),

    7 Pouco se sabe sobre a trajetria social de Orlando Gaudis Ferreira da Motta e a Delegacia que ele atuava. Osindcios encontrados sobre esse agente a Delegacia citada sero apresentados ao longo da dissertao.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    21/141

    17

    p.03-103). As fontes analisadas por este autor foram so os tratados polticos e filosficos, dos

    sculos XVI, XVII, XVIII e XIX, escritos nos crculos de governo por diminutas elites.

    Tambm se destaca a documentao diplomtica e os manuais de polcia elaborado nas

    instituies de ensino superior alem durante no sculo XVII. Por ser uma anlise circunscrita

    aquele contexto, ela serve apenas como inspirao para algumas problematizaes desta

    dissertao.

    Naquele contexto europeu, se desenvolveram instituies que crescentemente

    ampliaram o regramento social no interior dos Estados. Os mecanismos de poder

    desenvolvidos seguiam uma razo de Estado preocupada em aumentar sua capacidade de

    concentrar recursos, graas s presses que essas comunidades polticas sofriam no campo

    diplomtico-militar voltado para o exterior (FOUCAULT, 2008(a), p.338-410; FOUCAULT,

    2008(b), p.425-426). Interessante perceber no que se refere ao complexo diplomtico-militar

    que o Brasil tambm se colocava como uma entidade poltica que projetava um futuro de

    influncia na poltica internacional.

    Segundo Foucault, a razo de Estado (necessidade de concentrar recursos) era comum

    aos diversos pases europeus, porm o problema da maximizao das foras internas atravs

    da polcia se fez de maneiras diferentes em cada contexto (FOUCAUL, 2008(a), p.425-426).

    No Brasil, a polcia, criada no Rio de Janeiro, em 1808, desenvolveu caractersticas singulares

    a partir da adoo de modelos europeus (HOLLOWAY, 1997, p.22-23).

    No contexto europeu, no sculo XVII, apesar das diferenas locais, a polcia foi

    pensada como instituio responsvel por mobilizar os recursos internos disponveis no

    sentido de integrar as atividades das pessoas residentes a acumulao de recursos, tendo em

    vistas competio internacional (FOUCAULT, 2008(a), p.433-434). Tendo como objeto

    fundamental as formas de coexistncia entre as pessoas, toda a sociabilidade ser de interesse

    da polcia. No sistema econmico e social desenvolvido no contexto clssico europeu, a

    polcia tornou-se um conjunto de tcnicas que foravam as pessoas a viverem, a coexistirem e

    a se comunicarem de maneira produtiva (FOUCAULT, 2008(a), p.440-441).

    Percebe-se que as atribuies da polcia so mais amplas do que aquelas que hoje a

    atribumos, pois suas atividades no podem se reduzir apenas ao controle da criminalidade e

    das desordens. Incluem-se no rol de atribuies policiais a organizao da a mo de obra, o

    controle da circulao de pessoas e mercadorias, a sade fsica e moral das pessoas. Um

    modelo de sociedade policial levado ao limite pressupe a interveno do Estado em amplos

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    22/141

    18

    aspectos da vida dos homens a partir da tica da disciplina e da regulao (FOUCAULT,

    2008(a), p.454-456).

    Desde o final do sculo XVIII, o modelo de governo policial recebe inmeras crticas

    no que se refere sua capacidade de promover o correto crescimento do poder do Estado. Os

    economistas foram os pioneiros no rompimento da soberania policial, graas as suas crticas

    no modo como a conduo econmica era feita. Segundo os economistas, a construo das

    condies para a livre circulao das mercadorias era um modelo de gesto econmica mais

    adequada para alcanar o fortalecimento econmico do Estado. Era preciso substituir a ciso

    entre sditos e soberano, entre aqueles que gozavam de liberdade reservada e aqueles que

    deviam se submeter, para introduzir a idia de agenda de governo, ou as aes necessrias

    construo do ambiente favorvel circulao de riquezas e de mercadorias. O governo no

    podia ser uma prtica imposta aos governados pelos que governam, mas uma prtica que fixa

    a posio e a definio de cada um diante dos outros e em relao aos outros. O objetivo final

    do governo no seriam os sujeitos e sim os seus interesses (FOUCAULT, 2008(b), p.61-64).

    Ao trazer a reflexo de Foucault sobre o contexto europeu no se pretende aplic-la a

    realidade estudada. Apenas se pretende destacar que possvel perceber nas discusses

    legislativas utilizadas na delimitao temporal apresentada anteriormente alguns aspectos que

    remetem forma de perceber o governo das pessoas. A necessidade de se proibir e de se

    disciplinar a prtica de jogos de azar, expressas nos debates legislativos de 1885, so

    prximas as preocupaes do governo policial. Da mesma forma, a insero dos jogos nocampo jurdico civil foi sustentada por uma concepo de governo que destacava a

    inconvenincia da ao demasiadamente reguladora da polcia.

    preciso deixar claro, entretanto, que no se trata de supervalorizar a ao das elites.

    As mudanas que ocorrem nos diversos campos da vida poltica e social so resultado de um

    jogo incessante entre as tcnicas de poder implementadas e as reaes (resistncias) a essas

    tcnicas. Acredita-se que o estudo dos controles estabelecidos sobre os jogos de azar pode

    contribuir para compreenso dessas dinmicas.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    23/141

    19

    1.3 Notas sobre a histria poltico-institucional da polcia e da justia criminalno Rio Grande do Sul

    O papel dos jogos de azar nos debates pblicos sobre a modernizao precisa ser

    compreendido, tambm, dentro dos conflitos gerados pela tentativa precoce de edificao deuma sociedade liberal no Imprio do Brasil e pelas especificidades das instituies

    republicanas no Rio Grande do Sul.

    A influncia da escola clssica, derivada dos princpios bsicos do pensamento

    jurdico iluminista (como a igualdade dos indivduos perante a lei, o livre-arbtrio, a

    responsabilidade moral pelos atos praticados e a punio fixa e proporcional ao crime

    cometido) so marcantes no Brasil desde a promulgao do Cdigo Penal, de 1830, e do

    Cdigo de Processo Penal, de 1832. O Brasil foi o primeiro pas da regio latino-americana a

    ter um cdigo penal autnomo, influenciando, assim, os pases vizinhos. Percebe-se que estes

    cdigos eram bastante avanados, em termos liberais, se comparado com os congneres

    europeus daquele perodo (CAULFIELD, 2000, p.57-58).

    As intenes expostas na legislao encontraram enormes obstculos para se

    concretizem na prtica, pois tanto as normas sociais quanto as legislaes civis diferenciavam

    os indivduos com base no gnero, na raa ou nas condies sociais. A prova dessa

    dificuldade pode ser percebida nos sucessivos fracassos encontrados nas tentativas de

    codificar o direito civil durante todo o sculo XIX (CAULFIELD, 2000, p.57-58).

    Essa legislao liberal e descentralizadora, caracterstica do perodo ps-

    independncia, sofreu alteraes importantes com a Reforma Judiciria de 1841. Ela inseriu a

    figura das autoridades policiais nomeadas diretamente pelo governo central na administrao

    local, integrando o governo central e com os chefes e os polticos locais (KOERNER, 1998,

    p.34). Alm disso, ela uniu na figura das autoridades policiais tanto o poder de polcia quando

    o poder de julgamento, fato inconcebvel na perspectiva liberal. Pela primeira vez, foi

    legalmente reconhecido o direito de intromisso do poder pblico na resoluo dos conflitos

    privados (SOUZA, 2010, p.41-42). A necessidade de reformar a legislao de 1841 foi temacorrente em vrios programas ministeriais. O Partido Liberal era o mais crtico, argumentando

    que essa legislao consagrava a centralizao poltica, sujeitava os magistrados ao executivo

    e confundia a polcia com a justia (KOERNER, 1998, p.81-82).

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    24/141

    20

    Esse quadro legal somente ser alterado, em 1871, com a Reforma Judiciria. Essa

    reforma foi aprovada apenas oito dias antes da Lei do Ventre Livre e estava ligada ao projeto

    amplo de abolio gradual da escravido. A emancipao dos escravos devia ser

    acompanhada por medidas que reforassem a autoridade como meio de manter a ordem

    pblica e de obrigar os libertos, os vadios e os vagabundos ao trabalho (KOERNER, 1998,

    p.82-87). Assim, por um lado, a Lei do Ventre Livre estendeu a interveno judicial nas

    relaes entre escravos e senhores, com vrios casos favorveis aos cativos, por outro lado, a

    Reforma Judiciria restringiu a interveno dos magistrados na esfera criminal, que se

    manteve sob controle das autoridades locais (juizes da paz e policiais) (KOERNER, 1998,

    p.113-114).

    A Reforma de 1871 provocou algumas mudanas importantes na competncia policial.

    Na tentativa de separar o poder de polcia do poder de julgamento, algumas atribuies

    judiciais que eram da rea policial a partir de 1841 como a aplicao das posturas

    municipais e o julgamento dos crimes contra os costumes foram atribudas aos juzes da

    paz. Foi tambm criado o cargo de promotor pblico, objetivando separar a figura do

    acusador do juiz (KOERNER, 1998, p.104).

    A grande novidade da reforma de 1871, entretanto, foi a criao do inqurito policial.

    Atriburam-se as autoridades policiais competncia para proceder em seus distritos s

    diligncias necessrias para verificar os crimes comuns. Depois de feito, este relatrio deveria

    ser enviado ao promotor pblico, que ento faria a pronncia dos acusados para novamenteescutar os depoimentos. Dessa forma, o processo de formao da culpa ficou duplicado, sendo

    a primeira parte feita pela polcia e a segunda pela justia. O resultado desse modelo

    institucional a preponderncia da verso policial na formao da culpa e o afastamento do

    controle judicial sobre a legalidade dos procedimentos policiais(KOERNER, 1998, p.104-

    107).

    A despeito das vrias mudanas implementadas, pouco se alterou a perspectiva dos

    homens livres e pobres, pois as garantias civis dessa parcela da populao continuaram

    suspensas. Essas pessoas estavam sujeitas a controles policiais avaliados pelo critrio da

    prpria autoridade policial. Os magistrados profissionais somente intervinham nos recursos ou

    graus extraordinrios, como na questo do habeas-corpus, prprias das elites (KOERNER,

    1998, p.113-116).

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    25/141

    21

    Os mecanismos jurdicos descritos acima foram pensados, principalmente, como meio

    de intervir na populao com o intuito de resolver o problema da mo de obra. preciso ter

    em mente, entretanto, que o controle policial projetado em mbito federal era adaptado para

    soluo de diversos conflitos locais e manuteno da ordem pblica.

    O modelo jurdico-institucional inaugurado em 1871 perdurou at a queda do regime

    monrquico sem modificaes. A mudana de regime poltico significou, para o judicirio, o

    fim de algumas garantias dos juzes e a conseqente subjugao dos magistrados das

    instncias inferiores aos poderes executivos estaduais. Isso possibilitou a cada Estado um

    encaminhamento particular frente aos problemas da mo de obra. Por outro lado, o governo

    federal reservou o direito de nomear os magistrados das instncias superiores, responsveis

    pelos conflitos entre as elites (KOERNER, 1998, p.168-173). A forma de organizao do

    poder judicirio foi mantida na passagem do Imprio Repblica, pois essa forma garantia o

    controle dos magistrados pelo governo, agora em mbito estadual (KOERNER, 1998, p.210-

    217).

    O caso do Rio Grande do Sul uma exceo, pois a organizao das instituies da

    Justia e o acesso aos cargos polticos na Repblica foi substancialmente diferente dos demais

    estados do pas. Isso ocorreu graas trajetria poltica dos republicanos, marcadas pelas

    dificuldades de se consolidarem no poder. O resultado foi uma organizao institucional

    altamente autoritria e personalista.

    A principal dificuldade dos republicanos em se consolidarem no poder era fruto da

    fora do partido liberal e dos ideais liberais no Rio Grande do Sul. Desde o final da

    Revoluo Farroupilha (1835-45), o Partido Liberal foi dominante na cena poltica gacha.

    Nos momentos de hegemonia conservadora no cenrio nacional, o partido liberal se dividia

    entre radicais e moderados, os segundos mais inclinados a contribuir com o centro do poder.

    Os primeiros republicanos provinham da intelectualidade urbana e se associavam ao partido

    liberal em um primeiro momento (1870-1881) (PACHECO, 2006, p.141-143).

    A aproximao dos republicanos com os liberais muda, em fins de 1870, quando opartido liberal que ascende ao poder no consegue corresponder s expectativas geradas. A

    crise de legitimidade liberal coincide com o retorno de vrios jovens iniciados no

    republicanismo no interior da Faculdade de Direito de So Paulo. Esses jovens, descendentes

    das elites polticas do Rio Grande do Sul, eram crentes no cientificismo e desejavam a

    modernizao e a transformao da sociedade, em consonncia com as teorias evolucionistas

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    26/141

    22

    em voga na Europa daquele perodo. Foi a unio dos republicanos ligados ao partido liberal

    com os republicanos provenientes de So Paulo que possibilitou a fundao do Partido

    Republicano Rio-grandense (PRR) em fins de 1881 (PACHECO, 2006, p.143-148).

    Os republicanos gachos que se formaram na Faculdade de Direito de So Paulo

    trouxeram daquela experincia duas importantes formas de organizao e de mobilizao

    poltica que foram fundamentais para o sucesso poltico desse grupo: clubes polticos e

    debates em jornais. Os clubes republicanos foram se multiplicando depois da formao do

    PRR at terem sedes em todas as cidades gachas. Esse modelo de organizao partidria foi

    responsvel pela enorme disciplina da sua militncia, fato que permitiu aos republicanos um

    impacto poltico maior do que sua representao social. Apenas trs anos aps a fundao do

    PRR, ele conseguia eleger vereadores em vrias cidades e Assis Brasil para a Assemblia

    Provincial (PACHECO, 2006, p.148-149).

    O PRR conheceu plena ascenso durante os anos de 1880, tornando-se o segundo

    partido mais votado na eleio de 1889. Quando o levante nacional contra a monarquia foi

    instaurado, os partidrios republicanos estavam de prontido para tomar o poder dos liberais.

    A posio hegemnica do Partido Liberal, ao longo da dcada de 1880, propiciou a curiosa

    aproximao de republicanos e de conservadores no cenrio poltico do Rio Grande do Sul

    (PACHECO, 2006, p.149-152).

    A base social reduzida dos republicanos foi superada pela organizao e pela

    disciplina superior do PRR. A ameaa poltica representada pelos antigos liberais motivou a

    promulgao de uma constituio centralizadora em 1891, prevendo enormes poderes ao

    chefe poltico estadual. Esses poderes foram usados tanto para silenciar a oposio quanto

    para abafar novos quadros do PRR, perpetuando, assim, algumas lideranas no poder. A

    intransigncia apresentada pelos novos governantes definiu o afastamento de vrias lideranas

    republicanas, identificadas com o liberalismo, do PRR e o recurso, por parte da oposio, s

    armas como meio de contestar o poder estadual (AXT, 2004, p.305-307).

    Desde a proclamao da Repblica, os liberais, at aquele momento a principal forapoltica do estado, reagiram com firmeza ao seu afastamento do poder. Os conflitos foram

    ganhando maiores propores at desembocarem em uma guerra civil, conhecida como

    Revoluo Federalista (1892-1895). A vitria dos republicanos, com o apoio do exrcito

    nacional, possibilitou a montagem de um aparato burocrtico e militar capaz de consolidar o

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    27/141

    23

    novo regime e perpetuar o PRR no poder durante toda a primeira Repblica (MAUCH, 2004,

    p.39-42).

    O governo republicano do Rio Grande do Sul baseava seu poder: na centralizao do

    poder poltico nas mos do Presidente do estado, cuja autoridade constitucional lhe dava

    poderes ditatoriais; na frrea disciplina partidria; na existncia de um corpo militar

    permanente, Brigada Militar, diretamente subordinada ao Presidente do estado (MAUCH,

    2004, p.42-43).

    O processo de consolidao dos republicanos no poder tambm passou por uma

    alterao na estrutura policial e na estrutura jurdica do Estado. A polcia foi reorganizada

    com a lei n11 de 04/01/1896 e dividida em duas corporaes: polcia administrativa,

    responsvel pelo policiamento extensivo e subordinada aos Intendentes municipais, e a polcia

    judiciria, responsvel pela investigao dos crimes j ocorridos e subordinada s autoridadesestaduais. Alm de subordinada aos Intendentes, a polcia administrativa tambm era

    subordinada a polcia judiciria e, nos casos de falta de policiais, poderia ter acrscimo de

    quadros da Brigada Militar (MAUCH, 2004, p.165-172).

    Essa estrutura jurdica-poltica conferia ao Chefe de Polcia uma importncia

    extraordinria. Cabia a ele a incumbncia de coordenar e manter a ordem pblica, porm suas

    funes no se esgotavam nessa tarefa. O Chefe de Polcia, assim como os Sub-Chefes do

    interior, eram cargos de grande importncia poltica. As pessoas que ocupavam esses cargos

    deviam ter renomada capacidade poltica, como os coronis e lideranas polticas do interior,

    ou ligadas ao circulo de bacharis em direito que dominavam s aes polticas do PRR

    (MAUCH, 2004, p.167). Eles eram responsveis tanto pela ordem pblica quanto pela

    articulao poltica, intervindo nas disputas entre lideranas locais (AXT, 2004, p.278-280;

    MAUCH, 2004, p.167-168).

    A disponibilidade de usar a fora pblica era elemento de distino importante para a

    elite poltica gacha. Este fato propiciava uma concorrncia entre o poder estadual central e as

    foras polticas locais na indicao dos cargos de Delegado e Subintendente. O primeiro eramais ligado poltica local, enquanto o segundo ao palcio do governo do Estado. Conflitos

    de jurisprudncia entre estas autoridades eram comuns e podiam motivar a nomeao de

    apenas uma pessoa para os dois cargos (AXT, 2004, p.280). A capital do Estado, por sua

    importncia estratgica, possua cargos de delegado e de subintendente para cada distrito da

    cidade.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    28/141

    24

    O processo de consolidao dos republicanos no poder passou tambm pela

    reestruturao da Justia Criminal, a partir da lei n24 de 15/08/1898. O Cdigo de Processo

    Penal do Rio Grande do Sul, como ficou conhecida essa legislao, alterou: as competncias

    previstas na lei de 1871; extinguiu o inqurito policial, definindo duas etapas para o processo

    de formao da culpa, a secreta (policial) e a pblica (judicial); definiu o sorteio pblico mais

    restrito para a definio dos jurados, permitindo maior controle sobre o jri (AXT, 2004,

    p.283-284).

    O ordenamento policial e jurdico do Rio Grande do Sul, realizado na segunda metade

    da dcada de 1890, teve como principal articulador poltico Borges de Medeiros. Ele era o

    principal aliado de Jlio de Castilhos, liderana republicana que esteve a frente do PRR e do

    governo do Estado nos primeiros anos da Repblica. Borges de Medeiros assume o governo

    do Estado do Rio Grande do Sul, em 1898, graas indicao de Castilhos. Este ltimo,

    apesar de no exercer o poder diretamente, ainda manteve forte influncia na conduo

    poltica at sua morte, em 1903. Foi entre 1903 e 1904 que Borges de Medeiros assumiu o

    comando do governo e do PRR, encerrando um ciclo de perseguies polticas e de

    intimidaes policiais aos opositores de Jlio de Castilhos. Borges de Medeiros reestruturou

    algumas alianas polticas e ps fim ao perodo de instabilidade (AXT, 2004, p.270-272). A

    estrutura poltica montada pelos republicanos, nos anos finais do sculo XIX, permitiu o

    controle dos principais postos polticos at o ano de 1923, quando ocorreu novamente um

    levante armado da oposio (AXT, 2004, p.307-308).Apesar de todas essas mudanas, preciso destacar algumas continuidades

    importantes, no que se refere organizao da polcia, no perodo imperial e republicano. A

    profissionalizao da polcia, embora desejada e identificada pelas autoridades e pelos

    jornalistas como principal meio de se obter um bom servio na rea da segurana pblica, no

    se efetuou durante todo o perodo estudado, tanto referente aos praas quanto as autoridades

    (MAUCH, 2004, p.163-165; MOREIRA, 2009, p.50-62). possvel perceber tambm, graas

    s caractersticas prprias de um estado fronteirio e militarizado, a permanncia de inmeras

    corporaes militares na cidade de Porto Alegre. Essas corporaes e a Polcia competiam

    entre si pelo monoplio da violncia, sendo recorrentes os confrontos opondo praas do

    exrcito e marinheiros aos policiais civis e/ou militares locais (MAUCH, 2004, p.144-146;

    MOREIRA, 2009, p.36-44).

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    29/141

    25

    1.4 Geografia urbana e demogrfica de Porto AlegreO final do sculo XIX e o incio do sculo XX foram caracterizados pelo poderio das

    potncias europias e pela universalizao das concepes de Estado e de cidadania moderna.

    Fora da Europa, entretanto, a implementao dessas concepes encontrou enorme resistncianas populaes locais, sendo acolhidas somente por segmentos das elites e de alguns setores

    citadinos identificados com ideais de progresso e modernidade (HOBSBAWM, 2002, p.52-

    53).

    No Brasil, a tentativa de implementao de tais concepes, no sentido de adequar o

    pas aos parmetros internacionais de progresso, encontrou tambm dificuldades. Esses

    empecilhos eram, sobretudo, de ordem antropolgica, visto que a vivncia moderna envolve

    uma exigncia de ordem cultural/moral. Para que o Estado moderno se estabelea, preciso

    que as pessoas que fazem parte da sua coletividade (nao) ajam de forma propcia ao seu

    funcionamento (COOPER, 2005, p.62-63).

    Ao longo do sculo XIX, existiam entre as elites brasileiras vrias consideraes a

    respeito da posio do Brasil no seio das naes modernas. As vises eram bastante

    pessimistas, visto que o pas carecia de um elemento considerado fundamental para um estado

    que se pretendia nao: nacionalismo. As divises scio-raciais no permitiam o

    desenvolvimento de uma identificao da populao com o Estado. Alguns pensadores, com

    base nas teorias raciais que se desenvolviam na Europa e EUA, passaram a apontar a

    imigrao em massa de genes superiores como meio de superar esse enclave racial

    (AZEVEDO, 1987, p.59-60).

    O conceito de nacionalismo exprime as noes de povo (raa), cultura (civilizao) e

    lngua como fundamentais para a constituio do Estado-Nao moderno. No caso do Brasil,

    o principal problema enfrentado era a grande influncia da raa negra sobre a populao em

    geral. As teorias raciais, de modo geral, atribuem como causa central da diversidade humana,

    tanto em termos anatmicos como culturais, a influncia das raas (SEYFERTH, 1996, p.41-

    44). E, com isso, pode-se dizer que a raa negra seria uma das responsveis pela inclinaodos brasileiros ao vcio e vadiagem.

    A formao da nao brasileira passaria (segundo concepes do sculo XIX), tanto

    pela melhora da raa, quanto pela adoo de instituies modernas.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    30/141

    26

    A melhoria da raa foi tentada a partir da colonizao europia. As primeiras

    tentativas de colonizao no Brasil ocorreram em 1818, com alemes no nordeste e suos no

    Rio de Janeiro. Todas essas iniciativas foram fracassadas devido s dificuldades econmicas e

    culturais enfrentadas pelos colonos. As disputas territoriais com a Argentina e o Uruguai

    motivaram novas tentativas de colonizao, desta vez no Rio Grande do Sul em 1824. Essa

    poltica de imigrao teve sucesso, porm foi interrompida pelos confrontos gerados pela

    Revoluo Farroupilha (1835-1845) (SEYFERTH, 1996, p.41-44).8

    Tais polticas de imigrao consideravam o imigrante do norte da Europa o mais

    adequado a melhorar a raa brasileira. Foram encontrados diversos discursos exaltando as

    qualidades dos imigrantes alemes, fato que gerou resistncia ferrenha da Igreja Catlica,

    contrria introduo de colonos protestantes (SEYFERTH, 1996, p.44-45). O projeto

    imigracionista implementado no Rio Grande do Sul, portanto, foi pioneiro no Brasil,

    articulando diversos objetivos, entre eles, a melhoria gentica da populao, a carncia de

    mo-de-obra disciplinada e, principalmente, a ocupao territorial visando defesa do pas.

    Em meados do sculo XIX, a cidade de Porto Alegre, apesar da sua importncia

    poltica por ser sede do governo provincial, possua uma populao que ainda no atingia a

    marca de 20.000 habitantes.9 Por causa do projeto colonial, era possvel perceber na cidade,

    alm das tradicionais etnias que compem o povo brasileiro, a presena germnica

    (CONSTANTINO, 1998).10 A proximidade com outros pases platinos e o envolvimento na

    Guerra do Paraguai (1864-1870) fizeram da cidade um importante entreposto militar (PINTO,2006, p.97-123).11 Entre 1850 e 1870 possvel perceber um reforo na segurana pblica da

    8 Mesmo depois da pacificao militar, a retomada vacilante do projeto imigracionista fez com que o nmerototal de imigrantes no Rio Grande do Sul no superasse a marca dos 20.000 indivduos at meados do sculoXIX.9 FUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICA. De Provncia de So Pedro a Estado do Rio Grande do Sul Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981. Disponvel em:

    Acesso em: 06 fev. 2011

    10 Os relatos de estrangeiros que passavam por Porto Alegre podem indicar a presena germnica nesta cidade. Osoldado alemo Hrmeyer, em 1850, descreveu a grande presena de seus conterrneos pelas ruas de PortoAlegre, esboando Porto Alegre como uma cidade germanizada. Carl Seidler, em 1827, destacou a importnciada cidade para o escoamento da produo realizada pela colnia alem de So Leopoldo, assim como ganhoseconmicos gerados pelo trnsito de mercadorias entre essas duas cidades.11 Durante todo o sculo XIX, a provncia do Rio Grande foi a maior fonte de mobilizao militar do Brasil,fornecendo a maioria dos combatentes para todos os conflitos platinos. Na Guerra do Paraguai, especificamente,os combatentes gachos correspondiam a quase 30% do efetivo nacional.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    31/141

    27

    cidade de Porto Alegre, visando o controle dos pobres livres, especialmente os negros recm-

    libertos, que circulavam no espao urbano (MOREIRA, 2009, p.13-14; p.321).12

    A partir da dcada de 1870, as atenes colonizadoras se voltam para a Itlia, visto as

    dificuldades encontradas na Alemanha. O objetivo era destinar esses imigrantes s atividades

    agrcolas, pois a experincia alem no sul do pas era considerada um exemplo exitoso

    (SEYFERTH, 1996, p.46-48). O projeto imigracionista implementado no Rio Grande do Sul

    foi pioneiro no Brasil, articulando diversos objetivos, entre eles, melhoria gentica da

    populao, carncia de mo-de-obra disciplinada e, principalmente, ocupao territorial

    visando defesa do pas.

    O ncleo de alemes que se desenvolveu na cidade de Porto Alegre, entretanto, no

    fazia parte do projeto imperial de colonizao (GANS, 2004, p.13). Tal processo ocorreu de

    forma independente e foi fomentado por imigrantes vindos diretamente da Europa. Aochegarem nesta cidade, ocuparam uma posio de competio com os trabalhadores

    nacionais, sendo favorecidos pela atmosfera de preconceito racial ao negro. Esta comunidade

    alem, apesar do permanente contato com os luso-brasileiros, procurou construir uma

    identidade capaz de diferenci-los do restante da populao (GANS, 2004, p.212-213).

    A proximidade dos imigrantes porto-alegrenses teutos com a cultura alem europia

    fazia deles importantes porta-vozes da cultura alem no Estado. Os discursos da imprensa

    teuta na capital atingiam toda a regio colonial. Nesse aspecto, se destaca a atuao do

    jornalista Carl Von Koseritz. Darwinista e anticlerical, Koseritz considerava que a melhor

    contribuio dada pelos teutos ao aprimoramento da nao brasileira era preservar suas

    particularidades enquanto alemes (GANS, 2004, p.214). Diferentemente de outras colnias

    de origem alem, os teutos porto-alegrenses aderiram ao escravagismo, se valendo de prticas

    semelhantes quelas dos luso-brasileiros (GANS, 2004, p.212-213).

    A principal mudana na demografia urbana de Porto Alegre, no final do sculo XIX,

    ser ocasionada pela entrada expressiva de imigrantes italianos. Embora as polticas pblicas

    fossem voltadas para reas rurais limtrofes, no havia como impedir a imigrao espontneapara os centros urbanos. Em 1877, as famlias italianas estabelecidas na capital fundaram uma

    12 So indcios disso o novo regulamento do Corpo Policial, da Cadeia Civil e a Reforma do Cdigo de Posturade Porto Alegre na dcada de 1850.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    32/141

    28

    sociedade de socorro mtuo, sendo comprovados os vrios laos de compadrio e parentesco

    existentes entre elas (CONSTANTINO, 1998, p.155). A convivncia entre alemes e italianos

    no eram isentas de conflitos (CONSTANTINO; SIMES, 1996, p.97).13

    A presena dos imigrantes no espao urbano de Porto Alegre pode ser percebida

    tambm pela ocorrncia de nomes estrangeiros em negcios estabelecidos nessa cidade.

    Constantino percebeu que dentre os 286 estabelecimentos comerciais registrados no centro de

    Porto Alegre no ano de 1895, 186 possuam nomes estrangeiros. Esse expressivo nmero foi

    alcanado sem contabilizar os sobrenomes lusitanos (CONSTANTINO, 1998, p.152-153).

    Destacar a presena estrangeira no cenrio urbano da cidade no significa menosprezar

    a existncia de negros e mestios. Dados estatsticos, de 1888, indicam que aproximadamente

    31% da populao era composta por pretos (18%) ou pardos (12%). Mesmo considerando o

    enorme crescimento populacional e entrada macia de italianos no final do XIX, tal nmeromostra-se expressivo (PESAVENTO, 1989, p.68-70).

    O crescimento urbano e demogrfico da cidade de Porto Alegre, em fins do sculo

    XIX e incio do sculo XX, provocaram uma reordenao do espao urbano e presso sobre

    as habitaes existentes, visto a escassez de moradias. O crescimento populacional pode ser

    avaliado na tabela apresentada abaixo com base nos censos do ano de 1872, 1890, 1900 e

    1920.

    Tabela 01 Populao de Porto Alegre por sexo

    Homens mulheres Total

    187214 22.914 21.084 43.998

    13 Um confronto coletivo extraordinrio que mobilizou parte destas duas comunidades capaz tanto deexemplificar bem essas tenses tnicas como mostrar a manuteno do vnculo dessas populaes com sua terrade origem. Em 20 de setembro de 1895, o jornal de lngua alem Volksblatt que funcionava em Porto Alegrepublica matria ofensiva contra a Itlia e os italianos. Uma comisso italiana procurou o Chefe de Polcia e nofoi bem recebida. Devido a toda essa situao, panfletos foram impressos incitando a comunidade italiana a umapasseata, fato que resultou em uma marcha, com bandeiras do Brasil e da Itlia, at a tipografia que publicou taisinjrias contra os italianos. O resultado foi destruio dos equipamentos do jornal e a instaurao de umprocesso-crime que no culpou ningum.14 O censo de 1872 apresenta os seguintes dados para Porto Alegre: 6042 casas e 43998 o nmero de pessoaslivres e escravos. Com base em outra tabela Populao presente, por sexo, no Rio Grande do Sul seconstruiu um nmero aproximado de homens e mulheres para Porto Alegre neste perodo.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    33/141

    29

    1890 26.409 26.012 52.421

    1900 36.719 36.955 73.674

    1920 75.734 82.231 157.965

    FONTE: FUNDAO DE ECONOMIA E ESTATSTICA. De Provncia de So Pedro a Estado do Rio Grandedo Sul Censos do RS 1803-1950. Porto Alegre, 1981.

    Os dados apresentados na tabela 01 so incontestes em mostrar o crescimento

    populacional de Porto Alegre, pois em um perodo de aproximadamente 50 anos a cidade

    triplicou o tamanho de sua populao. Os dados colhidos nos censos oficiais precisam,

    entretanto, ser problematizados. Existia, por parte da populao, grande resistncia em sefazer registrar nas estatsticas governamentais, pois isso provavelmente significava

    recrutamento, aumento de impostos e/ou controle. Constantino chama ateno, tambm, para

    o perfil social dos imigrantes italianos que chegavam capital: homens jovens, entre 19 e 24

    anos (CONSTANTINO, 1998, p.155-156).

    O crescimento vertiginoso da populao colocou problemas aos gestores municipais.

    O problema da moradia que atingiu diversas cidades do pas e ficou conhecido como questo

    habitacional (BAKOS, 1998, p.04). Essa questo foi uma das principais demandas

    enfrentadas pelos quadros administrativos da prefeitura. A centralidade do problema pode ser

    percebida tanto pelo fato de o assunto ter sido posto como uma das principais reivindicaes

    do Partido Socialista, fundado em 1897, quanto pelas inmeras crticas publicadas nos jornais

    sobre a ineficincia e a incapacidade dos gestores pblicos de resolverem esse problema

    (BAKOS, 1998, p.15).

    O modo como a elite poltica encaminhou a questo habitacional parece ser revelador

    da prpria capacidade da mesma em encaminhar polticas pblicas capazes de promover as

    mudanas modernizantes to alardeadas como necessrias no perodo em questo. Acomparao com o Rio de Janeiro pode ser elucidativa das dificuldades enfrentadas pelos

    gachos. Durante o incio do XX, por exemplo, os tecnocratas cariocas conseguiram impor

    projetos higienistas e expulsar os populares do centro - foi o famoso bota abaixo da

    administrao Pereira Passos. Durante o Imprio, as investidas desses segmentos, mesmo

    quando contavam com claro apoio governamental, ainda tinham que enfrentar resistncias no

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    34/141

    30

    Judicirio, graas s atuaes dos liberais na defesa da propriedade. Tal obstculo foi

    superado com o advento da Repblica (CHALHOUB, 1996, p.44-46).

    Figura 01 Organizao Administrativa de Porto Alegre em 1901

    FONTE: INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DO RIO GRANDE DO SUL. Planta Geral DoMunicpio De Porto Alegre. 1901, s/autor. (*) Cpia xerogrfica de original impresso, com rosa dos ventos ecoordenadas geogrficas, escala 1:100.000. Impresso: Lit. de Igncio Weingartner, Porto Alegre. 80X70 cm.

    No Rio Grande do Sul, a sada autoritria para o problema habitacional certamente

    encontraria justificativa na influncia positivista e na tradio militarizada e autoritria da

    sociedade. O grande obstculo para a higienizao do centro foi, sobretudo, financeiro.

    Apenas dois anos aps a guerra civil, o governo j enfrentava crise econmica. Sinal

    emblemtico dessa situao foi a aceitao, por parte do Banco da Provncia do Rio Grande

    do Sul, de imveis para liquidar os dbitos de seus clientes. Essa situao perdura at pelo

    menos 1907, quando as dificuldades comeam a diminuir. O tempo de crescimento

    econmico durou pouco, pois, em 1914, iniciou-se outro perodo de recesso devido Guerra

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    35/141

    31

    Mundial. O governo municipal s conseguiu articular emprstimo externo depois de 1924

    (BAKOS, 1998, p.07-09).

    A falta de residncias provocada pelo crescimento populacional vertiginoso, a falncia

    dos governos estadual e municipal ocorrida graas desorganizao ps-guerra civil e a

    convivncia de diversas etnias eram o cenrio social e econmico da virada do sculo em

    Porto Alegre. Terminada a caracterizao geral, tentar-se-, a partir de dois mapas, descrever

    as divises administrativas e territoriais.

    A parte mais antiga de povoamento e a mais populosa tambm o centro da

    cidade. No FIGURA 01 o centro corresponde ao 1 Distrito e no FIGURA 02 foi feito

    um contorno em cor verde para identific-lo. rea que abrigava os principais prdios pblicos

    dos governos estadual e municipal foi tambm a regio que mais sofreu com a falta de

    moradias, sendo recorrentes a superlotao de prdios habitacionais e a formao de cortios.Em algumas regies, prximas aos locais de moradia dos setores tradicionais da elite,

    encontram-se inmeras propriedades que pagavam impostos como cortios. Foi essa

    convivncia incmoda que levou alguns segmentos emergentes da elite a ocupar a regio em

    torno da Av. Independncia15, um pouco mais afastado do centro da cidade (BAKOS, 1998,

    p.156-158).

    Outros territrios que tambm tiveram sua ocupao realizada ao longo do sculo XIX

    so as reas marcadas em vermelho no FIGURA 02. A cidade baixa, a ilhota, o areal da

    baronesa e a colnia africana estavam ligados dinmica da sociedade escravista, na medida

    em que as primeiras populaes dessas reas eram de etnias africanas (MATTOS, 2000;

    KERSTING, 1998). O forte crescimento populacional da cidade descrito anteriormente gerou

    dinmicas que gradativamente alteraram o perfil dos habitantes dessas regies. A regio da

    Cidade Baixa passou a receber, nas primeiras dcadas do XX, a populao italiana que

    chegava cidade. Os novos proprietrios foram, gradativamente, melhorando a qualidade das

    moradias, operando qualificaes higinicas e arquitetnicas, fatores fundamentais na

    definio do status social de um local respeitvel, mesmo se inserido em territorialidades

    marcadamente pobres. Entretanto, at 1920, ainda era possvel detectar a presena de cortios

    nessa rea (CONSTANTINO, 1998, p.160-161).

    15 Essa avenida se localiza entre o centro, o bom fim e a zona norte no FIGURA 02.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    36/141

    32

    Figura 02 Territrios da zona urbana de Porto Alegre em 1906.

    FONTE: INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO DO RIO GRANDE DO SUL. TREBBI, A. A. Planta DaCidade De Porto Alegre, Capital Do Estado Do Rio Grande Do Sul. PORTO ALEGRE: Casa Editora Livraria do

    Commercio, 1906. (*) Original impresso, colorido, tinta s/papel, com orientao norte-sul e coordenadasgeogrficas, escala 1:13.400, com legendas desenhos de monumentos arquitetnicos. 63,3X44 cm.

    A regio do Bom Fim, provavelmente, devido sua proximidade com a Colnia

    Africana, era uma rea bastante desprestigiada at o final do sculo XIX. Em 1910, todavia, j

    possvel detectar tanto a presena de italianos quanto a proliferaes dos cortios. Somente

    em um segundo momento o bairro passou a receber os imigrantes judeus, que acabaramcriando uma nova dinmica de ocupao para esse espao (CONSTANTINO, 1998, p.161-

    162).

    A principal aposta dos administradores pblicos para o escoamento da populao foi a

    urbanizao da zona norte da capital, marcada em amarelo no FIGURA 02. As primeiras

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    37/141

    33

    ruas foram traadas em 1896, porm o servio de bonde s chegou regio em 1907. As

    indstrias se instalavam naquela regio tanto pela proximidade com o centro quanto pela

    facilidade no escoamento da produo. A relevncia econmica, poltica e social desse espao

    da capital cresceu bastante. Meios de sociabilidade prprios e diferentes daqueles da parte sul

    tambm se desenvolveram nessa rea (FORTES, 2004, p.35-38).

    Em associao com esse processo de expanso, percebe-se o estabelecimento de

    comrcio ao longo da Av. Voluntrios da Ptria e de algumas famlias de italianos e alemes

    ao longo eixo da Av. Cristovo Colombo. Em 1900, registram-se inmeras propriedades para

    alugar nessas reas. Fortemente marcada pela presena estrangeira, a ocupao desses espaos

    trazia consigo o desejo das pessoas de alcanar a segurana econmica e o respeito, cujo

    signo maior era o acesso casa prpria. Gradativamente, graas s dinmicas prprias dessa

    regio, alguns espaos foram se destacando pela ocupao de uma classe mdia ascendente,

    como o caso do bairro Higienpolis (CONSTANTINO, 1998, p.158-163).

    As divises administrativas ainda so nebulosas. A zona norte da capital ficou

    conhecida pela historiografia como quarto distrito (FORTES, 2004, p.35-38), porm o

    FIGURA 01 e as evidncias encontradas nos processos-crimes contra o jogo do bicho, entre

    1904-06, que sero analisadas posteriormente, apontam a zona norte da capital como o

    terceiro distrito. As zonas de urbanizao mais antigas, marcadas em vermelho no FIGURA

    02, correspondiam ao 2 e 4 distrito.

    ***

    Apresentar-se- agora o resumo dos captulos que compem essa dissertao. O

    primeiro deles apresenta o modo como as prticas de jogo se constituram como um problema

    social na segunda metade do sculo XIX. Seu controle era preferencialmente realizado no

    mbito policial, embora isso no signifique que ele no fosse encontrado em outras esferas.

    No campo da justia criminal, os jogos de azar estavam associados aos conflitos nascidos em

    torno de alguns espaos de sociabilidade, geralmente bares e tabernas, motivados pela

    vigncia de cdigos de virilidade como meio de soluo dos conflitos. Esses cdigos eramtambm pertencentes ao universo policial. Assim, os policiais, que possuam a mesma origem

    social das populaes que deviam controlar, se tornavam reprodutores da prtica do jogo. Isso

    trazia inmeros constrangimentos ao poder pblico, pois ele se tornava incapaz de controlar o

    jogo a partir de atos de autoridade. Maiores constrangimentos, entretanto, foram trazidos pela

    explorao das loterias pelo Estado. Graas a esse tema, o problema social dos jogos de azar

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    38/141

    34

    tambm entrou no campo poltico a partir de um projeto apresentado pelo PRR Assemblea

    Provincial. Foi possvel perceber, a partir dos discursos analisados, a existncia de um amplo

    e concorrido mercado de loterias. A mudana de regime poltico representou uma maior

    intolerncia prtica dos jogos de azar, fator evidenciado a partir da comparao entre a

    legislao imperial e a republicana. Essa reposta do Estado ao problema no parece ter

    alterado a popularidade dos jogos, apesar da atuao firme das autoridades policiais de Porto

    Alegre no sentido de coibir o jogo.

    O segundo captulo tratar de uma loteria ilegal que passou a dominar a ateno das

    autoridades pblicas na ltima dcada do sculo XIX: o jogo do bicho. Esse jogo tornou-se,

    nos dias atuais, um smbolo da nacionalidade brasileira e um elemento reconhecidamente

    pertencente cultura popular. Esse aspecto acabou influenciando a historiografia que trata

    desse tema, pois a intolerncia da primeira Repblica com as prticas populares serviu de

    chave explicativa para a criminalizao desse jogo. Outras explicaes, entretanto, foram

    sugeridas por trabalhos recentes, conforme se ver. Independentemente dessas discusses

    historiogrficas, se percebe que o jogo do bicho alcanou enorme popularidade, tanto no Rio

    de Janeiro, quanto em Porto Alegre. Na capital gacha, as autoridades no ficaram inertes a

    esse cenrio, utilizando os meios disponveis para enfrentar o desafio representado pelo jogo

    do bicho. A ltima parte desse captulo tratar dos mecanismos de controle social disponveis,

    na dcada de 1890, para o enfrentamento desse e de outros jogos de azar. Eram eles:

    intimidaes orais, prises de 24h, agentes secretos, cdigo de posturas e cdigo penal.O terceiro captulo ter como tema central uma campanha oficial feita contra a loteria

    ilegal do jogo do bicho em Porto Alegre que se iniciou em meados do ano de 1904 e durou at

    1906. Para a compreenso dessas aes necessrio, entretanto, a exposio de algumas

    modificaes legais, que ocorreram em fins do sculo XIX, que modificaram alguns dos

    mecanismos de controle social expostos no final do captulo anterior. Essas modificaes

    permitiram a formao de policiais justiceiros, como o caso do capito Orlando Motta que

    comandou a maioria das aes dessa campanha repressiva. O reforo da autoridade policial

    no foi suficiente para eliminar o jogo do bicho. Os conflitos gerados pela truculncia policial

    acabaram levando a um questionamento da validade dos procedimentos adotados naquela

    campanha no campo jurdico, percebidos nos debates do Cdigo Civil. A falncia do recurso

    judicial, entretanto, no eliminou o controle policial. Ao contrrio, o capito Orlando Motta

    conheceu uma ascenso profissional e se tornou um delegado especializado nas questes do

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    39/141

    35

    vcio. A impossibilidade de acabar com esse jogo por atos de autoridade e a ampla

    discricionalidade policial presentes nos mecanismos de controle disponveis permitiram a

    formao de associaes corruptas entre policiais e banqueiros, conforme foi possvel

    perceber a partir de alguns indcios.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    40/141

    36

    2. CAPTULO 1: OS JOGOS DE AZAR NO RIO GRANDE DO SUL NOSCULO XIX: Sua importncia como elemento de sociabilidade e oproblema moral da explorao do vcio pelo Estado

    2.1 IntroduoBuscou-se pesquisar como as prticas dos jogos de azar se inseriram no mbito da

    justia criminal, ao longo do sculo XIX e incio do sculo XX, as modalidades de jogos

    perseguidas e o tipo de punio aplicada. Para tanto, se vasculhou os registros de processos-

    crimes disponveis para consulta no APERGS.

    A questo das fraudes lotricas, contrabando de bilhetes e loterias ilegais atravessam

    toda a extenso temporal do acervo: existe um processo sobre fraude de bilhetes no ano de

    1863 e dois em 1866; dois de contrabando ilegal de loteria estrangeira em 1884 e trs em1907. Nenhuma loteria, entretanto, gerou mais processos-crimes do que o jogo do bicho.

    Foram trs processos em 1898, um em 1900, vinte e dois em 1904, treze em 1905 e quatro em

    1906.

    Os processos-crime envolvendo jogos, entretanto, no se encerravam na questo das

    loterias ilegais. Localizou-se tambm a ao do poder judicirio em duas casas de tavolagem

    no ano de 1895, logo aps o trmino dos conflitos entre republicanos e federalistas e em 1905.

    Os jogos tambm aparecem de uma forma indireta nos processos-crimes associadas a brigas e

    a homicdios, muitas vezes, envolvendo os prprios policiais que deviam coibir essas prticas.

    latente que os anos de 1904-5 foram aqueles que os jogos, particularmente o jogo do

    bicho, tiveram maior importncia no mbito da justia criminal. Acredita-se, entretanto, que a

    insero dos jogos nesse mbito s foi possvel por uma srie de problemas que essas prticas

    traziam para os gestores pblicos desde o perodo imperial. O objetivo desse captulo ser,

    portanto, reconstituir o contexto social existente em torno das prticas de jogos de azar e os

    problemas que a disseminao dessas prticas traziam para o projeto de modernizao do Rio

    Grande do Sul pelo ponto de vista das elites polticas.

    A primeira parte desse captulo, portanto, buscar descrever os conflitos nascidos nos

    locais onde as prticas dos jogos de azar se realizavam e ainda avaliar as possibilidades do

    controle policial sobre tais prticas. Os jogos de azar, particularmente as loterias, penetraro

    no mbito poltico atravs do projeto de proibio das loterias apresentado pelo PRR em

    1885. A segunda parte desse captulo objetivar analisar como os jogos eram representados no

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    41/141

    37

    mbito poltico. Tal anlise ser realizada a partir dos debates ocasionados em torno do

    projeto citado acima, evidenciando o porqu deles se constiturem como um problema social.

    Por ltimo, tentar-se- mostrar que o advento da Repblica significou um maior

    recrudescimento penal prtica dos jogos de azar, como uma resposta aos problemas que se

    apresentavam no regime poltico anterior.

    2.2 Os jogos e as sociabilidades viris: os limites do policiamentoA baixa incidncia de processos-crime envolvendo a prtica de jogos de azar durante o

    perodo imperial no significa, necessariamente, o no interesse pelo controle dessas prticas.

    A ao do poder judicirio era restrita porque o pequeno grau de periculosidade e o carter

    moral da condenao remetiam seu controle esfera policial. sintomtico, nesse sentido,

    que a legislao antijogo presente no Cdigo Criminal do Imprio, de 1830, esteja localizada

    na parte referente aos crimes policiaes.16

    Essa caracterstica dos jogos de azar no impede, entretanto, que eles sejam

    importantes agenciadores de conflitos entre as pessoas. Escravos de diferentes donos podiam

    entrar em confronto fsico por causa de apostas feitas no jogo de carta, o que aponta para

    existncia da prtica de aposta nos momentos de lazer dos cativos. Em 1876, o crioulo

    Gaudncio, escravo de Ana Marques de Souza, feriu com uma faca o escravo Joo depois de

    discutir e de brigar por causa de uma aposta feita no jogo de cartas. O ru foi condenado a seis

    anos de priso, a duzentos aoites e a carregar uma argola de ferro no pescoo por vinte anos

    (PROCESSO-CRIME, 1876, n 1290).

    Durante toda a srie documental analisada foi possvel encontrar vrios processos com

    este perfil: dois ou mais homens discutem por causa de aposta feita em jogo de cartas,

    discusso que leva ao confronto fsico com uso de armas brandas, resultando em leses

    corporais ou homicdios.

    Esse tipo de briga no era restrito aos escravos, sendo corrente tambm entre

    trabalhadores livres pobres. No mesmo ano de 1876, Joo Tomas Peixoto, lavrador, feriu Joo

    16 Nos documentos consultados se preservar a grafia da poca. O Cdigo Criminal do Imprio pode seracessado pela Internet. Ver: BRASIL. O Cdigo Criminal do Imprio.

    Acesso em: 01 nov. 2010.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    42/141

    38

    Machado da Silva com uma faca depois de interferir em uma discusso por causa de duas

    cervejas apostadas em um jogo de cartas (PROCESSO-CRIME, 1876, n 1302). Existe outro

    indcio que aponta para recorrncia em apostar cervejas no jogo. o caso do processo que

    trata do roubo de um relgio envolvendo o pardo Rafael e o crioulo Gregrio, ambos

    escravos, que afirmaram terem se encontrado ocasionalmente em um local onde as pessoas

    costumam se encontrar para jogar bisca (jogo de cartas) e apostar cerveja (PROCESSO-

    CRIME, 1872, n 1249).

    Os bares, as tabernas e estabelecimentos similares constituam-se em uma opo das

    pessoas para o usufruto do cio, possibilitando a construo de laos de solidariedade e de

    identidade. Nesses locais as sociabilidades envolvendo afirmao de virilidade eram

    recorrentes, fato atestado, por exemplo, pelo consumo de lcool (MOREIRA, 2009, p.85-

    118).17 Associados ou no ao consumo dessa substncia, os jogos de azar tambm erampresentes nesses espaos podendo se tornar catalisadores de tenses ou de conflitos que

    podiam levar a agresso fsica e at ao homicdio, como foi visto. A violncia uma

    caracterstica dos meios de sociabilidade viris, comum entre homens (BOURDIEU, 1998,

    p.63-67).18

    Uma notcia publicada no jornal Emancipao, financiado pelo Partido Liberal do Rio

    Grande do Sul, sugere a frequncia de autoridades policiais nos locais de sociabilidade

    descritos acima. Em 16 de outubro de 1872, esse jornal denunciou que autoridades policiaes

    da cidade, frequenta com toda a assiduidade uma taberna situada rua do Rosrio, rua

    posteriormente chamada de Vigrio Jos Igncio e localizada no centro da cidade. Aquela

    casa ponto de reunio para jogatina de escravos, vagabundos, e soldados que muitas vezes

    esto de servio ali junto com a banca do jogo da mosca. O jornal solicita que os

    responsveis tomam as providncias antes de alli der-se alguma desgraa ou organisar-se

    alguma quadrilha de gatunos. Segundo o jornal, depois do problema ter acontecido, no

    adianta apparecer o apparato da polcia, e as patrulhas de cavalaria... para prenderam e

    17 A manuteno do autocontrole concomitante a ingesto de grandes quantidades de lcool uma das formas deafirmar a virilidade, importante para os crculos masculinos.18 As diferenas entre o feminino e o masculino so frutos de vrias estruturas sociais que foram as pessoas aadotarem atitudes de feminilidade e de virilidade como se fossem prprias de uma ordem natural e cosmolgica.Em alguns espaos sociais, como os bares, so comuns os ritos capazes de fazerem os homens provarem avirilidade frente ao coletivo, e assim serem reconhecidos como verdadeiros homens.

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    43/141

    39

    amarrarem pobres crianas inoffencivas (JORNAL EMANCIPAO, n 235, 16/10/1872,

    p.01).

    O envolvimento de policiais em desordens ou em prticas moralmente condenveis

    pode ser verificado em outras cidades, especialmente o Rio de Janeiro. Acredita-se quecomparao com a experincia de policiamento da capital federal pode ajudar na

    compreenso do contexto gacho. A Polcia uma instituio essencialmente moderna e

    criada para defender a propriedade, combater o crime e disciplinar os comportamentos nos

    espaos pblicos. De fato, as primeiras instituies deste gnero instauradas no Brasil,

    notadamente no Rio de Janeiro, foram influenciadas nas experincias exitosas lanadas na

    Europa, obedecendo em suas origens aos padres inicialmente estabelecidos pela Frana

    absolutista e pela Inglaterra do sculo XIX (BRETAS, 1997, p.39).

    Os desafios impostos pelo contexto social do Rio de Janeiro, entretanto, rapidamente

    impuseram mudanas institucionais na Polcia no sentido de ampliar a disciplina e reforar o

    respeito hierarquia no interior das corporaes (HOLLOWAY, 1997, p.22-23). O

    crescimento vertiginoso de indivduos no submetidos aos controles pessoais caractersticos

    do sistema de dominao escravista criou um crescente sentimento de medo e uma demanda

    por ordem (AZEVEDO, 1987). No cenrio de crise da escravido, se fortalecia um discurso

    de denncia contra o despreparo moral e intelectual do povo sendo freqente o recurso a

    termos como vagabundos ou desordeiros para designar os homens livres (SCHWARCZ,

    2007, p.36-37).

    Um dos motivos que levou a polcia do Rio de Janeiro a ampliar e reforar o respeito

    hierarquia no interior da corporao policial nasceu da necessidade de impor aos integrantes

    da polcia algumas normas e comportamentos tidos como importantes elite e no

    compartilhados pela maioria da populao (HOLLOWAY, 1997, p.254-255). Bretas (2002,

    p.14-15), analisando o perodo republicano, destaca a distncia considervel entre aqueles que

    discutiam e elaboravam as polticas da Polcia e os operadores da ponta da instituio os

    policiais responsveis pela moralizao do espao pblico.

    Acredita-se que essas particularidades da polcia no Rio de Janeiro possam ser

    encontradas tambm no caso de Porto Alegre, visto as origens sociais dos policiais, tanto no

    perodo imperial, quanto no perodo republicano. O recrutamento de policiais ocorria no seio

    das classes mais pobres, fazendo com que eles compartilhassem os cdigos culturais das

    populaes que eles tinham que controlar, incluindo algumas formas violentas de resoluo de

    conflitos. Alm disso, os rendimentos obtidos no trabalho policial eram nfimos, o que no

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    44/141

    40

    permitia a formao de uma categoria scio-profissional (MAUCH, 2008(b), p.103-104;

    MOREIRA, 2009, p.46-60).

    No Rio Grande do Sul, as corporaes policiais e militares tambm incorporavam na

    sua dinmica institucional alguns meios violentos para impor a disciplina e o respeito hierarquia no seu interior. Os agentes sociais envolvidos nesse tipo de experincia acabavam

    desenvolvendo laos de solidariedade e de identidade bastante fortes, reforados pelo fato de

    habitarem casas prximas e freqentarem os mesmos espaos de sociabilidade. Tambm

    influenciavam, para a solidificao destes laos, os conflitos e as rivalidades que as diferentes

    corporaes existentes criavam entre si (MAUCH, 2004, p.144-146; MOREIRA, 2009, p.60-

    62).

    Espaos comuns de sociabilidade, rivalidade entre corporaes e prtica continuada de

    hbitos condenveis moralmente so elementos que faziam parte do cotidiano dos policiais. O

    exemplo a seguir ilustrar tanto os elementos citados acima, quanto o tipo de desafio

    encontrado pelas autoridades que queriam acabar com a prtica dos jogos de azar pela fora.

    Em 1884, devido a temores de que o uso da Polcia possa piorar as rixas existentes entre

    policiais e soldados, o Chefe de Polcia de Porto Alegre solicita ao Presidente da Provncia a

    permisso para utilizar alguns praas do exrcito na moralizao do Beco do Oitavo, futura

    rua Andr da Rocha, localizado no centro da cidade.

    Constando-me que na Travessa Trs de Novembro e ruas imediatas, todas situadas

    nos fundos do quartel do 13 Batalho de Infantaria, existem diversas casas de

    tabolagem, freqentadas por praas do Exrcito, e que promovem tambm

    constantes desordens. E como estou no firme propsito de terminar com os jogos

    que a lei probe, rogo a V. Exa. se digne de expedir a necessria ordem para que

    seja prestado ao Delegado de Polcia desta capital alguns soldados do mesmo

    Batalho, sempre que os requisitar no respectivo quartel, visto no convir que

    semelhante servio se leve a efeito com fora de polcia, evitando-se assim

    qualquer conflito que possa dar-se, desde que esta se veja em contato com aquela,como j tem por vezes acontecido (Apud MOREIRA, 2009, p.44).

    O hiato existente entre as prticas sociais dos soldados e dos praas do exrcito, por

    um lado, e o que os comportamentos esperados pelos oficiais e chefes dessas corporaes, por

    outro lado, parece ser mais uma similaridade da polcia gacha com a polcia carioca. Bretas

    chama a ateno para a resistncia dos policiais da Repblica, no Rio de Janeiro, em obedecer

  • 8/3/2019 2011. TORCATO. Jogo Do Bicho Porto Alegre

    45/141

    41

    por completo as ordens dos seus superiores. Algumas atividades consideradas ilegais, como o

    jogo e a prostituio, eram para os policiais um mal necessrio, impossveis de serem

    proibidas. Os policiais que faziam o p