2011-Releituras da história do Rio Grande do Sul-LIVRO-LER

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  • RELEITURAS DA HISTRIA

    DO RIO GRANDE DO SUL

    - 2011 -

  • CORAG Companhia Rio-grandense de Artes Grficas

    Diretor-presidente:Homero Alves Paim

    Diretor Administrativo-financeiro:Dorvalino Santana Alvarez

    Diretor Industrial:Antnio Alexis Trescastro da Silva

    DIREITOS RESERVADOS DESTA EDIO:Fundao Instituto Gacho de Tradio e Folclore

    1 edio: Porto Alegre

    Reviso:Greice Zenker Peixoto

    Diagramao:Lilian Lopes Martins - Corag

    Dados Tcnicos:Maria Helena Bueno Gargioni

    Impresso: CORAG - Companhia Rio-grandense de Artes Grficas

    Tiragem: 1000 exemplares 2011

    R362 Releituras da Histria do Rio Grande do Sul. Fundao Instituto Gacho de Tradio e Folclore. Organizadores: Sandra da Silva Careli, Luiz Claudio Knierim. Porto Alegre, CORAG, 2011.

    282p. ISBN: 978-85-7770-149-0 (Corag)

    1.Histria. 2. Rio Grande do Sul. I. Sandra da Silva Careli. II. Clu-dio Knierim.

    III. Ttulo. Releituras da Histria do Rio Grande do Sul.

    CDU 94(816.5)

  • Governador do Estado do Rio Grande do SulTarso Genro

    Secretrio de Estado da CulturaLuiz Antonio de Assis Brasil

    Presidente da Fundao Instituto Gacho de Tradio e FolcloreRodi Pedro Borghetti

    Diretor da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA)Darci Sanfelici

    Fundao Instituto Gacho de Tradio e FolcloreAv. Borges Medeiros, 1501 - Praia de Belas Porto Alegre RS

    CEP: 90020-020Fones (51) 3228-1711 - (51) 3228-1764

    Correio Eletrnico: [email protected]: www.igtf.rs.gov.br

    OrganizadoresSandra da Silva CareliLuiz Claudio Knierim

    AutoresAna Regina Falkembach Simo

    Arthur Lima de AvilaEdison Bisso Cruxen

    Jorge Euzbio AssumpoLus Fernando da Silva Laroque

    Marcia Eckert MirandaPaulo Roberto de Fraga Cirne

    Raul Rebello Vital JuniorRen E. Gertz

    Ricardo Arthur FitzSrgio Roberto Rocha da Silva

    Vra Lucia Maciel Barroso

  • APRESENTAO

    A riqueza da Histria do Rio Grande do Sul foi regis-trada ao longo dos tempos em diferentes suportes de texto, sob as mos de diferentes atores, movimentos sociais e insti-tuies. Os segmentos responsveis pelo registro, ao lerem o processo vivido pela sociedade, traduziram um pouco de si nessa sistematizao.

    Ter a conscincia da ausncia de imparcialidade nesses escritos permite ao leitor certa visibilidade dos atores sociais que povoaram e povoam a constituio da histria regional. Nesse sentido, optamos por uma perspectiva afinada com o pensamento de Thompson (2001, p. 263), que afirma:

    A transformao histrica acontece [...] pelo fato de as alteraes nas relaes produtivas serem vi-venciadas na vida social e cultural, de repercutirem nas ideias e valores humanos e de serem questiona-das nas aes, escolhas e crenas humanas.

    Uma nova interpretao histrica deve incluir os atores sociais at ento esquecidos ou desprezados. Precisa, ainda, trabalhar com abordagens novas que promovam a visibilidade de processos tanto de curta quanto de longa durao. O reco-nhecimento da multiplicidade de caminhos que nos consti-tuem como sociedade possibilita que nos percebamos como uma diversidade de identidades de etnia, de classe, de gne-ro, de idade...

    Desse modo, a identidade, em uma perspectiva so-cial, realizada no espao das relaes, tratando-se de um processo dinmico, ou seja, [...] um processo contnuo de construo e desconstruo, na ambi-gidade presente e inevitvel que a compe, impli-cando um trabalho de unificao de diversidade, incorporando a diferena (MAHEIRIE, 1994, p. 65 apud CROMACK, 2004).

  • A obra que apresentamos ao pblico foi operacionalizada a partir de uma parceria entre o Instituto Gacho de Tradio e Folclore (IGTF) e a Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), duas instituies comprometidas com o resgate da riqueza histrica regional e com a reflexo em torno dos processos econmicos, polticos, sociais e culturais vividos nesse estado. Desse traba-lho, que busca traduzir e atualizar as discusses que se apresen-tam com relao Histria do Rio Grande do Sul, resultou o livro Releituras da Histria do Rio Grande do Sul.

    Coube ao IGTF a responsabilidade de edio do livro. Enquanto representante da Comisso Organizadora da Sema-na Farroupilha, o Instituto colocou-se como rgo aberto ao debate e discusso de temas histricos e culturais caros historiografia do Rio Grande do Sul. Profissionais de diversas reas do conhecimento, indicados pela FAPA, contriburam com pesquisas, levantamentos e questionamentos que forne-cem ao livro o peso de uma reflexo honesta e ponderada.

    Nessa perspectiva, com nfase em aspectos que eviden-ciassem a problematizao crtica, priorizamos a abordagem de temas clssicos na Histria regional. Com base nos tra-balhos de pesquisa atuais, os quais ensejam novos conceitos e categorias formulando e incorporando, entre outras, uma abordagem tnica a esse tipo de temtica , os artigos trazem perspectivas inovadoras. Para abranger diversas questes e li-nhas de pensamento, a obra est organizada em 12 captulos.

    No primeiro captulo, Lus Fernando da Silva Laroque desvela o protagonismo dos povos amerndios na formao do estado, em Os nativos Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang: o protagonismo indgena e as relaes interculturais em terri-trios de plancie, serra e planalto do Rio Grande do Sul. Seu texto rompe com a lgica perversa da terra sem dono, de um Rio Grande surgido, unicamente, da ao das populaes euro-peias que disputaram o controle do territrio. Tomando como baliza temporal o sculo XVI at a contemporaneidade, o autor sistematiza os conhecimentos existentes sobre importantes so-

  • ciedades nativas que habitavam e ainda habitam a regio, alm de explorar as caractersticas sociais das relaes entre os diferentes grupos tnicos no processo de formao do estado.

    Ricardo Arthur Fitz, por sua vez, desenvolve o tema Os jesutas no territrio gacho. O trabalho analtico inicia com a contextualizao da Companhia de Jesus e sua relao com o Estado espanhol, passando pela avaliao dos instru-mentos empregados na ao missionria at o extermnio das redues. O artigo questiona a autonomia das redu-es no contexto da explorao colonial, administrada pela Coroa espanhola.

    O captulo redigido por Edison Bisso Cruxen, inti-tulado A ocupao ibrica do territrio e as disputas pelas fronteiras do continente de Rio Grande, trata dos meandros envolvidos na colonizao europeia do Rio Grande do Sul e retoma a discusso a respeito do conceito de fronteira to importante para a compreenso do processo de constituio do atual territrio de nosso estado, originalmente envolto na lgica das contendas entre Portugal e Espanha. O autor de-monstra que, muito alm das relaes belicosas entre as co-roas ibricas, na Regio do Prata, houve um intenso contato cultural, comercial e social entre os habitantes luso-brasileiros e hispano-americanos. A fronteira, nessa perspectiva, carac-teriza-se por ser contraditria e por apresentar mobilidade dinmica, caracterizando-se, muito mais, como um meio de contato que um simples instrumento de separao entre terri-trios e populaes.

    Marcia Eckert Miranda explora a complexidade que envolveu a posse do territrio pelos portugueses no captulo De comandncia militar provncia: a administrao do Rio Grande de So Pedro (1737-1824). A autora aborda a adminis-trao do Rio Grande de So Pedro no perodo que se esten-de do incio da ocupao portuguesa, com a criao do Forte Jesus Maria Jos, em 1737, posse do primeiro Presidente da Provncia, Jos Feliciano Fernandes, em 1824. Ela analisa a es-

  • trutura mxima de governo da regio, seus limites e poderes e as transformaes ocorridas nesse sistema, ao longo do tempo, qual seja: a Comandncia Militar, o Governo da Capitania Su-balterna, o Governo da Capitania Geral, a Junta Governativa Provisria e a Presidncia da Provncia.

    O quinto captulo, de autoria de Vra Lucia Maciel Barroso,Os aorianos no Rio Grande do Sul: uma presena desconhecida, tem a marca do desvendamento daqueles que, forados dispora no sculo XVIII, encontraram na nova ter-ra sul-americana, que imaginavam ser a da promisso, muitos reveses e no poucos desafios. O texto critica a pouca valoriza-o da histria e da cultura aoriana na historiografia regional.

    Jorge Euzbio Assumpo, autor do captulo poca das charqueadas (1780-1888), aprofunda o olhar sobre as et-nias negras, advogando a importncia do trabalho dos cativos negros na estruturao do estado. Defende a necessidade de uma leitura crtica em torno do mito da democracia racial sulina, consolidado por vertentes da historiografia brasileira.

    O texto de Raul Rebello Vital Jnior, Caminhos da colonizao alem no Rio Grande do Sul: polticas de Estado, etnicidade e transio, analisa os objetivos do Estado brasi-leiro ao inaugurar a poltica colonizatria no Brasil, ao longo do sculo XIX. Aborda questes ligadas a polticas de Estado, condies de vida dos colonos e etnicidade.

    Arthur Lima de Avila, no oitavo captulo, Caudilhos e fronteirios: a Revoluo Farroupilha e seus vnculos rio--platenses, discute criticamente a ligao do Rio Grande do Sul com o seu entorno territorial. No captulo, o autor insere o conflito farroupilha no cenrio das lutas associadas aos proces-sos de formao dos Estados Nacionais latino-americanos e, ainda, explicita os vnculos das elites farroupilhas com os cau-dilhos platinos. O texto rediscute o conceito de fronteira em bases mais complexas, a exemplo do texto de Edison Cruxen.

    Ana Regina Falkembach Simo, no captulo Da co-lnia ao Imprio: uma anlise da poltica externa brasileira,

  • situa o Rio Grande do Sul em relao ao Prata no que se refere dinmica poltica externa inicialmente portuguesa, e, poste-riormente, brasileira. A autora esclarece o papel do nacionalis-mo nas contendas do perodo.

    No captulo Aspectos da Revoluo Federalista no con-texto poltico de Jlio de Castilhos, Srgio Roberto Rocha da Silva, focaliza o regime republicano e a Revoluo Federa-lista no Rio Grande do Sul, no perodo entre 1893-1895, dis-secando os fatos que compuseram o cenrio da luta armada e tambm os processos de mitificao que envolvem Jlio de Castilhos. O autor convida-nos a refletir sobre as diferentes memrias produzidas em torno de dois importantes eventos na histria gacha: a Revoluo Federalista e a Revoluo Farroupilha.

    Ren E. Gertz, no captulo A colonizao no perodo republicano segunda fase, oferece continuidade reflexo, vista em outras unidades do livro, referente atuao de dife-rentes etnias na constituio do Rio Grande do Sul. O autor mostra-nos que, somente nos anos de 1870, italianos e polo-neses juntaram-se a ento j cinquentenria imigrao ale-m. Esses imigrantes foram, mais tarde, seguidos por outros grupos e, no final desse processo, em torno de 40% da popu-lao gacha era considerada de origem centro-europeia. A presena dos imigrantes e de seus descendentes foi promovida e encorajada por muitos, mas tambm criticada por outros. O texto trata das alegrias, mas tambm dos dissabores resultan-tes desse projeto de imigrao e colonizao.

    Fechando a obra, encontra-se o captulo de Paulo Ro-berto de Fraga Cirne, O comeo do tradicionalismo gacho. O autor sintetiza a histria do tradicionalismo gacho desde as primeiras tentativas de fundao do movimento at a sua decadncia e o ressurgimento em 1947, como movimento organizado. No captulo, so destacados: a fundao do 35 CTG, Centro de Tradies Gachas, que inaugurou uma nova era do tradicionalismo, a rpida expanso deste movimento e

  • a criao da Federao MTG, que tem como objetivo a pre-servao do ncleo da formao gacha e a filosofia do mo-vimento, decorrente da sua Carta de Princpios. O autor tam-bm destaca o surgimento de outras federaes similares em todo Pas; juntas, elas integram uma Confederao Brasileira da Tradio Gacha, fundada em 1987.

    Esperamos que os textos aqui veiculados e socializados nos formatos impresso e eletrnico colaborem para dar vi-sibilidade a esses importantes eventos e atores do processo social e histrico de construo da Histria do Rio Grande do Sul. Que o livro contemple a diversidade e que, cotidiana-mente, se atualize frente s novas problemticas socialmente demandadas.

    Claudio Knierim

    Sandra da Silva Careli

  • SUMRIO

    Os nativos charrua/minuano, guarani e kaingang: O protagonismo indgena e as relaes interculturais em territrios de plancie, serra e planalto do Rio Grande do Sul Lus Fernando da Silva Laroque ............................................15

    Os jesutas no territrio gacho Ricardo Arthur Fitz ....................................43

    A ocupao ibrica do territrio e as disputas pelas fronteiras do continen-te de Rio Grande Edison Bisso Cruxen ..................................................... 65

    De comandncia militar Provncia: A administrao do Rio Grande de So Pe-dro(1737-1824) Mrcia Eckert Miranda .................................................................89

    Aorianos no Rio Grande do Sul: uma presena desconhecida Vera Lcia Maciel Barroso ................................................................................................. 115

    poca das Charqueadas (1780-1888) Jorge Euzbio Assumpo ........139

    Caminhos da colonizao alem no Rio Grande do Sul: Polticas de Estado, etnicidade e transio Raul Rebello Vital Junior ..........................................159

    Caudilhos e fronteirios: A Revoluo Farroupilha e seus vnculos rio--platenses Arthur Lima de vila ............................................................181

    Da Colnia ao Imprio: Uma anlise da poltica externa Brasileira Ana Regina Falkembach Simo ............................................................203

    Aspectos da Revoluo Federalista no contexto poltico de Jlio de Castilhos Sergio Roberto Rocha da Silva ............................................................................223

    A colonizao no perodo Republicano segunda fase - Ren E. Gertz .........243

    O comeo do Tradicionalismo Gacho Paulo Roberto de Fraga Cirne ........265

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    OS NATIVOS CHARRUA/MINUANO, GUARANI E KAINGANG: O PROTAGONISMO INDGENA

    E AS RELAES INTERCULTURAIS EM TERRITRIOS DE PLANCIE, SERRA E

    PLANALTO DO RIO GRANDE DO SUL

    * Lus Fernando da Silva Laroque

    Os indgenas Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang so populaes que tambm fazem parte do territrio que pas-sou a chamar-se Rio Grande do Sul. O objetivo deste captulo promover uma breve reflexo sobre algumas historicidades indgenas, considerando estes povos tambm como protago-nistas de eventos ocorridos no perodo que se estende desde o sculo XVI at as trs primeiras dcadas do sculo XX.

    A historiografia tradicional costuma priorizar a verso dos conquistadores e governantes representados por militares, viajantes, religiosos, engenheiros, diretores de aldeamentos, entre outros, os quais so encontrados nos documentos e re-lembrados na literatura. As vozes indgenas, na maior parte das vezes, esto demasiadamente silenciadas nas fontes, me-recendo um exerccio hermenutico e uma abordagem in-terdisciplinar entre arqueologia, histria e antropologia, por exemplo, para captar os sentidos e a interpretao de histo-ricidades. Tendo em vista tais limitaes, a opo condutora para as reflexes considerar a atuao de algumas lideranas Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang.

    Recorrendo a trabalhos como de Sahlins (1970) e Service (1984), importante ressaltar que, nas sociedades tradicionais, o poder no est separado do corpo social, conforme ocorre com sociedades com a presena do Estado, portanto, as lide-ranas em questo somente mantinham-se na funo quando

    * Doutor em Histria. Professor do Curso de Histria e do Programa de Ps-Graduao em Ambiente e Desenvolvimento do Centro Universitrio UNIVATES, em Lajeado/RS.

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    representavam os interesses das famlias dos nativos.1 Nos as-pectos relacionados a situaes envolvendo distintos grupos tnicos, bem como alianas, guerra e reatualizaes culturais, tem-se os estudos de Barth ([1969] 2000), Clastres (1987), Sahlins (1990) Vainfas (1995) e Viveiros de Castro (2002).

    O presente captulo procura considerar as categorias ter-ritoriais que faziam parte da historicidade geogrfica dos Char-rua/Minuano, Guarani e Kaingang, os quais respectivamente envolvem territrios mesopotmios, guars e bacias hidrogrfi-cas. Fundamentao para isto so os trabalhos de Seeger e Cas-tro (1979) e Ramos (1988). Este autor enfatiza que a concepo de limite territorial no estranha s sociedades nativas, mas sim o sentido de exclusividade e de policiamento de um ter-ritrio nos moldes concebidos pela Sociedade Colonial e Na-cional brasileira (RAMOS, 1988, p.14). Frente a isso, situaes envolvendo territorialidades das populaes indgenas, por um lado, extrapolam ao longe a geografia do Rio Grande do Sul e, por outro, suas concepes de fronteiras eram bastante fluidas, porque, embora guerreando entre si, esses grupos conviveram em um mesmo territrio antes mesmo da chegada dos ibricos.

    1 Os Charrua/Minuano em territrios mesopot-mios dos rios Salado, Prata, Uruguai, Negro e Ibicu

    Os Charrua e Minuano so duas populaes que apresen-tam caractersticas diferentes no plano fsico e no social, embo-ra os colonizadores, muitas vezes, as juntassem e confundissem como uma s (LAROQUE, 2002). Em decorrncia disto, sero tratados em conjunto os aspectos abordados as ambas etnias.

    No Rio Grande do Sul, Charrua/Minuano ocupavam reas de campos do sudoeste, at aproximadamente a altura dos rios Ibicu e Camaqu, mas tambm se estendiam para o pampa uruguaio e as pequenas pores do territrio argentino.

    1 O termo nativo refere-se a povos em seu ambiente tradicional. Procura-se evitar sempre que possvel a designao ndio, pois, conforme Caleffi (1997), trata-se de uma identidade atribuda pela historiografia brasileira e que nunca deu conta da diversidade destas populaes.

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    Cada uma delas, entretanto, ocupava reas bem-definidas. Os Charrua moravam mais para o oeste, ocupando ambas as margens do Rio Uruguai e tiveram maior contato com o colonizador espanhol, enquanto que os Minuano se loca-lizavam mais para leste, nas reas irrigadas pelas lagoas dos Patos, Mirim e Mangueira, com extenso at as proximidades de Montevidu; tiveram maior contato com os portugueses (BECKER, 1991, p. 145).

    Os Charrua/Minuano praticavam a caa, a pesca e a cole-ta. Alguns arquelogos cogitam a possibilidade da cultural ma-tria produzida pelos antepassados destes indgenas pertencer

    Ilustrao 1 Mapa de reas indgenas no Rio Grande do Sul (sc. XVIII)

    Fonte: Riograndino Silva (1968).

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    Tradio Arqueolgica Vieira, construtora dos cerritos. Per-tenciam a um mesmo tronco lingustico, mas no est claro se falavam a mesma lngua ou dialetos diferentes.

    Nas primeiras dcadas do sculo XVI, as expedies sobre os territrios Charrua/Minuano foram espordicas. Entretanto, a partir de meados deste mesmo sculo e primei-ras dcadas do sculo XVII, os interesses das Coroas Ibricas crescem na regio e alianas com lideranas Charrua, como Zapicn, Min, Guaytn, e lideranas Minuanas, como Cloyan e Lumillan, passam a ser efetivadas. Possivelmente pela lgica nativa, essas alianas possibilitaram vantagens das parcialida-des lideradas por estes caciques para lutarem contra os grupos indgenas inimigos que tambm ocupavam o territrio.

    No que se refere utilizao da aliana e guerra nas sociedades nativas, Pierre Clastres, no trabalho Investigaciones em antropologa poltica, enfatiza:

    Ya hemos indicado que, por la voluntad de indepen-dencia poltica y el dominio exclusivo de su territorio manifestado por cada comunidad, la posibilidad de la guerra est inmediatamente inscrito en el funciona-miento de estas sociedades: la sociedad primitiva es el lugar del estado de guerra permanente. Vemos aho-ra que la bsqueda de alianzas depende de la guerra efectiva, que hay una prioridad sociolgica de la guer-ra sobre la alianza. Aqu se anuda la verdadera relaci-n entre el intercambio y la guerra. (...) Precisamente a los grupos implicados en las redes de alianza, los so-cios del intercambio son los aliados, la esfera del inter-cambio recubre exactamente la de la alianza. Esto no significa, claro est, que de no haber alianza no habra intercambio: ste se encontrara circunscrito al espa-cio de la comunidad en el seno de la cual no deja de operar nunca, sera estrictamente intra-comunitario. (CLASTRES, 1987, p.207, grifos do autor)

    Segundo Reichel e Gutfreind (1996), na poro Oeste, comea a fundao das primeiras cidades espanholas (1527-1577); na parte Leste, as portuguesas (1680-1737), as quais foram acompanhadas de grandes batalhas, em que uma boa

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    parte dos Charrua/Minuano foram atingidos. Isso, gradativa-mente, haveria de produzir uma mudana fundamental em todo o territrio indgena, pois essas populaes neste primei-ro momento no se submeteram encomienda,2 mita3 e s redues/misses,4 sendo que esta ltima fora utilizada principalmente com os indgenas Guarani.

    Nos sculos XVII e XVIII, as frentes expansionistas nos tradicionais territrios Charrua e Minuano continuavam de forma lenta e cada vez mais efetiva. No final do sculo XVIII e nas primeiras dcadas do sculo XIX, os tradicionais territrios Charrua/Minuano da bacia hidrogrfica do Rio da Prata so efe-tivamente ocupados pelos colonizadores portugus e espanhol.

    2 A encomienda consistia na concesso de nativos que a Coroa espanhola dava ao colonizador para tra-balharem em servios forados das minas e/ou agricultura. Em troca dessa concesso, o colonizador tinha o compromisso de cristianiz-los (MAHN-LOT, 1990, p. 69,83). 3 Mita era uma forma de trabalho desenvolvido pelos ndios nas minas de prata e ouro. Como pagamento, recebiam uma remunerao insuficiente para sua sobrevivncia (MAHN-LOT, 1990, p. 76).4 As redues foram tambm conhecidas como Misses. Consistiam em aldeamentos, nos quais os ndios eram reunidos para receberem ensinamentos sobre a religio catlica e para trabalharem sob a direo dos padres (CAMPOS; MOHLNNIKOFF, 1993, p. 16).

    Ilustrao 2 Mapa de areas indgenas no Sul do Brasil

    Fonte: Curt Nimuendaj, 1987.

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    As cidades multiplicaram-se e a explorao econmica, produzindo carne e couro para o mercado interno e europeu, aumentou significativamente.

    Neste contexto, possvel apontar o protagonismo Char-rua/Minuano a partir das lgicas nativas, como o exemplo da atuao de lideranas Naigualv, Gleubilb e Doimalnaej, lu-tando ao lado de Don Francisco de Vera Mujica em territrios prximos a Santa F contra indgenas inimigos (BECKER, 1991). Por outro lado, quando os interesses nativos no mais estavam sendo atendidos, rompiam as alianas e recorriam guerra, con-forme ilustra a situao envolvendo o cacique Campusano.

    Este cacique Charrua entrerriano, pasado el pri-mer Trcio del siglo XVIII tnia sus tolderas em ls mrgenes del arroyo Feliciciano. Presume A. y Lara que es el mismo Campusano que, a fines de abril de 1749, com um grupo de ndios hurt caballadas de ls estncias del Pueblo Reduccin de Santo Do-mingo Soriano. Habiendo salido en su persecucin el Teniente de Dragones Francisco Bruno de Zava-la con un escuadrn en un potrero del Queguay. (BARRIOS PINTOS, 1981, p.87-88)

    Gradativamente, as populaes indgenas so empurra-das para o interior, local onde suas possibilidades de sobrevi-vncia so cada vez mais difceis, principalmente pela dispu-ta com grupos inimigos, como Araucanos, Tehuelches, entre outros, que tambm estavam em movimentao pelo territ-rio, devido s frentes expansionistas (SARASOLA, 1996). Em decorrncia de no terem desenvolvido sua sustentabilidade nos moldes do capitalismo, bem como insistiam em continuar com seus padres culturais um captulo da histria Charrua/Minuano no sculo XIX, resume-se pelos dois combates feitos traio o de Salsipuedes (1831) e o de Mataojos (1832) nos quais os indgenas destas duas etnias foram extermina-dos em grande maioria ou retirados de seu tradicional terri-trio, como, por exemplo, Vaimaca-Peru, Senaqu, Tacuab e Guyunusa, que foram levados pelo comerciante Franois de Curel para Paris, lugar de onde no mais retornaram (HIL-BERT, 2009). A partir desses dois conflitos, equivocadamente

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    propagou-se um discurso que os poucos Charrua/Minuano sobreviventes teriam foradamente se integrado na sociedade da Banda Oriental do Uruguai.

    2 Os Guarani em territrios de Guar

    Os Guarani, pertencentes Famlia Lingustica Tupi--Guarani e Tradio Ceramista Tupiguarani, eram tambm chamados de Carijs, Arachanes, Tapes, Patos, entre outras nominaes. Informaes produzidas por cronistas, expedi-cionrios, viajantes e padres jesutas indicam que os Guarani representavam, no perodo colonial, a maior parte da popula-o indgena no Rio Grande do Sul. Eram horticultores, ti-mos ceramistas e, alm de dedicarem-se caa e pesca, pra-ticavam a antropofagia. Segundo Laroque (2002), ocupavam territrios localizados em vrzeas de rios como o Uruguai, o Jacu, a Laguna dos Patos e o Lago Guaba, mas estendiam-se tambm para outras reas da Amrica do Sul localizadas entre Rio Paraguai e o Oceano Atlntico (ver Ilustrao 2, p. 19).

    importante enfatizar que, pela lgica Guarani, a re-lao com o espao, bem como as categorias que atribuem a estes so totalmente distintas da forma como os ibricos se relacionavam com estes espaos. Francisco Noelli (1993), fun-damentado em registros dos cronistas, etngrafos e, muitas vezes, testadas em modelos etnoecolgicos e arqueolgicos, apresentou, como se v na Ilustrao 3, trs categorias espa-ciais da geografia Guarani: guar, tekoh e tei.

    Ilustrao 3 Categorias espaciais Guarani

    Fonte: Noelli, 1993, p.250.

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    O guar, segundo a definio de Montoya, significa tudo aquilo que est contido dentro de uma regio qualquer. Francisco Noelli (1983), utilizando-se de estudos de Branis-lava Susnik, informa que, para esta autora, o guar enten-dido como um conceito sociopoltico que determinava o do-mnio exclusivo de uma regio pelos seus habitantes, onde lhes era assegurado o pleno direito da roa, caa e pesca para sua subsistncia.

    De acordo com informes de vrios jesutas do Guair, Itatim, Tape e Uruguai, o guar estaria sob a liderana de uma pessoa de grande prestgio poltico e espiritual, ressaltando tambm que alguns guar seriam compostos por at 40 al-deias unidas por laos de parentesco e reciprocidade, com vida material e simblica comum (NOELLI, 1993, p.248-249).

    O guar, por sua vez, seria subdividido em unidades ter-ritoriais socioeconmicas denominadas de tekoh, onde esta-riam os stios arqueolgicos e as aldeias histricas. O tekoh dividia-se em trs nveis integrados: fsico-geogrfico, econ-mico e simblico. Sua rea estava geralmente bem-definida por colinas, arroios ou rios, onde estranhos s poderiam en-trar com permisso.

    Era o espao onde se produziam as relaes econ-micas, sociais e poltico-religiosas essenciais a vida Guarani [...]. Por fim, como dizem os Guarani, se tek era o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o tekoh era o lugar, o meio em que se davam as condies que possibilitavam a subsis-tncia e o modo de ser dos Guarani. (MELI apud NOELLI, 1993, p.249-250)

    O tekoh, por sua vez, era formado por tei isolados ou agrupados em funo das condies locais e polticas. Tei, na linguagem antropolgica, significa famlia extensa, onde vivia a linhagem que poderia contar com at 60 fam-lias nucleares.

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    A seguir, na Ilustrao 4, ser apresentado um mode-lo hierrquico hipottico da construo territorial (NOELLI, 1993, p. 250), o qual mostra, aproximadamente, uma sequn-cia desde a famlia nuclear at o guar.

    Ilustrao 4 Modelo hierrquico hipottico da construo territorial

    Fonte: Noelli, 1993, p.250.

    A captao de recursos pelos Guarani, de uma forma ge-ral, foi setorizada por Noelli em horticultura (roas), coleta, caa e pesca. Suas roas, nas quais geralmente cultivavam o milho, a mandioca, o amendoim, o feijo, entre outros, pro-vavelmente instalavam-se em zonas de transio entre a Pla-ncie Costeira e a Depresso Central, ou, ento, em lugares de vegetao similar. importante ressaltar que a roa, entre os muitos outros domnios da aldeia, era apenas um dos espaos de insero de alimentos.

    A regio do tekoh est caracterizada por zonas de vege-tao campestre (tapete de gramneas), vegetao silvtica (ma-tas de galeria, matas arbustivas, capes) e vegetao palustre (reas inundveis), onde aparece concentrada uma variedade muito grande de espcies das quais destacam-se os butis, ara-s, anans, ings e tambm os pinhes, recursos de coleta. Es-sas atividades de coleta, muitas vezes, tambm eram realizadas em reas de plantas cultivadas nas antigas roas abandonadas.

    Quanto caa, a partir das informaes de Becker (1992), possvel constatar que, excluindo os perodos que

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    cercam a poca dos ritos de passagem, da menstruao, da gravidez, dos jejuns ligados prtica religiosa individual ou coletiva e os gostos pessoais, os Guarani comiam todos os se-res vertebrados e muitos invertebrados.

    As frentes de expanso ibricas, no decorrer do scu-lo XVI, a fundao de cidades espanholas e, posteriormente, lusitanas, nos tradicionais territrios Guarani, e a explorao econmica, sero responsveis por um violento decrscimo populacional desses nativos e um acirramento de conflitos b-licos entre os Guarani e os no ndios pela Amrica do Sul.

    No incio do sculo XVII, os administradores espanhis resolveram chamar primeiramente os franciscanos e depois os padres da Companhia de Jesus para que, por meio do aten-dimento religioso, pudessem acalmar os indgenas encomen-dados ou no. Os jesutas, em um primeiro momento, opuse-ram-se, mas acabaram por obedecer as orientaes da Coroa espanhola. Inicialmente trabalharam junto ao Guarambar, Ipan e Guayr, onde perceberam a inadequao do modelo missionrio at ento empregado.

    Em contraposio, os padres jesutas propuseram o sis-tema de Misso/Reduo, no qual os ndios a serem catequi-zados deveriam ser organizados em povoaes concentradas, livres dos fazendeiros espanhis, e que s dependessem do Rei. Nasciam, assim, as cinco Frentes Missionrias da Anti-ga Provncia Jesutica do Paraguai, denominadas de Guayr (Paran), Paraguay (Paraguai), Itatim (Mato Grosso do Sul), Uruguay (Brasil-Uruguai) e Tape (Rio Grande do Sul), sob a responsabilidade geral do Padre Juan Ruiz de Montoya.

    Como o recorte espacial deste captulo se atm princi-palmente a territrios do Rio Grande do Sul, sero tratados aqui, especificamente, alguns aspectos da Frente Missionria do Tape, mas que no se diferenciou muito das outras quatro.

    A Frente Missionria do Tape localizava-se na regio Centro-oeste do Rio Grande do Sul. Iniciou em 1626, quan-do o Pe. Roque Gonzlez, em decorrncia de alianas que o

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    Cacique eenguir, liderana geral possivelmente de um dos guar localizado na Provncia do Uruguai e do Tape, conse-guiu atravessar o rio Uruguai na altura da confluncia com o rio Ibicu. Inicialmente, chegou aldeia do cacique Taba-c, com o qual tambm contraiu aliana, o que possibilitou a fundao da Reduo Nossa Senhora de Candelria. Entre-tanto, os Guarani contrrios ao estabelecimento de alianas com os jesutas e utilizando-se da guerra atacavam os padres e os Guarani que com eles se encontravam, como foi o caso do Pe. Cristbal de Mendoza, morto pelo cacique Tayubay e seus seguidores (BECKER, 1992).

    As outras misses/redues, ao que parece, somente fo-ram fundadas devido s lideranas Guarani, como Guaymi-ca, Cuniamb, Arazay, Guiracur, Tayaob, Ayerobi, Aruy, Cuamb, Carayuchur, entre tantas outras, terem avaliado positivamente e em termos de alianas indgenas a presena dos padres em seu territrio, deciso posteriormente refora-da pelas notcias que passaram a ter dos ataques bandeirantes em territrios Guarani do Norte. Assim que, em 1626, foram fundadas as Misses de So Nicolau e So Francisco Xavier; em 1627, Candelria do Ibicuy; em 1628, Candelria do Pira-tini, Assuno do Iju e Caar; em 1631, So Carlos e Apsto-los; em 1632, So Toms, So Jos, So Miguel, So Cosme e Damio, Santa Teresa, Jesus Maria, Santa Ana e Natividad; em 1634, So Joaquim e So Cristvo (PORTO, 1954).

    A ttulo de ilustrao destas alianas pode-se apontar Arazay (chamado tambm de Roque, Quiraque e Caguira), que, segundo a Carta nua de 1633, tratava-se de um grande cacique que teria se batizado e aceitado o Cristianismo. Em decorrncia do cargo que representava entre os Guarani, in-terviu em termos nativos para os padres fundarem a Misso de So Toms e So Miguel. No so encontradas na docu-mentao maiores informaes sobre essa liderana, mas uti-lizando-se o estudo de Ronaldo Vainfas, A heresia dos ndios (1995), sobre a Santidade do Jaguaribe com os Tupi, os quais

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    orquestravam os eventos por sua prpria lgica, bem como a obra de Viveiro de Castro, A incostncia da alma selvagem (2002), possvel constatar que os indgenas, frente aos pro-psitos das misses, comportavam-se como esttuas de murta e no de pedra. Ou seja, reatualizavam algumas aes, mas os significados continuavam sendo nativos, portanto quando no mais era de seu interesse, o que provavelmente tambm deve ter ocorrido com os tei (famlias), que o cacique Arazay representava, tanto em termos de alianas como de prtica de batismo ou adoo ao Cristianismo.

    Neste contexto, onde os espanhis avanavam com sua frente expansionista missionria, os portugueses, em contra-partida, faziam o mesmo, mas com a frente expansionista ban-deirante e passavam a invadir as misses localizadas mais a Leste do territrio em busca de mo de obra indgena Guarani para o trabalho escravo nas lavouras de cana-de-acar. No perodo compreendido entre 1612 e 1638, foram capturados aproximadamente 300.000 ndios, dos quais mais da metade morreram no caminho para o cativeiro, por doenas ou re-presso s fugas.

    Especificamente no Tape, os ataques mais intensos ocor-reram entre 1635 e 1639, quando os bandeirantes Antnio Ra-poso Tavares e Ferno Dias Paes destruram vrias das redu-es. Os milhares de ndios que restaram tiveram, mesmo com relutncia, de abandonar suas terras e migrar para a margem direita do Rio Uruguai. Em consequncia disso, o gado trazido pelos jesutas ficou solto, passando a viver e a procriar-se livre-mente pelos campos da Depresso Central e da Campanha.

    Desta forma, os povoados missioneiros, denominados muitas vezes de Trinta Povos Jesutico-Guarani, tiveram uma controvertida experincia histrica, na Bacia do Rio da Prata e na fronteira mvel existente entre os imprios portugus e espanhol. Quando os jesutas voltaram regio, meio sculo depois, encontraram grande quantidade de animais vivendo de modo selvagem na Vacaria del Mar.

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    A partir de 1682, foram reerguidas as redues de So Nicolau e So Miguel, assim como foram criadas cinco outras: So Francisco de Borja (1682), So Luiz Gonzaga (1687), So Loureno Mrtir (1690), So Joo Batista (1697) e Santo nge-lo Custdio (1707), as quais constituram o que ficou conhe-cido como os Sete Povos das Misses (ver Ilustrao 1, p. 17).

    Os Sete Povos, contando tambm com o protagonismo Guarani, prestavam servios Coroa espanhola e Roma, e adquiriam autonomia poltica e econmica. Essa autonomia, por sua vez, em termos de relaes internacionais europeias, acarretou-lhes antipatias e animosidades; motivos que escla-recem porque, em 1750, com a assinatura do Tratado de Ma-drid, a Espanha pretendeu entreg-los aos portugueses, em troca da Colnia do Sacramento.

    Os indgenas Guarani, mesmo com a aliana com os espanhis em curso avaliando a situao, decidiram que no deixariam o territrio. Isto automaticamente significava o rompimento da aliana e a deflagrao de guerra aos espa-nhis e portugueses. O conflito passou a ser conhecido como Guerra Guarantica (1753-1756), mas, apesar do protagonis-mo Guarani, como bem ilustra a conhecida frase esta terra j tem dono, do cacique Sep Tiaraju, os indgenas, pela desvan-tagem blica, perderam a guerra e a maior parte dos que no morreram precisaram abandonar seus territrios.

    Uma boa parte dos Guarani que ainda no havia aban-donado o territrio, aproximadamente 700 famlias, foi distri-buda pelo General Gomes Freire de Andrade, para o interior da Provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, constituindo a Aldeia de So Nicolau (Rio Pardo), a Aldeia de So Nicolau (Cachoeira do Sul) e a Aldeia Nossa Senhora dos Anjos (Gra-vata). Muitos descentes dessas famlias deram origem matriz gentica indgena de muitas pessoas do Rio Grande do Sul.

    Outros, porm, conforme Schmitz (1994, p.112), disper-saram-se pelas fazendas da Bacia do Prata, servindo de peo, tipicamente sem famlia e sem cho, como o Pedro Missio-

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    neiro do romance, O Tempo e o Vento, de rico Verssimo. possvel, ainda, mesmo que no se tenha conhecimento sobre fontes documentais, que os Guarani tenham continuado a cir-cular pelo territrio. Neste sentido, somente a partir de mea-dos do sculo XX as fontes passam novamente a dar visibili-dade presena Guarani no Rio Grande do Sul denominados ento de Mby Guarani, os quais retornaram para seus tradi-cionais territrios em busca do Yrovaigua (Terra sem Males).

    3 Os Kaingang em territrios de Bacias Hidrogrfi-cas dos rios Uruguai e Jacu

    Os nativos Kaingang, no Rio Grande do Sul, quando iniciou a conquista europeia, ocupavam o territrio localiza-do entre o Rio Piratini (afluente da margem esquerda do Rio Uruguai) e as cabeceiras do Rio Pelotas, tendo como limite meridional os ltimos contrafortes do Planalto junto mar-gem esquerda da bacia hidrogrfica do Rio Jacu (ver Ilustra-o 1, p. 17). Entretanto, importante ressaltar que o gran-de territrio Kaingang estendia-se tambm pelos estados de Santa Catarina, Paran, So Paulo e em Missiones, na Argen-tina (LAROQUE, 2007).

    No entender de alguns estudiosos, os antepassados dos Kaingang foram os provveis responsveis pela cultural mate-rial denominada de Tradio Arqueolgica Taquara e teriam ocupado territrios de planalto conhecidos como buracos de bugre. Os Kaingang dedicavam-se tambm caa, pesca, pequena horticultura e, principalmente, coleta do pinho (SCHMITZ; BECKER, 1991).

    O nome Kaingang,5 na verdade, foi introduzido na li-teratura etnogrfica por Telmaco Borba, em 1882, para de-

    5 Durante os sculos XVI, XVII e XVIII, estes nativos tinham a denominao geral de Guayn. Na maior parte do sculo XIX, foram conhecidos pelo nome de coroado. Entretanto, no sculo XX, convencionou-se cham-los de Kaingang (SCHMITZ apud BECKER, 1976, p. 7).

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    signar os indgenas no Guarani que ocupavam territrios de planalto no sul do Brasil. Pertencem ao grande tronco lingus-tico J e aparecem na documentao e na bibliografia com as nominaes de Ibirairas, Caguas, Guananses, Coroado, Guayan, Bugre, Gualacho, Botocudo, Xokleng, Bate, Chova, Pinar, Cabelludo, Kaigua, Kaagu, Aweikoma, entre outros (LAROQUE, 2000).

    As informaes iniciais sobre os Kaingang so poucas e retrocedem ao sculo XVI, quando ocorreram os primeiros contatos com o colonizador. No sculo XVII, o Pe. Luiz de Montoya e Dias Tao tentaram reduzi-los, mas no tiveram sucesso. Segundo eles, estes ndios eram totalmente diferen-tes dos Guarani, com os quais tinham tido experincia. nica exceo a salientar foi o Pe. Cristovo de Mendona, que, em 1630, teria fundado a Reduo da Conceio (no territrio de Guandan - alto curso do Rio Uruguai), na qual, segun-do os cronistas, teria aldeado aproximadamente 3.000 ndios (SCHADEN, 1963).

    Do contato inicial at o sculo XVIII, apesar do bandei-rismo paulista rumo ao Sul, a procura de terras, ouro e mo de obra escrava, os Kaingang continuavam a manter sua cul-tura original. Na primeira dcada do sculo XIX, as fazendas de colonizao luso-brasileira somente ocupavam as reas de campo, deixando, com isso, a maior parte do planalto e da mata aos Kaingang (ver Ilustrao 2, p. 19).

    Entretanto, a partir de 1824, teve incio a primeira fase da imigrao alem, que se estendeu at 1889 (ROCHE, 1969). O governo imperial, aproveitando-se dessa situao, distribuiu a esses colonos, segundo tala Basile Becker (1991), muitos dos territrios Kaingang, que se estendiam desde o Rio dos Sinos at a borda do planalto, propiciando, com isso, o aparecimen-to de colnias como So Leopoldo, Feliz, Mundo Novo, Bom Princpio, So Pedro de Alcntara de Torres, Trs Forquilhas, entre outras.

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    Frente a essa situao, os alemes, para chegarem e/ou ocuparem muitos dos lotes distribudos, precisavam enfrentar a reao nativa, o que gerava, consequentemente, uma situao bastante tensa entre ambas as etnias porque enquanto os colo-nos tentavam se estabelecer nas terras que lhes cabiam por de-terminao imperial, o Kaingang via a penetrao efetiva nas terras onde havia nascido (BECKER, 1991, p.138).

    A ttulo de ilustrao destas reaes Kaingang, que, possivelmente, foram realizadas sob o comando de lideran-as como Braga, Yotoah (Doble), Nicu, Condur, entre ou-tras, tem-se os ataques localidade de Dois Irmos, em 26 de fevereiro de 1829, nos quais foram assassinados dois colonos alemes e um foi ferido, e, em 08 de abril de 1831, o ataque famlia Harras, quando foram vitimados trs colonos, dos quais dois ficaram feridos e uma criana foi raptada (F.W., 1913, p.87-88; PETRY, 1931, p.3; BECKER, 1976a, p.67,70).

    O governo provincial, aproveitando-se da passagem dos jesutas espanhis pelo Sul do Brasil,6 recorreu, a partir de 1845, ao Projeto de Catequese Kaingang. Entretanto, para a mentalidade da poca, a catequese e a civilizao dos nati-vos significavam a sua reduo em aldeamentos. O Pe. Antnio de Almeida Leite Penteado quem, inicialmente, se ofereceu para levar as primeiras luzes do Cristianismo aos Kaingang nas imediaes de Passo Fundo. Posteriormente, sob o comando do superior distrital Pe. Bernardo Pars, estabeleceram-se em Guarita os jesutas Aloysio Cots e Ignacio Gurri; em Nonoai, Lus Santiago Villarrubia e Juliano Solanellas; e no Campo do Meio, os Pes. Pedro Saderra e Miguel Cabeza. Essa ao mis-sionria, por sua vez, no conseguiu reduzir os Kaingang nos moldes feitos com os Guarani. Neste sentido, o Pe. Villarrubia

    6 Os jesutas, depois da expulso pombalina de 1759, tiveram uma passagem pelo Brasil durante o perodo de 1842 a 1867. O contexto desta nova fase em que atuaram principalmente nas Provncias de So Pedro do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina ocorreu em decorrncia de sua expulso da Argentina pelo ditador Rosas (AZEVEDO, 1984).

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    destacou, entre as dificuldades para o ensino da doutrina Cris-t, a indiferena religiosa que acreditavam que os Kaingang tinham, a falta de meios para os padres aprenderem a lngua Kaingang, o mau exemplo de outros cristos, a falta de respei-to humano e a preguia dos ndios (AZEVEDO, 1984).

    De concreto, o governo, por coao e/ou medida pre-ventiva, reduziu o espao vital Kaingang e, para tir-los dos seus territrios, iniciou, a partir de 1846, a Poltica Oficial dos Aldeamentos em reas como Guarita, Nonoai e Campo do Meio, nas quais se encontram, muitas vezes, caciques prin-cipais e chefes subordinados, como, por exemplo, Fongue, Votouro, Nonohay, Cond, Nicafim, Braga, Yotoah (Doble), Nicu (Joo Grande), entre muitos outros que, de acordo com os seus interesses, negociavam ou no a estadia de suas hordas nessas reas (LAROQUE, 2009).

    A poltica governamental para aumentar o povoamento e propiciar melhores formas para o escoamento da produo econmica parte, entre 1848 e 1850, para a abertura de mais estradas, como, por exemplo, a de Mundo Novo-So Leopoldo e Ponto-Ca-Porto Alegre. Conforme tala Becker (1976a), boa parte dessa segunda estrada j havia sido delineada pelo engenheiro agrimensor das colnias Alphonse Mabilde des-de 1835, quando percorreu a regio. Seu traado tinha como ponto de partida o Passo do Ponto no Rio Uruguai (mais precisamente na confluncia do Rio Pelotas com o Canoas), e terminava na Picada Feliz, que se localizava no Ca.

    Reagindo a esta situao, ao longo da dcada de 1850, as correrias Kaingang continuaram tanto em algumas reas de colonizao alem quanto em regies luso-brasileiras, como Cruz Alta, Passo Fundo, Vacaria, entre outras.

    Apesar dos aldeamentos, os ataques e estragos con-tinuavam, como bem mostra um relatrio de Homem de Mello ao passar a administrao da Provncia, em 1868, ao Vice-presidente, Sr. Joaquim Vieira da Cunha.

    No dia 14 daquele ms assaltaram os bugres a casa do colono Lambertus Werteg, da colonia de santa Maria da Soledade, sita no 5 distrito do termo de

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    S. Leopoldo, levando para as matas a famlia do mesmo colono, composta de mulher e filhos. (RE-LATRIO de 13/04/1868, p.30)

    Durante a primeira metade da dcada de 1870, na Pro-vncia de So Pedro do Rio Grande do Sul, alguns registros sobre os aldeamentos de Nonoai e Campo do Meio mostram claramente que a legislao respaldada pela Lei de 1850 pos-sibilitava a tomada das terras indgenas, isto , inicialmente demarcavam-se as reas e depois passava-se a reduzi-las, re-correndo ao discurso de que estavam improdutivas (RELA-TRIO de 14/03/1871, p.31; FALLA de 1872, p.33-34; FALLA de 1874, p.41-42).

    As lideranas, por sua vez, continuavam a atuar inten-samente frente a toda esta trama, como bem demonstra a fala do Presidente Conselheiro, Jeronimo Martiniano Figueira de Mello, dirigida, em 1872, Assembleia Legislativa da Provn-cia, ao informar que os nativos, sob a direo dos caciques e chefes, saam do Aldeamento de Nonoai e se espalhavam pelos municpios de Passo Fundo e Cruz Alta.

    Tratando-se da segunda metade da dcada em questo, importante ressaltar que, a partir de 1875, os italianos co-mearam a chegar na Provncia e estabelecerem-se em reas como Bento Gonalves, Caxias do Sul, Garibaldi, entre outras, mas que, segundo Basile Becker (1991, p.138), estes no tive-ram maiores problemas com os Kaingang, porque, nesta po-ca, eles j haviam migrado para outras regies.

    Tambm na ltima dcada do sculo XIX, os ataques s fazendas, as desavenas entre as faces e as estratgias utiliza-das pelos diretores para reduzir as terras indgenas ainda con-tinuavam. Relativo primeira situao, um relatrio do Presi-dente Carlos Thompson Flores discorre que, constantemente, os fazendeiros estabelecidos nas vizinhanas dos aldeamentos de Guarita, Nonoai e Campo do Meio reclamavam das correrias e ameaas Kaingang s suas propriedades. Quanto s desaven-as entre as parcialidades, nesse mesmo relatrio, referindo-se possivelmente a guerreiros do grupo do Cacique Nhancui, ocupantes de territrio da margem direita do Rio Uruguai,

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    [...] havendo aparecido margem direita do Rio Uruguai, nas proximidades de Nonoai, uma tribu de indios bravos, fra batida pelos indigenas do al-deamento daquela denominao, que lhes sairam ao encontro e em poder de quem ficaram 4 mulheres e 7 crianas. (RELATRIO de 15/04/1880, p.39-40)

    No decorrer da dcada de 1880 at a Proclamao da Repblica, percebe-se que as coisas no foram diferentes, ou seja, os Kaingang e suas lideranas, agindo de acordo com os seus prprios termos, mantiveram, at onde lhes interessava, alianas com os no ndios e, consequentemente, a permann-cia ou no dos integrantes de suas parcialidades nos aldea-mentos. O presidente Carlos Thompson Flores, por exemplo, descreve, no relatrio de 15 de abril de 1880 (p.39-40), que os fazendeiros estabelecidos nas vizinhanas dos aldeamentos de Guarita, Nonoai e Campo do Meio frequentemente reclama-vam das correrias e ameaas Kaingang em suas propriedades.

    Tratando sobre continuidade da identidade dos grupos tnicos em contato, Fredrick Barth destaca:

    Se um grupo mantm sua identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existncia de critrios para a determinao do per-tencimento, assim como as maneiras de assimilar este pertencimento ou excluso [...] Alm disso, a fronteira tnica canaliza a vida social. Ela implica uma organizao, na maior parte das vezes bas-tante complexa, do comportamento e das relaes sociais. A identificao de uma outra pessoa como membro de um mesmo grupo tnico implica um compartilhamento de critrios de avaliao e de julgamento. (BARTH, 2000, p.34)

    Nos primeiros anos do sculo XX, a situao Kaingang praticamente a mesma do perodo anterior, pois a penetrao e a cobia em suas terras continuaram. A partir de 1903, no entanto, na regio de Lagoa Vermelha, tem-se a presena da catequese dos capuchinhos:

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    Nas florestas do Norte do Estado existem ainda algumas tribos dos grupos que ocupavam o Brasil quando de sua descoberta. Um dos nossos missio-nrios, Frei Alfredo de Saint Jean-dArves, numa de suas inmeras excurses apostlicas, havia conseguido chegar at esses infelizes. Em vista do relatrio que me apresentou, resolvi visit-los eu mesmo com o objetivo de verificar se haveria pos-sibilidade de empreender algo para lhes proporcio-nar os benefcios da civilizao. [...]. Para chegar a seus toldos preciso viajar vrios dias pela flores-ta, transpor rvores arrancadas, atravessar a vau cursos dgua, que se tornam instransponveis menor chuva; cavalgar por atalhos obstrudos, por banhados, barrancos, etc. Conversei com os chefes, falei com as autoridades civis e ficou estabelecido que se tentaria junto ao Governo do Rio Grande do Sul obter uma rea de terreno, no municpio de La-goa Vermelha, s margens do Rio Forquilha, para a reunir os diversos toldos e que, em seguida, um missionrio, ou dois, ocupar-se-iam de sua instru-o religiosa e civil. (GILLONNAY apud COSTA E DE BONI, 1996, p. 355-357)

    Paralelo catequese capuchinha com os indgenas, o engenheiro Carlos Torres Gonalves, confrade de Rondon na Igreja Positivista brasileira, foi cogitado e aceitou, a partir de 1908, a Diretoria de Terras e Colonizao do estado. No desem-penho dessa funo, antecipou-se ao Governo Federal no enca-minhamento de uma poltica indigenista para o Rio Grande do Sul que estivesse em sintonia com os pressupostos positivistas.

    No Rio Grande, o trabalho de demarcao de terras foi realizado basicamente pela Diretoria de Terras e Colonizao. No perodo de 1911 at 1920, conforme o relatrio do Dire-tor Torres Gonalves, so encontradas, no estado, 12 reas de aldeamento Kaingang denominadas de Inhacor, Guarita, Nonoai (duas aldeias), Fachinal, Caseros, Ligeiro, Carretei-ro, Ventarra, Erechim, Votouro e Lagoo (RELATRIO de 09/06/1910 in: LAYTANO, 1957). Os caciques e chefes que apareciam nesses aldeamentos so Candinho, Faustino, For-tunato, Santos, Vito Supriano, Titi Fongue e muitos outros.

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    No decorrer da dcada de 1930, avanando inclusive para os anos de 1940, alm da frente colonizadora da Socie-dade Nacional efetivada principalmente pelas fazendas e pela explorao de riquezas vegetais que retrocedem ao incio do sculo, tem-se, tambm, uma segunda frente que se caracteri-za pela criao de reservas florestais em territrios indgenas. Neste sentido, ento, grande parte das reas indgenas foram ocupadas por posse ou arrendamento, seja de colonos imigran-tes (principalmente descendentes de alemes e italianos) ou de caboclos, resultando, muitas vezes, na perda de controle dos Kaingang sobre seus tradicionais territrios (ver Ilustrao 3).

    Ilustrao 3 Mapa de reas indgenas no Sul do Brasil na Repblica Velha

    Fonte: Lus Fernando Laroque (2011).

    Legenda

    1. Mangueirinha2. Palma3. Chapec4. Inhacor 5. Guarita6. Pary7. Nonoai 8. Serrinha9. Votouro10. Erechim11. Ventarra12. Ligeiro13. Carreteiro14. Faxinal15. Cacique Doble 16. Caseiros17. Lagoo

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    A ttulo de ilustrao dessa questo, tem-se o caso da rea Indgena de Serrinha, que, pelo Decreto n 658, de 10 de maro de 1949, Walter Jobim reduziu o territrio Kaingang para criao de uma reserva florestal. O argumento utiliza-do, segundo Jos Antnio Nascimento (2001, p.56), era o de evitar que os funcionrios do Servio de Proteo aos ndios devastassem a rea. Entretanto, o governo no fez nada para criar reas de preservao ambiental em reas no indgenas, como, por exemplo, em propriedades particulares com vasta extenso devoluta, expondo, com isso, o carter protetor das elites, que o Estado brasileiro sempre teve.

    4 Concluso

    Nessas primeiras dcadas do sculo XXI, observou-se que os povos indgenas no Rio Grande do Sul, semelhante-mente ao passado, continuam a viver seu protagonismo, a lu-tar por seus tradicionais territrios e a vivenciar sua histria e cultura.

    Ilustra a questo a situao Charrua, que a historiogra-fia considerou que, enquanto grupo, desapareceu. Porm, na primeira metade do sculo XIX, passado pouco mais que o perodo de um sculo, em plena capital gacha, um grupo de Charrua, liderado pela cacique Acuab, rompeu a invisibidade imposta e testemunhou que sempre esteve presente, percor-rendo os territrios no Rio Grande do Sul.

    Para os Mby Guarani no Rio Grande do Sul, que oficial-mente retornaram para o estado a partir da dcada de 1960, totalizam, aproximadamente, 3.000 indivduos, as questes no so diferentes. Falam a lngua guarani, alm do espanhol e do portugus. Elementos culturais, como, por exemplo, a cestaria, o artesanato, os cantos, o parentesco, o deslocamento pelo territrio e, principalmente, o universo religioso, conti-nuam sendo vivenciados e mantidos no seu dia a dia.

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    Os Kaingang, com um contingente atual em torno de 10 mil indivduos no Rio Grande do Sul, tambm continuam a vivenciar seu protagonismo. Ressalta-se ser o grupo que, mes-mo tendo o territrio bruscamente reduzido aps a dcada de 1930, esteve oficialmente presente como etnia, embora as esti-mativas governamentais e demogrfica insistissem em prever seu desaparecimento ou sua aculturao. Dentre os vrios elementos culturais desses nativos, so apontadas as pinturas corporais, o respeito ao universo simblico das duas metades que se encontram divididas, os cantos, as danas, o apego aos seus territrios tradicionais, a continuao da lngua e, prin-cipalmente, sua natureza guerreira manifestada recentemente quando bloquearam vrias rodovias gachas como forma de reivindicar melhorias na rea da sade.

    Para finalizar, chama-se a ateno para o fato de que as populaes indgenas, durante o contato com a Sociedade Co-lonial e Nacional brasileira, no deixaram de ter sua prpria ordenao histrica dos eventos que vivenciaram, uma vez que a histria ordenada culturalmente, mas a recproca tam-bm acontece (SALHINS, 1990). Neste sentido, ainda preci-so romper com a concepo esttica de cultura fundamentada no paradigma estrutural-funcionalista e difundida pelo Evo-lucionismo e Positivismo, as quais concebem que as socieda-des passam por estgios de evoluo ou de perda cultural. Infelizmente, esta viso ainda continua presente na atualidade e a dificultar relaes interculturais entre a sociedade Ociden-tal e as sociedades indgenas.

    Referncias

    AZEVEDO, Ferdinand. Jesutas espanhis no Sul do Brasil (1842-1867). Pesquisas. Histria 47. So Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, 1984.

    MarcioDestacar

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  • Releituras da Histria do Rio Grande do Sul

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    OS JESUTAS NO TERRITRIO GACHO

    * Ricardo Arthur Fitz

    1 A Companhia de Jesus e sua contextualizao his-trica

    O sculo XVI foi, sem dvida, um divisor de guas na Histria do mundo ocidental. A insero de vastas reas da Amrica, frica e sia na economia mercantil europeia al-terou significativamente os horizontes europeus. No havia mais limites ou barreiras intransponveis. Evidentemente, tais circunstncias no so geradas de forma abrupta no perodo, mas, sim, resultado de longa maturao, cujas razes podem ser vislumbradas no incremento das atividades comerciais na Baixa Idade Mdia. No bojo desse processo, desenvolveu-se o que se convencionou denominar Renascimento e que alcan-ou sua culminncia justamente no sculo XVI.

    Segundo Heller (1982), o Renascimento representou a primeira onda no processo de transio do feudalismo ao ca-pitalismo. As atividades capitalistas, na medida em que tm permanentemente metas a serem atingidas a produo de riquezas , tornam as vrias circunstncias previamente exis-tentes em fatores restritivos. O homem no deseja continuar a ser aquilo em que se transformou, antes vivendo um processo constante de devir, uma constante transposio de barreiras, rompimento de limites e hierarquias (MARX, GRUNDISSE apud HELLER, 1982, p. 11).

    Consequentemente, os limites tambm so rompidos nas conscincias humanas. Agnes Heller demonstra que a conscincia da historicidade do homem produto do desen-volvimento burgus. O Renascimento propicia, portanto, o

    * Professor da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA) e do Colgio Militar de Porto Alegre (CMPA).

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    surgimento de um conceito dinmico de homem em opo-sio a um conceito esttico dominante na Antiguidade , se-gundo o qual o mesmo homem passa a ter uma histria de desenvolvimento pessoal e a sociedade tambm adquire seu sentido de desenvolvimento (HELLER, 1982).

    Heller comenta que, durante a Antiguidade, prevale-ceu um conceito esttico de homem, cujas potencialidades eram limitadas. Tais limites acabaram sendo dissolvidos pela ideologia crist medieval na medida em que tanto a perfec-tibilidade quanto a perverso podem constituir um processo ilimitado. Ainda assim, limites se impunham, determinados pela transcendncia do incio e do fim: o pecado original e o Juzo Final.

    Portanto, ao passo que o comportamento intelectual do homem medieval era orientado fundamentalmente pela exe-gese da revelao tanto das autoridades religiosas, quanto das autoridades da Antiguidade o comportamento intelec-tual do homem do Renascimento, influenciado pelo Huma-nismo, voltava-se para suas prprias potencialidades e pos-sibilidades.

    De outro lado, a expanso das atividades comerciais de-finiu a superao das estruturas feudais nos nveis econmico e socioculturais. Decorre disso uma profunda mudana nas conscincias acerca de tempo e de espao.

    No que se refere ao tempo, Agnes Heller afirma que:

    Surgia com a dissoluo do quadro limitado das or-dens sociais feudais, a possibilidade de o indivduo subir ou descer, aderir ao dinamismo objetivo da sociedade; devia aprender-se o momento certo, de tal modo que o indivduo pudesse movimentar-se juntamente com a corrente histrica. O ritmo e o momento tornaram-se essenciais e totalmente compreensveis no interior do processo. (HELLER, 1982, p. 143)

  • Releituras da Histria do Rio Grande do Sul

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    Ainda, segundo a autora, esses conceitos de tempo no ultrapassaram (...) as generalizaes da experincia quotidia-na (HELLER, 1982, p. 143). Surgia, assim, uma nova concep-o de tempo vinculada a uma nova ordem social burguesia, por excelncia que se afirmava. Esse tempo colocado ao lado de um tempo religioso herdado da Idade Mdia. Assim, desde o final do sculo XV dois tempos passaram a convi-ver paralelamente: o tempo da Igreja, regido pelo sino e pela orao e o tempo laico, organizado matematicamente pelo relgio e pelos marcadores. (DECKMAN, 1991, p. 43). Este ltimo, ainda que voltado fundamentalmente para uma fun-cionalidade econmica objetiva, a saber, gerar riquezas, passa gradativamente a balizar o quotidiano ocidental e as concep-es modernas de organizao temporal.

    No que tange ao espao, tais alteraes nas conscincias constituam-se, antes de tudo, em uma consequncia direta das grandes descobertas. Comenta a autora:

    A mudana das idias de grande e pequeno trans-formou-se num tema da experincia quotidiana: tornou-se um lugar-comum, o mundo at ento conhecido ser apenas uma pequena parte da terra. Essa experincia pelo menos durante o perodo clssico do Renascimento tinha um efeito mobi-lizador; deu um impulso no sentido da descoberta de novos mundos. O vasto e desconhecido atraam, em vez de repelir; sua conquista era um desafio para a individualidade recm-desenvolvida, uma aventura. (HELLER, 1982, p. 142)

    Estas novas condies foram tambm determinantes na mudana de perspectivas de apreenso da realidade. At ento, por partirem da ideia de que a definio do universo vinha de Deus, [...] a fidelidade e a objetividade (dos relatos de viagem) eram suplantadas por imagens fantsticas (DECK-MAN, 1991, p. 47).

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    Na medida em que as navegaes atlnticas se desenvol-veram, novas fantasias destruram parcialmente o imaginrio medieval. Este processo de transio volatizou muitas das certezas do homem e o capacitou para dominar o mundo e devassar os mistrios da Natureza. (DECKMAN, 1991, p. 1).

    Os reflexos de tal atitude se fazem sentir em todas as esferas da vida europeia. Assim na arte, na cultura, no pen-samento e na religio. Os movimentos reformistas da religio so parte integrante deste contexto, criando-se um profundo abismo na cristandade. Os reformadores protestantes tm como alvo principal a teologia escolstica.

    Evidentemente, esta ruptura no significava um rompi-mento completo com os princpios determinantes da fase an-terior. Esses princpios vinham, agora, orientados em direo nova realidade dada. Assim, esta dinamicidade do homem se refletia, tambm, nas concepes religiosas que vo se definin-do no perodo. Lutero sem dvida um dos marcos mais sig-nificativos desta ruptura proclamava que a f est sempre, e incessantemente em aco; caso contrrio no f. (apud DICKENS, 1971, p.89). A f no passiva, ativa. Esta postu-ra radical, inclinadamente moderna, subordina a condio de existncia da f dinamicidade prpria da poca.

    significativo o fato de que o centro de educao teo-lgica da Igreja Catlica Romana deixava de ser Paris; outros centros, como Salamanca e Coimbra, menos atingidos pelas novas correntes de pensamento, tomaram seu lugar.

    dentro desse contexto que convocado o Conclio de Trento (1545-1563) e surge a Companhia de Jesus alm do reavivamento da Inquisio. A Companhia, aprovada pela bula Regimini Militantis Ecclesiae do papa Paulo III, cinco anos an-tes da convocao do Conclio, incorpora, todavia, o esprito tridentino no que se refere ao combate s heresias e aos movi-mentos reformistas. Contudo, nenhuma outra ordem religio-sa foi mais receptiva ao humanismo, em particular ao estudo renovado do Aristotelismo, que a Companhia de Jesus, esta-

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    belecendo-se inclusive longas controvrsias entre jesutas e to-mistas. No dizer do telogo sueco (luterano) Bengt Hgglund (1981), a nova ordem jesutica foi de natureza ecltica.

    Jean Lacouture (1994, p. 89) afirma que:

    , ao mesmo tempo antes e depois da adoo do humanismo renascentista que devemos buscar e avaliar o tesouro conquistado ao longo dos anos parisienses pelos alunos de Santa Brbara: uma nova concepo da transmisso do saber, e numa abertura para o mundo que s se manifestar mais tarde, mas que o debate dos sete pais funda-dores, no momento do pronunciamento dos votos de Montmartre, permitiu antever.1 (grifos do autor)

    De fato, os jesutas no ficaram de todo imunes s mu-danas ocorridas no perodo. Se, de um lado, era-lhes muito presente o esprito cruzadista medieval talvez por influn-cia das experincias diretas [pessoais] de Loyola e os seus princpios norteadores, tambm deve-se considerar o esprito investigativo, presente na viso de mundo do homem da poca, e que de certa forma se manifestava nos componentes da So-ciedade de Jesus. O esprito cruzadista, traduzido frmula da evangelizao do oriente e das populaes nativas da Amrica, constituiu na verso inaciana do binmio f/ao de Lutero.

    Por outro lado, o individualismo nascente tipicamen-te renascentista e, tambm ele, de alguma forma, se faz pre-sente entre os jesutas. A posio de Santo Incio, expressa principalmente nos Exerccios Espirituais, privilegia a cons-cincia, forma do individualismo inaciano, como ponto onde se decide a bondade ou a maldade da vida humana. Neste aspecto, h uma aproximao com Lutero: o cuidado com sua prpria salvao.

    1 Ao utilizar as expresses alunos de Santa Brbara, o autor est se referindo a Incio de Loyola, que havia estudado no Colgio de Santa Brbara, em Paris; ao se referir aos sete pais fundadores, tratados primeiros seguidores de Incio.

  • 48

    2 Os jesutas e sua relao com o Estado espanhol

    Politicamente, o Conclio de Trento aproximava-se do Ab-solutismo Monrquico ento instalado na Europa, tendo a Igreja colocado-se lado a lado ao Estado. Para que tivesse seu poder reconhecido, o rei deveria demonstrar estar imbudo de pensa-mento cristo. essa a base do Absolutismo de direito divino. Do ponto de vista das conquistas territoriais dos sculos XV e XVI, exige-se dele compromisso cristo com as regies conquis-tadas. Essa a base da expanso religiosa do perodo colonial.

    Na Pennsula Ibrica, no h muito tempo, o ltimo bastio de resistncia muulmana havia sido dobrado, com a conquista de Granada, em 1492. O esprito cruzadista que acompanhou a Reconquista vai marcar intensamente a Espa-nha recm-unificada pelos Reis Catlicos, Fernando de Ara-go e Isabel de Castela. Isto evidencia que

    no foi o pensamento jesutico que orientou a con-verso do gentio f catlica ou o que estimulou o esprito cruzadista dos colonizadores, pois j havia uma estrutura mental global, totalizadora e ante-rior aos jesutas (QUEVEDO, 2000, p. 21).

    Desde a primeira viagem de Colombo Amrica (1492) ficara clara a proximidade do Estado espanhol com a Igreja. O papa Alexandre VI, nascido na Espanha, garantiria a esta os territrios conquistados ou a serem conquistados atravs das bulas Inter Coetera, adiante substitudas pelo Tratado de Tordesilhas. Ao sancionar estes documentos, o papa exigia dos espanhis que levassem missionrios a esses territrios. Dava-se, assim, continuidade a um antigo projeto medieval de constituio de um Imprio Universal,2 no qual o gldio material atuaria em favor do gldio espiritual.

    2 A este respeito, veja-se o interessante trabalho de Marcos del Roio: O Imprio Universal e seus antpodas.

  • Releituras da Histria do Rio Grande do Sul

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    Esta relao prxima entre Igreja e Estado se materiali-zava mediante alguns mecanismos (FLORES, 1986, p. 6):

    Atravs do Rgio Padroado, da Teoria do Vica-riato e da Propriedade da Mo Morta, a Igreja hispnica fazia parte integrante do Estado Espa-nhol. O Padroado real era o direito que o monar-ca tinha de nomear os sacerdotes para as igrejas vagas. A Teoria do Vicariato permitia que o rei examinasse qualquer resoluo do papa, a qual s teria valor em territrio do vasto imprio com a assinatura do monarca. Os bens imveis da Igreja espanhola faziam parte da Propriedade da Mo Morta, isto , s podiam ser alienados com o consentimento da coroa. Portanto o Estado do-minava a Igreja espanhola.

    Acompanhando a expanso ibrica, diversas ordens do clero regular vo ocupando novos espaos. J em 1500 os Franciscanos se estabeleram no Mxico; dez anos depois, foi a vez dos Dominicanos, que trouxeram consigo a mquina da Inquisio. Sucedem-se vrias outras ordens religiosas, uma vez que o clero secular vinha bastante enfraquecido.

    De todos, os jesutas foram os mais ativos. Aps o re-conhecimento da Companhia de Jesus (1540), eles, ato cont-nuo, acompanhando as expanses portuguesa e espanhola, se lanam tarefa missionria. Em 1548, estavam no Ceilo; em 1549, no Brasil; em 1552, na China; em 1580, no Japo. Os je-sutas sediados em So Paulo, tendo frente o Pe. Manoel da Nbrega, propem a Incio de Loyola a evangelizao de reas da Amrica espanhola. Em 1568, Francisco de Borja3 envia um grupo de jesutas para o Peru. Em 1607, criada a Provncia Jesutica do Paraguai, abrangendo o Paraguai, parte da Bolvia, a Argentina, o Uruguai e o Sudoeste do Brasil. A regio dos

    3 Francisco de Borja, neto do papa Alexandre VI (Rodrigo Borgia), era o Duque de Gandia, influente nobre espanhol. Na ocasio, era o superior da Companhia de Jesus.

  • 50

    chamados Sete Povos das Misses, no Rio Grande do Sul, corresponde a uma parte do territrio sob jurisdio da Pro-vncia Jesutica do Paraguai.

    Cumpre lembrar que a atividade jesutica se encontra subordinada a toda uma legislao, j existente por ocasio da fundao da Companhia de Jesus, promulgada pela Co-roa hispnica ao longo do sculo XVI, as Leyes de ndias. Os missionrios tinham a obrigao de observ-las, sob pena de no poderem trabalhar no meio indgena. E eles no apenas zelavam por sua fiel observncia, mas procuravam, por meios legais, aperfeio-las em muitos pontos. (BRUXEL, 1978, p. 19-20). Portanto, sua atuao no era completamente autno-ma e se vinculava s formas de relao poltica da Igreja com o Estado espanhol.

    3 A ao missionria na regio da Provncia Jesutica do Paraguai

    Inicialmente, a ao missionria dos jesutas era do tipo misso, que consistia em incurses de missionrios aos aldeamentos indgenas que, no caso do Rio Grande do Sul, eram da etnia Guarani. De tempos em tempos, os jesutas visita-vam as aldeias onde ento era exercido o proselitismo religioso com fins de converso. Os indgenas, portanto, permaneciam em seus locais de origem onde, senhores do territrio, man-tinham seus hbitos e costumes seculares, seu modo de vida, sua organizao socioeconmica, seu sistema familiar, etc. Do ponto de vista da ao missionria, o mtodo se mostrou inefi-caz: o proselitismo no perdura; a mensagem dos jesutas no se incorporara solidamente no universo indgena. O modo de vida indgena era obviamente associado sua cosmoviso e esta tinha sua fundamentao em seu sistema religioso. O sucesso da doutrinao religiosa s poderia ocorrer se, simultaneamen-te, fosse desarticulado seu modo de vida tradicional.

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    Outro problema enfrentado pelos jesutas diz respeito ao fato de que os ndios eram caados tanto por portugueses como por espanhis para submet-los a trabalhos forados e, no raro, os padres eram associados aos apresadores de ndios. Alguns deles sendo, inclusive, mortos pelos ndios, como foi o caso dos trs mrtires de Caar.

    Diante do fracasso de tal sistema, os jesutas passaram a adotar o sistema reducional. As populaes indgenas fo-ram chamadas a abandonar seus tradicionais aldeamentos e ocupar novos espaos, as redues, as quais eram pensadas de forma a se constiturem longe das reas povoadas por por-tugueses ou espanhis, evitando, assim, as ms influncias destes. Por este processo, os indgenas seriam reducidos, isto , estabelecidos coletivamente em aldeamentos, nos quais, alm da doutrinao religiosa, seriam submetidos a um pro-cesso civilizatrio, isto , europeizados. A primeira experin-cia reducional foi em Juli, s margens do Titicaca, atualmente territrio do Peru junto fronteira boliviana.

    Weber (2002, p. 116) procura demonstrar a nova postu-ra do protestantismo diante do mundo, comentando que

    [...] o ascetismo cristo, que de incio se retirava do mundo para a solido, j tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro e por meio da Igreja. Mas no geral, havia deixado intacto o carter naturalmente espontneo da vida laica no mundo. Agora avana para o mercado da vida, fe-chando atrs de si a porta do mosteiro; tentou pe-netrar justamente naquela rotina de vida diria, com sua metodicidade, para amold-la a uma vida laica, embora no para nem deste mundo.

    Em certo sentido, este foi, salvaguardadas as bvias dife-renas, o caminho traado pelos jesutas. Melhor seria, talvez, dizer que os jesutas ampliaram o mosteiro para o mundo com a sensibilidade de compreender o mundo enquanto seculum.

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    Os jesutas tiveram a clareza necessria para perceber que a vida e a atitude crists no esto identificadas com o isolamento e o afastamento do mundo. Compreenderam que o combate por Cristo implicava uma atividade plena. Assim, a obra evangelizadora dos padres da Companhia de Jesus as-sumiu um sentido prtico: vinha acompanhada de preocupa-es de se fazer presente na vida e no cotidiano das pessoas. A atitude contemplativa substituda [ou acompanhada de] intervenes concretas no mundo secular.

    No caso das redues americanas, no se tratava de, ex-clusivamente, converter os indgenas ao Cristianismo, ainda que fosse o fim a ser alcanado. Compreendiam os jesutas que a converso s seria possvel na medida em que a ao evan-gelizadora viesse acompanhada de aes que representassem concretamente mudanas radicais, ou, ao menos, significati-vas, no modo de vida dos futuros catecmenos.

    Ficava claro para os padres que a nova religio a ser trazida para os ndios somente vingaria caso o modo de vida dos mesmos sofresse radical transformao. O Cristianismo tambm um modo de vida. Isso significa a exigncia de certos tipos de comportamento que no eram observados entre os indgenas. Isto particularmente verdadeiro no que se refere a certas formas de comportamento presentes nas tradies in-dgenas que contrariavam frontalmente os princpios do Cris-tianismo. reas particularmente sensveis so a poligamia e a antropofagia.

    O sucesso da doutrinao religiosa s poderia ocorrer se simultaneamente evangelizao fosse desarticulado o modo de vida tradicional dos indgenas. Neste sentido, segundo Kern (1994, p.17), a atuao dos jesutas junto aos guaranis francamente modernizadora e tem como objetivo a mudana em todos os sentidos: transformar os guaranis em homens po-lticos que ultrapassem o estgio selvagem e se transformem em habitantes da Polis.

  • Releituras da Histria do Rio Grande do Sul

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    Isto implicava a necessidade de romper com as velhas tradies culturais das populaes indgenas. Normalmente, os porta-vozes destas tradies culturais eram os caciques e os feiticeiros (pajs) e com eles frequentemente se estabeleciam relaes de conflito. O Padre Antonio Ruiz de Montoya (1997, p. 61), em texto originalmente publicado em 1639, fala de um cacique que comeou a perturbar e rebelar os nimos contra ns, dizendo que foram os demnios que nos trouxeram es-tes homens, pois querem, com novas doutrinas, privar-nos do que antigo e do bom modo de viver de nossos antepassados..

    Porm, em um trabalho paciencioso, os jesutas vo aos poucos conquistando os Guarani. O prprio Montoya (1997, p. 61) comenta que por dois anos os jesutas toleraram os h-bitos poligmicos de um determinado chefe Guarani.

    Aos poucos, porm, a converso do indgena vai se tor-nando mais slida. possvel que um dos fatores que mais tenha contribudo para isso tenha sido o trabalho feito junto s crianas, que parecem ter sido muito mais suscetveis que os adultos.

    Jos de Anchieta (1998, p.107) comentava, sobre o tra-balho missionrio no planalto de Piratininga, em So Paulo que porque como dos pais nenhuma ou mui pequena espe-rana haja (...), tudo se converte em os filhos. Nas redues, as crianas eram retiradas do convvio com os pais todas as manhs e doutrinadas. Mais tarde, elas tratavam de repassar o que haviam aprendido aos adultos.

    medida que o processo de converso avanava, os Guarani iam sendo instalados nas redues que eles prprios, sob superviso dos padres, iam construindo. Aos poucos, nos povoados guaranis um complexo processo de acultura-o mescla as normas e a tradio indgena com novos hbitos e instituies europeias que so assimilados parcialmente ao longo do tempo. (KERN, 1994, p.18).

    Na Provncia do Paraguai, a instalao das redues tem incio em 1610, quando os padres Jos Cataldino e Simo

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    Masseta organizam os indgenas nos povoados missioneiros de Nossa Senhora de Loreto e Santo Incio Mini. Em 1626, o padre Roque Gonzalez de Santa Cruz funda So Nicolau, ini-ciando o processo em territrios do atual Rio Grande do Sul. Conforme o Padre Arnaldo Bruxel (1978, p. 22), em menos de 25 anos foram fundadas mais de 30 redues. por essa poca que comeam a aparecer as primeiras cabeas de gado: desde 1628, h referncias sobre gado nas redues, em pequeno n-mero e destinado alimentao do padre e de doentes.

    Em 1634, os Padres Pedro Romero, superior das misses, e Cristvo de Mendoza compraram 1.500 vacas ao portugus Manoel Cabral Alpoim (FLORES, 1986, p.12). Esse gado vai alcanar, a partir de 1637, a chamada Vacaria do Mar.

    O perodo vai assistir s incurses dos bandeirantes paulistas regio em busca de mo de obra escrava. Segundo Bruxel (1978, p 25), foram cativados mais de 300.000 ndios, entre 1612 e 1638, sendo vendidos em mercado brasileiro uns 60.000 escravos indgenas, entre 1628 e 1631. As frequen-tes incurses dos paulistas levaram os padres a transladar as misses para a outra margem do rio Uruguai, retornando em 1687. Das antigas redues, muitas se extinguiram, umas so-breviveram parcialmente e outras foram, com o decorrer do tempo, reocupadas. Novas redues tambm surgiram. Com a fundao de Santo ngelo, em 1707, completava-se o ciclo de fundaes de povos missioneiros que agora contava com 30 redues, sendo que 7 delas no atual territrio gacho.

    4 O plano urbanstico das redues jesuticas e organizao econmico-social

    As redues apresentavam uma regularidade e simetria do plano urbanstico. Obedeciam a um modelo-padro com pequenas variantes individuais. Ao centro ficava uma grande praa quadrada com cerca de 150m de lado, para a qual con-vergiam as ruas principais. Em um dos lados da praa, ao nor-

  • Releituras da Histria do Rio Grande do Sul

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    te ou sul, ficava a igreja, dominando a paisagem em frente a ela, no lado oposto da praa, o cabildo. Junto igreja ficavam, de um lado o cemitrio e a casa das vivas (cotiguau), e de outro a casa dos padres, escola, dois ptios internos, oficinas, etc.; nos fundos deste conjunto ficavam a horta e o pomar dos padres. Cercando a praa por trs lados, encontravam-se as habitaes dos ndios. Kern (1994, p 33-36) chama a ateno para o fato de que a origem do conjunto que compe a igreja, o cemitrio e os outros equipamentos, se encontra em mosteiros beneditinos da Idade Mdia. Quanto ao traado regular das ruas onde se encontram as casas, seria uma retomada Renas-centista do antigo projeto Helenstico de cidades planejadas. O modelo era especificado pelas Leyes de Indias e deveria ser aplicado nas vrias povoaes espanholas que vinham se constituindo na Amrica.

    Nas oficinas, produzia-se toda a sorte de utenslios ne-cessrios. Faziam-se trabalhos em olaria, cantaria, marcenaria, produziam-se instrumentos musicais. Em algumas redues, at mesmo fundies (como em So Joo Batista) e tipografias foram instaladas.

    Nas estncias, o gado era criado livremente, mas pro-curava-se separar o gado equino, vacum e langero. A deli-mitao aproveitava barreiras naturais, como rios, banhados, matos intransponveis. Haviam, ainda, os posteiros, famlias de indgenas encarregados de amansar o gado e fazer os neces-srios rodeios. A carne abastecia as redues, constituindo-se em seu alimento principal.

    As redues tambm se caracterizaram pela produo em larga escala de erva-mate. A Ilex Paraguariensis, por estar associada s atividades xamnicas dos pajs, foi inicial-mente proibida pelo governo espanhol e seu uso punido com excomunho pela Igreja. Ainda assim, seu uso se tornava cada vez mais difundido a ponto de a proibio ser revogada e as redues jesuticas tornarem-se os principais produtores de

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    erva-mate. Mais do que isto, a erva-mate tornou-se o princi-pal produto de exportao das redues e sua principal fonte de recursos.

    Os jesutas instituram um sistema caracterizado por um acentuado dirigismo econmico. Este modelo condizia com o que se poderia considerar uma sntese entre as concepes europeia, orientada por uma perspectiva jesutica, e indgena, esta ltima, que vinha sofrendo brutais transformaes com a chegada dos europeus. Imbudos, do ponto de vista econmi-co, de uma lgica mercantilista, os jesutas procuram integrar os indgenas em um novo contexto produtivo. Assim, os ind-genas so submetidos a uma nova realidade econmica. Seu modo de vida tradicional quebrado; as formas e os processos produtivos e os tempos necessrios para garantir a sobrevi-vncia so profundamente alterados.

    Godelier (1988, p.78), ao se referir a sociedades coleto-ras/caadoras, comenta que:

    Constatou-se, por meio de observaes quantitati-vas precisas e prolongadas em sociedades de caa-dores e de colectores, que aos membros produtores dessas sociedades bastavam pouco mais ou menos quatro horas de trabalho por dia para cobrirem to-das as nece