Releituras da História do Rio Grande do Sul

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RELEITURAS DA HISTÓRIA

DO RIO GRANDE DO SUL

- 2011 -

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CORAG – Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas

Diretor-presidente:Homero Alves Paim

Diretor Administrativo-financeiro:Dorvalino Santana Alvarez

Diretor Industrial:Antônio Alexis Trescastro da Silva

DIREITOS RESERVADOS DESTA EDIÇÃO:Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore

1ª edição: Porto Alegre

Revisão:Greice Zenker Peixoto

Diagramação:Lilian Lopes Martins - Corag

Dados Técnicos:Maria Helena Bueno Gargioni

Impressão: CORAG - Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas

Tiragem: 1000 exemplares 2011

R362 Releituras da História do Rio Grande do Sul. Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Organizadores: Sandra da Silva Careli, Luiz Claudio Knierim. Porto Alegre, CORAG, 2011.

282p. ISBN: 978-85-7770-149-0 (Corag)

1.História. 2. Rio Grande do Sul. I. Sandra da Silva Careli. II. Cláu-dio Knierim.

III. Título. Releituras da História do Rio Grande do Sul.

CDU 94(816.5)

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Governador do Estado do Rio Grande do SulTarso Genro

Secretário de Estado da CulturaLuiz Antonio de Assis Brasil

Presidente da Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e FolcloreRodi Pedro Borghetti

Diretor da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA)Darci Sanfelici

Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e FolcloreAv. Borges Medeiros, 1501 - Praia de Belas Porto Alegre – RS

CEP: 90020-020Fones (51) 3228-1711 - (51) 3228-1764

Correio Eletrônico: [email protected]: www.igtf.rs.gov.br

OrganizadoresSandra da Silva CareliLuiz Claudio Knierim

AutoresAna Regina Falkembach Simão

Arthur Lima de AvilaEdison Bisso Cruxen

Jorge Euzébio AssumpçãoLuís Fernando da Silva Laroque

Marcia Eckert MirandaPaulo Roberto de Fraga Cirne

Raul Rebello Vital JuniorRené E. Gertz

Ricardo Arthur FitzSérgio Roberto Rocha da Silva

Véra Lucia Maciel Barroso

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APRESENTAÇÃO

A riqueza da História do Rio Grande do Sul foi regis-trada ao longo dos tempos em diferentes suportes de texto, sob as mãos de diferentes atores, movimentos sociais e insti-tuições. Os segmentos responsáveis pelo registro, ao lerem o processo vivido pela sociedade, traduziram um pouco de si nessa sistematização.

Ter a consciência da ausência de imparcialidade nesses escritos permite ao leitor certa visibilidade dos atores sociais que povoaram e povoam a constituição da história regional. Nesse sentido, optamos por uma perspectiva afinada com o pensamento de Thompson (2001, p. 263), que afirma:

A transformação histórica acontece [...] pelo fato de as alterações nas relações produtivas serem vi-venciadas na vida social e cultural, de repercutirem nas ideias e valores humanos e de serem questiona-das nas ações, escolhas e crenças humanas.

Uma nova interpretação histórica deve incluir os atores sociais até então esquecidos ou desprezados. Precisa, ainda, trabalhar com abordagens novas que promovam a visibilidade de processos tanto de curta quanto de longa duração. O reco-nhecimento da multiplicidade de caminhos que nos consti-tuem como sociedade possibilita que nos percebamos como uma diversidade de identidades – de etnia, de classe, de gêne-ro, de idade...

Desse modo, a identidade, em uma perspectiva so-cial, é realizada no espaço das relações, tratando-se de um processo dinâmico, ou seja, [...] um processo contínuo de construção e desconstrução, na ambi-güidade presente e inevitável que a compõe, impli-cando um trabalho de unificação de diversidade, incorporando a diferença” (MAHEIRIE, 1994, p. 65 apud CROMACK, 2004).

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A obra que apresentamos ao público foi operacionalizada a partir de uma parceria entre o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF) e a Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), duas instituições comprometidas com o resgate da riqueza histórica regional e com a reflexão em torno dos processos econômicos, políticos, sociais e culturais vividos nesse estado. Desse traba-lho, que busca traduzir e atualizar as discussões que se apresen-tam com relação à História do Rio Grande do Sul, resultou o livro Releituras da História do Rio Grande do Sul.

Coube ao IGTF a responsabilidade de edição do livro. Enquanto representante da Comissão Organizadora da Sema-na Farroupilha, o Instituto colocou-se como órgão aberto ao debate e à discussão de temas históricos e culturais caros à historiografia do Rio Grande do Sul. Profissionais de diversas áreas do conhecimento, indicados pela FAPA, contribuíram com pesquisas, levantamentos e questionamentos que forne-cem ao livro o peso de uma reflexão honesta e ponderada.

Nessa perspectiva, com ênfase em aspectos que eviden-ciassem a problematização crítica, priorizamos a abordagem de temas clássicos na História regional. Com base nos tra-balhos de pesquisa atuais, os quais ensejam novos conceitos e categorias – formulando e incorporando, entre outras, uma abordagem étnica a esse tipo de temática –, os artigos trazem perspectivas inovadoras. Para abranger diversas questões e li-nhas de pensamento, a obra está organizada em 12 capítulos.

No primeiro capítulo, Luís Fernando da Silva Laroque desvela o protagonismo dos povos ameríndios na formação do estado, em “Os nativos Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang: o protagonismo indígena e as relações interculturais em terri-tórios de planície, serra e planalto do Rio Grande do Sul”. Seu texto rompe com a lógica perversa da “terra sem dono”, de um Rio Grande surgido, unicamente, da ação das populações euro-peias que disputaram o controle do território. Tomando como baliza temporal o século XVI até a contemporaneidade, o autor sistematiza os conhecimentos existentes sobre importantes so-

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ciedades nativas que habitavam – e ainda habitam – a região, além de explorar as características sociais das relações entre os diferentes grupos étnicos no processo de formação do estado.

Ricardo Arthur Fitz, por sua vez, desenvolve o tema “Os jesuítas no território gaúcho”. O trabalho analítico inicia com a contextualização da Companhia de Jesus e sua relação com o Estado espanhol, passando pela avaliação dos instru-mentos empregados na ação missionária até o extermínio das reduções. O artigo questiona a “autonomia” das redu-ções no contexto da exploração colonial, administrada pela Coroa espanhola.

O capítulo redigido por Edison Bisso Cruxen, inti-tulado “A ocupação ibérica do território e as disputas pelas fronteiras do continente de Rio Grande”, trata dos meandros envolvidos na colonização europeia do Rio Grande do Sul e retoma a discussão a respeito do conceito de fronteira – tão importante para a compreensão do processo de constituição do atual território de nosso estado, originalmente envolto na lógica das contendas entre Portugal e Espanha. O autor de-monstra que, muito além das relações belicosas entre as co-roas ibéricas, na Região do Prata, houve um intenso contato cultural, comercial e social entre os habitantes luso-brasileiros e hispano-americanos. A fronteira, nessa perspectiva, carac-teriza-se por ser contraditória e por apresentar mobilidade dinâmica, caracterizando-se, muito mais, como um meio de contato que um simples instrumento de separação entre terri-tórios e populações.

Marcia Eckert Miranda explora a complexidade que envolveu a posse do território pelos portugueses no capítulo “De comandância militar à província: a administração do Rio Grande de São Pedro (1737-1824)”. A autora aborda a adminis-tração do Rio Grande de São Pedro no período que se esten-de do início da ocupação portuguesa, com a criação do Forte Jesus Maria José, em 1737, à posse do primeiro Presidente da Província, José Feliciano Fernandes, em 1824. Ela analisa a es-

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trutura máxima de governo da região, seus limites e poderes e as transformações ocorridas nesse sistema, ao longo do tempo, qual seja: a Comandância Militar, o Governo da Capitania Su-balterna, o Governo da Capitania Geral, a Junta Governativa Provisória e a Presidência da Província.

O quinto capítulo, de autoria de Véra Lucia Maciel Barroso,“Os açorianos no Rio Grande do Sul: uma presença desconhecida”, tem a marca do desvendamento daqueles que, forçados à diáspora no século XVIII, encontraram na nova ter-ra sul-americana, que imaginavam ser a da promissão, muitos reveses e não poucos desafios. O texto critica a pouca valoriza-ção da história e da cultura açoriana na historiografia regional.

Jorge Euzébio Assumpção, autor do capítulo “Época das charqueadas (1780-1888)”, aprofunda o olhar sobre as et-nias negras, advogando a importância do trabalho dos cativos negros na estruturação do estado. Defende a necessidade de uma leitura crítica em torno do mito da “democracia racial sulina”, consolidado por vertentes da historiografia brasileira.

O texto de Raul Rebello Vital Júnior, “Caminhos da colonização alemã no Rio Grande do Sul: políticas de Estado, etnicidade e transição”, analisa os objetivos do Estado brasi-leiro ao inaugurar a política colonizatória no Brasil, ao longo do século XIX. Aborda questões ligadas a políticas de Estado, condições de vida dos colonos e etnicidade.

Arthur Lima de Avila, no oitavo capítulo, “Caudilhos e fronteiriços: a Revolução Farroupilha e seus vínculos rio--platenses”, discute criticamente a ligação do Rio Grande do Sul com o seu entorno territorial. No capítulo, o autor insere o conflito farroupilha no cenário das lutas associadas aos proces-sos de formação dos Estados Nacionais latino-americanos e, ainda, explicita os vínculos das elites farroupilhas com os cau-dilhos platinos. O texto rediscute o conceito de fronteira em bases mais complexas, a exemplo do texto de Edison Cruxen.

Ana Regina Falkembach Simão, no capítulo “Da co-lônia ao Império: uma análise da política externa brasileira”,

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situa o Rio Grande do Sul em relação ao Prata no que se refere à dinâmica política externa inicialmente portuguesa, e, poste-riormente, brasileira. A autora esclarece o papel do nacionalis-mo nas contendas do período.

No capítulo “Aspectos da Revolução Federalista no con-texto político de Júlio de Castilhos”, Sérgio Roberto Rocha da Silva, focaliza o regime republicano e a Revolução Federa-lista no Rio Grande do Sul, no período entre 1893-1895, dis-secando os fatos que compuseram o cenário da luta armada e também os processos de mitificação que envolvem Júlio de Castilhos. O autor convida-nos a refletir sobre as diferentes memórias produzidas em torno de dois importantes eventos na história gaúcha: a “Revolução Federalista” e a “Revolução Farroupilha”.

René E. Gertz, no capítulo “A colonização no período republicano – segunda fase”, oferece continuidade à reflexão, vista em outras unidades do livro, referente à atuação de dife-rentes etnias na constituição do Rio Grande do Sul. O autor mostra-nos que, somente nos anos de 1870, italianos e polo-neses juntaram-se a então já cinquentenária imigração ale-mã. Esses imigrantes foram, mais tarde, seguidos por outros grupos e, no final desse processo, em torno de 40% da popu-lação gaúcha era considerada de origem centro-europeia. A presença dos imigrantes e de seus descendentes foi promovida e encorajada por muitos, mas também criticada por outros. O texto trata das alegrias, mas também dos dissabores resultan-tes desse projeto de imigração e colonização.

Fechando a obra, encontra-se o capítulo de Paulo Ro-berto de Fraga Cirne, “O começo do tradicionalismo gaúcho”. O autor sintetiza a história do tradicionalismo gaúcho desde as primeiras tentativas de fundação do movimento até a sua decadência e o ressurgimento em 1947, como movimento organizado. No capítulo, são destacados: a fundação do “35 CTG”, Centro de Tradições Gaúchas, que inaugurou uma nova era do tradicionalismo, a rápida expansão deste movimento e

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a criação da Federação MTG, que tem como objetivo a pre-servação do núcleo da formação gaúcha e a filosofia do mo-vimento, decorrente da sua Carta de Princípios. O autor tam-bém destaca o surgimento de outras federações similares em todo País; juntas, elas integram uma Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha, fundada em 1987.

Esperamos que os textos aqui veiculados e socializados nos formatos impresso e eletrônico colaborem para dar vi-sibilidade a esses importantes eventos e atores do processo social e histórico de construção da História do Rio Grande do Sul. Que o livro contemple a diversidade e que, cotidiana-mente, se atualize frente às novas problemáticas socialmente demandadas.

Claudio Knierim

Sandra da Silva Careli

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SUMÁRIO

Os nativos charrua/minuano, guarani e kaingang: O protagonismo indígena e as relações interculturais em territórios de planície, serra e planalto do Rio Grande do Sul – Luís Fernando da Silva Laroque ............................................15

Os jesuítas no território gaúcho – Ricardo Arthur Fitz ....................................43

A ocupação ibérica do território e as disputas pelas fronteiras do continen-te de Rio Grande – Edison Bisso Cruxen ..................................................... 65

De comandância militar à Província: A administração do Rio Grande de São Pe-dro(1737-1824) – Márcia Eckert Miranda .................................................................89

Açorianos no Rio Grande do Sul: uma presença desconhecida – Vera Lúcia Maciel Barroso ................................................................................................. 115

Época das Charqueadas (1780-1888) – Jorge Euzébio Assumpção ........139

Caminhos da colonização alemã no Rio Grande do Sul: Políticas de Estado, etnicidade e transição – Raul Rebello Vital Junior ..........................................159

Caudilhos e fronteiriços: A Revolução Farroupilha e seus vínculos rio--platenses – Arthur Lima de Ávila ............................................................181

Da Colônia ao Império: Uma análise da política externa Brasileira – Ana Regina Falkembach Simão ............................................................203

Aspectos da Revolução Federalista no contexto político de Júlio de Castilhos – Sergio Roberto Rocha da Silva ............................................................................223

A colonização no período Republicano – segunda fase - René E. Gertz .........243

O começo do Tradicionalismo Gaúcho – Paulo Roberto de Fraga Cirne ........265

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OS NATIVOS CHARRUA/MINUANO, GUARANI E KAINGANG: O PROTAGONISMO INDÍGENA

E AS RELAÇÕES INTERCULTURAIS EM TERRITÓRIOS DE PLANÍCIE, SERRA E

PLANALTO DO RIO GRANDE DO SUL

* Luís Fernando da Silva Laroque

Os indígenas Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang são populações que também fazem parte do território que pas-sou a chamar-se Rio Grande do Sul. O objetivo deste capítulo é promover uma breve reflexão sobre algumas historicidades indígenas, considerando estes povos também como protago-nistas de eventos ocorridos no período que se estende desde o século XVI até as três primeiras décadas do século XX.

A historiografia tradicional costuma priorizar a versão dos conquistadores e governantes representados por militares, viajantes, religiosos, engenheiros, diretores de aldeamentos, entre outros, os quais são encontrados nos documentos e re-lembrados na literatura. As vozes indígenas, na maior parte das vezes, estão demasiadamente silenciadas nas fontes, me-recendo um exercício hermenêutico e uma abordagem in-terdisciplinar entre arqueologia, história e antropologia, por exemplo, para captar os sentidos e a interpretação de histo-ricidades. Tendo em vista tais limitações, a opção condutora para as reflexões é considerar a atuação de algumas lideranças Charrua/Minuano, Guarani e Kaingang.

Recorrendo a trabalhos como de Sahlins (1970) e Service (1984), é importante ressaltar que, nas sociedades tradicionais, o poder não está separado do corpo social, conforme ocorre com sociedades com a presença do Estado, portanto, as lide-ranças em questão somente mantinham-se na função quando

* Doutor em História. Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento do Centro Universitário UNIVATES, em Lajeado/RS.

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representavam os interesses das famílias dos nativos.1 Nos as-pectos relacionados a situações envolvendo distintos grupos étnicos, bem como alianças, guerra e reatualizações culturais, tem-se os estudos de Barth ([1969] 2000), Clastres (1987), Sahlins (1990) Vainfas (1995) e Viveiros de Castro (2002).

O presente capítulo procura considerar as categorias ter-ritoriais que faziam parte da historicidade geográfica dos Char-rua/Minuano, Guarani e Kaingang, os quais respectivamente envolvem territórios mesopotâmios, guarás e bacias hidrográfi-cas. Fundamentação para isto são os trabalhos de Seeger e Cas-tro (1979) e Ramos (1988). Este autor enfatiza que a concepção de limite territorial não é estranha às sociedades nativas, mas sim “o sentido de exclusividade e de policiamento de um ter-ritório” nos moldes concebidos pela Sociedade Colonial e Na-cional brasileira (RAMOS, 1988, p.14). Frente a isso, situações envolvendo territorialidades das populações indígenas, por um lado, extrapolam ao longe a geografia do Rio Grande do Sul e, por outro, suas concepções de fronteiras eram bastante fluidas, porque, embora guerreando entre si, esses grupos conviveram em um mesmo território antes mesmo da chegada dos ibéricos.

1 Os Charrua/Minuano em territórios mesopotâ-mios dos rios Salado, Prata, Uruguai, Negro e Ibicuí

Os Charrua e Minuano são duas populações que apresen-tam características diferentes no plano físico e no social, embo-ra os colonizadores, muitas vezes, as juntassem e confundissem como uma só (LAROQUE, 2002). Em decorrência disto, serão tratados em conjunto os aspectos abordados as ambas etnias.

No Rio Grande do Sul, Charrua/Minuano ocupavam áreas de campos do sudoeste, até aproximadamente a altura dos rios Ibicuí e Camaquã, mas também se estendiam para o pampa uruguaio e as pequenas porções do território argentino.

1 O termo “nativo” refere-se a povos em seu ambiente tradicional. Procura-se evitar sempre que possível a designação “índio”, pois, conforme Caleffi (1997), trata-se de uma identidade atribuída pela historiografia brasileira e que nunca deu conta da diversidade destas populações.

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Cada uma delas, entretanto, ocupava áreas bem-definidas. Os Charrua “moravam mais para o oeste, ocupando ambas as margens do Rio Uruguai e tiveram maior contato com o colonizador espanhol”, enquanto que os Minuano “se loca-lizavam mais para leste, nas áreas irrigadas pelas lagoas dos Patos, Mirim e Mangueira, com extensão até as proximidades de Montevidéu; tiveram maior contato com os portugueses” (BECKER, 1991, p. 145).

Os Charrua/Minuano praticavam a caça, a pesca e a cole-ta. Alguns arqueólogos cogitam a possibilidade da cultural ma-téria produzida pelos antepassados destes indígenas pertencer à

Ilustração 1 – Mapa de áreas indígenas no Rio Grande do Sul (séc. XVIII)

Fonte: Riograndino Silva (1968).

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Tradição Arqueológica Vieira, construtora dos “cerritos”. Per-tenciam a um mesmo tronco linguístico, mas não está claro se falavam a mesma língua ou dialetos diferentes.

Nas primeiras décadas do século XVI, as expedições sobre os territórios Charrua/Minuano foram esporádicas. Entretanto, a partir de meados deste mesmo século e primei-ras décadas do século XVII, os interesses das Coroas Ibéricas crescem na região e alianças com lideranças Charrua, como Zapicán, Miní, Guaytán, e lideranças Minuanas, como Cloyan e Lumillan, passam a ser efetivadas. Possivelmente pela lógica nativa, essas alianças possibilitaram vantagens das parcialida-des lideradas por estes caciques para lutarem contra os grupos indígenas inimigos que também ocupavam o território.

No que se refere à utilização da aliança e à guerra nas sociedades nativas, Pierre Clastres, no trabalho Investigaciones em antropología política, enfatiza:

Ya hemos indicado que, por la voluntad de indepen-dencia política y el dominio exclusivo de su territorio manifestado por cada comunidad, la posibilidad de la guerra está inmediatamente inscrito en el funciona-miento de estas sociedades: la sociedad primitiva es el lugar del estado de guerra permanente. Vemos aho-ra que la búsqueda de alianzas depende de la guerra efectiva, que hay una prioridad sociológica de la guer-ra sobre la alianza. Aquí se anuda la verdadera relaci-ón entre el intercambio y la guerra. (...) Precisamente a los grupos implicados en las redes de alianza, los so-cios del intercambio son los aliados, la esfera del inter-cambio recubre exactamente la de la alianza. Esto no significa, claro está, que de no haber alianza no habría intercambio: éste se encontraría circunscrito al espa-cio de la comunidad en el seno de la cual no deja de operar nunca, sería estrictamente intra-comunitario. (CLASTRES, 1987, p.207, grifos do autor)

Segundo Reichel e Gutfreind (1996), na porção Oeste, começa a fundação das primeiras cidades espanholas (1527-1577); na parte Leste, as portuguesas (1680-1737), as quais foram acompanhadas de grandes batalhas, em que uma boa

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parte dos Charrua/Minuano foram atingidos. Isso, gradativa-mente, haveria de produzir uma mudança fundamental em todo o território indígena, pois essas populações neste primei-ro momento não se submeteram à “encomienda”,2 à “mita”3 e às “reduções/missões”,4 sendo que esta última fora utilizada principalmente com os indígenas Guarani.

Nos séculos XVII e XVIII, as frentes expansionistas nos tradicionais territórios Charrua e Minuano continuavam de forma lenta e cada vez mais efetiva. No final do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX, os tradicionais territórios Charrua/Minuano da bacia hidrográfica do Rio da Prata são efe-tivamente ocupados pelos colonizadores português e espanhol.

2 A “encomienda” consistia na concessão de nativos que a Coroa espanhola dava ao colonizador para tra-balharem em serviços forçados das minas e/ou agricultura. Em troca dessa concessão, o colonizador tinha o compromisso de cristianizá-los (MAHN-LOT, 1990, p. 69,83). 3 “Mita” era uma forma de trabalho desenvolvido pelos índios nas minas de prata e ouro. Como pagamento, recebiam uma remuneração insuficiente para sua sobrevivência (MAHN-LOT, 1990, p. 76).4 As “reduções” foram também conhecidas como Missões. Consistiam em aldeamentos, nos quais os índios eram reunidos para receberem ensinamentos sobre a religião católica e para trabalharem sob a direção dos padres (CAMPOS; MOHLNNIKOFF, 1993, p. 16).

Ilustração 2 – Mapa de areas indígenas no Sul do Brasil

Fonte: Curt Nimuendajú, 1987.

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As cidades multiplicaram-se e a exploração econômica, produzindo carne e couro para o mercado interno e europeu, aumentou significativamente.

Neste contexto, é possível apontar o protagonismo Char-rua/Minuano a partir das lógicas nativas, como é o exemplo da atuação de lideranças Naigualvé, Gleubilbé e Doimalnaejé, lu-tando ao lado de Don Francisco de Vera Mujica em territórios próximos a Santa Fé contra indígenas inimigos (BECKER, 1991). Por outro lado, quando os interesses nativos não mais estavam sendo atendidos, rompiam as alianças e recorriam à guerra, con-forme ilustra a situação envolvendo o cacique Campusano.

Este cacique Charrua entrerriano, pasado el pri-mer Tércio del siglo XVIII tênia sus tolderías em lãs márgenes del arroyo Feliciciano. Presume A. y Lara que es el mismo Campusano que, a fines de abril de 1749, com um grupo de índios hurtó caballadas de lãs estâncias del Pueblo Reducción de Santo Do-mingo Soriano. Habiendo salido en su persecución el Teniente de Dragones Francisco Bruno de Zava-la con un escuadrón en un potrero del Queguay. (BARRIOS PINTOS, 1981, p.87-88)

Gradativamente, as populações indígenas são empurra-das para o interior, local onde suas possibilidades de sobrevi-vência são cada vez mais difíceis, principalmente pela dispu-ta com grupos inimigos, como Araucanos, Tehuelches, entre outros, que também estavam em movimentação pelo territó-rio, devido às frentes expansionistas (SARASOLA, 1996). Em decorrência de não terem desenvolvido sua sustentabilidade nos moldes do capitalismo, bem como insistiam em continuar com seus padrões culturais um capítulo da história Charrua/Minuano no século XIX, resume-se pelos dois combates feitos à traição – o de Salsipuedes (1831) e o de Mataojos (1832) – nos quais os indígenas destas duas etnias foram extermina-dos em grande maioria ou retirados de seu tradicional terri-tório, como, por exemplo, Vaimaca-Peru, Senaqué, Tacuabé e Guyunusa, que foram levados pelo comerciante François de Curel para Paris, lugar de onde não mais retornaram (HIL-BERT, 2009). A partir desses dois conflitos, equivocadamente

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propagou-se um discurso que os poucos Charrua/Minuano sobreviventes teriam forçadamente se integrado na sociedade da Banda Oriental do Uruguai.

2 Os Guarani em territórios de Guará

Os Guarani, pertencentes à Família Linguística Tupi--Guarani e Tradição Ceramista Tupiguarani, eram também chamados de Carijós, Arachanes, Tapes, Patos, entre outras nominações. Informações produzidas por cronistas, expedi-cionários, viajantes e padres jesuítas indicam que os Guarani representavam, no período colonial, a maior parte da popula-ção indígena no Rio Grande do Sul. Eram horticultores, óti-mos ceramistas e, além de dedicarem-se à caça e à pesca, pra-ticavam a antropofagia. Segundo Laroque (2002), ocupavam territórios localizados em várzeas de rios como o Uruguai, o Jacuí, a Laguna dos Patos e o Lago Guaíba, mas estendiam-se também para outras áreas da América do Sul localizadas entre Rio Paraguai e o Oceano Atlântico (ver Ilustração 2, p. 19).

É importante enfatizar que, pela lógica Guarani, a re-lação com o espaço, bem como as categorias que atribuem a estes são totalmente distintas da forma como os ibéricos se relacionavam com estes espaços. Francisco Noelli (1993), fun-damentado em registros dos cronistas, etnógrafos e, muitas vezes, testadas em modelos etnoecológicos e arqueológicos, apresentou, como se vê na Ilustração 3, três categorias espa-ciais da geografia Guarani: guará, tekohá e teiî.

Ilustração 3 – Categorias espaciais Guarani

Fonte: Noelli, 1993, p.250.

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O guará, segundo a definição de Montoya, significa tudo aquilo que está contido dentro de uma região qualquer. Francisco Noelli (1983), utilizando-se de estudos de Branis-lava Susnik, informa que, para esta autora, o guará é enten-dido como um conceito sociopolítico que determinava o do-mínio exclusivo de uma região pelos seus habitantes, onde lhes era assegurado o pleno direito da roça, caça e pesca para sua subsistência.

De acordo com informes de vários jesuítas do Guairá, Itatim, Tape e Uruguai, o guará estaria sob a liderança de uma pessoa de grande prestígio político e espiritual, ressaltando também que “alguns guará seriam compostos por até 40 al-deias unidas por laços de parentesco e reciprocidade, com vida material e simbólica comum” (NOELLI, 1993, p.248-249).

O guará, por sua vez, seria subdividido em unidades ter-ritoriais socioeconômicas denominadas de tekohá, onde esta-riam os sítios arqueológicos e as aldeias históricas. O tekohá dividia-se em três níveis integrados: físico-geográfico, econô-mico e simbólico. Sua área estava geralmente bem-definida por colinas, arroios ou rios, onde estranhos só poderiam en-trar com permissão.

Era o espaço onde se produziam as relações econô-micas, sociais e político-religiosas essenciais a vida Guarani [...]. Por fim, como dizem os Guarani, se tekó era o modo de ser, o sistema, a cultura, a lei e os costumes, o tekohá era o lugar, o meio em que se davam as condições que possibilitavam a subsis-tência e o modo de ser dos Guarani. (MELIÁ apud NOELLI, 1993, p.249-250)

O tekohá, por sua vez, era formado por teiî isolados ou agrupados em função das condições locais e políticas. Teiî, na linguagem antropológica, significa “família extensa”, onde vivia a linhagem que poderia contar com até 60 famí-lias nucleares.

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A seguir, na Ilustração 4, será apresentado um mode-lo hierárquico hipotético da construção territorial (NOELLI, 1993, p. 250), o qual mostra, aproximadamente, uma sequên-cia desde a família nuclear até o guará.

Ilustração 4 – Modelo hierárquico hipotético da construção territorial

Fonte: Noelli, 1993, p.250.

A captação de recursos pelos Guarani, de uma forma ge-ral, foi setorizada por Noelli em horticultura (roças), coleta, caça e pesca. Suas roças, nas quais geralmente cultivavam o milho, a mandioca, o amendoim, o feijão, entre outros, pro-vavelmente instalavam-se em zonas de transição entre a Pla-nície Costeira e a Depressão Central, ou, então, em lugares de vegetação similar. É importante ressaltar que a roça, entre os muitos outros domínios da aldeia, era apenas um dos espaços de inserção de alimentos.

A região do tekohá está caracterizada por zonas de vege-tação campestre (tapete de gramíneas), vegetação silvática (ma-tas de galeria, matas arbustivas, capões) e vegetação palustre (áreas inundáveis), onde aparece concentrada uma variedade muito grande de espécies das quais destacam-se os butiás, ara-çás, ananás, ingás e também os pinhões, recursos de coleta. Es-sas atividades de coleta, muitas vezes, também eram realizadas em áreas de plantas cultivadas nas antigas roças abandonadas.

Quanto à caça, a partir das informações de Becker (1992), é possível constatar que, excluindo os períodos que

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cercam a época dos ritos de passagem, da menstruação, da gravidez, dos jejuns ligados à prática religiosa individual ou coletiva e os gostos pessoais, os Guarani comiam todos os se-res vertebrados e muitos invertebrados.

As frentes de expansão ibéricas, no decorrer do sécu-lo XVI, a fundação de cidades espanholas e, posteriormente, lusitanas, nos tradicionais territórios Guarani, e a exploração econômica, serão responsáveis por um violento decréscimo populacional desses nativos e um acirramento de conflitos bé-licos entre os Guarani e os não índios pela América do Sul.

No início do século XVII, os administradores espanhóis resolveram chamar primeiramente os franciscanos e depois os padres da Companhia de Jesus para que, por meio do aten-dimento religioso, pudessem acalmar os indígenas encomen-dados ou não. Os jesuítas, em um primeiro momento, opuse-ram-se, mas acabaram por obedecer as orientações da Coroa espanhola. Inicialmente trabalharam junto ao Guarambaré, Ipané e Guayrá, onde perceberam a inadequação do modelo missionário até então empregado.

Em contraposição, os padres jesuítas propuseram o sis-tema de Missão/Redução, no qual os índios a serem catequi-zados deveriam ser organizados em povoações concentradas, livres dos fazendeiros espanhóis, e que só dependessem do Rei. Nasciam, assim, as cinco Frentes Missionárias da Anti-ga Província Jesuítica do Paraguai, denominadas de Guayrá (Paraná), Paraguay (Paraguai), Itatim (Mato Grosso do Sul), Uruguay (Brasil-Uruguai) e Tape (Rio Grande do Sul), sob a responsabilidade geral do Padre Juan Ruiz de Montoya.

Como o recorte espacial deste capítulo se atém princi-palmente a territórios do Rio Grande do Sul, serão tratados aqui, especificamente, alguns aspectos da Frente Missionária do Tape, mas que não se diferenciou muito das outras quatro.

A Frente Missionária do Tape localizava-se na região Centro-oeste do Rio Grande do Sul. Iniciou em 1626, quan-do o Pe. Roque González, em decorrência de alianças que o

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Cacique Ñeenguirú, liderança geral possivelmente de um dos guará localizado na Província do Uruguai e do Tape, conse-guiu atravessar o rio Uruguai na altura da confluência com o rio Ibicuí. Inicialmente, chegou à aldeia do cacique Taba-cá, com o qual também contraiu aliança, o que possibilitou a fundação da Redução Nossa Senhora de Candelária. Entre-tanto, os Guarani contrários ao estabelecimento de alianças com os jesuítas e utilizando-se da guerra atacavam os padres e os Guarani que com eles se encontravam, como foi o caso do Pe. Cristóbal de Mendoza, morto pelo cacique Tayubay e seus seguidores (BECKER, 1992).

As outras missões/reduções, ao que parece, somente fo-ram fundadas devido às lideranças Guarani, como Guaymi-ca, Cuniambí, Arazay, Guiracurú, Tayaobá, Ayerobiá, Aruyá, Cuñambó, Carayuchuré, entre tantas outras, terem avaliado positivamente e em termos de alianças indígenas a presença dos padres em seu território, decisão posteriormente reforça-da pelas notícias que passaram a ter dos ataques bandeirantes em territórios Guarani do Norte. Assim é que, em 1626, foram fundadas as Missões de São Nicolau e São Francisco Xavier; em 1627, Candelária do Ibicuy; em 1628, Candelária do Pira-tini, Assunção do Ijuí e Caaró; em 1631, São Carlos e Apósto-los; em 1632, São Tomás, São José, São Miguel, São Cosme e Damião, Santa Teresa, Jesus Maria, Santa Ana e Natividad; em 1634, São Joaquim e São Cristóvão (PORTO, 1954).

A título de ilustração destas alianças pode-se apontar Arazay (chamado também de Roque, Quiraque e Caguiraí), que, segundo a Carta Ânua de 1633, tratava-se de um grande cacique que teria se batizado e aceitado o Cristianismo. Em decorrência do cargo que representava entre os Guarani, in-terviu em termos nativos para os padres fundarem a Missão de São Tomás e São Miguel. Não são encontradas na docu-mentação maiores informações sobre essa liderança, mas uti-lizando-se o estudo de Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios (1995), sobre a Santidade do Jaguaribe com os Tupi, os quais

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orquestravam os eventos por sua própria lógica, bem como a obra de Viveiro de Castro, A incostância da alma selvagem (2002), é possível constatar que os indígenas, frente aos pro-pósitos das missões, comportavam-se como estátuas de murta e não de pedra. Ou seja, reatualizavam algumas ações, mas os significados continuavam sendo nativos, portanto quando não mais era de seu interesse, o que provavelmente também deve ter ocorrido com os teiî (famílias), que o cacique Arazay representava, tanto em termos de alianças como de prática de batismo ou adoção ao Cristianismo.

Neste contexto, onde os espanhóis avançavam com sua frente expansionista missionária, os portugueses, em contra-partida, faziam o mesmo, mas com a frente expansionista ban-deirante e passavam a invadir as missões localizadas mais a Leste do território em busca de mão de obra indígena Guarani para o trabalho escravo nas lavouras de cana-de-açúcar. No período compreendido entre 1612 e 1638, foram capturados aproximadamente 300.000 índios, dos quais mais da metade morreram no caminho para o cativeiro, por doenças ou re-pressão às fugas.

Especificamente no Tape, os ataques mais intensos ocor-reram entre 1635 e 1639, quando os bandeirantes Antônio Ra-poso Tavares e Fernão Dias Paes destruíram várias das redu-ções. Os milhares de índios que restaram tiveram, mesmo com relutância, de abandonar suas terras e migrar para a margem direita do Rio Uruguai. Em consequência disso, o gado trazido pelos jesuítas ficou solto, passando a viver e a procriar-se livre-mente pelos campos da Depressão Central e da Campanha.

Desta forma, os povoados missioneiros, denominados muitas vezes de Trinta Povos Jesuítico-Guarani, tiveram uma controvertida experiência histórica, na Bacia do Rio da Prata e na fronteira móvel existente entre os impérios português e espanhol. Quando os jesuítas voltaram à região, meio século depois, encontraram grande quantidade de animais vivendo de modo selvagem na Vacaria del Mar.

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A partir de 1682, foram reerguidas as reduções de São Nicolau e São Miguel, assim como foram criadas cinco outras: São Francisco de Borja (1682), São Luiz Gonzaga (1687), São Lourenço Mártir (1690), São João Batista (1697) e Santo Ânge-lo Custódio (1707), as quais constituíram o que ficou conhe-cido como os Sete Povos das Missões (ver Ilustração 1, p. 17).

Os Sete Povos, contando também com o protagonismo Guarani, prestavam serviços à Coroa espanhola e à Roma, e adquiriam autonomia política e econômica. Essa autonomia, por sua vez, em termos de relações internacionais europeias, acarretou-lhes antipatias e animosidades; motivos que escla-recem porque, em 1750, com a assinatura do Tratado de Ma-drid, a Espanha pretendeu entregá-los aos portugueses, em troca da Colônia do Sacramento.

Os indígenas Guarani, mesmo com a aliança com os espanhóis em curso avaliando a situação, decidiram que não deixariam o território. Isto automaticamente significava o rompimento da aliança e a deflagração de guerra aos espa-nhóis e portugueses. O conflito passou a ser conhecido como “Guerra Guaranítica” (1753-1756), mas, apesar do protagonis-mo Guarani, como bem ilustra a conhecida frase “esta terra já tem dono”, do cacique Sepé Tiaraju, os indígenas, pela desvan-tagem bélica, perderam a guerra e a maior parte dos que não morreram precisaram abandonar seus territórios.

Uma boa parte dos Guarani que ainda não havia aban-donado o território, aproximadamente 700 famílias, foi distri-buída pelo General Gomes Freire de Andrade, para o interior da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, constituindo a Aldeia de São Nicolau (Rio Pardo), a Aldeia de São Nicolau (Cachoeira do Sul) e a Aldeia Nossa Senhora dos Anjos (Gra-vataí). Muitos descentes dessas famílias deram origem à matriz genética indígena de muitas pessoas do Rio Grande do Sul.

Outros, porém, conforme Schmitz (1994, p.112), disper-saram-se pelas fazendas da Bacia do Prata, “servindo de peão, tipicamente sem família e sem chão, como o Pedro Missio-

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neiro do romance, O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo”. É possível, ainda, mesmo que não se tenha conhecimento sobre fontes documentais, que os Guarani tenham continuado a cir-cular pelo território. Neste sentido, somente a partir de mea-dos do século XX as fontes passam novamente a dar visibili-dade à presença Guarani no Rio Grande do Sul denominados então de Mbyá Guarani, os quais retornaram para seus tradi-cionais territórios em busca do Yrovaigua (Terra sem Males).

3 Os Kaingang em territórios de Bacias Hidrográfi-cas dos rios Uruguai e Jacuí

Os nativos Kaingang, no Rio Grande do Sul, quando iniciou a conquista europeia, ocupavam o território localiza-do entre o Rio Piratini (afluente da margem esquerda do Rio Uruguai) e as cabeceiras do Rio Pelotas, tendo como limite meridional os últimos contrafortes do Planalto junto à mar-gem esquerda da bacia hidrográfica do Rio Jacuí (ver Ilustra-ção 1, p. 17). Entretanto, é importante ressaltar que o “gran-de território Kaingang” estendia-se também pelos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e em Missiones, na Argen-tina (LAROQUE, 2007).

No entender de alguns estudiosos, os antepassados dos Kaingang foram os prováveis responsáveis pela cultural mate-rial denominada de Tradição Arqueológica Taquara e teriam ocupado territórios de planalto conhecidos como “buracos de bugre”. Os Kaingang dedicavam-se também à caça, à pesca, à pequena horticultura e, principalmente, à coleta do pinhão (SCHMITZ; BECKER, 1991).

O nome Kaingang,5 na verdade, foi introduzido na li-teratura etnográfica por Telêmaco Borba, em 1882, para de-

5 Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, estes nativos tinham a denominação geral de “Guayná”. Na maior parte do século XIX, foram conhecidos pelo nome de “coroado”. Entretanto, no século XX, convencionou-se chamá-los de “Kaingang” (SCHMITZ apud BECKER, 1976, p. 7).

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signar os indígenas não Guarani que ocupavam territórios de planalto no sul do Brasil. Pertencem ao grande tronco linguís-tico Jê e aparecem na documentação e na bibliografia com as nominações de Ibiraiáras, Caáguas, Guananáses, Coroado, Guayaná, Bugre, Gualacho, Botocudo, Xokleng, Bate, Chova, Pinaré, Cabelludo, Kaigua, Kaaguá, Aweikoma, entre outros (LAROQUE, 2000).

As informações iniciais sobre os Kaingang são poucas e retrocedem ao século XVI, quando ocorreram os primeiros contatos com o colonizador. No século XVII, o Pe. Luiz de Montoya e Dias Taño tentaram reduzi-los, mas não tiveram sucesso. Segundo eles, estes índios eram totalmente diferen-tes dos Guarani, com os quais tinham tido experiência. Única exceção a salientar foi o Pe. Cristovão de Mendonça, que, em 1630, teria fundado a Redução da Conceição (no território de Guandaná - alto curso do Rio Uruguai), na qual, segun-do os cronistas, teria aldeado aproximadamente 3.000 índios (SCHADEN, 1963).

Do contato inicial até o século XVIII, apesar do bandei-rismo paulista rumo ao Sul, a procura de terras, ouro e mão de obra escrava, os Kaingang continuavam a manter sua cul-tura original. Na primeira década do século XIX, as fazendas de colonização luso-brasileira somente ocupavam as áreas de campo, deixando, com isso, a maior parte do planalto e da mata aos Kaingang (ver Ilustração 2, p. 19).

Entretanto, a partir de 1824, teve início a primeira fase da imigração alemã, que se estendeu até 1889 (ROCHE, 1969). O governo imperial, aproveitando-se dessa situação, distribuiu a esses colonos, segundo Ítala Basile Becker (1991), muitos dos territórios Kaingang, que se estendiam desde o Rio dos Sinos até a borda do planalto, propiciando, com isso, o aparecimen-to de colônias como São Leopoldo, Feliz, Mundo Novo, Bom Princípio, São Pedro de Alcântara de Torres, Três Forquilhas, entre outras.

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Frente a essa situação, os alemães, para chegarem e/ou ocuparem muitos dos lotes distribuídos, precisavam enfrentar a reação nativa, o que gerava, consequentemente, uma situação bastante tensa entre ambas as etnias “porque enquanto os colo-nos tentavam se estabelecer nas terras que lhes cabiam por de-terminação imperial, o Kaingang via a penetração efetiva nas terras onde havia nascido” (BECKER, 1991, p.138).

A título de ilustração destas reações Kaingang, que, possivelmente, foram realizadas sob o comando de lideran-ças como Braga, Yotoahê (Doble), Nicué, Condurá, entre ou-tras, tem-se os ataques à localidade de Dois Irmãos, em 26 de fevereiro de 1829, nos quais foram assassinados dois colonos alemães e um foi ferido, e, em 08 de abril de 1831, o ataque à família Harras, quando foram vitimados três colonos, dos quais dois ficaram feridos e uma criança foi raptada (F.W., 1913, p.87-88; PETRY, 1931, p.3; BECKER, 1976a, p.67,70).

O governo provincial, aproveitando-se da passagem dos jesuítas espanhóis pelo Sul do Brasil,6 recorreu, a partir de 1845, ao Projeto de Catequese Kaingang. Entretanto, para a mentalidade da época, a “catequese” e a “civilização” dos nati-vos significavam a sua redução em aldeamentos. O Pe. Antônio de Almeida Leite Penteado é quem, inicialmente, se ofereceu para levar as primeiras luzes do Cristianismo aos Kaingang nas imediações de Passo Fundo. Posteriormente, sob o comando do superior distrital Pe. Bernardo Parés, estabeleceram-se em Guarita os jesuítas Aloysio Cots e Ignacio Gurri; em Nonoai, Luís Santiago Villarrubia e Juliano Solanellas; e no Campo do Meio, os Pes. Pedro Saderra e Miguel Cabeza. Essa ação mis-sionária, por sua vez, não conseguiu reduzir os Kaingang nos moldes feitos com os Guarani. Neste sentido, o Pe. Villarrubia

6 Os jesuítas, depois da expulsão pombalina de 1759, tiveram uma passagem pelo Brasil durante o período de 1842 a 1867. O contexto desta nova fase em que atuaram principalmente nas Províncias de São Pedro do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina ocorreu em decorrência de sua expulsão da Argentina pelo ditador Rosas (AZEVEDO, 1984).

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destacou, entre as dificuldades para o ensino da doutrina Cris-tã, a indiferença religiosa que acreditavam que os Kaingang tinham, a falta de meios para os padres aprenderem a língua Kaingang, o mau exemplo de outros cristãos, a falta de respei-to humano e a preguiça dos índios (AZEVEDO, 1984).

De concreto, o governo, por coação e/ou medida pre-ventiva, reduziu o espaço vital Kaingang e, para tirá-los dos seus territórios, iniciou, a partir de 1846, a Política Oficial dos Aldeamentos em áreas como Guarita, Nonoai e Campo do Meio, nas quais se encontram, muitas vezes, caciques prin-cipais e chefes subordinados, como, por exemplo, Fongue, Votouro, Nonohay, Condá, Nicafim, Braga, Yotoahê (Doble), Nicué (João Grande), entre muitos outros que, de acordo com os seus interesses, negociavam ou não a estadia de suas hordas nessas áreas (LAROQUE, 2009).

A política governamental para aumentar o povoamento e propiciar melhores formas para o escoamento da produção econômica parte, entre 1848 e 1850, para a abertura de mais estradas, como, por exemplo, a de Mundo Novo-São Leopoldo e Pontão-Caí-Porto Alegre. Conforme Ítala Becker (1976a), boa parte dessa segunda estrada já havia sido delineada pelo engenheiro agrimensor das colônias Alphonse Mabilde des-de 1835, quando percorreu a região. Seu traçado tinha como ponto de partida o Passo do Pontão no Rio Uruguai (mais precisamente na confluência do Rio Pelotas com o Canoas), e terminava na Picada Feliz, que se localizava no Caí.

Reagindo a esta situação, ao longo da década de 1850, as correrias Kaingang continuaram tanto em algumas áreas de colonização alemã quanto em regiões luso-brasileiras, como Cruz Alta, Passo Fundo, Vacaria, entre outras.

Apesar dos aldeamentos, os ataques e estragos con-tinuavam, como bem mostra um relatório de Homem de Mello ao passar a administração da Província, em 1868, ao Vice-presidente, Sr. Joaquim Vieira da Cunha.

No dia 14 daquele mês assaltaram os bugres a casa do colono Lambertus Werteg, da colonia de santa Maria da Soledade, sita no 5º distrito do termo de

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S. Leopoldo, levando para as matas a família do mesmo colono, composta de mulher e filhos. (RE-LATÓRIO de 13/04/1868, p.30)

Durante a primeira metade da década de 1870, na Pro-víncia de São Pedro do Rio Grande do Sul, alguns registros sobre os aldeamentos de Nonoai e Campo do Meio mostram claramente que a legislação respaldada pela Lei de 1850 pos-sibilitava a tomada das terras indígenas, isto é, inicialmente demarcavam-se as áreas e depois passava-se a reduzi-las, re-correndo ao discurso de que estavam improdutivas (RELA-TÓRIO de 14/03/1871, p.31; FALLA de 1872, p.33-34; FALLA de 1874, p.41-42).

As lideranças, por sua vez, continuavam a atuar inten-samente frente a toda esta trama, como bem demonstra a fala do Presidente Conselheiro, Jeronimo Martiniano Figueira de Mello, dirigida, em 1872, à Assembleia Legislativa da Provín-cia, ao informar que os nativos, sob a direção dos caciques e chefes, saíam do Aldeamento de Nonoai e se espalhavam pelos municípios de Passo Fundo e Cruz Alta.

Tratando-se da segunda metade da década em questão, é importante ressaltar que, a partir de 1875, os italianos co-meçaram a chegar na Província e estabelecerem-se em áreas como Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Garibaldi, entre outras, mas que, segundo Basile Becker (1991, p.138), estes não tive-ram maiores problemas com os Kaingang, porque, nesta épo-ca, eles já haviam migrado para outras regiões.

Também na última década do século XIX, os ataques às fazendas, as desavenças entre as facções e as estratégias utiliza-das pelos diretores para reduzir as terras indígenas ainda con-tinuavam. Relativo à primeira situação, um relatório do Presi-dente Carlos Thompson Flores discorre que, constantemente, os fazendeiros estabelecidos nas vizinhanças dos aldeamentos de Guarita, Nonoai e Campo do Meio reclamavam das correrias e ameaças Kaingang às suas propriedades. Quanto às desaven-ças entre as parcialidades, nesse mesmo relatório, referindo-se possivelmente a guerreiros do grupo do Cacique Nhancuiá, ocupantes de território da margem direita do Rio Uruguai,

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[...] havendo aparecido à margem direita do Rio Uruguai, nas proximidades de Nonoai, uma tribu de indios bravos, fôra batida pelos indigenas do al-deamento daquela denominação, que lhes sairam ao encontro e em poder de quem ficaram 4 mulheres e 7 crianças. (RELATÓRIO de 15/04/1880, p.39-40)

No decorrer da década de 1880 até a Proclamação da República, percebe-se que as coisas não foram diferentes, ou seja, os Kaingang e suas lideranças, agindo de acordo com os seus próprios termos, mantiveram, até onde lhes interessava, alianças com os não índios e, consequentemente, a permanên-cia ou não dos integrantes de suas parcialidades nos aldea-mentos. O presidente Carlos Thompson Flores, por exemplo, descreve, no relatório de 15 de abril de 1880 (p.39-40), que os fazendeiros estabelecidos nas vizinhanças dos aldeamentos de Guarita, Nonoai e Campo do Meio frequentemente reclama-vam das correrias e ameaças Kaingang em suas propriedades.

Tratando sobre continuidade da identidade dos grupos étnicos em contato, Fredrick Barth destaca:

Se um grupo mantém sua identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existência de critérios para a determinação do per-tencimento, assim como as maneiras de assimilar este pertencimento ou exclusão [...] Além disso, a fronteira étnica canaliza a vida social. Ela implica uma organização, na maior parte das vezes bas-tante complexa, do comportamento e das relações sociais. A identificação de uma outra pessoa como membro de um mesmo grupo étnico implica um compartilhamento de critérios de avaliação e de julgamento. (BARTH, 2000, p.34)

Nos primeiros anos do século XX, a situação Kaingang é praticamente a mesma do período anterior, pois a penetração e a cobiça em suas terras continuaram. A partir de 1903, no entanto, na região de Lagoa Vermelha, tem-se a presença da catequese dos capuchinhos:

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Nas florestas do Norte do Estado existem ainda algumas tribos dos grupos que ocupavam o Brasil quando de sua descoberta. Um dos nossos missio-nários, Frei Alfredo de Saint Jean-d’Arves, numa de suas inúmeras excursões apostólicas, havia conseguido chegar até esses infelizes. Em vista do relatório que me apresentou, resolvi visitá-los eu mesmo com o objetivo de verificar se haveria pos-sibilidade de empreender algo para lhes proporcio-nar os benefícios da civilização. [...]. Para chegar a seus toldos é preciso viajar vários dias pela flores-ta, transpor árvores arrancadas, atravessar a vau cursos d’água, que se tornam instransponíveis à menor chuva; cavalgar por atalhos obstruídos, por banhados, barrancos, etc. Conversei com os chefes, falei com as autoridades civis e ficou estabelecido que se tentaria junto ao Governo do Rio Grande do Sul obter uma área de terreno, no município de La-goa Vermelha, às margens do Rio Forquilha, para aí reunir os diversos toldos e que, em seguida, um missionário, ou dois, ocupar-se-iam de sua instru-ção religiosa e civil. (GILLONNAY apud COSTA E DE BONI, 1996, p. 355-357)

Paralelo à catequese capuchinha com os indígenas, o engenheiro Carlos Torres Gonçalves, confrade de Rondon na Igreja Positivista brasileira, foi cogitado e aceitou, a partir de 1908, a Diretoria de Terras e Colonização do estado. No desem-penho dessa função, antecipou-se ao Governo Federal no enca-minhamento de uma política indigenista para o Rio Grande do Sul que estivesse em sintonia com os pressupostos positivistas.

No Rio Grande, o trabalho de demarcação de terras foi realizado basicamente pela Diretoria de Terras e Colonização. No período de 1911 até 1920, conforme o relatório do Dire-tor Torres Gonçalves, são encontradas, no estado, 12 áreas de aldeamento Kaingang denominadas de Inhacorá, Guarita, Nonoai (duas aldeias), Fachinal, Caseros, Ligeiro, Carretei-ro, Ventarra, Erechim, Votouro e Lagoão (RELATÓRIO de 09/06/1910 in: LAYTANO, 1957). Os caciques e chefes que apareciam nesses aldeamentos são Candinho, Faustino, For-tunato, Santos, Vito Supriano, Titi Fongue e muitos outros.

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No decorrer da década de 1930, avançando inclusive para os anos de 1940, além da frente colonizadora da Socie-dade Nacional efetivada principalmente pelas fazendas e pela exploração de riquezas vegetais que retrocedem ao início do século, tem-se, também, uma segunda frente que se caracteri-za pela criação de reservas florestais em territórios indígenas. Neste sentido, então, grande parte das áreas indígenas foram ocupadas por posse ou arrendamento, seja de colonos imigran-tes (principalmente descendentes de alemães e italianos) ou de caboclos, resultando, muitas vezes, na perda de controle dos Kaingang sobre seus tradicionais territórios (ver Ilustração 3).

Ilustração 3 – Mapa de áreas indígenas no Sul do Brasil na República Velha

Fonte: Luís Fernando Laroque (2011).

Legenda

1. Mangueirinha2. Palma3. Chapecó4. Inhacorá 5. Guarita6. Pary7. Nonoai 8. Serrinha9. Votouro10. Erechim11. Ventarra12. Ligeiro13. Carreteiro14. Faxinal15. Cacique Doble 16. Caseiros17. Lagoão

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A título de ilustração dessa questão, tem-se o caso da Área Indígena de Serrinha, que, pelo Decreto nº 658, de 10 de março de 1949, Walter Jobim reduziu o território Kaingang para criação de uma reserva florestal. O argumento utiliza-do, segundo José Antônio Nascimento (2001, p.56), era o de evitar que os funcionários do Serviço de Proteção aos Índios devastassem a área. Entretanto, o governo não fez nada “para criar áreas de preservação ambiental em áreas não indígenas, como, por exemplo, em propriedades particulares com vasta extensão devoluta, expondo, com isso, o caráter protetor das elites, que o Estado brasileiro sempre teve”.

4 Conclusão

Nessas primeiras décadas do século XXI, observou-se que os povos indígenas no Rio Grande do Sul, semelhante-mente ao passado, continuam a viver seu protagonismo, a lu-tar por seus tradicionais territórios e a vivenciar sua história e cultura.

Ilustra a questão a situação Charrua, que a historiogra-fia considerou que, enquanto grupo, desapareceu. Porém, na primeira metade do século XIX, passado pouco mais que o período de um século, em plena capital gaúcha, um grupo de Charrua, liderado pela cacique Acuab, rompeu a invisibidade imposta e testemunhou que sempre esteve presente, percor-rendo os territórios no Rio Grande do Sul.

Para os Mbyá Guarani no Rio Grande do Sul, que oficial-mente retornaram para o estado a partir da década de 1960, totalizam, aproximadamente, 3.000 indivíduos, as questões não são diferentes. Falam a língua guarani, além do espanhol e do português. Elementos culturais, como, por exemplo, a cestaria, o artesanato, os cantos, o parentesco, o deslocamento pelo território e, principalmente, o universo religioso, conti-nuam sendo vivenciados e mantidos no seu dia a dia.

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Os Kaingang, com um contingente atual em torno de 10 mil indivíduos no Rio Grande do Sul, também continuam a vivenciar seu protagonismo. Ressalta-se ser o grupo que, mes-mo tendo o território bruscamente reduzido após a década de 1930, esteve oficialmente presente como etnia, embora as esti-mativas governamentais e demográfica insistissem em prever seu desaparecimento ou sua “aculturação”. Dentre os vários elementos culturais desses nativos, são apontadas as pinturas corporais, o respeito ao universo simbólico das duas metades que se encontram divididas, os cantos, as danças, o apego aos seus territórios tradicionais, a continuação da língua e, prin-cipalmente, sua natureza guerreira manifestada recentemente quando bloquearam várias rodovias gaúchas como forma de reivindicar melhorias na área da saúde.

Para finalizar, chama-se a atenção para o fato de que as populações indígenas, durante o contato com a Sociedade Co-lonial e Nacional brasileira, não deixaram de ter sua própria ordenação histórica dos eventos que vivenciaram, uma vez que a história é ordenada culturalmente, mas a recíproca tam-bém acontece (SALHINS, 1990). Neste sentido, ainda é preci-so romper com a concepção estática de cultura fundamentada no paradigma estrutural-funcionalista e difundida pelo Evo-lucionismo e Positivismo, as quais concebem que as socieda-des passam por estágios de “evolução” ou de “perda cultural”. Infelizmente, esta visão ainda continua presente na atualidade e a dificultar relações interculturais entre a sociedade Ociden-tal e as sociedades indígenas.

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OS JESUÍTAS NO TERRITÓRIO GAÚCHO

* Ricardo Arthur Fitz

1 A Companhia de Jesus e sua contextualização his-tórica

O século XVI foi, sem dúvida, um divisor de águas na História do mundo ocidental. A inserção de vastas áreas da América, África e Ásia na economia mercantil europeia al-terou significativamente os horizontes europeus. Não havia mais limites ou barreiras intransponíveis. Evidentemente, tais circunstâncias não são geradas de forma abrupta no período, mas, sim, resultado de longa maturação, cujas raízes podem ser vislumbradas no incremento das atividades comerciais na Baixa Idade Média. No bojo desse processo, desenvolveu-se o que se convencionou denominar Renascimento e que alcan-çou sua culminância justamente no século XVI.

Segundo Heller (1982), o Renascimento representou a primeira onda no processo de transição do feudalismo ao ca-pitalismo. As atividades capitalistas, na medida em que têm permanentemente metas a serem atingidas – a produção de riquezas –, tornam as várias circunstâncias previamente exis-tentes em fatores restritivos. “O homem não deseja continuar a ser aquilo em que se transformou, antes vivendo um processo constante de devir”, uma constante transposição de barreiras, rompimento de limites e hierarquias (MARX, GRUNDISSE apud HELLER, 1982, p. 11).

Consequentemente, os limites também são rompidos nas consciências humanas. Agnes Heller demonstra que a consciência da historicidade do homem é produto do desen-volvimento burguês. O Renascimento propicia, portanto, o

* Professor da Faculdade Porto-Alegrense (FAPA) e do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA).

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surgimento de um conceito dinâmico de homem – em opo-sição a um conceito estático dominante na Antiguidade –, se-gundo o qual o mesmo homem passa a ter uma história de desenvolvimento pessoal e a sociedade também adquire seu sentido de desenvolvimento (HELLER, 1982).

Heller comenta que, durante a Antiguidade, prevale-ceu um conceito estático de homem, cujas potencialidades eram limitadas. Tais limites acabaram sendo dissolvidos pela ideologia cristã medieval na medida em que tanto a perfec-tibilidade quanto a perversão podem constituir um processo ilimitado. Ainda assim, limites se impunham, determinados pela transcendência do início e do fim: o pecado original e o Juízo Final.

Portanto, ao passo que o comportamento intelectual do homem medieval era orientado fundamentalmente pela exe-gese da revelação – tanto das autoridades religiosas, quanto das autoridades da Antiguidade – o comportamento intelec-tual do homem do Renascimento, influenciado pelo Huma-nismo, voltava-se para suas próprias potencialidades e pos-sibilidades.

De outro lado, a expansão das atividades comerciais de-finiu a superação das estruturas feudais nos níveis econômico e socioculturais. Decorre disso uma profunda mudança nas consciências acerca de tempo e de espaço.

No que se refere ao tempo, Agnes Heller afirma que:

Surgia com a dissolução do quadro limitado das or-dens sociais feudais, a possibilidade de o indivíduo ‘subir’ ou ‘descer’, ‘aderir’ ao dinamismo objetivo da sociedade; devia ‘aprender-se’ o ‘momento certo’, de tal modo que o indivíduo pudesse movimentar-se juntamente com a corrente histórica. O ‘ritmo’ e o ‘momento’ tornaram-se essenciais e totalmente compreensíveis no interior do ‘processo’. (HELLER, 1982, p. 143)

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Ainda, segundo a autora, “esses conceitos de tempo não ultrapassaram (...) as generalizações da experiência quotidia-na” (HELLER, 1982, p. 143). Surgia, assim, uma nova concep-ção de tempo vinculada a uma nova ordem social – burguesia, por excelência – que se afirmava. Esse tempo é colocado ao lado de um tempo religioso herdado da Idade Média. Assim, “desde o final do século XV dois tempos passaram a convi-ver paralelamente: o tempo da Igreja, regido pelo sino e pela oração e o tempo laico, organizado matematicamente pelo relógio e pelos marcadores.” (DECKMAN, 1991, p. 43). Este último, ainda que voltado fundamentalmente para uma fun-cionalidade econômica objetiva, a saber, gerar riquezas, passa gradativamente a balizar o quotidiano ocidental e as concep-ções modernas de organização temporal.

No que tange ao espaço, tais alterações nas consciências constituíam-se, antes de tudo, em uma consequência direta das grandes descobertas. Comenta a autora:

A mudança das idéias de ‘grande’ e ‘pequeno’ trans-formou-se num tema da experiência quotidiana: tornou-se um lugar-comum, o ‘mundo’ até então conhecido ser apenas uma pequena parte da terra. Essa experiência – pelo menos durante o período clássico do Renascimento – tinha um efeito mobi-lizador; deu um impulso no sentido da descoberta de novos mundos. O vasto e desconhecido atraíam, em vez de repelir; sua conquista era um desafio para a individualidade recém-desenvolvida, uma aventura. (HELLER, 1982, p. 142)

Estas novas condições foram também determinantes na mudança de perspectivas de apreensão da realidade. Até então, “por partirem da ideia de que a definição do universo vinha de Deus, [...] a fidelidade e a objetividade (dos relatos de viagem) eram suplantadas por imagens fantásticas” (DECK-MAN, 1991, p. 47).

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Na medida em que as navegações atlânticas se desenvol-veram, novas fantasias destruíram parcialmente o imaginário medieval. Este processo de transição “volatizou muitas das certezas do homem e o capacitou para dominar o mundo e devassar os mistérios da Natureza.” (DECKMAN, 1991, p. 1).

Os reflexos de tal atitude se fazem sentir em todas as esferas da vida europeia. Assim é na arte, na cultura, no pen-samento e na religião. Os movimentos reformistas da religião são parte integrante deste contexto, criando-se um profundo abismo na cristandade. Os reformadores protestantes têm como alvo principal a teologia escolástica.

Evidentemente, esta ruptura não significava um rompi-mento completo com os princípios determinantes da fase an-terior. Esses princípios vinham, agora, orientados em direção à nova realidade dada. Assim, esta dinamicidade do homem se refletia, também, nas concepções religiosas que vão se definin-do no período. Lutero – sem dúvida um dos marcos mais sig-nificativos desta ruptura – proclamava que “a fé está sempre, e incessantemente em acção; caso contrário não é fé.” (apud DICKENS, 1971, p.89). A fé não é passiva, é ativa. Esta postu-ra radical, inclinadamente moderna, subordina a condição de existência da fé à dinamicidade própria da época.

É significativo o fato de que o centro de educação teo-lógica da Igreja Católica Romana deixava de ser Paris; outros centros, como Salamanca e Coimbra, menos atingidos pelas novas correntes de pensamento, tomaram seu lugar.

É dentro desse contexto que é convocado o Concílio de Trento (1545-1563) e surge a Companhia de Jesus – além do reavivamento da Inquisição. A Companhia, aprovada pela bula Regimini Militantis Ecclesiae do papa Paulo III, cinco anos an-tes da convocação do Concílio, incorpora, todavia, o espírito tridentino no que se refere ao combate às heresias e aos movi-mentos reformistas. Contudo, nenhuma outra ordem religio-sa foi mais receptiva ao humanismo, em particular ao estudo renovado do Aristotelismo, que a Companhia de Jesus, esta-

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belecendo-se inclusive longas controvérsias entre jesuítas e to-mistas. No dizer do teólogo sueco (luterano) Bengt Hägglund (1981), a nova ordem jesuítica foi de natureza eclética.

Jean Lacouture (1994, p. 89) afirma que:

É, ao mesmo tempo antes e depois da adoção do humanismo renascentista que devemos buscar e avaliar o tesouro conquistado ao longo dos anos parisienses pelos alunos de Santa Bárbara: uma nova concepção da transmissão do saber, e numa abertura para o mundo que só se manifestará mais tarde, mas que o debate dos sete pais funda-dores, no momento do pronunciamento dos votos de Montmartre, permitiu antever.1 (grifos do autor)

De fato, os jesuítas não ficaram de todo imunes às mu-danças ocorridas no período. Se, de um lado, era-lhes muito presente o espírito cruzadista medieval – talvez por influên-cia das experiências diretas [pessoais] de Loyola – e os seus princípios norteadores, também deve-se considerar o espírito investigativo, presente na visão de mundo do homem da época, e que de certa forma se manifestava nos componentes da So-ciedade de Jesus. O espírito cruzadista, traduzido à fórmula da evangelização do oriente e das populações nativas da América, constituiu na versão inaciana do binômio fé/ação de Lutero.

Por outro lado, o individualismo nascente é tipicamen-te renascentista e, também ele, de alguma forma, se faz pre-sente entre os jesuítas. A posição de Santo Inácio, expressa principalmente nos Exercícios Espirituais, privilegia a cons-ciência, forma do individualismo inaciano, como ponto onde se decide a bondade ou a maldade da vida humana. Neste aspecto, há uma aproximação com Lutero: o cuidado com sua própria salvação.

1 Ao utilizar as expressões “alunos de Santa Bárbara”, o autor está se referindo a Inácio de Loyola, que havia estudado no Colégio de Santa Bárbara, em Paris; ao se referir” aos “sete pais fundadores”, tratados primeiros seguidores de Inácio.

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2 Os jesuítas e sua relação com o Estado espanhol

Politicamente, o Concílio de Trento aproximava-se do Ab-solutismo Monárquico então instalado na Europa, tendo a Igreja colocado-se lado a lado ao Estado. Para que tivesse seu poder reconhecido, o rei deveria demonstrar estar imbuído de pensa-mento cristão. É essa a base do Absolutismo de direito divino. Do ponto de vista das conquistas territoriais dos séculos XV e XVI, exige-se dele compromisso cristão com as regiões conquis-tadas. Essa é a base da expansão religiosa do período colonial.

Na Península Ibérica, não há muito tempo, o último bastião de resistência muçulmana havia sido dobrado, com a conquista de Granada, em 1492. O espírito cruzadista que acompanhou a Reconquista vai marcar intensamente a Espa-nha recém-unificada pelos “Reis Católicos”, Fernando de Ara-gão e Isabel de Castela. Isto evidencia que

não foi o pensamento jesuítico que orientou a con-versão do gentio à fé católica ou o que estimulou o espírito cruzadista dos colonizadores, pois já havia uma estrutura mental global, totalizadora e ante-rior aos jesuítas (QUEVEDO, 2000, p. 21).

Desde a primeira viagem de Colombo à América (1492) ficara clara a proximidade do Estado espanhol com a Igreja. O papa Alexandre VI, nascido na Espanha, garantiria a esta os territórios conquistados ou a serem conquistados através das bulas Inter Coetera, adiante substituídas pelo Tratado de Tordesilhas. Ao sancionar estes documentos, o papa exigia dos espanhóis que levassem missionários a esses territórios. Dava-se, assim, continuidade a um antigo projeto medieval de constituição de um Império Universal,2 no qual o gládio material atuaria em favor do gládio espiritual.

2 A este respeito, veja-se o interessante trabalho de Marcos del Roio: O Império Universal e seus antípodas.

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Esta relação próxima entre Igreja e Estado se materiali-zava mediante alguns mecanismos (FLORES, 1986, p. 6):

Através do Régio Padroado, da Teoria do Vica-riato e da Propriedade da Mão Morta, a Igreja hispânica fazia parte integrante do Estado Espa-nhol. O Padroado real era o direito que o monar-ca tinha de nomear os sacerdotes para as igrejas vagas. A Teoria do Vicariato permitia que o rei examinasse qualquer resolução do papa, a qual só teria valor em território do vasto império com a assinatura do monarca. Os bens imóveis da Igreja espanhola faziam parte da Propriedade da Mão Morta, isto é, só podiam ser alienados com o consentimento da coroa. Portanto o Estado do-minava a Igreja espanhola.

Acompanhando a expansão ibérica, diversas ordens do clero regular vão ocupando novos espaços. Já em 1500 os Franciscanos se estabeleram no México; dez anos depois, foi a vez dos Dominicanos, que trouxeram consigo a máquina da Inquisição. Sucedem-se várias outras ordens religiosas, uma vez que o clero secular vinha bastante enfraquecido.

De todos, os jesuítas foram os mais ativos. Após o re-conhecimento da Companhia de Jesus (1540), eles, ato contí-nuo, acompanhando as expansões portuguesa e espanhola, se lançam à tarefa missionária. Em 1548, estavam no Ceilão; em 1549, no Brasil; em 1552, na China; em 1580, no Japão. Os je-suítas sediados em São Paulo, tendo à frente o Pe. Manoel da Nóbrega, propõem a Inácio de Loyola a evangelização de áreas da América espanhola. Em 1568, Francisco de Borja3 envia um grupo de jesuítas para o Peru. Em 1607, é criada a Província Jesuítica do Paraguai, abrangendo o Paraguai, parte da Bolívia, a Argentina, o Uruguai e o Sudoeste do Brasil. A região dos

3 Francisco de Borja, neto do papa Alexandre VI (Rodrigo Borgia), era o Duque de Gandia, influente nobre espanhol. Na ocasião, era o superior da Companhia de Jesus.

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chamados “Sete Povos das Missões”, no Rio Grande do Sul, corresponde a uma parte do território sob jurisdição da Pro-víncia Jesuítica do Paraguai.

Cumpre lembrar que a atividade jesuítica se encontra subordinada a toda uma legislação, já existente por ocasião da fundação da Companhia de Jesus, promulgada pela Co-roa hispânica ao longo do século XVI, as Leyes de Índias. “Os missionários tinham a obrigação de observá-las, sob pena de não poderem trabalhar no meio indígena. E eles não apenas zelavam por sua fiel observância, mas procuravam, por meios legais, aperfeiçoá-las em muitos pontos.” (BRUXEL, 1978, p. 19-20). Portanto, sua atuação não era completamente autôno-ma e se vinculava às formas de relação política da Igreja com o Estado espanhol.

3 A ação missionária na região da Província Jesuítica do Paraguai

Inicialmente, a ação missionária dos jesuítas era do tipo “missão”, que consistia em incursões de missionários aos aldeamentos indígenas que, no caso do Rio Grande do Sul, eram da etnia Guarani. De tempos em tempos, os jesuítas visita-vam as aldeias onde então era exercido o proselitismo religioso com fins de conversão. Os indígenas, portanto, permaneciam em seus locais de origem onde, senhores do território, man-tinham seus hábitos e costumes seculares, seu modo de vida, sua organização socioeconômica, seu sistema familiar, etc. Do ponto de vista da ação missionária, o método se mostrou inefi-caz: o proselitismo não perdura; a mensagem dos jesuítas não se incorporara solidamente no universo indígena. O modo de vida indígena era obviamente associado à sua cosmovisão e esta tinha sua fundamentação em seu sistema religioso. O sucesso da doutrinação religiosa só poderia ocorrer se, simultaneamen-te, fosse desarticulado seu modo de vida tradicional.

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Outro problema enfrentado pelos jesuítas diz respeito ao fato de que os índios eram caçados tanto por portugueses como por espanhóis para submetê-los a trabalhos forçados e, não raro, os padres eram associados aos apresadores de índios. Alguns deles sendo, inclusive, mortos pelos índios, como foi o caso dos “três mártires de Caaró”.

Diante do fracasso de tal sistema, os jesuítas passaram a adotar o sistema “reducional”. As populações indígenas fo-ram chamadas a abandonar seus tradicionais aldeamentos e ocupar novos espaços, as “reduções”, as quais eram pensadas de forma a se constituírem longe das áreas povoadas por por-tugueses ou espanhóis, evitando, assim, as “más influências” destes. Por este processo, os indígenas seriam “reducidos”, isto é, estabelecidos coletivamente em aldeamentos, nos quais, além da doutrinação religiosa, seriam submetidos a um pro-cesso “civilizatório”, isto é, europeizados. A primeira experiên-cia reducional foi em Juli, às margens do Titicaca, atualmente território do Peru junto à fronteira boliviana.

Weber (2002, p. 116) procura demonstrar a nova postu-ra do protestantismo diante do mundo, comentando que

[...] o ascetismo cristão, que de início se retirava do mundo para a solidão, já tinha regrado o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro e por meio da Igreja. Mas no geral, havia deixado intacto o caráter naturalmente espontâneo da vida laica no mundo. Agora avança para o mercado da vida, fe-chando atrás de si a porta do mosteiro; tentou pe-netrar justamente naquela rotina de vida diária, com sua metodicidade, para amoldá-la a uma vida laica, embora não para nem deste mundo.

Em certo sentido, este foi, salvaguardadas as óbvias dife-renças, o caminho traçado pelos jesuítas. Melhor seria, talvez, dizer que os jesuítas ampliaram o mosteiro para o mundo com a sensibilidade de compreender o mundo enquanto seculum.

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Os jesuítas tiveram a clareza necessária para perceber que a vida e a atitude cristãs não estão identificadas com o isolamento e o afastamento do mundo. Compreenderam que o combate por Cristo implicava uma atividade plena. Assim, a obra evangelizadora dos padres da Companhia de Jesus as-sumiu um sentido prático: vinha acompanhada de preocupa-ções de se fazer presente na vida e no cotidiano das pessoas. A atitude contemplativa é substituída [ou acompanhada de] intervenções concretas no mundo secular.

No caso das reduções americanas, não se tratava de, ex-clusivamente, converter os indígenas ao Cristianismo, ainda que fosse o fim a ser alcançado. Compreendiam os jesuítas que a conversão só seria possível na medida em que a ação evan-gelizadora viesse acompanhada de ações que representassem concretamente mudanças radicais, ou, ao menos, significati-vas, no modo de vida dos futuros catecúmenos.

Ficava claro para os padres que a nova religião a ser trazida para os índios somente vingaria caso o modo de vida dos mesmos sofresse radical transformação. O Cristianismo é também um modo de vida. Isso significa a exigência de certos tipos de comportamento que não eram observados entre os indígenas. Isto é particularmente verdadeiro no que se refere a certas formas de comportamento presentes nas tradições in-dígenas que contrariavam frontalmente os princípios do Cris-tianismo. Áreas particularmente sensíveis são a poligamia e a antropofagia.

O sucesso da doutrinação religiosa só poderia ocorrer se simultaneamente à evangelização fosse desarticulado o modo de vida tradicional dos indígenas. Neste sentido, segundo Kern (1994, p.17), “a atuação dos jesuítas junto aos guaranis é francamente modernizadora e tem como objetivo a mudança em todos os sentidos: transformar os guaranis em homens po-líticos que ultrapassem o estágio selvagem e se transformem em habitantes da Polis”.

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Isto implicava a necessidade de romper com as velhas tradições culturais das populações indígenas. Normalmente, os porta-vozes destas tradições culturais eram os caciques e os “feiticeiros” (pajés) e com eles frequentemente se estabeleciam relações de conflito. O Padre Antonio Ruiz de Montoya (1997, p. 61), em texto originalmente publicado em 1639, fala de um cacique que “começou a perturbar e rebelar os ânimos contra nós”, dizendo que “foram os demônios que nos trouxeram es-tes homens, pois querem, com novas doutrinas, privar-nos do que é antigo e do bom modo de viver de nossos antepassados.”.

Porém, em um trabalho paciencioso, os jesuítas vão aos poucos conquistando os Guarani. O próprio Montoya (1997, p. 61) comenta que por dois anos os jesuítas toleraram os há-bitos poligâmicos de um determinado chefe Guarani.

Aos poucos, porém, a conversão do indígena vai se tor-nando mais sólida. É possível que um dos fatores que mais tenha contribuído para isso tenha sido o trabalho feito junto às crianças, que parecem ter sido muito mais suscetíveis que os adultos.

José de Anchieta (1998, p.107) comentava, sobre o tra-balho missionário no planalto de Piratininga, em São Paulo que “porque como dos pais nenhuma ou mui pequena espe-rança haja (...), tudo se converte em os filhos”. Nas reduções, as crianças eram retiradas do convívio com os pais todas as manhãs e doutrinadas. Mais tarde, elas tratavam de repassar o que haviam aprendido aos adultos.

À medida que o processo de conversão avançava, os Guarani iam sendo instalados nas reduções que eles próprios, sob supervisão dos padres, iam construindo. Aos poucos, “nos povoados guaranis um complexo processo de acultura-ção mescla as normas e a tradição indígena com novos hábitos e instituições europeias que são assimilados parcialmente ao longo do tempo.” (KERN, 1994, p.18).

Na Província do Paraguai, a instalação das reduções tem início em 1610, quando os padres José Cataldino e Simão

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Masseta organizam os indígenas nos povoados missioneiros de Nossa Senhora de Loreto e Santo Inácio Mini. Em 1626, o padre Roque Gonzalez de Santa Cruz funda São Nicolau, ini-ciando o processo em territórios do atual Rio Grande do Sul. Conforme o Padre Arnaldo Bruxel (1978, p. 22), “em menos de 25 anos foram fundadas mais de 30 reduções”. É por essa época que começam a aparecer as primeiras cabeças de gado: “desde 1628, há referências sobre gado nas reduções, em pequeno nú-mero e destinado à alimentação do padre e de doentes.

Em 1634, os Padres Pedro Romero, superior das missões, e Cristóvão de Mendoza compraram 1.500 vacas ao português Manoel Cabral Alpoim” (FLORES, 1986, p.12). Esse gado vai alcançar, a partir de 1637, a chamada Vacaria do Mar.

O período vai assistir às incursões dos bandeirantes paulistas à região em busca de mão de obra escrava. Segundo Bruxel (1978, p 25), “foram cativados mais de 300.000 índios, entre 1612 e 1638, sendo vendidos em mercado brasileiro uns 60.000 escravos indígenas, entre 1628 e 1631”. As frequen-tes incursões dos paulistas levaram os padres a transladar as missões para a outra margem do rio Uruguai, retornando em 1687. Das antigas reduções, muitas se extinguiram, umas so-breviveram parcialmente e outras foram, com o decorrer do tempo, reocupadas. Novas reduções também surgiram. Com a fundação de Santo Ângelo, em 1707, completava-se o ciclo de fundações de povos missioneiros que agora contava com 30 reduções, sendo que 7 delas no atual território gaúcho.

4 O plano urbanístico das reduções jesuíticas e organização econômico-social

As reduções apresentavam uma regularidade e simetria do plano urbanístico. Obedeciam a um modelo-padrão com pequenas variantes individuais. Ao centro ficava uma grande praça quadrada com cerca de 150m de lado, para a qual con-vergiam as ruas principais. Em um dos lados da praça, ao nor-

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te ou sul, ficava a igreja, dominando a paisagem em frente a ela, no lado oposto da praça, o cabildo. Junto à igreja ficavam, de um lado o cemitério e a casa das viúvas (cotiguaçu), e de outro a casa dos padres, escola, dois pátios internos, oficinas, etc.; nos fundos deste conjunto ficavam a horta e o pomar dos padres. Cercando a praça por três lados, encontravam-se as habitações dos índios. Kern (1994, p 33-36) chama a atenção para o fato de que a origem do conjunto que compõe a igreja, o cemitério e os outros equipamentos, se encontra em mosteiros beneditinos da Idade Média. Quanto ao traçado regular das ruas onde se encontram as casas, seria uma retomada Renas-centista do antigo projeto Helenístico de cidades planejadas. O modelo era especificado pelas “Leyes de Indias” e deveria ser aplicado nas várias povoações espanholas que vinham se constituindo na América.

Nas oficinas, produzia-se toda a sorte de utensílios ne-cessários. Faziam-se trabalhos em olaria, cantaria, marcenaria, produziam-se instrumentos musicais. Em algumas reduções, até mesmo fundições (como em São João Batista) e tipografias foram instaladas.

Nas estâncias, o gado era criado livremente, mas pro-curava-se separar o gado equino, vacum e lanígero. A deli-mitação aproveitava barreiras naturais, como rios, banhados, matos intransponíveis. Haviam, ainda, os posteiros, famílias de indígenas encarregados de amansar o gado e fazer os neces-sários rodeios. A carne abastecia as reduções, constituindo-se em seu alimento principal.

As reduções também se caracterizaram pela produção em larga escala de erva-mate. A “Ilex Paraguariensis”, por estar associada às atividades xamânicas dos pajés, foi inicial-mente proibida pelo governo espanhol e seu uso punido com excomunhão pela Igreja. Ainda assim, seu uso se tornava cada vez mais difundido a ponto de a proibição ser revogada e as reduções jesuíticas tornarem-se os principais produtores de

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erva-mate. Mais do que isto, a erva-mate tornou-se o princi-pal produto de exportação das reduções e sua principal fonte de recursos.

Os jesuítas instituíram um sistema caracterizado por um acentuado dirigismo econômico. Este modelo condizia com o que se poderia considerar uma síntese entre as concepções europeia, orientada por uma perspectiva jesuítica, e indígena, esta última, que vinha sofrendo brutais transformações com a chegada dos europeus. Imbuídos, do ponto de vista econômi-co, de uma lógica mercantilista, os jesuítas procuram integrar os indígenas em um novo contexto produtivo. Assim, os indí-genas são submetidos a uma nova realidade econômica. Seu modo de vida tradicional é quebrado; as formas e os processos produtivos e os tempos necessários para garantir a sobrevi-vência são profundamente alterados.

Godelier (1988, p.78), ao se referir a sociedades coleto-ras/caçadoras, comenta que:

Constatou-se, por meio de observações quantitati-vas precisas e prolongadas em sociedades de caça-dores e de colectores, que aos membros produtores dessas sociedades bastavam pouco mais ou menos quatro horas de trabalho por dia para cobrirem to-das as necessidades de pequenos grupos humanos e, mesmo perante estes factos, cai rapidamente por terra a visão dos primitivos esmagados pela natu-reza e vivendo exclusivamente para subsistir. Mui-to pelo contrário, parece que o desenvolvimento da agricultura resultou no alongamento do dia de tra-balho e quantidade de trabalho anual necessário à produção e à reprodução das condições materiais da sociedade.

É essa organização original que é rompida. O ritmo de trabalho não é mais ditado pelas necessidades naturais, mas por novas imposições sociais. O tempo não é mais o tempo da natureza, mas o do relógio. O cotidiano indígena, agora, é

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ditado pelo jesuíta. Ora, a inserção dos indígenas em um novo modo de produção representa uma ruptura que nem sempre era facilmente assimilada. Daí acontecer de os indígenas apre-sentarem frequentemente “resistências” ao novo modelo, ou apenas não seguirem as regras com o rigor que os jesuítas es-peravam. Por isso, não raro eram taxados de “imprevidentes” ou “indolentes”.

Os jesuítas procuraram adaptar o modo de vida indí-gena à nova realidade. O sistema de propriedade ou posse da terra procurava, por exemplo, fazer um casamento entre duas culturas distintas.

Kern (1994, p. 17) demonstra que

[...] a propriedade familiar ou clânica (“Abama-baé”) está relacionada à horticultura de origem neolítica, enquanto que muitas das tradições cultu-rais européias introduzidas, tais como a agricultu-ra do arado, a pecuária e o artesanato com tecno-logia mais avançada, passam a ser uma atividade comunitária (“Tupambaé”).

A organização social também reflete esta síntese. Nova-mente, com Kern (1994, p. 17), pode-se perceber que

Nas missões jeusítico-guaranis não existiam “clas-ses” sociais, mas uma divisão de trabalho por sexo e por idade, onde duas categorias sociais se distin-guem pela função: os caciques escolhidos dentre os guaranis e uma “casta” de padres imposta pela so-ciedade global espanhola.

A divisão natural do trabalho (por sexo e por idade) pressupõe a inexistência de mecanismos de acumulação como os constituídos na Europa. “Toda a população missioneira tra-balhava para o bem comum da redução, sem receber remune-ração alguma.” (NEUMANN, 1996, p. 60). Daí não existirem “classes” sociais, como diz Kern.

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Neumann (1996, p. 61) comenta, a esse propósito, que nas oficinas das reduções

A organização do trabalho (...) guarda grande semelhança com a organização das similares no medievo europeu, apresentando uma estrutura hierárquica de aprendizes, oficiais e mestres (al-caide), e a propriedade comunal das ferramentas de trabalho. A transposição do modelo europeu re-sulta do fato de que a estruturação do modelo de trabalho nas reduções é fruto de uma sociedade de contato e fortemente influenciado pelo sistema de trabalho mais organizado. No entanto, mesmo as-sim criavam-se moldes de trabalho próprio, corres-pondendo a outras estruturas sociais provenientes da experiência guarani.

Já os mecanismos políticos constituem uma imposição da “sociedade global espanhola”. A direção das reduções cabe a dois padres em cada povo – um com funções religiosas e outro com funções administrativas – apoiados por um con-selho de caciques reunidos em um cabildo à moda espanhola. Os caciques são escolhidos pelos padres dentre as lideranças indígenas originais que pudessem colaborar com a tarefa je-suítica. Os cabildos “governam em nome dos governadores de Assunção ou Buenos Aires” (KERN, 1994, p. 22).

As casas dos índios também são uma demonstração des-sa síntese. Dispostas segundo o traçado definido pelas “Leyes de Indias”, como já comentado, elas se constituem de constru-ções retangulares com alpendres que a cercavam nos quatro la-dos. A casa era uma forma revista da grande habitação coletiva indígena (oka) em que viviam famílias extensas, onde, porém, devido aos necessários escrúpulos religiosos, se fez introduzir divisórias internas que separassem as famílias nucleares.

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5 As reduções e suas relações com a sociedade espanhola

Os objetivos dos padres são, antes e acima de tudo, reli-giosos e, portanto, comprometidos com a conversão ao cristia-nismo. Porém, há o mundo concreto da colonização espanho-la, com o qual os jesuítas vão procurar integrar suas ambições evangelizadoras. Neste sentido, se defrontam com problemas de toda ordem, resultantes de uma realidade multifacetada. De um lado, a obediência devida ao Estado espanhol e às Leyes de Índias; de outro, os princípios doutrinários da Ordem e o respeito à hierarquia religiosa. À sua frente, uma multidão de indígenas a ser retirada de seu modo de vida e introduzida no mundo cristão; por trás, o poderoso Império espanhol que os usa nas regiões fronteiriças para deter o avanço português.

Por outro lado, os jesuítas se defrontavam com a neces-sidade de “proteger” os indígenas do contato com a socieda-de espanhola. Visitantes espanhóis em geral não eram muito bem-vindos (excetuando-se, evidentemente, as autoridades), tanto que o local de abrigo para viajantes – o “tambo” – ficava nas áreas periféricas do aglomerado urbano.

Os indígenas reduzidos são súditos do rei da Espanha e, como tal, eram, quando necessário, recrutados para o serviço de sua majestade. Kern (1994, p. 25) comenta que eram cons-tantes as “atividades bélicas das milícias Guarani a serviço dos reis da Espanha contra portugueses, contra tribos nômades do Pampa e do Chaco (Charruas, Minuanos e Guaicurus) e mes-mo contra brancos revoltados em Assunção (Revolta do Bispo Cárdenas e Revolta dos Comuneros”. As atividades bélicas não eram as únicas. Na região do Rio da Prata, os indígenas são convocados com frequência.

Neumann (1996, p. 76) sintetiza as convocações de trabalho em três grupos: facções de guerra, obras públicas e transporte e construção naval. Desta forma, os Guarani das reduções deixaram uma marca bem-definida no cenário econômico-social da América espanhola.

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6 A Guerra Guaranítica e a decadência das reduções

Em 1750, o Tratado de Madri vai regularizar os limites das áreas que cabiam a Portugal e Espanha na região. Portugal entrega à Espanha a Colônia de Sacramento e, em troca, rece-be a região dos Sete Povos. Os missionários jesuítas procuram atuar junto à Coroa espanhola no sentido de anular a decisão do Tratado. Não o conseguindo, e, por estarem ligados politi-camente ao Estado, os missionários iniciam um processo de transferência para a outra margem do Rio Uruguai. O Tratado definia o prazo de um ano para a retirada das reduções. Por-tugal e Espanha organizam uma comissão de demarcação de limites a cargo de Gomes Freire de Andrade e do Marquês de Valdelírios.

A comissão inicia suas atividades em 1752. Os jesuítas solicitam a ampliação do prazo, pois consideravam necessário pelo menos três anos para deslocar mais de 30 mil pessoas e 700 mil cabeças de gado. Além disso, ainda não havia espaço nos povoados missionários da Argentina que pudesse ser ocu-pado por eles. Valdelírios não admite alteração nos prazos e os padres não têm alternativa, a não ser tentar convencer os Guarani a se retirarem.

Um número muito grande de indígenas não acata tais decisões, particularmente nas reduções de São Nicolau e São Miguel, e vai se armar. Em 1753, iniciou o conflito. Em 1756, Sepé Tiaraju, principal liderança indígena, cai morto e, três dias depois, 1.500 Guarani são mortos em Caibaté. Aos pou-cos, a resistência se desfez, as reduções foram ocupadas e a população, deportada para a outra margem do Uruguai.

Pouco tempo depois, em 1761, Carlos III, da Espanha, rescinde o Tratado de 1750 e os Guarani voltam ao território dos Sete Povos, ocupando as povoações semidestruídas.

Os anos 1700 se caracterizam, ainda, pela ascensão, na Europa, do despotismo esclarecido.

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As palavras de ordem agora seriam ‘seculariza-ção’ e ‘modernização’, e seu significado, amplo na conjuntura reformista do século XVIII, viria a ser a abolição da influência e dos controles ideológi-cos de natureza eclesiástica, para efetivar o plano político, qual seja, a visão do Estado como procu-rador dos interesses do bem comum. (QUEVEDO, 1998, p. 53)

O Marquês de Pombal, ministro de D. José I, inicia o processo de reforma política em Portugal, tendo como alvo a Companhia de Jesus. Em 1759, os jesuítas são expulsos de Portugal e, em seguida, do Brasil, da França, da Espanha. Pressionando o papado, as monarquias europeias consegui-ram que o papa Clemente XIV extinguisse a Companhia em 1773. Somente na Rússia dos czares, os jesuítas sobreviveram no período. A Companhia só veio a ser restaurada em 1805.

Nesse período, as reduções entraram em declínio acen-tuado. Inicialmente, as reduções foram entregues a outros grupos religiosos. Porém, pouco foi feito. Os Sete Povos não chegaram a ser reconstituídos plenamente após a Guerra Gua-ranítica e as demais reduções, entregues à própria sorte, aos poucos foram definhando. Nos inícios dos anos 1800, os rela-tos dos viajantes mostram as reduções em ruínas.

7 Conclusão

Inseridas em um contexto de exploração colonial, as reduções acompanharam o processo de ocupação de terras americanas levada a cabo pela Coroa espanhola. Sua atuação implicou não apenas a conversão religiosa dos indígenas, mas sua inserção em modo de vida “europeizado”. O modo de pro-dução foi radicalmente alterado, com a introdução de novas técnicas, de uma reorganização do tempo produtivo em mol-des europeus, e de novas formas de trabalho. As novas tecno-logias são apenas um adendo a essas mudanças.

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As relações familiares também se alteraram à medida que novos padrões de casamento e organização familiar fo-ram instituídos nas reduções. Da mesma forma, diversos ou-tros padrões culturais e, naturalmente, religiosos presentes na sociedade Guarani foram alterados ou simplesmente extintos.

As populações indígenas missioneiras, que haviam sido preparadas pelos jesuítas para viver nas reduções segundo os padrões cristãos europeus, viram-se após a Guerra Guaraníti-ca em uma situação peculiar. Oscilando entre os interesses es-panhóis e portugueses, os Guarani não chegaram a constituir uma força suficientemente capaz de se impor de forma autô-noma. E não poderia ser de outra forma. As reduções foram constituídas no sentido de enquadrar-se no projeto coloniza-dor europeu. A autonomia missioneira tinha limitações e a ca-pacidade de se diferenciar dos estados colonizadores também. A derrota na guerra guaranítica é a comprovação disso.

Retirados de seu hábitat original, com seu sistema so-ciocultural e econômico desorganizado para que pudessem viver uma nova vida nas reduções, os indígenas viram tam-bém estas serem destruídas. O resultado é que acabaram por ser relegados a segundo plano tanto por espanhóis quanto por portugueses. Após a derrota na guerra, impossibilitados de uma atuação autônoma e sem apoio dos jesuítas após a expul-são destes do território colonial, os indígenas passam a viver à margem da sociedade colonial e pós-colonial.

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A OCUPAÇÃO IBÉRICA DO TERRITÓRIO E AS DISPUTAS PELAS FRONTEIRAS DO

CONTINENTE DE RIO GRANDE

* Edison Bisso Cruxen

1 Introdução

A fundação do presídio (guarnição) de Jesus-Maria-José, pelos portugueses, em 1737, serve como ponto de referência para iniciar, “oficialmente”, a historiografia do Rio Grande do Sul. Este assentamento funcionou como base da colonização europeia efetiva do litoral e para criação da cidade de Rio Grande. Mas as terras situadas junto às fronteiras Oeste e Sul do atual Rio Grande do Sul já se integravam na chamada Re-gião Platina, que, muito antes de 1737, era ocupada e explo-rada por grupos de portugueses, espanhóis, luso-brasileiros e hispano-americanos.

Estancieiros, contrabandistas, missionários religiosos, caçadores de gado selvagem, militares, tropeiros e etc. transi-tavam entre os territórios divididos por tratados entre as duas Coroas Ibéricas, no “Além-mar”, sem grande respeito pelas possíveis fronteiras, que se caracterizavam por serem extre-mamente difusas e móveis. Esta situação passou a mudar no momento em que assentamentos cada vez melhor estrutura-dos passaram a fazer parte da paisagem. Com o tempo, a fun-dação e o desenvolvimento do que podem ser definidos como “centros urbanos”, ligados ao manejo do comércio, à caça do gado, à exploração dos recursos naturais, ao controle de rotas e bases para o avanço seguro no território, acirraram a tenta-tiva de divisão entre os “espaços” de domínio luso e hispânico na parte meridional americana.

* Professor. Mestre do Curso de Licenciatura em História da FAPA.

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Embora essas fronteiras jamais tenham se configura-do enquanto limes1 ostensivo e intransponível, configurando muito mais um dinâmico espaço de contato, troca e intera-ção, durante séculos Portugal e Espanha disputaram, através da diplomacia e das armas, o território que viria a constituir o atual estado do Rio Grande do Sul. A complexa contradição do funcionamento da região fronteiriça rio-grandense, o pro-cesso de ocupação do território e a constituição dos primeiros assentamentos, que viriam a dar origem aos futuros núcleos urbanos, na região então conhecida como “Continente de Rio Grande”, será revisitada neste capítulo.

2 A fronteira

Para Kühn (2007, p. 23), a historiografia tradicional desenvolveu uma concepção de fronteira sul-rio-grandense onde se privilegiam, em excesso, as disputas e exclusões entre os povoados hispânicos e lusitanos, e na constituição de uma imagem heróica e idealizada do conquistador e colonizador dos “novos” territórios em disputa. Seguindo a lógica tradi-cional, o território do Rio Grande do Sul desde sempre seria português, passando posteriormente a ser brasileiro, obede-cendo ao “fluxo natural” da história, negando a presença ou influência castelhana. “O Rio Grande sempre foi, desde sua origem, um pedaço do Brasil, o Brasil que cresceu de si mes-mo” (VELLINHO, 1975, p. 207).

Moysés Velinho construiu uma narrativa que tinha como idéia subjacente a noção da lusitanidade da

1 Conforme Nunes (2005, p.140-141), pode-se definir como limes “... um sistema que consistia em construir uma estrada estratégica ao longo da fronteira ou da linha a defender, apoiada, espaçadamente, por fortes, muralhas e campos fortificados. Destinava-se a constituir uma barreira à entrada das forças inimigas numa vasta região ou país, em conjugação com o dispositivo e atuação das tropas amigas. O conceito de limes foi utilizado em Portugal nos primórdios da nacionalidade, quando a defesa do território se fez, de norte para sul, apoiada nos rios, ou, posteriormente, em concentrações de fortificações ao longo da fronteira, que passou a constituir uma linha fortificada”.

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formação do Rio Grande. Em Fronteira... os per-sonagens escolhidos são altamente significativos e estão encadeados em uma seqüência que não per-mite contestações. Ela se inicia com o fundador de Rio Grande, o brigadeiro Silva Pais, que simboliza a conquista do território; na seqüência, vem An-dré Ribeiro Coutinho, uma figura notável por sua experiência a serviço do Império português, que consolidou o povoamento do território. O terceiro personagem é Gomes Freire, o todo poderoso go-vernador do Sul do Brasil, que com sua atuação in loco, assegurou os interesses lusitanos no Con-tinente; em seguida, vem a dupla Francisco e Ra-fael Pinto Bandeira, pai e filho, que se destacaram como militares e fazendeiros a serviço de uma úni-ca causa: a posse do Rio Grande. O último elo des-sa cadeia de grandes personagens é José Marcelino, governador do Rio Grande durante o período em que os espanhóis estavam ocupando militarmente metade do Continente. (KÜHN, 2007, p. 23)

A sequência de personagens relevantes, que respeita uma lógica altamente encadeada, termina por constituir uma história unicamente lusitana e brasileira do Rio Grande do Sul. Esta ótica de grandes fazendeiros e oficiais militares, que tomam o destino do Continente em suas mãos, praticamente não deixa espaço para a aceitação da presença e participação de espanhóis ou hispano-americanos na constituição e no funcionamento da fronteira meridional portuguesa, durante o período colonial e imperial.

A perspectiva assumida pela tradicional historiografia sul-rio-grandense foi da fronteira intransponível, onde eram deixadas de lado as aproximações e trocas que ocorreram en-tre os dois lados da fronteira. A partir deste ponto de vista, o território do atual Rio Grande do Sul era definido como “espaço vazio”, “terra de ninguém”, ocupado tardiamente. Tal proposta minimizava ou negava a presença e intervenção

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constante de espanhóis e hispano-americanos no Continente2 (REICHEL, 2006, p.61).

Em entrevista a uma escritora nordestina, que conside-rava os gaúchos acastelhanados, o romancista Erico Verissimo definiu, de forma pungente, dentro dos cânones tradicionais, a situação da fronteira e o processo de ocupação do território do Rio Grande do Sul, confirmando a “raiz lusitana” e a inegável “nacionalidade brasileira” da região desde tempos imemoráveis.

Somos uma fronteira. No século XVIII, quando sol-dados de Portugal e Espanha disputavam a posse definitiva deste então “imenso deserto”, tivemos de fazer nossa opção: ficar com os portugueses ou com os castelhanos. Pagamos um pesado tributo de sofrimento e sangue para continuar deste lado da fronteira meridional do Brasil. Como pode você acusar-nos de espanholismo? Fomos desde os tem-pos coloniais até o fim do século um território cro-nicamente conflagrado. (VERISSIMO apud OLI-VEN, 2006, p. 63-64)

Durante o século XVIII, as Coroas espanhola e portu-guesa disputaram as fronteiras da Região Platina em diversos conflitos armados. Essa noção de fronteira, como espaço de constante separação e belicosidade, não leva em conta a ine-xistência de estados nacionais unificados e territorialmente definidos, bem como a falta da noção de nacionalidade, tal como existe atualmente. Os embates não estavam fundamen-tados no nacionalismo, que surge somente com a criação dos Estados Nacionais latino-americanos no século XIX. A noção de “Pátria”, para um homem do século XVIII, significava o pertencimento a uma cidade ou região e não a uma nação ter-ritorialmente constituída (KÜHN, 2004, p.52).

2 “A expressão Continente ou Continente de Rio Grande referia-se, segundo Guilherme Cesar, a uma vasta porção de terra contínua situada entre a capitania de Pero Lopes de Sousa (que abrangia o território cata-rinense até a altura de Laguna) e o estuário do Prata.” (KÜHN, 2007, p.50)

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Ruben Oliven (2006) apresenta interessante exemplo que vem ao encontro das questões de nacionalismo e patrio-tismo tratados de forma anacrônica. Em 1955, a Comissão de História e Geografia do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul emitiu um parecer negativo à construção de um monumento, em Porto Alegre, em homenagem a Sepé Tiaraju (na comemoração do bicentenário de sua morte). O historiador Moysés Vellinho foi um dos signatários a vetar a homenagem. O argumento se apoiava no fato de que Sepé “se bateu e morreu por uma causa que não era nossa, que era, pelo contrário, abertamente oposta à causa que teve como efeito histórico a integração do Brasil meridional em suas divisas atuais” (VELLINHO apud OLIVEN, 2006, p.72). Na medida em que as ações de Sepé Tiaraju eram contrárias à integração das terras dos Guarani às posses portuguesas, ele não poderia ser aceito como um herói brasileiro, muito menos gaúcho.

Nos registros paroquiais da freguesia de Viamão, está registrada uma expressiva presença de espanhóis e hispano--americanos. O livro de batismo utilizado entre 1747 a 1759 conta com mais de 10% de indivíduos de origem hispânica. “Eram castelhanos, galegos, andaluzes e valencianos, além de indivíduos de diversas procedências sul-americanas”. Cerca de 40 indivíduos de origem hispânica habitavam os Campos de Viamão nas primeiras duas décadas de existência da fre-guesia. A fronteira, que a priori deveria separar, ao mesmo tempo permitia a passagem, o contato, o “contágio”. Em vez de exclusão, havia a situação de convivência e articulação en-tre zonas produtoras e mercados consumidores. “Uma intensa circulação de homens e mercadorias, em um contexto demo-gráfico heterogêneo e numa conjuntura de instabilidade po-lítica” (KÜHN, 2007, p. 24). Isso possibilitou o estreitamento de laços comerciais, culturais e matrimoniais entre espanhóis e lusitanos na América Meridional.

O conceito de limite, linha político-territorial extrema, que define parte da natureza de um Estado-nação de forma

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objetiva, não pode ser utilizado quando se trata de fronteiras, as quais devem ser compreendidas como faixas (ou zonas), em um determinado território. A linha divisória, formulada e prevista em mapas e acordos diplomáticos, estaria inserida nessa zona de difícil precisão (GOLIN, 2002, p.14).

Os riscos de viver nessa instável região eram compen-sados com as possibilidades de acesso a terras, cargos e negó-cios. Possivelmente, as pessoas que habitavam a divisa entre o Rio Grande do Sul, o Uruguai e a Argentina, durante o perío-do colonial, percebiam a fronteira enquanto “linha divisória”, zona de aproximação e alternativa de sustento e prosperidade.

A primeira constatação que aparece relacionada com a definição das fronteiras no interior da Re-gião Platina é a de que, ali, os conflitos foram uma constante durante quase todo o período colonial. Entretanto, os avanços e recuos dos limites divisó-rios dos Impérios português e espanhol na América meridional afetaram os seus habitantes não só em tempo de guerra, mas nos de paz. A indefinição das linhas demarcatórias levava-os a perceber a fron-teira como uma possibilidade de estabelecer redes de trocas, contatos, de concretizar desejos, de reagir a dificuldades. Com isso, a fronteira atuava não só como uma linha que define até onde um território se estende e outro inicia, mas como uma zona de intercâmbios, em que predominam interações entre grupos sociais. (REICHEL, 2006, p. 48)

As fronteiras, na América Meridional colonial, existiram e foram importantes, mas estavam no interior de um espaço maior, a região Platina. Essas fronteiras internas se caracteri-zavam pela mobilidade e indefinição e atuaram muito mais como “zona” de estímulo de contatos e intercâmbios entre os indivíduos, do que limes separando sociedades e culturas.

Para Fábio Kühn (2007, p. 27), a emancipação política das colônias ibéricas e a estruturação dos estados nacionais la-

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tino-americanos, no século XIX, deterioraram o panorama de “tolerância”, a convivência e a articulação existente nas fron-teiras do século XVIII. O estado de guerra que se instaurou entre as novas nações (Argentina, Uruguai, Paraguai e Bra-sil) deu origem a uma representação historiográfica que pri-vilegiou o conflito e a tensão permanente na região raiana. O pesquisador Tau Golin (2002, p. 15) define que, atualmente, o conceito abrangente para definir o espaço limítrofe entre o Rio Grande do Sul e seus vizinhos “castelhanos” é de “uma área compartilhada, moldada por uma história comum”. Mas tal se trata de um compartilhamento onde historicamente ocorre-ram “crises, conflitos e ódios mútuos”. O imaginário do com-partilhamento teria sido construído ao longo do século XX, depois de definidas as fronteiras e terminados os conflitos de estruturação dos novos estados nacionais. Nesse período, as relações de boa vizinhança se fizeram sentir com mais força. A ideia de “formação de um espaço transfronteiriço” seria o fruto de uma imagem histórica depurada dos conflitos trans-nacionais decorridos ao longo do século XIX.

A fronteira compreendida apenas como divisão geopo-lítica impossibilita uma compreensão ampla de seu complexo funcionamento e dos diversos processos que nela se desenvol-vem. A fronteira, como resultado de relações de poder, tanto existe de forma tangível, visível e concreta, marcada por rios, montanhas, campos, florestas, muros, cercas, postos de vigi-lância, guardas, fortificações, quanto em pensamento, como um símbolo, um conceito, estando carregada de ambiguidade. Um claro exemplo se encontra no princípio do utis possidetis, segundo o qual o estipulado pelos tratados das Coroas de Por-tugal e Espanha nem sempre foi seguido pelos habitantes da colônia, ou seja, a prática não obedecia a teoria.

A noção que prevaleceu para constituição dos espaços na Região do Prata não foi do direito natural sobre um territó-rio. A construção do território colonial obedeceu ao princípio

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do uti possidetis, que postulava ações concretas na ocupação de terras, criando direitos sobre as mesmas. No caso do Rio Grande do Sul, a fronteira foi um produto desse princípio, um processo paulatino de conquista e ocupação, transcendendo o estipulado pelo direito natural e pelos tratados diplomáticos. A raia rio-grandense foi fruto da “criação humana, interven-ção do Estado e grupos regionais” durante o período colonial e imperial (GOLIN, 2002, p. 50).

Conforme Rui Cunha Martins (2000), “a fronteira é um espaço em incorporação ao espaço global que é o espaço urbanizado, e sua incorporação se efetua através do núcleo urbano, condição chave da ordenação do espaço territorial e social” (p. 141-142). Desde o período medieval, na Península Ibérica, a legitimidade da ocupação e posse de um território fronteiriço estava diretamente relacionada à criação de povo-ados, devidamente estruturados. A grande maioria desses as-sentamentos fronteiriços tinha por base a construção de uma fortificação ou de uma povoação amuralhada. A partir deste “ponto de proteção” e vigilância passavam a se constituir os futuros centros urbanos, com a principal função de organizar a exploração dos recursos naturais da região.

Durante os séculos XIII e XIV se percebe, junto à fron-teira luso-castelhana Ibérica, uma verdadeira explosão urba-na. A construção, reocupação ou reforma de fortificações nes-ses espaços limítrofes atraíam novos povoadores, a segurança possibilitava o aumento demográfico. Desde o final do século XIII desenvolveu-se um “jogo”, como em um tabuleiro de xa-drez, tanto do lado português como no castelhano, na busca por lugares estratégicos para construção de fortalezas, visando à futura constituição de centros urbanos, que viriam a legiti-mar a posse do território. Iniciar um povoado de um lado da fronteira tinha como reflexo, tão rápido quanto fosse possível, a constituição de um novo povoado também do outro lado (ANDRADE, 2001).

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3 Os Campos de Viamão

A ocupação dos Campos de Viamão era mais antiga do que a criação do presídio de Rio Grande, mas tratava-se de um empreendimento particular, no qual os habitantes estavam mais preocupados com o lucro do comércio e a criação de gado, sem assumirem o papel de defensores dos interesses lusitanos na região. Os Campos de Viamão, nas décadas iniciais (1730 e 1750), ocupavam praticamente todo o Continente, exceto a povoação de Rio Grande, onde se estabeleceram os primeiros povoadores portugueses. Com a ocupação espanhola da vila de Rio Grande em 1763, a freguesia de Viamão passou a ser a sede do poder lusitano, com o estabelecimento do Governa-dor e da Câmara na povoação. Entre 1763 e 1772, o povoado serviria como centro da política expansionista portuguesa no extremo sul da América. Somente com a transferência da ca-pital para Porto Alegre, em 1773, e com a reconquista de Rio Grande, em 1776, Viamão perdeu sua centralidade. Conforme Künh (2007, p.47), os Campos de Viamão

[...] abrangiam uma imensa área no nordeste do atual Rio Grande do Sul. Os tais campos corres-pondiam às terras situadas ao sul do rio Mampi-tuba, tendo ao leste o oceano Atlântico e a oeste e a sul a baliza fluvial do Guaíba e da lagoa dos Patos. Para os paulistas e lagunistas que explora-vam o Rio Grande a partir do “Caminho da Praia”, os campos eram todas as planícies despovoadas à margem esquerda do Rio de São Pedro. Nessa re-gião se estabeleceram os mais antigos povoadores do Continente. Posteriormente, com o desenvolvi-mento populacional, foi criada a freguesia de Via-mão (1747), desmembrada de Laguna. A freguesia de Viamão deu origem, nas décadas seguintes, a diversas outras freguesias, como Triunfo (1756), Santo Antônio da Patrulha (1763) e Porto Alegre (1772), entre outras.

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Em 1738, foram doadas 11 sesmarias para constitui-ção de fazendas de criação de gado e mulas. A princípio, para constituição dos rebanhos, o gado foi pilhado na Vacaria do Mar e nas estâncias missioneiras. A península ao norte do ca-nal até Mostardas foi reservada para organizar a estância Real do Bojuru, que forneceria carne e montarias à guarnição da comandância. Mas necessidades de abastecimento de alimen-tos e animais de carga na região de exploração das Minas Ge-rais geraram a integração do Sul ao mercado interno colonial. Os Campos de Viamão continham uma gigantesca reserva de gado que podia ser adquirida e posteriormente comercializa-da no Centro do Brasil. Na primeira metade do século XVIII, por meio dos tropeiros, iniciava-se a integração, dos Campos de Viamão, com as regiões mineradas coloniais (FLORES, 1997, p. 50 - 51).

As terras eram concedidas aos povoadores por meio das sesmarias (em média 3 x 1 léguas)3 e datas (1/4 de légua qua-drada), doadas às famílias chamadas de “casais de número”, que voluntariamente povoaram o Continente de Rio Grande. As primeiras sesmarias foram concedidas na região dos Cam-pos de Viamão, antes da ocupação oficial do Continente pelos portugueses, em 1732. Em 1750, ocorreu uma intensificação das concessões de sesmarias, quando se iniciou a apropriação das terras da bacia do Jacuí, obtidas por Portugal no Tratado de Madri e protegidas pela fortificação de Rio Pardo (tran-queira invicta).4 Em 1764, assumiu o governo do Continente o coronel José Custódio de Sá e Faria. Em seu “Regimento”, constaram as principais preocupações da Metrópole e, dentre

3 Aproximadamente 6.600 metros. Uma légua de frente por três de fundo. 4 Segundo Moacyr Flores (1997, p.60) “Vertiz y Salcedo chegou à margem direita do Jacuí e intimou a ren-dição do forte de Rio Pardo em 1775. Pinto Bandeira não aceitou e fingiu que recebia um grande exército e o governador, disparando salvas com os pequenos canhões de diversos pontos, desfraldando bandeiras, ordenando que os soldados disparassem para o ar, enquanto a banda tocava. Uma nuvem de poeira se levantou por trás das árvores, como se fosse produzida por um grande exército. Eram apenas soldados que arrastavam galhos galopando em várias direções. Enganado, Vertiz y Salcedo retrocedeu para Rio Grande, sofrendo ataque de guerrilhas ao durante a longa marcha.”.

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elas, a necessidade de defesas mais capacitadas, com a cons-trução de fortins no rio Taquari para a manutenção dos Cam-pos de Viamão (CESAR, 1970).

Conforme explica Mônica Diniz (2005), as sesmarias5 eram terrenos incultos e abandonados, entregues pela Monar-quia portuguesa, desde o século XII, às pessoas que se com-prometiam a colonizá-los dentro de um prazo previamente es-tabelecido. Esse sistema de aquisição de terras era apropriado em regiões e épocas em que prevalecia o estado de guerra e uma baixa densidade populacional, originando terras ociosas e com possibilidade de serem invadidas pelos inimigos. No con-texto das descobertas marítimas portuguesas, a obra política e comercial da colonização tinha como ponto de apoio a distri-buição de terras. A Monarquia portuguesa, na tarefa de povo-ar o imenso território americano, encontrou, nas bases de sua tradição medieval, um modelo: as sesmarias. A orientação da distribuição das sesmarias pregava o retorno das terras que não eram devidamente aproveitadas para as mãos da Coroa, fican-do claro o sentido de ocupação, povoação, cultivo e exploração dos devidos recursos oferecidos pelo território cedido.

Um dos principais efeitos da invasão espanhola de Rio Grande, em 1763, foi a aceleração do processo de militariza-ção da sociedade rio-grandense, que levou ao impedimento do desenvolvimento da agricultura e a dificuldades nas demais atividades produtivas, devido à mobilização de mão de obra e à expropriação da produção agrícola, em função do abasteci-mento do Exército. Como fatores complicadores das preten-sões da Coroa, pode-se citar, ainda, o aumento da deserção, em função do recrutamento compulsório, o que fez crescer o contingente de vagabundos e vadios, e o fortalecimento do poder local dos estancieiros-militares. O poder do grupo de soldados-estancieiros se consolidou a partir de 1764, justa-mente com a invasão espanhola (KÜHN, 2007).

5 O vocábulo “sesmaria” é derivado do termo medieval português “sesma”, que significava 1/6 do valor estipulado para compra de um terreno; o verbo “sesmar” significava, ainda, estimar, calcular, avaliar.

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As sesmarias dadas aos militares que vinham viver na zona fronteiriça serviam como prêmio ou estímulo, mas tam-bém como ponto de partida para outras apropriações por parte de seus beneficiários, dando origem a grandes propriedades. Os soldados de profissão convocados para servir junto à fron-teira, que recebiam sesmarias e datas como recompensa, geral-mente não tinham interesse nem condições econômicas para explorar os campos recebidos. Desta forma, criou-se o costu-me de vendê-las a outros proprietários, contribuindo para a concentração e o aumento do tamanho das propriedades.

Na fronteira, ao mesmo tempo em que militares se tor-navam estancieiros, civis, buscando defender suas proprieda-des, terminavam envolvidos nas atividades de defesa do ter-ritório. Como recompensa pelos serviços prestados à Coroa portuguesa, passaram a ser condecorados com patentes mili-tares. O estancieiros-militares constituíram o grupo dominan-te da zona fronteiriça, “aproveitaram-se da distância em que se encontravam dos órgãos do poder para mesclar o público com o privado e submeter terras e trabalhadores ao seu domínio” (REICHEL, 2006, p. 54). Quase sem controle estenderam suas propriedades, transformando-as em grandes estâncias, difi-cultando a sobrevivência da população comum.

A partir dos dados demográficos tornou-se possível entrever uma sociedade típica do Antigo Regime Português nos trópicos, baseada na existência de uma nítida hierarquia social e marcada pela pre-sença expressiva da escravidão. Longe do cenário que enxerga o passado colonial como terra de gaú-chos, vivendo envoltos em lides guerreiras, o que se descortina é uma sociedade extremamente ex-cludente, onde uma pequena minoria de famílias detém uma grande parte da riqueza existente, fos-se na forma de terras, gados ou homens. (KÜHN, 2004, p. 48)

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Fabio Kühn (2004, p. 53-54), utilizando como fonte de pesquisa os róis de confessado (recenseamentos paroquiais), indica que, em 1751, a freguesia de Viamão apresentava 42% de sua população composta por cativos de origem africana. Os cativos indígenas perfaziam somente 3%, o que indica o pleno declínio da “administração particular” do “trabalho” in-dígena entre os povoadores. O número de escravos africanos demonstra ser muito elevado, tanto para o um período tão re-cuado no processo de colonização quanto para uma economia totalmente voltada ao mercado interno. Dentre as unidades domésticas analisadas, 62% apresentavam posse de escravos, uma média de quatro cativos africanos por casa. Outro dado infere que os 12 maiores senhores da freguesia detinham, con-juntamente, 132 escravos, ou seja, 46% do total.

Os grandes estancieiros mantinham uma posse média de 11 escravos; os lavradores, maioria da população, manti-nham entre dois a três escravos em suas propriedades, perfa-zendo 56% de cativos. A extensa freguesia foi dividida em dez “distritos” ou “bairros rurais”, que compunham os Campos de Viamão. A localidade mais populosa era a “Guarda de Via-mão”, com 31 unidades domésticas, local de concentração dos maiores plantéis de escravos, com de 104 cativos, correspon-dendo a 36% do total da freguesia. Os três maiores “bairros rurais”, Guarda de Viamão, Morro Santa Anna e Estâncias de Fora, concentravam 51% dos fogos, possuindo 202 escravos, mais da metade do total de cativos computados na freguesia.

Apenas em 1750, após a celebração do Tratado de Madri, passou a existir, efetivamente, certa definição sobre as posses meridionais portuguesas. Esta “estabilidade” possibilitou que a Coroa portuguesa consolidasse seus interesses políticos e econômicos na região do atual Rio Grande do Sul. Entre fi-nais da década de 1740 e princípios de 1750, o povoamento de Viamão passou por sensível aumento de habitantes. Povoado-res enviados por determinação da Coroa portuguesa ou novos

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habitantes provindos de migração espontânea, em busca das possibilidades oferecidas pela fronteira, mudaram, em pouco tempo, a demografia da capela e, posteriormente, a freguesia de Viamão.

4 A disputa pela Colônia do Sacramento e a criação de Rio Grande

A fundação de Buenos Aires, pela Coroa de Espanha, em 1580, fez crescer o interesse dos portugueses pelo extre-mo sul do continente americano. Durante o período da União Ibérica (1580-1640), a cidade passa a receber comerciantes lusitanos, que percebem a importância da região como entre-posto comercial.

O fim da União Ibérica, em 1640, levou à expulsão dos portugueses de Buenos Aires e os comerciantes lusitanos, acostumados com os lucros provindos da região, pressiona-ram a Coroa para fundação de um posto avançado português, uma colônia no Prata.

Em 1680, com o patrocínio dos grandes comerciantes do Rio de Janeiro e sob a liderança de seu governador, Manuel Lobo, foi fundada, pela primeira vez, a Colônia do Santíssimo Sacramento, em frente a Buenos Aires, do outro lado do rio da Prata. Desta forma, os portugueses marcavam nitidamen-te sua presença e se mantinham nesta região de intenso fluxo comercial. O Rio da Prata era o limite natural entre os domí-nios de Portugal e Espanha. Uma vez fundada a Colônia do Sacramento, existia um grande espaço entre a nova cidadela portuguesa e São Paulo, região que o governo de Portugal se esforçou para promover a ocupação (KÜHN, 2007).

A Coroa espanhola reagiu imediatamente, enviando uma grande força militar que expulsou os portugueses. Mas, em 1681, após a celebração do Tratado de Lisboa, Portu-gal conseguia reaver a Colônia. Pelo Tratado de Tordesilhas (1494), o território pertencia à Espanha, mas Portugal apli-

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cou o princípio de uti possidetis, que previa o direito às terras a quem as ocupasse, construísse e povoasse, um direito que não se encontrava na divisão prevista pelos tratados, mas no uso efetivo do espaço. Os portugueses, usando deste princípio, concederam sesmarias a civis com a intenção de forçar o avan-ço da linha demarcatória para o Oeste (REICHEL, 2006, p.50).

Em 1683, as fortificações da Colônia são reabilitadas a mando do governador do Rio de Janeiro, novas tropas, arma-mentos e povoadores. Mas, entre 1707-1705, Sacramento é sitiada pelos espanhóis, que expulsam novamente os portu-gueses, os quais se mantêm por uma década fora da região. Em 1715, com o Tratado de Utrecht, a fortificação volta para mãos lusitanas, mas a povoação fica circunscrita ao território ocu-pado pela cidadela. Nesta fase, a Colônia desenvolve-se muito economicamente, atraindo novos habitantes. Em 1722, sob o governo de Antônio Pedro de Vasconcelos, a fortaleza contava com aproximadamente 1.800 habitantes, sendo 400 militares. Buscando limitar a expansão portuguesa na Banda Oriental, em 1726 os espanhóis fundaram a cidade de Montevidéu. Após um longo cerco espanhol, entre 1735 e 1737, muitos dos 2.600 habitantes da Colônia fugiram da cidadela sitiada. Na busca por abrigo, viriam a se tornar os primeiros povoadores da vila do Rio Grande, fundada em 1737, pela expedição do Brigadeiro Silva Paes, que procurava criar um ponto de apoio para tentar salvar a Colônia (KÜHN, 2007).

Em 18 de Junho de 1736, o governador do Rio de janeiro, Gomes Freire de Andrada, deu instruções ao brigadeiro José da Silva Paes para tomar posse do território rio-grandense, defender a colônia do Sacramento, expulsar os espanhóis das ilhas de São Gabriel, ocupar e fortificar Montevidéu, examinar a posição de Maldonado e promover a ocupação e fortificação do porto do Rio Grande de São Pedro. (SANTOS, 2006, p.66)

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O Brigadeiro José da Silva Paes, governador do Rio de janeiro, recebeu instruções da Coroa portuguesa para fundar uma povoação que pudesse dar apoio à constantemente ata-cada Colônia do Sacramento. Para justificar juridicamente a posse do território, em 06 de agosto de 1736 foi criada a fre-guesia de S. Pedro de Rio Grande. Os portugueses aproveita-ram justamente o momento em que os espanhóis mantinham o cerco à Colônia do Santíssimo Sacramento e protegiam Montevidéu e Buenos Aires. Silva Paes rumou para o canal de Rio Grande, onde desembarcou, em fevereiro de 1737, com 254 soldados, armamentos e todas as ferramentas para cons-trução de uma fortaleza. Encontrou, à sua espera, 160 homens do coronel de ordenanças Cristovão Pereira de Abreu e uma tropa de gado. Abreu havia se adiantado, por terra, e reunido alimentos, além de constituir as bases estruturais para a recep-ção do contingente, enquanto os navios eram equipados nos portos de Rio de Janeiro e Santos. No mesmo ano de 1737, o engenheiro militar Silva Paes começou a construção do Forte Jesus Maria José, na margem direita da Barra do Rio Grande (atual Lagoa dos Patos), junto ao povoado do Porto (futura Vila do Rio Grande).

A Comandância Militar do Continente de Rio Grande de São Pedro tinha como objetivos auxiliar a Colônia do Sa-cramento, povoar a região e regular as relações entre os dife-rentes elementos povoadores. O novo povoado de Rio Grande recebeu reforços de habitantes vindos da região do Minho, Açores e Madeira (Portugal), mas também de Laguna (Santa Catarina). Uma década após sua fundação, em razão de seu desenvolvimento e sua prosperidade, em 17 de julho de 1747, Rio Grande foi elevado à Vila, com instalação da Câmara em 16 de dezembro de 1751. A fundação do presídio (guarnição) e da povoação de Rio Grande foi situada estrategicamente no canal de entrada da Lagoa dos Patos, cujo controle dava acesso ao interior do Continente (FLORES, 1997, p.48-49).

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Em carta a Gomes Freire, em 20 de agosto de 1737, o Brigadeiro Silva Paes enfatizava a importância do povoamen-to e a fortificação de Rio Grande, destacando que este pon-to estratégico oferecia mais vantagens e era mais interessante do que a própria Colônia do Sacramento ou Montevidéu. De qualquer forma, em sua carta, percebe-se que a fortificação e o povoado de Rio Grande continuavam sendo encarados como bases para a mais ampla ocupação do território na direção do Prata, principalmente no que concerne a tomada da cobiçada Montevidéu e a manutenção sobre a Colônia do Sacramento.

E estou tão firme que o Rio Grande é tanto melhor para se conservar que Montevidéu, e ainda a Colô-nia (por ficar místico [anexo] ao nosso continente) que, se pusesse em questão, e fosse preciso largar este ou aquele presídio, votara se devia largar aque-le por conservar e adiantar este, pois daqui se po-dem tirar os mesmos interesses que do outro, e para se conservar não necessita das enormes despesas que agora temos visto se fizeram para a Colônia, e ainda para a socorrer só daqui se pode formar o corpo que possa fazer e ainda inquietar os inimi-gos, fazendo-lhe tal diversão que os obrigue a le-vantar o bloqueio ou perderem Montevidéu. (PAES apud FORTES, 1980, p. 61)

Em Carta Régia de 1742, o governo do Continente do Rio Grande de São Pedro do Sul, juntamente com o de Santa Catarina, foi reunido administrativamente ao da capitania do Rio de Janeiro. Somente em 1760 seria criada a capitania de Rio Grande de São Pedro, tendo a vila de Rio Grande como capital. As capitanias6 eram grandes extensões de terras distri-buídas entre indivíduos da pequena nobreza, grandes homens de negócios, altos funcionários burocratas e militares de altas patentes. A capitania desenvolvia a função de defesa militar

6 Constituídas nas bases político-administrativas do reino, assentavam-se sobre as cartas de doações e foral.

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e estímulo de atividades econômicas em regiões de expansão territorial. O capitão-mor podia fundar vilas e desenvolver o comércio. O governador tinha funções jurídicas e administra-tivas. D. João III, o Colonizador, adotou no Brasil, o sistema de capitanias, tratando de promover a ocupação da terra sem onerar a Coroa, uma vez que todos os gastos ficavam a cargo do donatário.

A sesmaria era uma subdivisão da capitania com o ob-jetivo de que essa terra fosse aproveitada. A proposta buscava incentivar a ocupação das terras e estimular a vinda de colo-nos. As sesmarias não eram de domínio total dos donatários ricos, mas apenas lhes tocavam as partes de terras especifi-cadas nas cartas de doações. Os donatários se constituíram em administradores, achando-se investidos de mandatos da Coroa para doar as terras e, tendo recebido a capitania com a finalidade colonizadora, cabia-lhes cumprir as ordens de Portugal. A terra continuava a ser patrimônio do Estado por-tuguês. Os donatários possuíam apenas o direito de usufruir a propriedade, mas não eram donos. Os capitães-donatários detinham efetivamente apenas uma pequena porcentagem de sua capitania, sendo obrigados a distribuir o restante, na forma de sesmarias. Nesse momento, perdia qualquer tipo de poder ou direito sobre as mesmas (DINIZ, 2005).

Segundo Moacyr Flores (1997, p. 72-73), a divisão ad-ministrativa do Continente do Rio Grande, durante o século XVIII, correspondia a estâncias e fazendas de cunho familiar, comunal, mas com espírito/função militar. Estas eram conce-didas e constituídas além da linha divisória do Tratado de Tor-desilhas (1494), empurrando pouco a pouco a fronteira com a Espanha, mais a Sul e mais a Oeste, tendo como principal atividade a caça e a criação de gado.

Desde o início ficou claro para os povoadores a impor-tância dos rebanhos para abastecimento dos núcleos habita-cionais iniciais e do contingente militar. O gado vacum, para a alimentação, e o cavalar e muar, para a montaria e transporte.

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Buscando preencher as necessidades das tropas e da popula-ção, com menor custo para a Fazenda Real, em 1737 foram constituídas as Estâncias Reais de Capão Comprido e Boju-ru, ao norte do Rio Grande. Bojuru prosperou ao receber o grande rebanho selvagem existente entre a lagoa Mirim e o oceano, calculado por Silva Pais em mais de 8 mil cabeças. O gado faltante era comprado de particulares ou confiscado dos espanhóis, desde que os animais “invadissem” o território português (SANTOS, 2006).

Retornando à divisão administrativa definida por Flo-res (1997), as chácaras se caracterizavam por serem pequenas propriedades produtivas rurais, próximas a povoações, onde moravam pessoas ricas. As capelas correspondiam a povoa-dos, que se organizavam ao redor de uma praça e de um pe-queno templo. A capela curada tinha padre permanente com missa aos domingos e dias santos, enquanto a capela filial só tinha missas quando recebia o padre da Igreja Matriz. As ca-pelas estavam integradas ao território de uma freguesia.

As freguesias (paróquias), além de servirem como sub-divisão administrativa de um município, tinham como princi-pal característica possuir um povoado com praça e Igreja Ma-triz, nesta se registravam os casamentos, batizados e óbitos. Os fregueses estavam registrados por fogos (moradias, casas, habitações). O registro de fogos tinha fins administrativos, por meio dos quais a administração da capitania cobrava os impostos e realizava o recrutamento militar.

O município era a divisão administrativa da capitania e em sua sede funcionava a Câmara Municipal com funções ad-ministrativas e de se fazer cumprir a justiça. Aos finais do sécu-lo XVIII existiam três vilas na capitania (as demais povoações eram sede de freguesia): N. Sra. Madre de Deus de Porto Alegre, onde funcionava a sede do governo e a única câmara municipal; N. Sra. do Rosário de Rio Pardo e S. Pedro de Rio Grande.

Concluindo, os trabalhos de Corcino Santos (2006), Moacyr Flores (1997) e Fábio Kühn (2007) podem auxiliar na

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produção de uma síntese sobre o complexo enredo, diplomático e bélico, em que o atual estado do Rio Grande do Sul esteve en-volvido, desde meados do século XVIII até princípios do XIX.

O Tratado de Madri (1750) assegurava aos portugueses a posse da vila de Rio Grande (pelo menos até 1763), os Cam-pos de Viamão e as Terras do Vale do Jacuí. Por meio deste mesmo acordo diplomático realizava-se a troca dos Sete Povos das Missões (até então espanhol) pela Colônia do Santíssimo Sacramento (portuguesa), afastando o perigo da presença lu-sitana na região do Prata. A capitania do Rio Grande de São Pedro foi criada em 1760, tendo a vila de Rio Grande como capital. Em 1761, o Tratado de Madri foi anulado pelo de El Pardo, uma vez que as relações entre Portugal e Espanha es-tavam se deteriorando, tendo em vista o estado de guerra que perdurava na Europa. Inglaterra e França se enfrentavam, ten-do como aliados, respectivamente, Portugal e Espanha.

Em 1763, Rio Grande foi invadida pelos espanhóis, fa-zendo o governador e grande parte da população fugir para os Campos de Viamão e a capital ser transferida para a vila de Viamão. O tratado de Paris (1763) suspendeu as hostilida-des e a Colônia de Sacramento foi devolvida aos portugueses. Em 1773, a sede da capitania do Rio Grande de São Pedro foi, novamente, transferida – desta vez, para a freguesia de São Francisco do Porto dos Casais (Porto Alegre). Três anos de-pois (1776), os lusitanos reuniram uma grande força militar e reocuparam a vila de Rio Grande, ato que levou a uma imedia-ta retaliação dos espanhóis, que reconquistaram a Colônia de Sacramento e invadiram a ilha de Santa Catarina.

Em 1777, o Tratado de Santo Ildefonso determinava a entrega definitiva da Colônia aos espanhóis, recebendo a acei-tação de Portugal, que, em desvantagem bélica, temia perder bem mais do que a cidadela de Colônia, sempre percebida como riquíssimo entreposto comercial e base de expansão territorial. A principal intenção seria garantir a posse do Con-tinente do Rio Grande.

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A subordinação da capitania do Rio Grande de São Pe-dro à capitania do Rio de Janeiro perdurou até 1807, quando aquela foi elevada à Capitania-Geral, com o nome de São Pe-dro do Rio Grande do Sul. A nova Capitania-Geral compre-endia todo o território ao Sul de São Paulo, ficando, a partir de então, administrativamente independente.

5 Conclusão

A constituição e o funcionamento das fronteiras do atu-al estado do Rio Grande do Sul, ao longo dos séculos XVII e XVIII, constituem um processo complexo que abre a possi-bilidade para diversas reflexões. A multiplicidade de fatores que configuram esta trama que abrange política, diplomacia, conflito e economia fez a fronteira do Continente avançar e recuar incontáveis vezes, respeitando e desrespeitando trata-dos. Esta zona ou faixa de complicada determinação se carac-teriza por sua contraditoriedade. Existe de forma tangível e visível, encontra-se registrada e detalhadamente descrita em documentos oficiais e estudos da geopolítica, mas também é um conceito, apresenta valor simbólico.

A fronteira sul-rio-grandense dos séculos XVII e XVIII, tal como um conceito, podia ser adaptada e reinterpretada, atu-ando como uma força divisória e, ao mesmo tempo, possibili-tando, de diferentes formas, o “contágio” humano, político e co-mercial (permitido ou não). Obviamente, com o exposto não se pretende diminuir ou esquecer o quanto a raia luso-castelhana americana foi verdadeiramente conturbada e belicosa. Como exemplo, tem-se a recorrente presença da arquitetura militar (fortificações), indicando uma forma de garantir o assentamen-to e assegurar a posse do território e a formação de uma socie-dade militarizada, representada pelos estancieiros-militares.

Se, por um lado, a fronteira poderia significar, tanto para a população militar quanto para a civil, um risco, em tro-ca eram oferecidas possibilidades de prosperidade através de

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terras, promoções e comércio. Por meio da contraditoriedade de funcionamento da fronteira do Continente, passaram (e passam), desprezando as linhas traçadas em mapas e defini-das em acordos diplomáticos, pessoas, animais, mercadorias, informações e histórias que, combinadas, auxiliaram na cons-tituição do que hoje é conhecido como o território, a tradição e a cultura do Rio Grande do Sul.

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DE COMANDÂNCIA MILITAR À PROVÍNCIA: A ADMINISTRAÇÃO DO RIO GRANDE

DE SÃO PEDRO (1737-1824)

* Marcia Eckert Miranda

O sistema de governo por capitanias até aqui ado-tado no Brasil é conforme o despotismo, homo-gêneo à tirania e incompatível com um sistema constitucional, e por conseqüência deve ser abolido imediatamente; e nem pode dignamente o Brasil ser representado em Cortes antes desta medida, que se deve ter no Brasil por necessidade pública. (CHAVES, 2004, p.44)

Esta avaliação era a apresentada pelo charqueador José Gonçalves Chaves em suas Memórias ecônomo-políticas so-bre a administração pública do Brasil, publicadas no Rio de Janeiro a partir de 1822 e destinadas aos representantes bra-sileiros nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portu-guesa. Vivia-se um período de agitação: a política ganhava as ruas de diversas capitanias. O mesmo acontecia no Rio Gran-de de São Pedro, onde as tropas e o “povo” tomaram as ruas e a câmara de Porto Alegre, expondo projetos políticos distintos sobre as formas de governo a serem adotadas pelo Governo central brasileiro e pela Província. Era um momento de infle-xão, no qual as ideias e as revoluções liberais abriram espaço para o questionamento das estruturas associadas ao absolutis-mo, dentre elas o poder dos governadores e capitães-generais.

Como nas demais capitanias do Brasil, a administração do Rio Grande de São Pedro, desde seu início, seguiu as dire-trizes traçadas pelas Ordenações Filipinas (1603). No entanto,

* Doutora em Economia Aplicada (IE/Unicamp). Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

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sua condição de fronteira em disputa conferiu-lhe algumas es-pecificidades. A passagem de posto militar avançado à Capita-nia Subalterna e, mais tarde, à Capitania Geral foi concedendo maior poder de decisão aos governantes locais e diversifican-do a estrutura administrativa por meio da criação de órgãos específicos, como a Junta da Fazenda e a Junta da Justiça. Por outro lado, a Revolução do Porto e o processo de Independên-cia do Brasil abriram espaço para a maior participação da elite no governo da Província.

O presente capítulo busca analisar o governo da região, seus limites, seus poderes e suas transformações entre 1737 e 1824, ou seja, do início da ocupação formal portuguesa, quan-do a região era apenas uma Comandância Militar, à posse do primeiro Presidente da Província, em 1824.

A ocupação do território do que é hoje o estado brasilei-ro do Rio Grande do Sul foi iniciada pela necessidade de a Co-roa portuguesa socorrer, com recursos humanos e materiais, a sua praça meridional às margens do Rio da Prata, ou seja, a Colônia do Sacramento, fundada em 1680 e que enfrentava seguidas investidas e invasões das tropas espanholas.

Entre 1735 e 1737, a Colônia de Sacramento sofreu o “grande sítio”; a destruição das plantações e de benfeitorias fora da fortificação impôs a fome à população confinada na fortaleza. Com o objetivo de socorrer Sacramento, foi orga-nizada uma expedição pelo Governador e Capitão-general do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, em atendimento à ordem do Conselho Ultramarino. Essa expedição também ti-nha por incumbência tomar a Ilha de São Gabriel, retomar Montevidéu e fundar uma fortaleza no Rio Grande.

Frustrado no intento de acudir a praça meridional, o Comandante da expedição, Brigadeiro José da Silva Paes, fundou o Forte Jesus-Maria-José, em Rio Grande, em 19 de fevereiro de 1737. Poucos meses após, em 11 de dezembro do mesmo ano, Silva Paes retornou ao Rio de Janeiro, ficando o comando militar do Rio Grande de São Pedro a cargo do

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Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho. Coube a este mi-litar promover a construção das benfeitorias essenciais para viabilizar a segurança da possessão e o estabelecimento dos primeiros moradores, casais enviados da Colônia do Sacra-mento e alguns procedentes de Laguna, que, a partir de 1738, dariam forma à nova povoação. O relato do Comandante Militar permite perceber como eram amplas suas atribuições nesses primeiros anos de colonização:

[...] levantei cazas á maior parte dos Povoado-res; dei aos lavradores terras, sementes e instru-mentos de agricultura. A alguns ajudei com gado proporcionado ás suas familias; a todos sustentei com mantimentos de farinha e carne e dei mate-riaes para casas. Assisti com justiça natural a seus muitos letigios; ajustei muitas diferenças, para não chegarem a ser contenciosas; tratei os Povoadores com benevolência; protegi os mais pobres e cuidei na conservação de todos, e para pôr na ordem e socego das povoações antigas, que formei no porto e Estreito daquele Dominio que em breve tempo se fizeram consideraveis; expedi muitas ordens e pu-bliquei vários bandos, para observância dos quaes fui inflexível, o que pareceria duro só aquelles, que para dissolução de seus costumes, não couberão nas diferentes terras, donde sahirão. (MEMÓRIA, 1936, p. 238)

Assim, observa-se que o início do povoamento portu-guês e o estabelecimento da administração colonial estiveram intimamente vinculados à ocupação militar da região. Cabia ao Comandante, auxiliado por um conselho de oficiais, a ad-ministração da justiça, as decisões relativas à distribuição de terrenos, a gestão dos recursos da Fazenda Régia, a criação e manutenção de estruturas necessárias para a segurança do enclave e a expansão do território, além das negociações com os indígenas.

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Entre 1737 e 1740, Ribeiro Coutinho estabeleceu uma série de regimentos que normatizavam os procedimentos a serem observados por vários militares e civis encarregados da defesa, da arrecadação dos direitos régios, entre outras fun-ções; homens que trabalhavam nas diversas estruturas criadas para viabilizar a manutenção e a segurança do povoado (ME-MÓRIA, 1936).1

A partir do Presídio Jesus-Maria-José e da povoação que se formava, André Ribeiro Coutinho ocupou-se em criar guar-das, fortes e registros, estabelecendo o controle sobre o trânsi-to de animais, mercadorias e homens na região, demarcando o avanço lusitano.2 Estas estruturas, ao lado das sesmarias, for-mavam um sistema de defesa e de consolidação da ocupação.

A doação de terras privilegiou militares, comerciantes de animais e pessoas ligadas à administração colonial, ori-ginando as grandes estâncias controladas por homens que consideravam a manutenção e a expansão do território não apenas sua obrigação para com a Coroa, mas uma imposição para a segurança de sua propriedade e para a expansão de sua riqueza e influência.3

Assim, entre 1737 e 1761, período da Comandância Mi-litar, o forte e o território sobre o qual era estendido o do-mínio português foram governados por quatro comandantes militares subordinados ao Governo da Capitania do Rio de Janeiro pela Provisão de 11 de agosto de 1738 (SILVA, 1968, p. 215; SALGADO, 1985, p. 430). Os membros da administração

1 Sobre os regimentos das guardas, fortes e outros, ver MIRANDA, 2000.2 Foi criado, nos primeiros anos, um sistema de defesa compreendido pelo Forte de São Miguel, pelas guardas do Taim, do Chuí, do Albardão, do Passo da Mangueira, do Capão Comprido, do Norte e de Tramandaí; além da formação das estâncias régias do Torotama e do Bojuru, cuja função era fornecer animais para o abastecimento do presídio e da Vila de Rio Grande e para a remonta das tropas regulares. O Registro de Viamão teria sido instalado aproximadamente em 1737 e localizava-se próximo à margem esquerda do Rio dos Sinos, na localidade de Guarda Velha, para o controle o pagamento dos direitos régios (MIRANDA, 2000, p. 32-33; MIRANDA, 2011).3 Cabe observar que parte expressiva das terras apropriadas não teve por instrumento de concessão a carta de sesmaria. Sobre a apropriação de terras e a formação das estâncias no Rio Grande do Sul, ver OSÓRIO, 1990.

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da região eram, em sua maioria, aqueles que associavam às suas atribuições militares funções civis, como o Comissário de Mostras, responsável pela distribuição de mantimentos (fari-nha e carne) às pessoas que se encontravam a serviço de S.M. e aos povoadores, mas também tinha a seu cargo o registro da morte de animais reiunos que estavam sendo usados a servi-ço das guardas. Além dessas obrigações, devia ainda fazer a escrituração do livro de receitas dos quintos dos couros e das ordens e portarias no Livro de Registro Geral da Vedoria do Rio Grande (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul [AHRS] – Fundo Fazenda, códice F1197, fls. 31v-32r).

Os Comandantes Militares tinham grande poder de de-cisão; suas ordens e portarias diziam respeito à distribuição de terras, à arrecadação de direitos reais e execução de despesas públicas, ao policiamento e à aplicação de penas (QUEIRÓZ, 1987, p. 53). No entanto, suas competências foram limitadas com a progressiva criação local dos ramos específicos da ad-ministração, como a Provedoria da Fazenda Real e a Câmara da Vila do Rio Grande.

O primeiro Provedor da Fazenda Real no Rio Grande de São Pedro foi nomeado pelo Decreto de S. M., de 19 de no-vembro de 1749, por meio da Provisão Régia de 21 de novem-bro (AHRS – Fundo Fazenda, códice F1197, fls.132r-132v). A ele cabia a administração da Fazenda Real, ou seja, era o responsável pela arrecadação dos direitos régios e pela execu-ção de despesas. Também servia como Vedor das Tropas da Capitania, sendo o responsável pelo pagamento da folha mili-tar e por outras despesas, como o munício de carne e farinha, a aquisição de armamentos, munições e montaria. Tinha sob suas ordens os almoxarifes, os administradores das estâncias régias e o escrivão da Fazenda Real. Formalmente subordina-do ao Provedor-mor do Brasil,4 passou, a partir da década de

4 Alvará de 03 de março de 1770.

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1770, a responder diretamente à Junta da Fazenda Real do Rio de Janeiro (SALGADO, 1995, p. 367).

A primeira Câmara estabelecida no território do Rio Grande de São Pedro foi instalada em 1751, conforme as or-dens da Provisão, de 17 de julho de 1747, que determinava a elevação do povoado do Rio Grande à categoria de vila. As câmaras eram, ao mesmo tempo, os agentes de repressão e de manutenção da ordem, de fiscalização e veículos das rei-vindicações da população. Exerciam funções administrativas, judiciais, policiais e fazendárias. Ainda que as câmaras fos-sem subordinadas às autoridades régias na colônia, podiam representar-se diretamente ao rei quando considerassem que sua jurisdição estivesse sendo invadida (BANDECCHI, 1992, p. 217-219).

Em 1760, por meio da carta régia de 09 de setembro, o Rio Grande de São Pedro tornou-se uma capitania, formando um governo independente do governo da capitania de Santa Cata-rina, mas subalterno à Capitania Geral do Rio de Janeiro (SAL-GADO, 1985, p.434; CESAR, 1980, p. 165-166). A partir deste momento, o Rio Grande de São Pedro passou a ter governadores.

O governador era nomeado por carta régia e tomava posse na câmara da capital da capitania. Suas funções asse-melhavam-se às dos governadores capitães-generais, mas seus poderes tinham algumas restrições. Era subordinado a um go-vernador de uma Capitania Geral, que tinha inclusive o poder de destituí-lo.5

A relação entre os governadores e as autoridades que lhe eram superiores nem sempre foram pacíficas. Os atritos e a invasão de competências eram corriqueiros. Em 1809, o governador da capitania do Rio Grande, Paulo José da Silva Gama, foi alertado pelo governo da capitania do Rio de Ja-neiro para que se abstivesse de fazer concessões de sesmarias,

5 Para os regimentos dos capitães-generais e capitães-mores, ver POMBO (1905, p. 402-406).

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uma vez que o governo do Rio Grande era subalterno àquela capitania a quem competia privativamente a jurisdição sobre a concessão de terras (AHRS – Fundo Documentação dos Go-vernantes, maço 2).6

Internamente ao governo da capitania, a inexistência de delimitações precisas das competências e a possibilidade dos servidores régios apelarem à Corte criavam novos confli-tos. Foi o que aconteceu em 1780, quando, por meio de vários ofícios, o provedor da Fazenda Real da capitania encaminhou ao vice-rei diversas denúncias sobre a interferência do Gover-nador José Marcelino de Figueiredo nas questões fazendárias, usurpando a jurisdição camarária e determinando a execução de despesas não autorizadas (ARQUIVO NACIONAL [AN], 1907, p.185-191). Em 1809, segundo Alcides Lima, os cons-tantes atritos e o autoritarismo do Governador Paulo José da Silva Gama, levara:

[...] a tal estado de desgosto e de aborrecimento, que de todos os ângulos da capitania concorreram assignaturas para um abaixo-assinado, que contra as violências do governador foi redigido e posto na presença do vice-rei do Brasil. Nesse abaixo--assignado não se firmavam somente indivíduos estranhos á administração, mas lá appareciam até os nomes de auctoridades subordinadas ao próprio governador. (LIMA, 1935, p. 143)

O governador de uma capitania subalterna tinha funções gerais, que abrangiam questões como a ocupação do território, a distribuição de terras, o relacionamento com os indígenas, a arrecadação das receitas e a execução das despesas, bem como o governo das tropas. Em linhas gerais, os governadores seguiam as determinações dos regimentos dos governadores gerais, as ordens e provisões emitidas por eles ou por órgãos metropo-

6 Ordem Régia de 08 de março de 1809.

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litanos (AHRS – Fundo Fazenda, códice F1243, fls.167r-173r). Era comum que o mesmo documento que nomeava o governa-dor apresentasse também o regimento específico que delimita-va as competências e os limites do seu poder.

O regimento do Governador José Custódio de Sá e Fa-ria, de 23 de fevereiro de 1764, afirmava ser sua atribuição estabelecer castigos aos “vagabundos” e, quando necessário, determinar o envio desses ao Rio de Janeiro; zelar para que os índios não perturbassem os moradores e, se necessário, “mu-dar os ditos índios para alguma situação que lhe seja mais cômoda”; nomear responsáveis pelo governo dos índios; re-partir as terras entre os açorianos, verificando as distribui-ções anteriores e providenciando a criação de povoações; ze-lar para o abastecimento de alimentos, vestuário, ferramentas e sementes aos açorianos; determinar a arrecadação a parti-culares pela Fazenda Real dos couros do gado que mandar abater para a alimentação dos açorianos; efetuar o pagamento de capatazes e peões que trabalhavam nas estâncias reais; fo-mentar a cultura do trigo; enviar à Corte demonstrativo de despesas e mapa dos pagamentos feitos; ordenar despesas a serem efetuadas pela Fazenda Real por meio de portarias, com intervenção do Vedor Geral; conceder patentes militares de milícias e ordenanças, e determinar promoções; governar as tropas da capitania formadas por um Regimento de Dra-gões e duas Companhias de Artilheiros (AHRS – Fundo Fa-zenda, códice F1250, fls. 36v, 37r-37v).7

Apesar da instabilidade característica dessa região, onde se dava o choque entre os movimentos expansionistas português e espanhol, os anos de 1780 marcaram o início de um período de paz armada, inaugurado pelo Tratado de San-to Ildefonso (1777). A relativa paz consolidou a expansão da

7 Cabe observar que, apesar de datado de 1764, registrado na Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro em 2 de janeiro de 1769, conforme a ordem de registro dada pelo Provedor da Fazenda Real de 8 de novembro de 1768.

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triticultura açoriana e o estabelecimento das primeiras char-queadas, estimulando o crescimento econômico, com o au-mento das relações comerciais com outras praças brasileiras (OSÓRIO, 1999; CHAVES, 2004).

Este cenário e, possivelmente, os atritos que tivera com a Câmara da Capital levaram ao último governador da capitania subalterna, Paulo José da Silva Gama, a propor à Corte a cria-ção de quatro vilas (LIMA, 1935, p. 141). Em decorrência da invasão espanhola à Vila de Rio Grande, em 1763, nos primei-ros anos do século XIX, a única Câmara existente funcionava em Porto Alegre, desde 1773, com jurisdição sobre a totalida-de da capitania nos assuntos que lhe eram pertinentes (AHRS, 1998).8 A criação de novas vilas implicava uma melhora na distribuição da justiça e de outros serviços já que as autori-dades e os oficiais camarários (vereadores, juízes ordinários, almotacés, tabeliães do público judicial e notas, juízes de De-funtos e Ausentes, Capelas e Resíduos, etc.) estariam mais próximos dos moradores. Ao mesmo tempo, a instalação das câmaras ampliaria os espaços de participação dos “homens bons” no governo local (MIRANDA, 2000).9

Mas, somente em 1809, o alvará de 27 de abril determi-nou a criação dos municípios de Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha. Apesar de já se en-contrar em funcionamento, a instalação formal da Câmara da Vila de Porto Alegre deu-se em 11 de dezembro de 1810. Este município passava a ser formado pelas freguesias de Nossa Se-nhora Madre de Deus de Porto Alegre, de Nossa Senhora da Conceição de Viamão, do Senhor Jesus do Triunfo e de Nossa Senhora dos Anjos (AHRS – Fundo Justiça, códice J.016, fls.3--4v).10 A Vila de Rio Grande passava a abranger as freguesias

8 Cabe observar que, após a invasão da Vila do Rio Grande, a Câmara reuniu-se novamente em Viamão em 1766, onde foram realizadas suas sessões até sua transferência para a nova capital, em 1773.9 Sobre as câmaras no Sul do Brasil, ver KHÜN (2006) e COMISSOLLI (2006).10 Auto de criação da Vila de Porto Alegre de 11 de dezembro de 1810; Auto de demarcação dos limites da Vila de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, em 13 de dezembro de 1810; e Auto de reconheci-mento das justiças em Porto Alegre, de 03 de dezembro de 1810.

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do Rio Grande de São Pedro, da Capela da Conceição do Es-treito e da Capela de São Luiz de Mostardas, sendo instalada a Câmara em 12 de fevereiro de 1811 (AHRS– Fundo Justiça, códice J.017, fls.4v-5v).11 A Vila de Santo Antônio da Patru-lha, formada pelas freguesias de Santo Antônio da Patrulha, de Nossa Senhora da Oliveira de Cima da Serra e da Senhora da Conceição do Arroio, teve sua Câmara eleita e instalada em 03 de abril de 1811 (AHRS– Fundo Justiça, códice J.019, fls.4r--5r).12 A Vila do Rio Pardo, formada pelas freguesias de Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora da Cachoeira, de Santo Amaro e de São José de Taquari, teve sua Câmara instalada em 20 de maio do mesmo ano (AHRS– Fundo Justiça, códice J.018, fls.4r-6r).13

Considerando a consolidação do domínio português e o aumento da importância econômica da região, foi determina-do pelo Aviso de Sua Majestade, de 09 de dezembro de 1796, o estabelecimento de um governo independentemente no Rio Grande do Sul, nomeando um governador (AHRS – Fundo Do-cumentação dos Governantes, códice B.1.002, fl.52 e anexo).

No entanto, a decisão da elevação à Capitania Geral só foi formalizada pela Carta Patente de 19 de setembro 1807 e a sua efetiva execução só ocorreu em 1809, quando tomou posse como seu primeiro Governador e Capitão-General, d. Diogo de Sousa. Formalmente autônomo em relação à Capitania do Rio de Janeiro, esse Governador era subordinado ao Vice-Rei do Brasil. Nesta Carta Patente, apresentavam-se os fatores que haviam sido determinantes para a decisão:

[...] atendendo à grande distância em que fica do Rio de Janeiro a Capitania do Rio Grande de São

11 Auto de Criação e o Auto de Demarcação dos seus limites da Vila do Rio Grande datam de 12 de fevereiro de 1811.12 Auto de Criação e levantamento dos piloros e Auto de Demarcação dos limites da Vila de Santo Antônio da Patrulha.13 Auto de Criação e levantamento dos piloros e Auto de Demarcação dos limites da Vila do Rio Pardo.

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Pedro do Sul e o aumento que tem tido há anos em população, cultura e comércios, exigem pela sua importância que possa vigiar de perto sobre os interesses dos seus habitantes e da Minha Real Fa-zenda. Sou servido desanexar este governo da capi-tania do Rio de Janeiro a que até agora era sujeito e erigi-lo em capitania geral com a denominação da capitania de São Pedro, a qual compreenderá todo o Continente ao Sul da Capitania de São Paulo e as ilhas adjacentes e lhe ficará subordinado o governo da Ilha de Santa Catarina. (AHRS – Fundo Fazen-da, códice B.2.001, fls. 79v-80v)

As funções do governador e capitão-general mesclavam a jurisdição militar, fazendária, judiciária e administrativa, sen-do o chefe supremo das tropas da capitania (SALGADO, 1985, p.301-302).14 Com a criação da Junta da Fazenda Real e da Junta da Justiça Criminal, os governadores e capitães-generais tiveram seus poderes acrescidos, pois eram regimentalmente presidentes destes órgãos colegiados.

A Junta da Fazenda fora criada pela Carta Régia de 14 de junho de 1802 (AHRS – Fundo Fazenda, códice B. 2.001, fls. s.n.). Subordinava-se diretamente ao Erário Régio em Lis-boa; era responsável pelo pagamento das folhas civil, militar e eclesiástica, pela realização e controle das despesas, pela ad-ministração das rendas régias da capitania, deliberando sobre a arrematação dos contratos e sobre as propriedades régias.15

A Junta da Justiça Criminal foi criada em 1816, pela Car-ta Régia de 19 de julho (AHRS – Fundo Documentação dos

14 Obedecendo ao Regimento dos Governadores das Armas, de 1o de junho de 1678.15 Em 1774, por meio de ordem da Junta da Fazenda Real do Rio de Janeiro, de 02 de dezembro, fora criada uma Junta da Fazenda Real no Rio Grande de São Pedro visando atender às necessidades impostas pela Guerra para expulsão das tropas espanholas. Terminado o conflito, essa Junta foi extinta a partir de 1º de janeiro de 1780, subsistindo apenas a Provedoria da Fazenda (AHRS – Fundo Fazenda, códice F1244, fls.121r-121v; 171r-171v). A Junta novamente criada em 1802 era presidida pelo Governador e Capitão--General, pelo Ouvidor da Comarca, por um procurador da Fazenda; por um tesoureiro-geral e por um escrivão.

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Governantes, maço 4, códice B.2.02, fls.72-73v.; Fundo Justiça, códice J. 05, fls.56v.-58.). A essa Junta cabia julgar os crimes cometidos na capitania, exceto os crimes de lesa-majestade e aqueles que envolvessem militares e eclesiásticos.16

O crescimento da economia e o alargamento da ocupa-ção portuguesa para além dos limites estabelecidos pelo Trata-do de Santo Ildefonso e decorrentes da intervenção na Banda Oriental (1811, 1816) também contribuíram para a criação de outra vila na capitania. Em 1819, pelo alvará de 26 de abril, foi criada a Vila de São João da Cachoeira. Segundo o docu-mento, este ato atendia a um pleito dos moradores da região, que afirmavam serem grandes “os incômodos e prejuízos que sofriam em irem repetidas vezes à dita vila” e por ter de “dei-xar por muito tempo ao desamparo as suas casas e negócios.” (AHRS – Fundo Justiça, códice J.015, fls.1v-4v.)

Em 1808, a instalação da Corte portuguesa no Rio de Ja-neiro provocou grandes alterações na administração do Impé-rio luso-brasileiro. No entanto, os poderes e a organização dos governos das capitanias praticamente não foram alterados. O Rio de Janeiro, transformado em centro político do Império luso-brasileiro, passava a sediar as instâncias administrativas máximas. Assim, o governador e capitão-general do Rio Gran-de de São Pedro passou a se dirigir diretamente a cada uma das novas secretarias criadas no Brasil de acordo com a natureza do assunto a ser tratado: à Repartição dos Negócios do Con-tinente e Erário; à Repartição dos Negócios Estrangeiros e da Guerra; à Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Do-mínios Ultramarinos, ou à Secretaria do Estado (desanexada

16 Também era um órgão colegiado, tendo o governador e capitão-general por presidente, por um juiz re-lator, pelo Juiz de Fora e dois vereadores da Câmara de Porto Alegre, pelo juiz da Alfândega e um membro nomeado. A mesma Carta Régia que criou esse órgão nomeou Luiz Teixeira de Bragança para compor a Junta de Justiça Criminal. Tratava-se de um dos homens mais influentes do período, tendo exercido os cargos de Ouvidor da Comarca, de Juiz de Fora e Provedor dos Defuntos e Ausentes, Capela e Resíduos da Vila de Porto Alegre, além de esposo da viúva de Rafael Pinto Bandeira, possuidora de uma das maiores fortunas da capitania.

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de Secretaria dos Negócios de Marinha e Domínios Ultrama-rinos pelo Decreto de 11 de março de 1808) (AHRS – Fundo Documentação dos Governantes, códice B.1.005, fls. s.n.).17

A década de 1820 começou com grande instabilidade no governo central e na capitania. O movimento do Porto em 24 de agosto de 1820 e a organização das Cortes Gerais e Ex-traordinárias da Nação Portuguesa em Lisboa, convocando a eleição de representantes de todas as províncias, obrigavam os portugueses nascidos no Brasil a tomarem posição e a D. João VI a aceitar a soberania daquela assembleia, jurando as bases da constituição a ser elaborada.

Nesse ano, tendo obtido uma licença para ir à Corte, o governador e capitão-general da capitania de São Pedro, o Conde da Figueira, ordenou à Câmara de Porto Alegre que fosse organizado um Governo Provisório (AHRS – Fundo Autoridades Militares, maço AM 119).18 Esta Junta Provisória foi instalada em 22 de setembro de 1820 e era composta por três membros: pelo Ouvidor Joaquim Bernardino de Sena Ri-beiro da Costa, pelo vereador mais velho da Câmara da Vila de Porto Alegre, Antônio José Rodrigues Ferreira, e pelo Te-nente-general Manuel Marques de Sousa, que exercia a função de Presidente do Governo Interino (CÉSAR, 1980). Foi esse triunvirato que enfrentou as primeiras manifestações que plei-teavam a aceleração das mudanças políticas e administrativas, estimuladas pelas ideias de cidadania e direitos.

A primeira grande manifestação deu-se em torno da questão do juramento da constituição. Apesar de D. João VI já haver jurado as bases da constituição portuguesa e ordenado que o mesmo fosse feito por todos os governos das províncias,19 a Junta Governativa do Rio Grande de São Pedro procrastinava

17 Aviso do Governo, de 22 de junho de 1808. 18 Conforme previa o Alvará de 12 de dezembro de 1770 (Ofício de 18 de setembro de 1820, segundo ofício da Câmara de Porto Alegre aos membros do Governo Provisório em 30 de setembro de 1820). 19 Conforme o Decreto de 21 de fevereiro de 1821.

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este ato. Atitude que motivou a rebelião de tropas de primeira linha em Porto Alegre e em Rio Grande, pleiteando a imedia-ta obediência às ordens do monarca (PICCOLO, 2005, p. 571-613). Em Porto Alegre, as tropas amotinadas desfilaram pelas ruas e coagiram a reunirem-se em praça pública diversas auto-ridades: os membros do Governo Provisório, o ouvidor-geral, quatro deputados da Junta da Fazenda, o intendente da Mari-nha, o escrivão da mesma intendência, o almoxarife da Real Fazenda, o cônego da Capela Real e o Vigário-geral Antônio Vieira da Soledade e os demais membros da Câmara de Porto Alegre. As tropas só dispersaram depois de obrigá-los a prestar o juramento.

A Junta Provisória foi mantida no poder até 20 de agosto de 1821,20 quando João Carlos de Saldanha e Daun, último go-vernador e capitão-general do Rio Grande, nomeado pela Or-dem Régia de 13 de abril de 1821, chegou a Porto Alegre (AHRS – Fundo Documentação dos Governantes, maço 5, códice B. 2.002, fls.370- 370v.). O novo governador e capitão-general se declarava adepto da causa constitucional e fiel a D. João VI. O retorno do Rei para Portugal e as decisões da Corte agitaram ainda mais o cenário político da Capitania.

Em 29 de setembro de 1821, um decreto das Cortes de-terminou a criação de juntas provisórias de governo nas pro-víncias ainda governadas por capitães-generais. O Rio Grande de São Pedro voltou a se agitar. A eleição das juntas gover-nativas provisórias estabelecia a constituição de unidades po-líticas, transformando as antigas capitanias em “províncias”. As juntas a serem eleitas pelos eleitores paroquiais de cada província deviam subordinar-se diretamente a Lisboa, o que reduziria o poder do Príncipe Regente e dos órgãos centrais estabelecidos no Rio de Janeiro.

20 Segundo ofício da Câmara de Porto Alegre ao Governo Provisório da Capitania em 18 de agosto de 1821 (AHRS – Fundo Autoridades Militares, maço AM. 119). De acordo com Aviso do Governo de 1º de outubro de 1821, a data da posse seria o dia 20 (AHRS – Fundo Documentação dos Governantes, códice B. 1.017).

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Pelo decreto, a Junta da Província do Rio Grande de São Pedro deveria ser formada por um presidente, um secretário e outros cinco membros. Estavam sob sua jurisdição as questões civis, econômicas, administrativas e de polícia. Dissociava-se o poder civil e militar, pois este último passava a ser da al-çada de um governador das armas, o qual era independente da Junta Provisória de Governo e diretamente subordinado ao Governo do Reino e às Cortes (CARREIRA, 1980, p. 20-23).

Em Porto Alegre, as posições eram contraditórias e ocorreram debates na Câmara em torno de qual a melhor composição do novo governo.21 Poucos dias após haver che-gado à Província a notícia de que D. Pedro decidira permane-cer no Brasil, contrariando as ordens das Cortes, a Câmara de Porto Alegre, novamente reunida, recebeu cerca de 53 pessoas representadas pelo cidadão Antônio Bernardes Machado. Este grupo se declarava contrário à composição de cargos determi-nada pelo decreto das Cortes, afirmando que “quer este povo ser governado por uma Junta Administrativa e Representativa com atribuições mais amplas e uma Superintendência-Geral sobre todas as Repartições da Província”.22

Dessa forma, a Junta Provisória eleita em 22 de fevereiro de 1822 não seguia as diretrizes do Decreto das Cortes. Era o Governo composto por nove membros: um Presidente, o Brigadeiro João Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun; um Vice-presidente, o Marechal-de-campo João de Deus Mena Barreto; um Secretário dos Negócios Políticos, Manuel Ma-ria Ricalde Marques, um Secretário dos Negócios da Guerra, o Brigadeiro José Inácio da Silva; e outros cinco membros: o Brigadeiro José Félix de Matos Pereira de Castro, o comercian-te Manuel Alves dos Reis Louzada, o Padre Fernando José de Mascarenhas Castelo Branco e o Desembargador José Teixei-

21 Ata da Câmara de Porto Alegre de 30 de janeiro de 1822 (CORUJA FILHO, 1962, p. 63-64); ata da Câ-mara de Porto Alegre de 23 de janeiro de 1822 (CORUJA FILHO, 1962).22 Ata da Câmara de Porto Alegre, de 30 de janeiro de 1822 (CORUJA FILHO, 1962, p. 63-64).

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ra da Mata Bacelar. A associação entre o poder civil e militar fora mantida, pois o Presidente acumulava a função de Go-vernador das Armas, além dos cargos de Presidente da Junta da Fazenda e da Junta de Justiça. Ao novo governo estavam sujeitas estas juntas, as tropas de primeira e segunda linha, todas as mais autoridades civis e eclesiásticas. Na mesma ses-são, fora determinado que o membro do Governo Francisco Xavier Ferreira fosse envido à Corte do Rio de Janeiro para prestar a D. Pedro a admiração e o respeito do novo Gover-no (ARCHIVO PUBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7, set. 1922, p. 41-42; CARREIRA, 1980, p. 38-40 e 43). Assim, a Junta reconhecia e colocava-se diretamente sob a autoridade do Príncipe Regente.

A Junta Governativa eleita caracterizava-se por uma ruptura com o modelo das Cortes, mas, ao mesmo tempo, esse era um rompimento parcial, que restringia as mudanças propostas por aquela assembleia. Contraditoriamente, a elei-ção de Daun mantinha o forte vínculo com D. João VI, que o nomeara. Ao mesmo tempo, a concentração de poderes na figura do Presidente da Junta, acumulando diversas funções, inclusive o Governo das Armas, preservava as características dos governos das antigas capitanias-gerais. Atendia-se às aspi-rações do “povo”, mas também eram pacificadas as tropas de linha, fiéis às Cortes.

Mas, a crescente oposição entre as ordens das Cortes e as medidas tomadas pelo Regente no Brasil refletia-se na ad-ministração da Capitania. Visando estabelecer a subordina-ção dos poderes provinciais ao Governo do Rio de Janeiro, o Príncipe Regente determinou que o Governo Provisório da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul não aceitasse ou desse posse a empregados civis, eclesiásticos ou militares que tivessem sido despachados de Portugal. Afirmava que essas nomeações eram-lhe privativas (AHRS – Fundo Documenta-ção dos Governantes, códice B. 1.018).23

23 Decreto de 22 de abril de 1822.

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Tais embates tinham outros reflexos sobre a Junta Go-vernativa da Província. O Presidente do Governo Saldanha e Daun e o Ouvidor José Antônio de Miranda eram contrários à ruptura entre Brasil e Portugal e discordavam da decisão do Príncipe Regente de convocar uma assembleia constituinte para o Brasil pelo Decreto de 03 de junho de 1822. Por isso, requereram a demissão dos seus cargos (ARCHIVO PUBLI-CO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7, 1922, p. 59-60, 63-65, 147.).24 A Junta aceitou a demissão do Ouvidor, mas negou-a a Daun, alegando que a sua presença era requisito para a manu-tenção da ordem. Sendo Daun eleito Governador das Armas, os membros da Junta afirmavam temer que seu afastamento provocasse um levante dos seus partidários, especialmente nas tropas de primeira linha (ARCHIVO PUBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7, 1922, p. 68-73).

Após vários pedidos encaminhados por Daun, que ha-via manifestado seu apoio a D. João e às Cortes, e contrário à causa do Príncipe Regente, sua demissão foi aceita em 27 de agosto de 1822 (ARCHIVO PUBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7, 1922, p. 227-255). Com o afastamento de Daun, assumiu a presidência da Junta o Marechal João de Deus Mena Barreto, que exercia também os cargos de Comandante das Armas e de Presidente da Junta da Fazenda.

O acúmulo desses cargos foi alvo de desacordo logo após a Independência brasileira. No início de 1822, um mem-bro do Governo Provisório da Província, Antônio Bernardes Machado, defendeu, por meio de ofício a D. Pedro I, a sepa-ração entre o poder civil e militar, algo instituído pelo decreto das Cortes, mas que ainda não acontecera na Província de São Pedro. Machado defendia a nomeação interina de um militar para exercer o Governo das Armas, enquanto fosse aguardada uma decisão do Príncipe Regente. Alegava que:

24 O primeiro pedido de demissão de Daun foi encaminhado em 13 de julho de 1822. Negada, esta repre-sentação foi reiterada em 16 de julho, 23, 25 e 28 de agosto daquele ano.

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[...] sendo da atribuição do chefe do Poder Execu-tivo a direção da força armada, e por conseguinte a nomeação de generais, ou governadores de armas seria absurdo, e até usurpação inconstitucional su-por que o governo popular podia dar essa comissão a quem o mesmo Governo quisesse, e menos ainda reunir em um só indivíduo a presidência civil e o comando das armas. (Arquivo Visconde de São Leopoldo, n. 0163, p. 4)25

Perseguido pela Junta Governativa, Machado foi demi-tido de seu cargo e enviado à Corte (REVISTA DO ARCHI-VO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 7, 1922, p. 98; IHGRGS – Arquivo Visconde de São Leopoldo, n. 0163).26 Apesar disso e independente da representação enviada pelo ex-membro do Governo Provisório, a decisão do Imperador de nomear o Marechal José de Abreu para o exercício interino do Governo das Armas já havia sido tomada pala Carta Régia de 08 de agosto de 1822. Pouco tempo depois de o novo Co-mandante das Armas entrar em exercício, foi encaminhada à Junta Governativa a Instrução estabelecendo limites entre o governo civil e o militar, atendendo reclamações da Provín-cia do Rio Grande do Sul, datada de abril de 1823. Segundo essa Instrução, o Governador das Armas era subordinado ao Governo Civil da Província, mas era da sua alçada tudo o que dissesse respeito às tropas (baixas, disciplina, arranjos econô-micos, destacamentos, guardas de fronteiras, etc.), além da escolha dos comandantes das fronteiras e distritos, a defesa do território, a ereção de fortes e outras estruturas defensivas, além da administração do Trem de Guerra (Biblioteca Nacio-nal [BN] – Seção de Manuscritos, II – 35,36,9).

Apesar de formalmente ter seus poderes diminuídos na esfera militar, o Presidente do Governo, o Marechal-de-campo

25 Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS). 26 Ofício de 28 de setembro de 1822.

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João de Deus Mena Barreto indiretamente mantinha um gran-de poder sobre as tropas da Província. O que ficou evidente na liderança exercida pelos seus filhos, o Tenente-coronel Gaspar Francisco Mena Barreto e o Major José Luís Mena Barreto, no levante das tropas em Porto Alegre a 19 de junho de 1823 – o que motivou nova modificação do Governo Provisório. Na-quela data, as tropas sediadas em Porto Alegre reuniram-se para jurar fidelidade ao Imperador, demonstrando apoiar seu poder de veto absoluto (PICCOLO, 1985, p. 36). Para a Assem-bleia Constituinte, tratou-se de um “ato atentatório e formal usurpação das atribuições do Poder Legislativo”, daí determi-nar que o Imperador expressasse seu desacordo com esses atos, suspendesse o exercício dos cargos e enviasse ao Rio de Janeiro os dois chefes militares, o Presidente e o Secretário da Junta de Governo (BN – Setor de Manuscritos, II – 36,1,9).27

Assim, afastados João de Deus Mena Barreto e Bernardo Avelino Ferreira de Sousa, assumiu a presidência do Governo Provisório do Rio Grande de São Pedro o Brigadeiro José Iná-cio da Silva e, como Secretário Militar, o Major José Joaquim Machado de Oliveira (VARELA, 1935, v. 1, p. 311-312). O novo Governo assumiu em 29 de novembro de 1823, contan-do ainda com Francisco Xavier Ferreira e os padres Fernando José de Mascarenhas Castelo Branco e Tomé Luís de Sousa.

Mas esta Junta governou por pouco tempo, já que a Car-ta de Lei de 20 de outubro de 1823 aboliu os governos pro-visórios, substituídos por presidentes provinciais escolhidos pelo Imperador. A mesma Carta criou os conselhos admi-nistrativos provinciais com seis membros eleitos, cabendo ao membro mais votado o cargo de vice-presidente (PICCOLO, 1998, v. 1, p. 19-23).28 Limitava-se, assim, a participação polí-tica, uma vez que era negada àqueles que poderiam ser con-

27 Parecer sobre os acontecimentos ocorridos no Rio Grande do Sul, da Proclamação de opinião pública feita pelas Forças Armadas submetendo o governo da Província.28 Eram elegíveis homens maiores de 30 anos e que residissem na Província há pelo menos seis anos.

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siderados eleitores a possibilidade de escolha do presidente da Província. O exercício eletivo na esfera local se resumia à escolha dos membros do Conselho Administrativo, um órgão consultivo; era um primeiro movimento de centralização de poderes em relação à abertura propiciada pelas Cortes portu-guesas (PICCOLO, 1985, p. 38).

Conforme a lei, eram atribuições dos presidentes das províncias:

[...] fomento da agricultura, educação, estabeleci-mento de câmaras, proposições de obras, censos, fiscalização das contas e receitas das comarcas, decisão sobre os conflitos de jurisdição dos distri-tos, vigia sobre a infração das leis, cuidados com os escravos, determinação de receitas extraordinárias, sendo também responsáveis pelas Juntas da Fazen-da Pública. Dessa forma, a lei dotava os mesmos presidentes de amplos poderes, ainda que estabele-cesse limites para sua atuação mediante a institui-ção do Conselho. (SLEMIAN, 2007, p. 27)

Mas, antes que essas mudanças fossem implementa-das, a decretação da dissolução da Assembleia Constituinte, a criação do Conselho de Estado e a suspensão da liberdade de imprensa29 mudaram os rumos da distribuição do poder no novo estado, centrado na pessoa do Imperador, por meio do Poder Moderador (CARREIRA, 1980, p. 119). Ainda que o projeto de Constituição, elaborado pelo Conselho de Estado, tenha sido concluído em dezembro de 1823, somente em 25 de março do ano seguinte a Carta foi outorgada e jurada pelo Imperador. Em Porto Alegre, o juramento deu-se na Igreja Matriz em 10 de abril de 1824, sem a ocorrência de manifes-tações contrárias.

29 Decreto de 12 de novembro de 1823.

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Pela Constituição, consagrava-se a centralização de poder político e a redução da autonomia administrativa das províncias como estabelecida na Carta de Lei de outubro de 1823, mas também criava os conselhos gerais das províncias, enquanto órgãos representativos, com poder de propor, dis-cutir e deliberar sobre os negócios provinciais, sendo suas re-soluções encaminhadas ao Executivo central por intermédio do Presidente da Província. Essas resoluções poderiam vir a converter-se em projeto de lei a ser votado pela Assembleia Geral (PICCOLO, 1998, v. 1, p. 19-23). Buscava-se institu-cionalizar os vínculos administrativos entre as províncias e o centro político no Rio de Janeiro por meio da centralização do poder. Assim, apesar da extinção das juntas governativas eleitas, criavam-se outros canais de representatividade, como o Conselho Administrativo e o Conselho Geral da Província.

O Conselho Administrativo da Província de São Pedro reuniu-se pela primeira vez em 1º de setembro de 1824, qua-tro meses após a posse de José Feliciano Fernandes Pinhei-ro, que foi nomeado seu primeiro presidente. Por se tratar de um órgão consultivo, realizava uma sessão ordinária por ano, debatendo questões relativas a tributos, arrematação de con-tratos, questões de fronteira, contas das câmaras municipais, entre outros temas (PICCOLO, 1998, v. 1, p. 19-23).30 Sendo seus membros eleitos, a composição do grupo que primeiro formou o Conselho Administrativo era bastante heterogênea, integrado pelo comerciante Manuel Alves dos Reis Louzada, pelo Cônego Antônio Vieira da Soledade, pelo Desembarga-dor Luís Correa Teixeira de Bragança, pelo Brigadeiro José Inácio da Silva, pelo Capitão José Antônio Machado e pelo Dr. Américo Cabral de Melo (AHRS – Fundo Documentação dos Governantes, códice A.9.001, fls. 1-3). O Conselho Geral da Província, criado pela Constituição, só viria a reunir-se pela

30 Também denominado “Conselho da Presidência” ou “Conselho do Governo da Província”.

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primeira vez em 29 de novembro de 1828, já que só foi regu-lamentado pela Lei de 27 de agosto daquele ano (Biblioteca da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul [ALRS]. Livro de atas do Conselho Geral da Província, volume 1 [1828-1831]). Apesar do limitado poder formal desses conselhos, deve-se observar que, no Rio Grande do Sul, essas instâncias permi-tiram uma crescente articulação de grupos que manifestavam seu descontentamento, questionando as medidas emanadas do governo central e apresentando propostas alternativas e muitas vezes conflitantes àquelas.

No longo do período analisado, as estruturas adminis-trativas e os governantes do Rio Grande de São Pedro transi-taram de poderes eminentemente militares para aqueles ca-racterísticos da administração colonial portuguesa: capitania subalterna e seus governadores, capitania geral e seus gover-nadores e capitães-generais. Mas, na década de 1820, a antiga capitania, transformada em Província, deixou de ser apenas uma divisão administrativa, tornando-se entidade política, elegendo representantes para as Cortes em Lisboa, para a sua Junta Governativa, para a Assembleia Constituinte no Rio de Janeiro e para a Câmara do Império. As experiências da eleição do Governo Representativo e as juntas de governo provisório criaram um espaço para a interferência direta da elite local no governo provincial. No entanto, a Constituição brasileira de 1824 implicou um movimento de centralização, por meio dos presidentes nomeados, mas, ao mesmo tempo, criou outros órgãos pelos quais esses homens poderiam expressar suas po-sições e participar do governo. Foram esses os espaços utiliza-dos durante o Primeiro Reinado para fazer frente às decisões da Corte e para expressar as aspirações da elite rio-grandense.

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OS AÇORIANOS NO RIO GRANDE DO SUL:UMA PRESENÇA DESCONHECIDA

* Véra Lucia Maciel Barroso

O exame da historiografia regional, especialmente a produzida nas três últimas décadas, permite constatar que, dos grupos formadores da sociedade gaúcha, os dos alemães e dos italianos, sobretudo, foram especialmente os estudados.

Os alemães, quando das comemorações do sesquicen-tenário (l974) de sua chegada, receberam, por parte dos pes-quisadores, grande atenção, do que resultaram importantes trabalhos publicados, naquele momento, e que muito contri-buíram para clarear a atuação dos teutos na construção do es-tado do Rio Grande do Sul.

Diferente não foi com relação aos italianos. Inúmeros trabalhos foram trazidos à luz em l975, quando do centená-rio da sua presença no Rio Grande do Sul, estimulados por concursos ou, mesmo, pela “onda de comemorações” que se vivia, então. Posteriormente, somando a estes esforços, a Academia deu a sua contribuição. Acadêmicos de cursos de pós-graduação, por meio das suas dissertações de mestrado e teses de doutoramento, também, a partir da década de l970, muitos deles escolheram, como seu objeto de pesquisa, os alemães e os italianos. Uma impressionante produção resul-tou nesta conjuntura, que esquadrinhou detalhes e recortes da imigração e colonização destes dois grupos, e, na sua es-teira, outros europeus ganharam igualmente estudos, como os poloneses, por exemplo.

Importa destacar, para melhor entendimento, sobre o lugar dos açorianos na historiografia regional, que na “onda comemorativa” da década de 1970 e, na seguinte, por conse-

* Doutora em História pela PUCRS e Professora em Cursos de Graduação e Pós-graduação da FAPA.

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quência, também vieram à lume muitas publicações conten-do fontes documentais, acerca não só dos alemães e italianos, mas de outros tantos europeus que migraram para o extremo--sul do Brasil, publicadas especialmente pela EST Edições, acessando aos historiadores o seu instrumental por excelên-cia, que são as fontes documentais. Com elas identificadas e transcritas, o pesquisador avança caminho, e ele foi transita-do por muitos, fora e dentro da Academia. O que é visível – desencadeou-se um processo de construção de identidade e de pertença às raízes, às origens familiares, nunca visto, sem esquecer-se da possibilidade de oficialização da dupla cida-dania, o que não é possível aos descendentes de açorianos no Rio Grande do Sul; o distanciamento de gerações promoveu rupturas com vários significados.

O cenário descortinado aos alemães e aos italianos che-gados ao Rio Grande do Sul no século XIX, respectivamente a partir de l824 e l875, é de um tempo posterior à incorporação do Rio Grande do Sul ao seio brasileiro, depois de um século de conflitos bélicos e tratativas diplomáticas intermitentes. E, mais: o Brasil já estava emancipado de Portugal. O terreno, portanto, estava sedimentado, quando chegaram diferentes europeus em muitas levas e em diferentes etapas, que atraves-saram o século XIX ao XX. É sabido que passaram por muitas dificuldades, desde a viagem à sua acomodação e organização de suas vidas, em meio às promessas, em grande parte não cumpridas, para com os imigrantes, que a partir delas foram estimulados a partir para a América. Quer-se pontuar, aqui, as circunstâncias históricas vividas pelos açorianos trazidos à Capitania no século XVIII. A conjuntura setecentista é a da adversidade, pois os ilhéus foram deixados, de fato, ao aban-dono. E sem assistência foram feitos soldados em defesa do território em conquista. É nessa direção que se começa a justi-ficar e arrazoar o título em epígrafe.

Assim, introduzido o tema, é de se esperar que pouco se saiba sobre os açorianos neste meio, cujas fontes, ao contrário

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das demais,1 estão esparsas. Afinal, em área palco de guerras contínuas, as dificuldades de registro deste tempo, sua guar-da e preservação, seriam grandes. Somando os limites, o que é fato, a própria documentação gerada pelos órgãos na nas-cente capitania foi gestada e catalogada de tal forma que os pesquisadores têm que realizar uma tarefa do tipo: “encontrar agulha no palheiro”.2

Consequentemente, a produção do conhecimento acer-ca dos ilhéus é pobre, tanto é que existem mais perguntas/in-terrogações do que respostas acerca da dimensão da presença açoriana na formação do Rio Grande do Sul. Trabalhar, pois, sobre a sua participação na construção da sociedade regional, constitui um instigante desafio, especialmente na atual con-juntura, quando o olhar dos brasileiros se volta para Portu-gal, na tentativa de demarcar a dimensão de sua lusitanidade, onde os açorianos se encontram. Ou seja, o tempo da falta de autoestima por ser descendente de portugueses já é passado. Na atualidade, é visível o interesse pela comprovação genealó-gica, de matriz açoriana, sobretudo.

Para balizar a construção identitária de grupos sociais, importa ter o conhecimento sobre seus fundamentos. Afinal, ninguém ama o que não conhece, e ninguém reconhece o que não conhece. Assim, em seguimento, são apresentados os ali-cerces da inserção dos açorianos na história do Rio Grande do Sul, baliza de pertença e autoestima aos que deles descendem, e deixa-se o convite para sobre eles alargar a investigação.3

1 Sobre alemães e italianos, no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul há uma farta documentação, identificada e de fácil procura.2 A documentação avulsa referente aos açorianos está espalhada em diversos maços, esparsos em diferentes origens ou proveniências, em meio a tantos outros documentos, o que dificulta a procura, pois há que se fazer a leitura paleográfica, de um a um, sobretudo dos Requerimentos da Provedoria e Junta da Real Fazenda, nos quais se pinçam ou se depreendem informes sobre os portugueses insulares. No Arquivo da Cúria Metropolitana, igualmente se encontram fontes, cuja pesquisa também requer paciência e persis-tência para decifrá-las.3 Ajudará aos interessados, inicialmente, saber o que se tem publicado sobre os açorianos no Rio Grande do Sul. Fez-se um inventário, a respeito, que está publicado no sítio do GT Estudos Étnicos da ANPUH/RS.

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1 Açorianos – os portugueses ilhéus na formação do Rio Grande do Sul

Localizado no extremo meridional do Brasil, o estado do Rio Grande do Sul tem uma história marcada por especi-ficidades e uma singularidade que o diferencia sobremaneira dos demais estados brasileiros.

Conquistado tardiamente dos espanhóis (eis a sua sin-gularidade), os portugueses empreenderam a ocupação do es-paço sul-rio-grandense com empenho, especialmente a partir do século XVIII, por meio de uma disputa militar com suces-sivos confrontos, contracenados por tratados que objetivavam conciliar os interesses dos dois estados europeus na América. A arrancada deste processo se deu, sobretudo, com a fundação da Colônia do Santíssimo Sacramento, por D. Manoel Lobo, em 20 de janeiro de 1680, um verdadeiro posto avançado por-tuguês em frente a Buenos Aires. Tratava-se de um ousado sonho, que se punha em prática, o de romper a fronteira bali-zada pelo Tratado de Tordesilhas (1494).4 A intenção lusa era fazer do Rio da Prata o limite natural de sua possessão frente à de Espanha, na América Meridional.

Contestado de imediato pelos espanhóis, as lutas e os tratados se sucederam até a definição do Tratado de Madrid de l750, que parecia acomodar as coroas ibéricas em litígio. Ele determinava a entrega da área das Missões a Portugal e, em contrapartida, legitimava, à Espanha, a Colônia do Sacra-mento (Ilustração 1). Por consequência, os jesuítas a serviço dos espanhóis, com os índios missionados, deveriam liberar a área, para entregá-la aos portugueses. Esta determinação aca-bou por cumprir um papel de álibi gerador de confrontos que se sucederam e que respondem por dificuldades que os ilhéus irão vivenciar no espaço sulino.

4 Recordando, por este tratado, a linha imaginária terminaria em Laguna, Santa Catarina. Por consequên-cia, o território do Rio Grande do Sul era posse espanhola na América Meridional.

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Ilustração 1 – Localização da Colônia do Sacramento, atual cidade de Colônia/Uruguai.

Fonte: POLETTI, 2004, p. 44.

Antes de vislumbrar a etapa seguinte, deve ser reconhe-cido que era um avanço para Portugal a definição do Tratado de Madrid, pois, ficando-lhe grande parte do território do Rio Grande do Sul, a ampliação da conquista pretendida seria feita com um passo mais curto. É o que vislumbrou Alexandre de Gusmão (natural de Santos/SP), representando a diplomacia portuguesa nas negociações, ao constatar que o Rio Uruguai seria um divisor natural de fronteiras, que tanto podia pro-mover a acomodação entre as partes, como seria uma ponta de lança rumo à foz do Rio da Prata, que mais facilmente en-feixaria a tomada de Colônia de Sacramento e seu entorno, território da futura Cisplatina, atual Uruguai.

Assim, avançando na configuração do cenário anterior à chegada dos açorianos, a partir de então Portugal deveria cui-dar do espaço conquistado, e sem demora, pois se tratava de fronteira viva, passível de movimentações e ameaças de reto-mada. E foi o que fez. De imediato, projetou garantir as novas terras conquistadas com povoadores a seu serviço. Conforme sua percepção e política de povoamento, a área missioneira até

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então reunia jesuítas a serviço da Espanha, por meio de aldea-mentos indígenas – os Sete Povos das Missões, que sendo libe-rada conforme tratado, para ali seriam alojados os açorianos, desempenhando um papel defensivo, ou seja, de retaguarda portuguesa na região. É o que planejou a Coroa Portuguesa.

Aliás, do Arquipélago dos Açores (Ilustração 2), ilhas por-tuguesas situadas no Atlântico Norte, a Noroeste da África, já vinham chegando açorianos, desde a década de 1740, para ali-mentar a lógica defensiva que Portugal procurava desenvolver na área sulina. Igualmente, ilhéus já estavam localizados na Co-lônia do Sacramento e imediações, cumprindo o papel de po-voadores e defensores dos interesses lusos, na área em disputa.

Ilustração 2 – Arquipélago dos Açores.

Fonte: Açores, Portugal. Cartão Postal, s/d.

Conforme a Provisão Real de 09 de agosto de 1747, lu-gares deveriam ser fundados para cada grupo de 60 casais, e dado um quarto de légua em quadro a cada cabeça de casal, em áreas de terras que não fossem concedidas sesmarias.

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Assim, para garantir o Tratado de Madrid, foi dada a ordem para virem casais de número (famílias) à Capitania do Rio Grande de São Pedro, correspondendo à necessidade de aliviarem as ilhas dos Açores superpovoadas, cuja carência de alimentos era uma realidade. Não poucos reveses enfrentavam os açorianos, para além dos abalos sísmicos, com terremotos e maremotos; situados em ilhas vulcânicas, sua história é mar-cada por esta realidade.5 Acresce na conjuntura de meados do século XVIII, uma pressão demográfica de vulto diante do fraco desempenho econômico das ilhas. Por consequência, a carência de alimentos agudizava a grave situação que motivou muitos açorianos a emigrarem.

Eis que o edital de D. João V, de 31 de agosto de 1746, acrescido da Carta precatória do Corregedor das Ilhas dos Açores e outras providências, vai desencadear um importan-te movimento de saída de açorianos rumo ao Sul do Brasil.6

Segundo o historiador açoriano e reitor da Universidade do Açores, Avelino Meneses, em trabalho publicado na Revista da FAPA, no ano de 2007, a par das dificuldades das ilhas, presentes em sua trajetória, o fator preponderante foi o da ex-pansão portuguesa até ao R io da Prata, “[...] movida pela riqueza da pecuária, pela crise do açúcar, pela miragem do ouro e, sobretudo, pelo intento do estabelecimento de corres-pondência com o império espanhol, em virtude da ‘febre’ de prata.” (MENESES, 2007, p. 20).

5 Duas observações aqui são necessárias: a) os resultados da erupção de Capelinhos na Ilha do Faial entre 1957 e 1958, e seus efeitos em cadeia, provocaram um êxodo de grandes proporções para a América. Tanto no Canadá como nos Estados Unidos, nas costas Leste e Oeste, os açorianos se instalaram, com números de monta, a tal ponto que a comunidade açoriana é maior fora das ilhas, na atualidade; b) a diáspora é para os açorianos um fenômeno demarcador de sua identidade. Portanto, faz parte da história açoriana, a partida, no passado e no presente.6 Outros documentos demonstram as providências para essa fase da emigração açoriana em direção ao sul do Brasil: a) Carta Régia de D. João V, de 5 de setembro de 1746, e o despacho do Conselho Ultramarino, da mesma data; b) Regimento para o transporte dos casais das ilhas da Madeira e dos Açores para o Brasil, de 05 de agosto de 1747; c) Provisão Régia de D. João V, ordenando o transporte e o estabelecimento dos açorianos das Ilhas para a Ilha de Santa Catarina e o Continente do Rio Grande de São Pedro, datada de 09 de agosto de 1747; d) condições com que foi arrematado, por Feliciano Velho de Oldemberg, o assen-to do transporte dos casais da Corte e das Ilhas para o Brasil, em 07 de agosto de 1747. Ver ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 21.

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Do outro lado do Atlântico, em território também por-tuguês, no Sul do Brasil, havia falta de braços e de “defensores”. Em busca dessa solução, Avelino Meneses, a propósito desta-ca: “[...] o soberano converte a restrição dos rumos da emigra-ção em meio de fortalecimento da ocupação das áreas mais necessitadas, concretamente as regiões brasileiras mais sujei-tas à pressão militar estrangeira.” (MENESES, 2007, p. 28).

Foi, portanto, nesse quadro de interesses, que a Coroa lusa decidiu, de um lado, liberar açorianos em sérias dificulda-des e, de outro, acomodá-los em outra parte do Reino que pre-cisava de segurança para ser resguardada. Dada essa definição, começaram a chegar pelo porto de Rio Grande, em 1752, os açorianos “de número” ao Rio Grande do Sul.7

Segundo dados estatísticos até agora não bem-esclarecidos, porque contraditórios, cerca de 350, para uns, ou 585 casais açorianos, para outros, entraram, então, na Capitania, número distante do projeto real de enviar 4 mil casais, inicialmente.8 O que as pesquisas recentes demonstram é que bem mais de 600 famílias ingressaram no território, na primeira leva. Muitos outros migraram, não só por água, via Rio Grande, como por terra, vindos de Santa Catarina, pelo corredor norte-litorâneo, ou de Colônia e cercanias.

Em se tratando da primeira leva, o alvo era o Oeste da Capitania, como já destacado. A ordem era transportar os açorianos, para além de Rio Pardo, base militar portuguesa para a demarcação dos limites, situando-os na área missionei-ra, com o fim de ali exercerem o papel de cunha garantidora do domínio português na região. Portanto, esta era a real fun-ção que então lhes era imposta – a de serem soldados a serviço de Portugal, cumprindo, assim, o princípio do uti possidetis.

7 Sobre a penosa viagem, há relatos, como o de ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 21.8 Esses são os números repetidos na historiografia produzida até os anos 1980 sobre o tema, a partir da obra precursora: FORTES, 1978.

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Entretanto, para as demarcações do Tratado de Madrid, a demora nos trâmites não só levados a frente por Gomes Frei-re de Andrade, do lado português, como os do lado espanhol foram arrastando o projetado, acabando por impedir o trans-porte dos açorianos ao destino programado pela Coroa.9 As-sim, em compasso de espera, os ilhéus tiveram que “se situar por sua conta e risco”. Alguns foram se arranchando nas Ban-das Oriental e Ocidental da Lagoa dos Patos; outros vieram para o Porto do Dornelles e a calha do Jacuí. Sem ferramentas, sementes ou cabeças de gado para arar a terra, e desfeito o sonho da terra prometida, o cotidiano destes migrantes foi se transformando em desafio desmesurado. Mais que plantar o alimento para sobreviverem, a realidade enfrentada foi a de entrar em cena no palco de guerras, como defensores da Ca-pitania para a Coroa portuguesa. Nesse sentido, já se destacou o papel importante dos açorianos como “resguardadores” da fronteira sul-brasileira, o que a historiografia colonial do Rio Grande do Sul ainda não reconheceu devidamente; as razões, em parte, já foram apontadas.

Em meio a essa acomodação improvisada dos açorianos, as resistências ao tratado aconteceram. A confirmar a Guerra Guaranítica, iniciada em 1754. Na atualidade, é reconhecido que esse movimento foi um verdadeiro manifesto indígena de que essa terra era deles, acima da disputa colonialista que os subme-tia. A guerra movimentou a área. Não poucos foram desaloja-dos, outros perderam a vida, o que impôs uma nova migração a muitos açorianos; o desassossego é a marca deste tempo.

O que vem pela frente é a anulação do Tratado de Ma-drid, em 1761, com o Tratado de El Pardo. Caía por terra o projeto de colonização açoriana no Oeste missioneiro. Mas, uma fase mais difícil estava por vir.

9 Segundo Espírito Santo: “Os trabalhos de demarcação tiveram início em 9 de outubro de 1752, mas, em 27 de fevereiro de 1753, a partida demarcadora, nas cercanias de Santa Tecla, foi intimada por índios missio-neiros a não penetrarem em suas aldeias. A intimação foi reiterada em 1º de março de 1753. Os trabalhos foram suspensos [...].” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 23).

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Em 1763, ocorreu a invasão espanhola sobre a Vila de Rio Grande, comandada por Ceballos, governador de Buenos Aires. Ela foi devastadora para todos, pois forçou o processo de fuga das imediações, inclusive do Governador da Capitania do Rio Grande de São Pedro, que rumou para Viamão, lá se-diando a capital por 10 anos.

Os açorianos, em nova e forçada diáspora, se espalha-ram em várias direções, reassentando-se, nesta circunstância de conflito, onde pudessem recomeçar suas vidas. Como de-fensores de “sua nova terra”, acabaram por ajudar na preserva-ção do domínio português pretendido na região. Em deban-dada (Ilustração 3), muitos se fixaram em núcleos portugueses já existentes, como em Santo Antônio da Patrulha e Conceição do Arroio (Osório), somando-se aos ilhéus, já instalados, mi-grados via Litoral Norte, de núcleos açoritas de Santa Catari-na. Outros deram origem a novos núcleos povoadores como Encruzilhada, Triunfo e Taquari, esta última projetada pelo Governador da Capitania, Custódio de Sá e Faria, em 1764.

Ilustração 3 – Localidades açorianas a partir da concessão de terras entre 1780 e 1800.

Fonte: Arquivo de da autora.

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É desse período, também, o envio de casais pelo gover-nador da Capitania para fixação em determinadas áreas. Dois exemplos: a localização de 28 famílias açorianas em Santo An-tônio da Patrulha e, de outras tantas, em Conceição do Arroio, na década de 1770.10

No Porto do Dorneles (atual Porto Alegre), vértice do ângulo que unia as duas fronteiras, a do mar (Rio Grande) e a da terra (Rio Pardo), já havia povoadores antes da chegada dos açorianos. Na área aproximada do atual município de Porto Alegre, já estavam com posse de terras três sesmeiros: Jerony-mo D’Ornellas Menezes e Vasconcelos, com sede no Morro Santana (sesmaria concedida em 1740); Sebastião Francisco Chaves, no Morro São José, e Dionísio Rodrigues Mendes, com área que ia do Arroio da Cavalhada até o Arroio do Salso. Por-tanto, os fundadores de Porto Alegre não são os açorianos. Eles se somam no povoamento, movidos pela migração forçada pela invasão espanhola de 1763, de um lado, e pela motivação estratégica, de outro: a de ocupar a calha do Jacuí com núcleos que pudessem ser apoio ao avanço dos açorianos no interior da Capitania em conquista, desempenhando papel estratégico para resistir e impedir o avanço espanhol. Foi neste contexto que o Governador da Capitania, José Marcelino de Figueiredo, criou a freguesia de São Francisco dos Casais (Porto Alegre) em 26 de março de 1772, além das de Bom Jesus de Triunfo e Santo Amaro. Assim, os açorianos que “estavam à deriva” na penín-sula sobre o Guaíba, chegados em 1752, viviam em ranchos de pau-a-pique cobertos de palha e nas imediações construíram uma capela pequena em devoção a São Francisco. O núcleo, inicialmente chamado de Porto de Viamão, passou a ser de-nominado de Porto dos Casais, onde, aliás, estavam até mais de 60 casais. Os açorianos ali situados ajudaram a constituir o

10 Sobre o destino destes casais, o Monsenhor Ruben Neis abordou em pesquisa, mostrando que a maio-ria deles se dispersou. Na conjuntura desenhada, ao pesquisador resta perscrutar um longo caminho de pesquisa. Foi o que realizou o Genealogista Moacyr Domingues, que por mais de 20 anos levantou dados nos arquivos dos Açores, do Rio Grande do Sul e do Uruguai para acompanhar as constantes migrações e fixações dos açorianos na região em estudo. Examinar: DOMINGUES, 1993; DOMINGUES, 1994.

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núcleo que foi medido pelo Capitão Alexandre José Montanha. Ele demarcou os lotes e fez o traçado das ruas. No ano seguin-te, em 1773, a freguesia passou a ter Nossa Senhora Madre de Deus como a padroeira do povoado em crescimento, a ponto de José Marcelino trasladar para ele a capital de Viamão.

Cultivando as chácaras com trigais e outros cereais, os açorianos foram dando uma fisionomia animada ao Porto. Si-tuados em datas de 272 ha, a pequena propriedade foi implan-tada na Capitania, contrastando com o latifúndio, com cera de 13.000 ha, já lastreado em grande parte do Leste sulino. Neste cenário, despontou o Porto dos Casais como importante centro abastecedor de alimentos da região, então configurada como uma sociedade que se estruturava pela diferença e que, paulatinamente, foi sendo consolidada.

Em meio a essa movimentação que apresentava momen-tos de distensão, a agricultura praticada pelos açorianos pas-sou, não só, a fornecer alimentos para o mercado local, como a render lucros à Coroa portuguesa com a crescente exporta-ção da produção tritícola. Eis em Porto Alegre, os moinhos de vento (Ilustração 4) e as azenhas (Ilustração 5) a moerem o grão, fruto da faina açoriana, cuja toponímia demarca os nomes de dois bairros da cidade.

Ilustração 4 – Moinho de vento.

Fonte: Açores, Portugal. Horta/Faial: Direcção Regional de Turismo dos Açores, s/d.

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Ilustração 5 – Azenha d’água.

Fonte: www. fotosearch.com/photos- images/water-mill.html

Não se deve esquecer de outro lado, que alguns açoria-nos feitos soldados, na defesa das terras portuguesas ao Sul do Brasil, pelos serviços militares prestados, receberam da Coroa, como pagamento, a doação de uma ou mais sesmarias. Surgia, então, o açoriano-estancieiro, em contraposição àqueles que vieram a receber apenas um quarto de légua em quadro.11 Se, de um lado, tal ascensão acontecia, muitos outros açorianos tiveram, ao contrário, suas pequenas propriedades tomadas e incorporadas à já grande propriedade de muitos estancieiros.

É neste clima de tensão que chegou o ano de 1777, quan-do foi assinado o Tratado de Santo Ildefonso, reduzindo, em menos da metade, o território da Capitania. Com ele, Portugal perdia a área missioneira e a Colônia do Sacramento. Entre-tanto, o Tratado definiu um espaço neutral entre os banha-dos do Taim e o Arroio Chuí, para evitar o confronto entre as Coroas. Nela, nem Portugal nem Espanha teriam assento. Encarando a área neutral como uma brecha, a Coroa portu-guesa, apesar do Tratado, desencadeou um alargado processo

11 A propósito, o romance: ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Um quarto de légua em quadro. Porto Alegre: Movimento, 1976.

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de concessão de terras sem precedentes.12 Entre 1780 e 1800, os açorianos passaram, enfim, oficialmente, a receber terras, após longo tempo de espera e de conflitos bélicos.13

O alvo português era avançar os seus domínios na dire-ção Oeste. A saída, para tanto, viável, era pelo menos incorpo-rar, por meio da política de concessão de sesmarias, o amplo território missioneiro, cenário projetado para os açorianos quando do Tratado de Madrid. Sem dúvida, a doação de terras era uma estratégia eficaz e sem ônus para a Coroa, na medida em que o sesmeiro, ao ganhar a propriedade, tratava logo de transformar sua posse em uma verdadeira fortaleza. Assim, ao resguardar seus bens, estava também garantindo a posse lusa na área em conquista, sem ônus, prática que se mostrou exitosa aos portugueses.14

Com esta estratégia, Portugal, sem descanso, foi conce-dendo terras, em especial na direção Oeste. Ao iniciar o sé-culo XIX, em maio de 1801, um servidor da Coroa espanhola no Rio Grande do Sul, Félix de Azara, fundador da primitiva povoação de São Gabriel, percebeu o perigo a que seu país estava exposto. Escreveu ele, ao rei, a Memória Rural do Rio da Prata,15 na qual destaca que estabelecimentos portugueses16

estavam sendo espalhados em seus domínios. E alertava ele – se não forem tomadas providências urgentes, estabelecen-do ali núcleos espanhóis, em menos de 4 anos terá a Espanha perdido a posse do referido território.

12 Quer sesmarias (que variava entre 10 e 13 mil ha), quer datas (272 ha, como já indicado), configurando assim uma estrutura fundiária de dois polos: de latifundiários e minifundiários. Os açorianos se inserem na condição dos pequenos proprietários, em sua maioria.13 A transcrição de todas as propriedades concedidas aos açorianos, resultado de projeto da autora, aprova-do pela FAPERGS, e levando o nome da FAPA e do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, está publicada na obra de 1.152 páginas: BARROSO, 2002b.14 A conduta espanhola, ao contrário, era a de centrar seu poder com o fortalecimento das cidades portuá-rias. Eis Buenos Aires, na embocadura do Rio da Prata, por exemplo.15 Ver sua publicação na obra: AZARA, Félix de. Memória Rual do Rio da Prata. In: FREITAS, 1980.16 Significam “propriedades de terras”.

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Todavia, o alerta de Azara fora tardio. Não 4 anos, mas 4 meses após, as Missões eram conquistadas definitivamente por Portugal, para o seio brasileiro. A partir daí, o território do Rio Grande do Sul passou a domínio luso e, como tal in-corporado, consolidou raízes que vinham sendo cultivadas ao longo do processo de conquista.

No século XIX, na condição de avulsos, também chega-ram açorianos esparsos, que se somaram a tantos outros euro-peus que configuraram um mosaico étnico diversificado e rico para a população sul-rio-grandense.17

Um deles merece destaque, como dono de grande nú-mero de escravos e como contratante desta mão de obra para importantes obras que foram edificadas em Porto Alegre. Seu nome: João Baptista Soares da Silveira e Souza. Nascido na ilha de São Jorge, ele viveu em Porto Alegre no século XIX, mas construiu casa na Aldeia dos Anjos – Gravataí, que se mantém conservada. A ele estão ligadas as obras: o Theatro São Pedro (os alicerces); a Cadeia Pública (situada no gasôme-tro; demolida); a Bailante (casa de baile, situada na baixada, atrás da Assembleia Legislativa; demolida); a ponte de pedra (próxima ao monumento alusivo aos açorianos na Av. Peri-metral); e o primeiro edifício da Capital, o Malakoff (situado próximo ao Mercado Público; também demolido).18

Raros são aqueles que, ainda, por desconhecimento, si-lenciam ou sonegam a influência açoriana na história e na cul-tura do Rio Grande do Sul.

Os números indicativos dos açorianos e seus descenden-tes, originários de diferentes ilhas presentes na população do

17 Em levantamento realizado pela autora nos livros de Matrícula de Enfermos e nos de óbitos de “livres” relativos ao século XIX, foram inventariados os nomes de açorianos que passaram pela Santa Casa ou foram sepultados em seu cemitério. Verificar a obra: BARROSO, 2002b. 18 Nos registros de óbitos de escravos sepultados no Cemitério da Santa Casa de Porto Alegre, encontram--se muitos indicados como de sua propriedade. Na maioria dos casos, a causa da morte refere-se à queda do escravo em obra de construção. Acervo do Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre. E importante trabalho de pesquisa sobre este personagem, realizado por Miguel Duarte, está publicado na obra BARROSO, 2002b.

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Rio Grande do Sul, até o final do século XVIII, comprovam que eles eram mais de 50%. Isso já demonstrara Moacyr Domin-gues em suas pesquisas. Inclusive, chamando a atenção para a fundação de São Carlos de Maldonado, no Uruguai, com os açorianos para lá migrados, em virtude da invasão espanhola de 1763. Nesse sentido, ele consegue mostrar os percursos de muitos migrados para a nova povoação uruguaia, que acabam, depois em tempo de paz, por retornar ao Rio Grande do Sul.19

Ampliando e consolidando esta tese, o Genealogista Luiz Antônio Alves, autor do Memorial Açoriano, coleção de 58 volumes, em tamanho A4, com aproximadamente 500 páginas cada um, constituiu, com sua obra, uma espécie de veredictum de comprovação de que os açorianos não foram exterminados e nem varridos definitivamente do território português, a ponto de se afirmar que há muito de açoriani-dade na formação do estado mais meridional do Brasil. Ele aponta percentuais de origem por ilha, a partir da lista por ele levantada e apresentada (Quadro 1).20

Quadro 1 – Procedência dos açorianos no Rio Grande do Sul

ILHAS DOS AÇORES ORIGEM AÇORIANA NO RS (%)São Jorge 29,71%

Faial 26,20%Terceira 15,37%

Pico 11,18%São Miguel 4,11%

Graciosa 3,75%Santa Maria 2,80%

Flores 0,55%Corvo 0,08%Açores 4,41%

19 Verificar sua obra: DOMINGUES, 1994.20 Examinar: ALVES, 2005. Na obra, ele informa os critérios de análise e as fontes compulsadas.

Fonte: ALVES, 2005, p.16.

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Como a história deita traços culturais nas práticas e crenças da sociedade por ela formada, em sequência, o exame de alguns deles evocados consolidam o reconhecimento da in-fluência açoriana na fisionomia social do Rio Grande do Sul.

2 Marcas culturais luso-açorianas

Importa, a seguir, demarcar traços herdados dessa pre-sença, porque desconhecida, acaba-se por confundir e identi-ficar-se erroneamente a origem de elementos identitários da cultura regional. Em seguimento, o alvo é apontá-los.

A estrutura fundiária que deu base à organização da sociedade de classes, com grandes proprietários (os estanciei-ros – lusos do Continente, especialmente), e pequenos pro-prietários (os ilhéus dos Açores) no Rio Grande do Sul, foi configurada no processo histórico do século XVIII, como já apresentado. Na verdade, a realidade da luta pela terra no es-paço sulino começou com os primeiros colonizadores: os lu-sos continentais e os das ilhas açorianas. Vale lembrar e repetir que o latifúndio (de 10 a 13.000 ha – a sesmaria) que dominou a formação social do Rio Grande do Sul foi o recurso do avan-ço da terra e de sua conquista; e o minifúndio (de 272 ha – a data) foi o mantenedor da posse com a ocupação intensiva. O sesmeiro, que fazia de sua sesmaria um verdadeiro quartel militar, teve com o colono açorita, o abastecedor de alimentos, e também, o soldado/agregado, que, a seu serviço, lutou na defesa de sua posse. Em outros casos, atuou em defesa da sua pequena propriedade.

A língua, por outro lado, é um legado vivo por meio de expressões e falares lusos (do Continente e transplantado para as ilhas dos Açores). Palavras do vocabulário sul-rio-grandense exemplificam: riba ou arriba (acima), samear (semear), despois (depois), saluçu (soluço), premeter (prometer), folgo (fôlego), amenhã (amanhã), alumiar (iluminar), alevantar (levantar), alembrar (lembrar), arreceio (receio), milhor (melhor), varar

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(cruzar o rio), escuitar (escutar). Destacam-se as denomina-ções: dona (senhora) e peão (empregado), no rol da contribui-ção linguística.

A literatura oral gestada nos Açores também visibiliza-da no cotidiano em diversos lugares do estado, mostra a rique-za de adágios (provérbios ou ditados populares), de adivinhas, parlendas, lendas e poesia popular, comum e similar nos dois espaços, até o presente. Para exemplificar, “Água mole, em pe-dra dura, tanto bate até que fura” e suas variantes, são comuns aos dois lados do Atlântico. Destacam-se, também, as cantigas de roda, passadas de geração a geração, os ditos das benzedu-ras para os vários males e os falórios, nos diversos ritos reli-giosos (do batizado ao rito fúnebre).21

Os brinquedos e as brincadeiras infantis são de he-rança portuguesa, na sua maioria. Quem não brincou de “gato e rato”, “sapata”, “cabra” ou “gata cega”, ou andou com pernas de pau, lançou pandorgas (as pipas ou papagaios) no céu e jogou dominó?

A religiosidade manifesta no catolicismo arraigado é visível nos nomes de muitos povoados estabelecidos no Rio Grande do Sul durante o século XVIII. Logo que assentados/arranchados, os continentais ou ilhéus tratavam de edificar uma capelinha ao santo devoto. A comprovar, os nomes dos primeiros núcleos populacionais como: SANTO ANTÔNIO da Patrulha, NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO do Ar-roio, SÃO FRANCISCO DE PAULA de Cima da Serra, NOS-SA SENHORA DO ROSÁRIO de Rio Pardo e tantos outros.

Dentre as devoções destacam-se a de São Miguel e Al-mas e a de Nosso Senhor dos Passos, com suas solenes pro-cissões. Estas e outras devoções estão ligadas a irmandades,

21 A folclorista Sonia Siqueira Campos fez estudo minucioso e detalhado das manifestações de literatura oral, presentes no Rio Grande do Sul e as comparou com as variantes das diferentes ilhas dos Açores, ve-rificando suas similitudes e aproximações, tendo a clareza de que cada lugar imprime sua marca e traços próprios. Examinar: CAMPOS, 1992, p.61-69.

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muitas delas vinculadas às Santas Casas, um legado português que tomou forma no seu vasto Império colonial, com inúme-ras delas criadas. Muitas se mantêm até o presente, cumprin-do sua missão. Para as festas de Corpus Christi, a arte orna o casario com suas janelas enfeitadas, ou fazendo das ruas um verdadeiro tapete, em que até hoje os ilhéus, com destaque os da ilha Terceira, se orgulham de fazer.

De outro lado, a religiosidade popular é visível nas ben-zeduras da medicina caseira.

Nas festas juninas, Santo Antônio e São João, especial-mente, quer nas ilhas, como em alguns municípios do Rio Grande do Sul, são festejados com muitas brincadeiras, espe-cialmente de sorte, e folguedos que fazem a alegria dos seus participantes. As “Joaninas” mobilizam grande parte da popu-lação nas ilhas, para uma festa que toma conta das ruas, a cada ano; é o que ocorre até hoje.

As festas natalinas com presépio e reisado é outra he-rança transplantada. As cavalhadas, revividas no Império por-tuguês, celebram a luta entre os mouros e cristãos no processo de preservação e reconquista do território lusitano, e que, na contemporaneidade, ainda em alguns lugares são preservadas, especialmente quando dos festejos do Divino. Originário do Continente, onde atualmente não é festejado, como no pas-sado, o Espírito Santo é, ainda hoje, o culto mais tradicional dos Açores, notadamente na ilha Terceira. Trata-se de uma marca identitária açoriana, a mais viva, consagrada e festejada de todas. Os açorianos transformam seus impérios do Divino (pequenas capelas), a cada ano, em palco animado das suas tradições religiosas, vivamente celebradas em seus cortejos. No Rio Grande do Sul, a folia com visitação da bandeira às casas, a coroação e as procissões estão sendo reintroduzidas nas festas do Divino, em alguns lugares, prática que, tempo-rariamente, esteve abolida diante da modernidade dos anos 1970-90. É deste período, sobretudo, a perda dos Impérios,

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construções dedicadas ao Divino, que existiam em municípios com presença açoriana. O único existente, mas em ruínas, é o de Triunfo, que, se preservado fosse, seria o exemplar rema-nescente desta tradição religiosa de base açoriana no estado.

Dentre as danças gauchescas, com influência açoriana, nas suas variantes destacam-se: o pezinho, a chimarrita, a ti-rana do lenço, a quero-mana, o anu e o balaio. Nas ilhas, é interessante observar as variantes do pezinho e da chimarrita, em cada uma, por exemplo.

A arquitetura portuguesa, depois adaptada pelos ilhéus às suas necessidades e condições insulares, também está pre-sente no Rio Grande do Sul, por meio de exemplares ainda preservados em alguns municípios, como Rio Pardo, Triunfo, Santo Amaro, Santo Antônio da Patrulha e outros. Neles, o casario luso-açoriano, os sobrados com as telhas portuguesas e, no seu interior, os oratórios aos seus santos devotos se so-bressaem diante das construções modernas.

A freguesia, a vila e o município – herança que os romanos deixaram em Portugal – foram igualmente trans-plantados para os Açores, como ao Brasil, constituindo-se as células eclesiásticas e político-administrativas dos povoados pioneiros do Rio Grande do Sul.

E a culinária? Pratos do cotidiano reafirmam a herança lusa (dos continentais e ilhéus), como os cozidos e fervidos. A açorda é apreciada por muitos que repassam às novas gerações o gosto por este prato, ainda preservado.22

A doçaria é riquíssima, preparada de várias formas que resultam em apreciadas guloseimas, disputadas nos cafés. A lista é grande. A exemplificar: pão-de-ló, arroz-doce, ovos--moles, suspiros, rosquetes e rosquinhas, sonhos, doces com frutas etc., além de pães variados, sovados e batidos, em for-matos diversos. Para as festas do Divino, nos Açores, são fei-

22 Sopa feita com migas de pão. Diante das restrições de alimentos, tudo se aproveita.

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tos, expostos e servidos pães sovados, todos decorados e colo-ridos, que são admirados em todos os Impérios.

No artesanato, a tecelagem se destaca, especialmente a feita com fibras vegetais, trançadas ou tramadas, resultando em utensílios, como cestos, à venda nas barracas à beira da estrada no litoral gaúcho. Além do cipó e da taquara, já tradi-cionais, o emprego da folha da bananeira vem resultando em belos trabalhos, com destaque no interior de Santo Antônio da Patrulha, na localidade do Evaristo. Vale destacar as flo-res de papel, variadas e de muitas cores, confeccionadas para adornar as festas, como para louvar os mortos, em belas coro-as depositadas nos cemitérios.

Estas são algumas das marcas culturais de origem luso--açoriana, algumas mais vivas, outras menos, mas que teste-munham, no presente, a afirmação de uma identidade que não silencia o processo histórico que lhes dá sustentação.

3 Conclusão

É inquestionável que, na formação da sociedade sul-rio--grandense, estejam presentes marcas da açorianidade, para além das lusas do continente. Fincadas ao longo do seu pro-cesso histórico, em meio ao embate militar intermitente, elas não desapareceram. Ao contrário, se pode afirmar que a cultu-ra luso-açoriana transmigrada desempenhou um papel de re-sistência, ao mesmo tempo agregador, em meio às vicissitudes que tiveram de enfrentar.

Ao contrário dos açorianos que se instalaram no litoral catarinense, situados à beira-mar, como nos Açores, e pró-ximos uns aos outros, lá se organizaram, com condições fa-voráveis à preservação de sua cultura e de sua identidade de origem, até hoje evidentes. Ainda que fosse uma área de fron-teira, ao Sul da colônia, a Ilha de Santa Catarina e as cercanias não se constituíram em espaço emblemático de beligerância como o Rio Grande do Sul, no século XVIII.

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O que é fato, na Capitania de São Pedro, os açorianos acabaram por ficar ilhados, em meio a terra, por todos os la-dos. Tinham tudo para esquecer suas origens, suas raízes, suas ilhas. A realidade, aqui, lhes aprontou “um outro mundo” e uma outra vida, muito distante, e em nada similar daquela que lhes era familiar. Isso precisa ser dito e frisado, para que nun-ca mais se repita que os açorianos não fazem parte de “nossa identidade”, como às vezes se escuta. Reconhecer sua contri-buição na história do Rio Grande do Sul é, no mínimo, um sinal de respeito. Por isso, é indispensável conhecer as circuns-tâncias, o meio e a política vigente no tempo da transmigra-ção açoriana para a estremadura meridional do Brasil. E este trabalho se coloca com esta perspectiva e com este propósito: o de fundamentar o reconhecimento da marca identitária aço-riana na formação social do Rio Grande do Sul.

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ÉPOCA DAS CHARQUEADAS (1780-1888)

* Jorge Euzébio Assumpção

1 A contribuição dos trabalhadores negros escravizados na formação do Rio Grande do Sul

A participação dos africanos e seus descendentes na história sul-rio-grandense é fecunda; mas, ao mesmo tem-po, ocultada por parte da historiografia tradicional, que, de maneira geral, aderiu à ideologia da democracia étnica sulina – uma província com baixa participação de descendentes de africanos e sem conflitos étnicos.

A forte presença dos africanos e de seus descendentes no extremo Sul do Brasil é comprovada antes mesmo da fun-dação do Rio Grande lusitano, em 1737.

Africanos escravizados já atuavam nas lutas por territó-rio entre portugueses e espanhóis, em 1680, quando da criação, pelos lusitanos, da Colônia de Sacramento, na margem do Rio da Plata, que serviu como cabeça de ponte a Portugal. Este feito permitiu um atraente contrabando de prata peruana trazida de Buenos Aires, assim como a venda de escravos aos espanhóis.

Segundo Maestri (2006, p. 39-40):

Em 1680, com a fundação da Colônia do Sacra-mento pelos lusitanos, no extremo Sul do atual Uruguai, o trabalhador escravizado africano e afro-descendente desempenhou papel determi-nante na economia regional e no relacionamento luso-espanhol da América Meridional. Uma das principais razões da fundação de Sacramento foi a venda de cativos para os espanhóis.

* Mestre em História pela PUC/RS. Professor nos cursos de Pós-graduação e Graduação da FAPA e da UNIASSELVI.

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Já em Sacramento, começou a ser usada a estratégia, mais tarde empregada pelos farroupilhas, de aumentar o con-tingente armado através de cativos negros que pegassem em armas ou desertassem das tropas inimigas, com a promessa de liberdade.

Os africanos e seus descendentes já haviam transitado em terras sul-rio-grandenses, através das bandeiras: “É de afirmar-se que a presença do negro no Rio Grande do Sul te-nha se verificado por volta de 1635, há mais de três séculos, na bandeira de Raposo Tavares” (BENTO, 1976, p. 266). Como também estiveram presentes na expedição que estabeleceu a criação do presídio Jesus-Maria-José, em 19 de fevereiro de 1737 dando início oficial ao povoamento português em Rio Grande. Sobre a presença negra, afirma o Coronel Cláudio Moreira Bento (1976, p.269):

Segundo Paula Cidade, a partir desta época, “uma onda de negros e mulatos desceu sobre as campinas do Sul. Em menos de um século já equivalem, em número, à metade dos habitantes brancos. Cru-zam-se as três raças e uma delas, a indígena, entra logo a ser absorvida...”

Sendo os cativos numerosos em Laguna, São José do Norte e na frota de João de Magalhães, e tendo atuado como tropeiros entre São Paulo e o atual Uruguai, é crível que seu número fosse também elevado nas primeiras fazendas em tor-no de Viamão, Capivari e Gravataí, antes mesmo de 1737.

De acordo com Maestri (2010, p. 90),

Ainda que trabalhadores livres tenham participado dessas primeiras atividades – colonos, espanhóis, indígenas aculturados, etc. –, foi importante a par-ticipação de cativos, em virtude da impossibilidade da constituição no Sul, como no resto do Brasil, de um significativo mercado de trabalho livre. Os ho-mens livres pobres exigiam salários altos para não

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se estabelecer, mesmo em caráter precário, como produtores livres em região onde abundavam as terras e os gados.

Outro aspecto pouco ressaltado pela historiografia, que tendeu a silenciar sobre a importância dos africanos e seus descendentes na história, é a presença de escravos e forros nas guerras guaraníticas (1752-1756), pelas disputas do território meridional entre espanhóis e portugueses. Os afrodescenden-tes marcaram sua presença no Exército Demarcador de Portu-gal; este, composto por 1.633 homens, contava com 180 escra-vos, além de vários forros ou livres. A participação negra nos conflitos bélicos, envolvendo ibéricos, como já ocorrera em Sacramento, foi uma constante enquanto durou a disputa por terras americanas. Devido à escassez de homens, nenhum dos lados titubeou em armar os nativos ou africanos para a defe-sa de seus interesses. Sobre a participação negra nos conflitos militares, assim se refere o Coronel Bento (1976, p. 265):

Segundo Artur Ramos, “No Rio Grande do Sul, em fins do século XVIII e início do XIX, o africano negro foi um dos arquitetos da sociedade rural e militar criada nessa região através de prolonga-das lutas, nas quais deu mais do que a sua simples participação”.De fato isto verificou-se, mas além e aquém dos limi-tes mencionados pelo brilhante pesquisador citado.A contribuição militar da imigração africana ne-gra para a penetração, exploração, conquista, re-conquista e manutenção do Rio Grande do Sul, foi expressiva e caracterizada por um esforço como-vente, de numerosa e valiosa equipe anônima, mas decisivo como se verá.O africano negro foi o primeiro imigrante não lu-sitano a penetrar, explorar, guardar e se fixar no território do Rio Grande do Sul, ao lado do con-quistador luso-brasileiro.

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Na necessidade de fortalecer suas posições militares para a defesa do território, assim como abastecer a região mi-neradora, os portugueses começaram a fornecer sesmarias no extremo Sul brasileiro, onde a peonada era constituída por ne-gros e índios.

Conforme Maestri (2006, p. 47), “a posse de cativos era quase imprescindível para obter sesmaria.” Em tempos difíceis e de conflitos, eram raras mulheres brancas que aceitavam vir a essas terras sem lei. Tal fato fez com que se tornasse comum a união de soldados com índias e negras, o que proporcionou um caldeamento étnico entre os habitantes do Brasil Meri-dional, para o desespero de muitos, que se orgulham de suas raízes europeias e sonegam os laços sanguíneos de africanos e indígenas com a população lusa. A província de São Pedro passou a ser cenário de uma grande mestiçagem populacional.

Porém, devido aos frequentes conflitos, aos deslocamen-tos dos ameríndios e ao reduzido número de cativas negras resultante do fato de que os escravistas preferiam trabalha-dores homens, o governo português promoveu uma “limpa” na sociedade colonial, e enviou, para o extremo Sul, mulheres oriundas de bordéis, para casarem-se no novo território. Ali, transformar-se-iam em “respeitáveis senhoras”, tratadas com todo respeito, constituindo parte da elite dominante da socie-dade sul-rio-grandense. Sobre a população do Rio Grande, es-creveu Flores (2003, p. 49):

Formavam a população e a guarnição de Rio Gran-de pessoas das mais variadas procedências: portu-gueses, brasileiros de S. Paulo, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Rio de Janeiro; índios tupis de S. Paulo, guaranis fugidos das reduções, negros livres e escravos. Havia também espanhóis oriundos de Montevidéu, Santa Fé, Corrientes, Entre Rios e Pa-raguai que se empregam como peões e domadores.Por falta de mulheres brancas, os soldados se uniam com índias e com escravas. O governo colonial en-

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viou mozuelas (donzelas), retiradas de bordéis das vilas e cidades de outras capitanias e transforma-das em noivas, que desembarcaram em Rio Grande onde casaram e constituíram famílias.

Todavia, a contribuição dos negros e mestiços não se aplica apenas à área militar, mas principalmente à produção, fato ainda menosprezado por alguns pesquisadores. A pre-sença dos trabalhadores escravizados nas fazendas está sa-cramentada em dados recolhidos nas estâncias de Alegrete, referentes ao ano de 1859, que demonstram ter à região 124 capatazes, 159 peões livres (não se sabe sua origem étnica) e 527 cativos. Tais números confirmam a presença de escravos e trabalhadores negros livres também nas estâncias, quebrando um mito da historiografia sulina de que a formação do povo gaúcho teria sido forjada na liberdade e no espírito aventu-reiro de seus habitantes, sem a necessidade do braço escravo, diferente nisso das outras províncias.

2 A consolidação da presença escrava no Rio Grande do Sul

Se, mesmo antes da formação do Rio Grande do Sul lu-sitano, este território já contava com a presença de negros cativos ou livres, ganhando maior força quando da criação do polo charqueador pelotense, que proporcionou a entrada, em grande quantidade, de trabalhadores negros escravizados na região.

O primeiro levantamento populacional que se conhece é o Relatório de Córdoba, realizado em 1780, no mesmo ano em que foi fundada a primeira grande charqueada, por José Pin-to Martins, em Pelotas. Os estabelecimentos saladeris foram os responsáveis pelo desenvolvimento singular econômico e cultural da região, como a introdução sistemática de trabalha-dores escravizados.

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Segundo Assumpção (1995, p.39-40),

Com o crescimento da cidade, aumentou também a vida social. O refinamento e a riqueza dos habitantes de Pelotas, cujas famílias mais abastadas mandavam seus filhos estudar fora da província, se refletiram também em títulos de nobreza, como salienta Alva-rino Marques:Nos últimos anos da monarquia, dentre os 58 titu-lados da nobreza provinciana, nada menos de 13 eram de Pelotas, e poucos tinham conquistado seus títulos em feitos militantes. Os títulos nobiliárquicos recebiam nomes pitorescos da nossa rica toponímia:- Barão de Arroio Grande – Francisco A. Gomes da Costa;- Barão de Butui – José Antônio Moreira (português);- Barão de Correntes – Felisberto Inácio da Cunha;- Barão do Cerro Alegre – João Alves de Bittencourt;- Barão de Itapitocaí – Dr. Miguel R. Barcelos;- Barão de Jaguari – Domingos da Costa Antiqueira, mais tarde visconde;- Barão do Jarau – Dr. Joaquim Augusto Assumpção;- Barão de Santa Tecla – Joaquim da Silva Tavares;- Barão dos Três Cerros – Aníbal Antunes Maciel;- Barão de São Luís – Leopoldo Antunes Maciel;- Conde de Piratini – João Francisco Vieira Braga;- Visconde da Graça – João Simões Lopes;- Viscondes de Pelotas (militares) 1º e 2º – carreira da câmara.Pela quantidade de títulos concedidos, percebe-se o prestígio dos senhores pelotenses dentro do cenário nacional. E o consequente ciúmes dos senhores das outras cidades, menos importantes, que tentaram menosprezar a Princesinha do Sul, atribuindo carac-terísticas e adjetivos desabonadores a seus habitan-tes, principalmente aos homens, que eram ridiculari-zados devido a seus gestos “finos e educados”. Ao se referir ao aspecto cultural pelotense, assim se mani-festou Alvarino, reforçando o já tradicional ufanismo dos historiadores pelotenses: Pelotas, como se sabe, teve origem diversa da maioria das cidades gaúchas. Aqui se formou des-

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de cedo uma civilização caracteristicamente urba-na. Nada mais natural que, numa sociedade desse tipo, os valores predominantes fossem os relacio-nados com as artes, as letras, as ciências. Natural, por outro lado, que a cidade se convertesse em cen-tro intelectual e mais, em núcleo coordenador das tradições rurais do Estado.

Os dados obtidos no levantamento, realizado apenas 43 anos após a fundação da província de São Pedro, apesar da imprecisão das informações, sobretudo no que diz respeito à população indígena que vivia de modo mais disperso, demons-tram a notável influência de não brancos na constituição do novo território. Vê-se, na Tabela 1, que os euro-descendentes pouco ultrapassavam os 50%, enquanto que os não brancos somavam 47,4%. Quanto à população afrodescendente, esta já ultrapassava a população indígena.

Tabela 1: POPULAÇÃO RS – 1780

FREGUESIAS BRANCOS ÍNDIOS PRETOS TOTAL

Madre de Deus 871 96 545 1.512

Rio Grande 1.643 182 596 2.421

Estreito 880 97 277 1.254

Mostardas 360 40 291 591

Viamão 1.028 114 749 1.891

Santo Antônio 828 91 270 1.189

Conceição do Arroio 234 25 158 417

Aldeia dos Anjos 210 1.890 255 2.355

Vacaria 291 32 248 571

Triunfo 637 - 640 1.277

Taquari 580 - 109 689

Santo Amaro 512 - 208 720

Rio Pardo 1.317 438 619 2.374

Cachoeira 42 383 237 662

Totais 9.433 3.388 5.102 17.923

Fonte: ASSUMPÇÃO, 1995.

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Embora o levantamento não discriminasse os habitantes por sexo, o número de mulheres brancas era pequeno, como já assinalado, fazendo do cruzamento inter-étnico algo inevitável. A propósito, convém especificar que, ao se falar em brancos, talvez a referência seja a um mestiço de pele clara. O fato de ter a aparência ou de assumir-se como negro, índio ou mestiço seria motivo para ser vítima de discriminação em uma socie-dade classista, escravista e racista. Quanto mais branco fosse o indivíduo, menos preconceito sofreria. O viajante Lucook des-creveu o tratamento aos não brancos: “Parece por toda parte bastante que uma pessoa tenha a tez de um preto para que se designe como objeto sobre o qual a tirania se pode exercer” (LUCCOCK, 1975, p.135).

Tomando por base a tabela anterior , é fácil perceber que o Rio Grande do Sul nunca foi tão branco quanto alguns gosta-riam. Em três freguesias, Aldeia dos Anjos, Triunfo e Cachoeira, a população negra ultrapassava a dos brancos. De modo indireto, o levantamento de 1780 demonstrou, igualmente, a importância dos trabalhadores escravizados na economia e na povoação do extremo Sul do Brasil, já que, em todas as freguesias, estiveram presentes africanos e seus descendentes; e tudo autoriza a crer que a imensa maioria deles fosse de trabalhadores escravizados.

Contudo, foi com a consolidação das grandes charqueadas como principal atividade econômica da província que ocorreu a entrada em grande número de trabalhadores escravizados. Uma das razões para o aumento foi o fato de que os homens livres se negaram a labutar nesses estabelecimentos, devido as suas péssimas condições de trabalho e higiene. Como descre-veu o viajante Herbert Smith (1922, p. 140):

Há um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo cativador nestes grandes matadores; os trabalhado-res negros, semi-nus, escorrendo sangue; os animais que lutam os soalhos e sarjetas correndo rubros, os feitores estalidos, vigiando imóveis sessenta mortos por hora, os montes de carne fresca dessorando, o vapor assobiando das caldeiras, a confusão que

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entretanto é ordem: tudo isto combina-se para for-mar uma pintura tão peregrina e hórrida quanto pode caber na imaginação. De toda esta carnificina derivou a riqueza de Pelotas, uma das mais próspe-ras entre as cidades menores do Brasil.

Os homens livres preferiam a vadiagem ou o roubo a ter de trabalhar em ambiente tão insalubre, ficando a tarefa entregue aos cativos africanos, que sob o comando do bacalhau, realiza-vam todas as tarefas relativas às atividades saladeris, com exceção das administrativas. A importância dos trabalhadores escraviza-dos pode ser percebida em face do aumento de cativos, 34 anos após a fundação do polo charqueador, segundo o censo de 1814.

O censo Tabela 2, nos apresenta alguns dados significa-tivos que reforçam a certeza da importância dos trabalhadores gaúchos escravizados em relação ao relatório Córdoba.

Tabela 2: CENSO DA POPULAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL, POR ZONAS, SEGUNDO A CONDIÇÃO DA POPULAÇÃO PRESENTE EM 1814Freguesia Brancos Indígenas Livres Escravos R.nascido Total

Viamão 1.545 11 188 908 160 2.812

Sto. Ant. da Patrulha 1.706 08 330 961 98 3.103

Conceição do Arroio 837 19 180 538 74 1.648

S.Luiz de Mostarda 723 05 68 281 74 1.151

N. S. dos Anjos (aldeia) 1.292 256 233 716 156 2.653

Porto Alegre (cidade) 2.746 34 588 2.312 431 6.111

S.Bom Jesus de Triunfo (vila) 1.760 55 240 1.208 193 3.450

Santo Amaro 953 27 66 773 65 1.884

S. José de Taquari (faz.) 1.092 42 67 433 80 1.714

Rio Pardo (cidade) 5.931 818 969 2.429 298 10.445

Cachoeira (vila) 4.576 425 398 2.622 204 8.225

Piratini (vila) 1.439 182 335 1.535 182 3.673

Pelotas 712 105 232 1.226 144 2.419

Rio Grande (cidade) 2.047 38 160 1.119 226 3.590

Missões (povos) 824 6.395 77 252 403 7.951

Total das Províncias 32.300 8.655 5.399 20.611 3.691 70.656

Fonte: ASSUMPÇÃO, 1995.

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Em 1814, a maior parte da população era constituída de não brancos (Tabela 3). Em nenhuma das freguesias o núme-ro de cativos era inferior a duas centenas. Porém, é Pelotas a mais importante cidade do século XIX no Rio Grande do Sul, onde se situava o polo charqueador, que apresentava a maior concentração de africanos e descendentes, superando os 60%. O charque era o principal produto produzido nas charquea-das, assim como o de maior importância nas exportações da província. Eram esses estabelecimentos os impulsionadores da economia do Brasil Meridional.

Tabela 3: PERCENTUAL DE HABITANTES EM 1780 E 1814

* Se, à percentagem de 36,8% de “pretos”, fossem acrescentados os recém-nascidos, provavelmente filhos de escravos, que somam 5,2%, ter-se-ia um total de 42% de africanos e afrodescendentes.

Fonte: ASSUMPÇÃO, 1995

Ainda de acordo com Assumpção (1995, p. 99):

Antes da independência o valor do charque sozinho representava 57% do valor total das nossas expor-tações provinciais. Junto com os demais produtos animais derivados da indústria saladeril, couros, sebos e chifres, representavam 85% de tudo o que se vendia para fora. A julgar correto os dados apre-sentados, podemos afirmar que as charqueadas chegaram a ser responsáveis por, no mínimo 85% das exportações gaúchas; ou seja, as exportações sulinas, no período estudado, dependiam dos esta-belecimentos charqueadores e, por consequência, da mão-de-obra escrava.

1780 % 1814 %

Brancos 9.433 52,5 32.300 45,6Índios 3.888 18,9 8.655 12,1Pretos 5.102 28,5 5.399 - Livres 36,8

20.611 - Escravos

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Como se percebe, a economia do extremo sul brasileiro estava calcada em três pilares básicos: os estabelecimentos sa-laderis que produziam a riqueza da província; a mão de obra escrava negra que labutavam nesses estabelecimentos; e a atual cidade de Pelotas, onde se localizava o maior polo charqueador, o que a tornava mais próspera e importante freguesia do século XIX. Importância que lhe concedeu a alcunha de Princesinha do Sul, o que pode ser percebida através dos títulos de nobreza destinados aos habitantes locais.

Já em Porto Alegre, capital da então província, chega a quase 47% a proporção de negros livres ou cativos. Em face desses dados, percebe-se a importância do elemento servil para a economia sulina, em geral, principalmente nos grandes centros. Os números apresentados anteriormente mostram igualmente que a influência socioeconômica e sociocultural dos africanos e afrodescendentes não se deu apenas nas char-queadas; mas, sim, em toda a província.

Levantamento realizado nos centros urbanos da pro-víncia demonstrou que os trabalhadores escravizados desem-penhavam os mais diversos ofícios. Os homens eram açou-gueiros, tanoeiros, telheiros, alfaiates, barbeiros, dentistas, canoeiros, carpinteiros, carregadores, carroceiros, oleiros, ourives, pajens, pintores, marceneiros, mascates, sapateiros, padeiros, farinheiro, ferradores, podadores, etc. As mulheres eram amas secas, penteadeiras, amas-de-leite, bordadeiras, costureiras, cozinheiras, criadeiras, doceiras, domésticas, fian-deiras, rendeiras, mucamas, lavadeiras, rendeiras, dentre ou-tras atividades. Os trabalhadores escravizados faziam sabão, crivo, massa, picado, queijos, velas, etc. (WEIMER, 1991).

3 Modalidades de escravidão e tratamento dos escravos no Rio Grande do Sul

Não sendo a escravidão algo linear, não se pode cair na tentação de amenizar ou romantizar as condições dispensadas

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aos trabalhadores escravizados, tomando por base situações singulares de escravos ou famílias escravizadas que tiveram um tratamento diferenciado da grande maioria. Se não se tra-tasse de exceções, não se teria o altíssimo número de fugas, de quilombos e de vários tipos de justiçamento, nos quais os trabalhadores escravizados se envolviam, como relata Maes-tri, em seu livro de excepcional título Deus é grande, o mato é maior!, onde trata da resistência servil no Rio Grande do Sul.

Nas charqueadas, que tinham uma média de 60 a 80 ca-tivos, as condições de trabalho eram duríssimas; o tratamen-to, impiedoso e a vigilância, rígida. Sobre o assunto descreve Alvarino Marques (1990, p. 105): “As relações entre negros e senhor eram iguais, senão piores que as verificadas no resto do Brasil escravocrata....”, diz, ainda, o autor, citando Nicolau Dreys:“Uma charqueada bem administrada é um estabeleci-mento penitenciário”.

No mesmo sentido, em depoimento de excepcional va-lor, tem-se a descrição de Saint-Hilaire, que se torna indispen-sável, devido à posição nada favorável do mesmo em relação aos afrodescendentes.

Nas charqueadas os negros são tratados com dure-za. O Sr. Chaves, tido como um dos charqueadores mais humanos só fala aos seus escravos com exage-rada severidade, no que é imitado por sua mulher; os escravos parecem tremer diante de seus donos. Há sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à pa-rede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono e quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única que usa esse impiedoso sis-tema: ele é frequente em outras. Afirmei que nesta

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capitania os negros são tratados com bondade e que os brancos com eles se familiarizam, mais que em outros pontos do país. Referia-me aos escravos das estâncias, que são em pequeno número; nas xarqueadas a coisa muda de figura, porque sendo os negros em grande número e cheios de vícios, tra-zidos da capital, torna-se necessário tratá-los com mais energia. (ASSUMPÇÃO, 1995, p. 240)

Em decorrência, houve um indeterminado número de fugas, gerando quilombos na província em geral e em particu-lar na região de Pelotas, onde se localizava o polo charqueador e que apresentava as piores condições de tratamento da escra-varia gaúcha.

Também não se pode pensar que as charqueadas cons-tituíssem uma exceção, e que os outros cativos possuíam uma vida prazerosa. Mesmo que, em algumas atividades, as con-dições de vida e de trabalho dos escravizados não fossem tão desumanas quanto nos estabelecimentos saladeris, não quer dizer que não fossem igualmente duras e violentas. Mesmo os escravos urbanos, que desfrutavam de uma relativa mobilida-de, também sofreram com os maus-tratos e os castigos, que, é bom lembrar, foram próprios e inerentes ao sistema escravista.

Nas cidades, desenvolveu-se uma modalidade de escra-vidão que, salvo engano, foi desconhecida no mundo rural: trata-se do escravo ao ganho, com uma mobilidade maior que a dos outros cativos. Tal condição oportunizava que proves-sem seu próprio sustento, devendo, contudo, pagar ao seu se-nhor certa quantia em dinheiro de tempos em tempos. Con-tudo, não se pode ter a ilusão de terem esses escravos uma vida idílica, pois as quantias cobradas pelos senhores costumavam ser altíssimas, fazendo com que muitos recorressem ao roubo para cumprir seus acordos; e, assim, manter sua condição di-ferenciada. O regime “ao ganho”, embora típico, não impediu que um número indeterminado desses escravos se refugiasse nos quilombos e estados vizinhos, objetivando escapar dos

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pagamentos escorchantes, como também dos maus-tratos de-correntes da discriminação étnica.

Nas cidades, também foram frequentes os escravos de aluguel; modalidade em que os senhores viviam do arrenda-mento de seus cativos a terceiros. Não foram raros os senhores e as senhoras que sujeitaram suas belas escravas à prostituição, de cujos rendimentos passaram a viver.

4 Resistência escrava

A escravidão trouxe consigo algo intrínseco a si própria, a resistência e a busca da liberdade dos seres humanos reduzi-dos à servidão. O que não foi diferente no Brasil Meridional, apesar da mistificação de uma escravidão mais branda do que no restante do território, como apregoaram alguns românticos ufanistas gauchescos.

Julgamos que o nosso espírito democrático já se formara antes da grande introdução do elemento negro. Esse ponto de vista explica o fato de serem, como relatam os historiadores, os escravos me-lhor tratados aqui do que nas demais províncias do Brasil. O espírito de fraternidade que o tempo depositou na alma de nossa gente foi tão grande que numa das poucas lendas criadas pela alma gaúcha (a do Negrinho do Pastoreio) estigmatiza a execranda memória de um senhor perverso. A democracia rio-grandense, por conseguinte, ado-ça, humaniza entre nós a nefanda instituição que outros povos ambiciosos criaram e exploraram. (GOULART, 1985, p.48)

A afirmação de Goulart, de cunho eminentemente ideológico, longe está da verdade histórica. Não é preciso muito esforço para refutar ao autor, basta recorrer aos via-jantes que frequentaram a província no século XIX, para desmistificar as alusões de uma escravidão diferenciada no atual estado do Rio Grande do Sul.

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Sabeis como esses senhores, tão superiores tratam seus escravos? Como tratamos nossos cães! Come-çam por insultá-los. Se não vêm imediatamente, recebem duas ou três bofetadas da mão delicada de sua senhora, metamorfoseada em harpia ou ainda um rude soco, um brutal pontapé de seu grosseiro amo. Se resmungar são ligados ao primeiro poste e então o senhor e a senhora vêm, com grande ale-gria no coração, para ver como são flagelados até verterem sangue aqueles que não têm, muitas ve-zes, outro erro que a inocência de não ter sabido adivinhar os caprichos de seus senhores e patrões! [...] Feliz ainda o desgraçado negro, se seu senhor ou sua senhora não tomam eles mesmos, uma cor-da, relho, pau ou barra de ferro e não batem, com furor brutal, no corpo do escravo, até que pedaços soltos de pele deixem correr sangue, sobre seu corpo inanimado. Porque geralmente se carrega o negro sem sentidos para curar seus ferimentos; sabeis com quê? Com sal e pimenta, sem dar-lhes mais cuidado do que o que se presta a um animal, ata-cado de feridas, e que se quer preservar dos vermes. (ISABELLE, 1963, p. 68)

A reação dos trabalhadores escravizados sul-rio-grandenses deu-se de várias formas, desde o corpo mole até o crime de senhores e capatazes. Salvo engano, foi a fuga uma das mais usadas e temidas formas de resistência utilizadas pela escra-varia. Ela causava perdas financeiras ao senhor, afrontava o regime, estimulava a rebeldia e poderia proporcionar a criação dos temidos quilombos ou a fuga para os estados vizinhos, onde poderiam se incorporar a seus exércitos e também de onde poderiam voltar e combater seus antigos senhores.

Salvo engano, foi na região saladeril, mais precisamente na Serra dos Tapes, que se teve a formação do mais importante quilombo meridional – o quilombo de Manoel Padeiro – que levou pânico e pavor à aristocracia pelotense, com sua violên-cia, sua agressividade e seu plano insurrecional.

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A relação do escravo rebelado com os estados vizinhos sempre foi uma preocupação por parte da elite sulina. Haja vista o quilombo de Manoel Padeiro, salvo melhor juízo, foi o mais violento refúgio de negros que se tem registro. O quilom-bo de Padeiro impôs um verdadeiro pânico na região onde se localizava o polo charqueador gaúcho, com seus atos de aten-tado contra a propriedade. O medo gerado pelo quilombola fez com que as autoridades oferecessem uma elevada soma pela sua captura:

(...) Aberta a sessão às dez horas da manhã, de-pois de se haver conferenciado com o juiz de paz do terceiro distrito, Boaventura Inácio Barcelos, sobre as providências que se precisarão dar para a extinção dos quilombos da Serra dos Tapes, foi deliberado por unanimidade de votos, que o dito juiz de paz determinaria haver efetivamente uma partida de sete homens e um comandante na di-ligência de prenderem ou extinguirem, na forma da Lei, os ditos criminosos quilombolas, vencendo, diariamente o comandante, 1.280/000 réis e os ca-maradas a 640/000 réis cada um, além da gratifi-cação que terá a partida para prender ou extinguir os quilombolas, a saber pelo cabeça, dos ditos mal-feitores Manoel Padeiro 400/000 réis, e de cada um dos seis companheiros do dito cabeça, 100/000 réis; que finalmente, se ordenasse ao procurador desta câmara, a entrega de quantia de 300/000 réis ao re-ferido juiz de paz, para as despesas da dita partida, dando ele conta final para se fazerem os competen-tes assentos. (ASSUMPÇÃO, 1995, p. 232)

Digno de registro neste mundo senhorial machista é a postura da mulata Rosa, exemplo das mulheres negras opri-midas que lutaram por sua liberdade e emancipação.

Quando do primeiro ataque registrado, o grupo quilombola da serra dos Tapes compunha-se de

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11 homens e apenas uma mulher. A mulata Rosa – a única amazona do grupo, de propriedade do comendador Barcellos, seria, ao contrário, uma de-cidida quilombola. Vestida de homem, carregando duas facas na cintura, participava ativamente dos ataques calhambolas. Segundo parece, ela não pos-suía um companheiro fixo. Rosa morreu, resistindo ao primeiro ataque reescraviador; em 16 de abril de 185, junto com João Juiz de Paz. (MAESTRI, 2002, p. 56-57)

Os temores não eram sem fundamento, como ficou de-monstrado. Manoel Padeiro arquitetava e seus quilombolas além de atuarem na região das charqueadas, onde se localizava a maior concentração de trabalhadores escravizados, arquite-tavam um plano, de atacar a vila, começando pela costa e li-bertando toda a escravaria. Tal empreendimento contava com a colaboração de um castelhano que fornecia armas de fogo e pólvora a Padeiro.

Que o dito castelhano mandou chamar, uma vez, ao padeiro, que fosse escondido a falar com ele e este chamado pelo quilombola Francisco, de Dona Maria Theodora, que na casa da viúva Joaquina o Padeiro deu uma arma de fogo, ao dito castelha-no, e este lhe promete de comprar meia arroba de pólvora, para qual o padeiro quiz dar dinheiro, e o castelhano não quiz receber, prometendo que daí a três semanas lhe entregaria a pólvora e seguirão da casa da viúva Joaquina, onde quiseram degolar ao capataz de João Antonio Ferreira... que já estava baleado pelos mesmos quilombolas.

E mais

(...) que depois logo entrarão uma porção de gente com o José Ignácio e se [...] de tudo quanto havia no lugar do preso dos quilombolas de maneira que houve alterações de palavras com os que haviam

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entrado primeiramente que a dita gente de José Ignácio não perseguiu os quilombolas e nem fize-ram serviço algum. Disse mais que os quilombolas diziam que haviam de vir a esta vila, principiando pela Costa de Pelotas e trazerem mais negros para o assalto da vila. (ASSUMPÇÃO, 1995, p. 234)

As tentativas de insurreições também fizeram parte da resistência escravista por parte da população afrodescenden-te. Várias foram as tentativas e insubordinações no extremo Sul do País, dentre outras as dos escravos minas em 1835. A revolta deveria abranger toda a região e contava com o apoio também de estrangeiros. O plano deveria ser executado no dia 06 de fevereiro de 1848. Porém foi abortado, devido à delação do escravo Procópio, também mina, que denunciou o plano às autoridades e em troca recebeu sua carta de alforria. Já os conspiradores foram vítimas da repressão, causada pela in-confidência de Procópio.

Fugas, assassinatos, rebeldias, insurreições e quilombos fizeram parte do cotidiano da escravidão sulina em geral e da Pelotense em particular, por possui esta a maior concentra-ção de trabalhadores escravizados no Brasil Meridional até os últimos dias do regime escravista em maio de 1888. Pois, ao contrário do que apregoam alguns, o regime escravista no atual estado do Rio Grande do sul sobreviveu até os últimos dias da escravidão.

5 Conclusão

Por fim, pode-se afirmar que os africanos e seus des-cendentes estiveram e participaram na formação da socie-dade sulina de forma decisiva. Defendendo suas fronteiras, trabalhando na criação de gado e na produção de charque, que foram as bases da economia gaúcha no século XIX; ou exercendo as mais diversas atividades nas áreas urbanas. Sem exagero nenhum, pode-se dizer que foram os responsáveis

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pela prosperidade da província no século XIX. Trazidos que foram de forma coercitiva para executar as tarefas mais peno-sas da sociedade, até o fim da escravidão, os afrodescendentes lutaram por sua liberdade – fugindo, formando quilombos ou justiçando seus algozes.

A escravidão nada teve de romântica, como querem al-guns. Ela significou um período de luta pela liberdade, por parte dos trabalhadores negros escravizados. Luta que levou à morte e a castigos cruéis, inerentes ao sistema escravista, que fez dos africanos e seus descendentes os párias da sociedade brasileira, trazendo seus reflexos negativos a esta etnia até os dias atuais.

Referências

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DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da província do Rio Grande de São Pedro do Sul (1839). Rio Grande: Biblioteca Rio-grandense, 1927.

FLORES, Moacyr. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ediplat, 2003.

GUTIERREZ, Ester J.B. Barro e sangue: mão de obra, arquitetura e urba-nismo em Pelotas 1777-1888. Pelotas: Universidade UFPel, 2004.

LAYTANO, Dante de. O negro no Rio Grande do Sul. Primeiro seminário de estudos gaúchos. Porto Alegre: PUCRS, 1957.

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LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Tomadas durante uma estada de dez anos nesse país, de 1808 a 1818. Belo Horizonte: Itaiaia, 1975.

MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior! História, trabalho e resistência dos trabalhadores escravizados no RS. Passo Fundo: UPF, 2002.

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MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das Charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1990.

SMITH, Herbert. Do Rio de Janeiro a Cuyabá. Notas de um naturalista. São Paulo: Melhoramentos, 1922.

WEIMER, Günter. O trabalho escravo no Rio Grande do Sul. Porto Ale-gre: Sagra Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1991.

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CAMINHOS DA COLONIZAÇÃO ALEMÃ NO RIO GRANDE DO SUL:

POLÍTICAS DE ESTADO, ETNICIDADE E TRANSIÇÃO

* Raul Rebello Vital Junior

1 Introdução

A camada dominante da sociedade brasileira que vai ancorar o movimento de independência política do País irá identificar-se como integrante de um Estado profundamente hierarquizado e escravista.

D. Pedro era visto pelas elites que apoiaram a indepen-dência política do Brasil como a saída para um processo sem traumas. Preservar o sistema monárquico foi a fórmula pen-sada para evitar movimentos republicanos, abolicionistas e a participação das camadas populares no processo separatista. Evitar radicalismos e manter a escravidão eram desafios que se impunham ao estado recém-formado.

A Monarquia brasileira que se constituiu a partir de 1822 trouxe consigo um formato social herdado das antigas estruturas coloniais. Latifúndio, monocultura e mão de obra escrava integraram o tripé que perpetuou a herança colonial para a base econômica do Brasil. Formou-se um Estado aris-tocrático, voltado para os interesses de uma elite escravocrata.

Pode-se perguntar: que espaço existiria diante dessa di-nâmica para uma política imigratória? Se dependesse da men-talidade das elites agrárias do País, essa resposta poderia ser dada de forma simples e objetiva: nenhum.

* Mestre em História. Professor da FAPA e da rede municipal de ensino de Porto Alegre.

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A escravidão brasileira encontrava-se de tal forma in-corporada ao ethos das elites nacionais que seguramente não cogitariam alternativas a ela. O sistema escravista fazia parte da “ordem natural da economia brasileira”. O trabalho, para a Sociedade Imperial, não se apresentava como um valor. O destino da aristocracia com ascendência europeia era usufruir das benesses do trabalho servil.

Neste sentido, percebe-se uma aparente contradição en-tre os interesses do Império e os dos setores escravocratas no Brasil. Convém lembrar que as pressões internacionais cres-ciam de forma considerável para a abolição do tráfico interna-cional de escravos. Desde a fase Joanina, a Inglaterra tentava impor ao Estado português o fim do comércio escravista des-de o ano de 1810, por conta do Tratado de Aliança e Amizade. Em 1827, novo tratado foi firmado entre Brasil e Inglaterra. O compromisso do governo brasileiro em extinguir o tráfico até o ano de 1830 não se efetivou. A tentativa de decretar o fim do tráfico em 1831, por Feijó, também não foi colocada em prática. A culminância dessas pressões resultou na Bill Aber-deen (1845). Com esta lei, a Inglaterra se outorgava o direito de capturar qualquer navio negreiro, independente de sua na-cionalidade, e julgar os traficantes.

Mesmo com o contexto desfavorável para a manuten-ção do sistema escravista, mexer no sistema de mão de obra no Brasil não foi algo simples. Houve um longo período de transição. Logo, volta-se à questão anterior: qual a função da imigração em um País com uma estrutura escravocrata tão consolidada? Estaria o Estado brasileiro à frente dos próprios grupos que o mantinham? Certamente, não. Nem tampou-co pode-se considerar a questão servil como fator único nas ações do Estado brasileiro diante da política imigratória na primeira metade do século XIX.

Já na segunda metade do século XIX, essa situação mu-dou, e a questão servil ganhou corpo principalmente a partir da lei Eusébio de Queiroz (1850).

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Para as questões apresentadas, encontra-se parte da res-posta na necessidade de formação de um grande exército, vol-tado para a defesa do território, principalmente em áreas de fronteira. O recém-formado Estado brasileiro dava continui-dade à pretensão portuguesa do século XVIII por intermédio do Conselho Ultramarino, que entendia a colonização como forma de firmar soberania. A mesma intenção foi reafirmada na fase Joanina. Em 1808, foram promulgados dois decretos por D. João, dando início à política de estabelecimento de co-lônias agrícolas na Brasil, sendo determinada a vinda de 1.500 famílias trazidas dos Açores para a Capitania do Rio Grande do Sul e permitida a concessão de sesmarias a estrangeiros, buscando aumentar a lavoura e a população. No ano de 1818, foi fundada a colônia de Nova Friburgo, na então província do Rio de Janeiro.

Junto com essa demanda, existia a necessidade de ocu-pação dos espaços vazios, conjugando-os ao desenvolvimento da agricultura e de outras áreas da economia.

Os séculos que marcaram as práticas escravistas no Bra-sil naturalizaram a crença na incapacidade para o trabalho por parte do caboclo e do negro. Entre os séculos XIX e XX, essa crença passou a ser incorporada como verdade por parte da intelectualidade brasileira. No entanto, não era só a suposta incapacidade que estava em jogo. A ideia de branqueamento da sociedade brasileira vinha perpassando as iniciativas go-vernamentais pelo menos desde 1818, quando o Brasil ainda era uma colônia portuguesa. A independência do Haiti e as agitações decorrentes nas primeiras décadas do século XIX criaram nas elites brasileiras um verdadeiro pavor em tor-no da expectativa de uma superioridade negra num País que iniciava sua história com uma população em que dois terços apresentavam-se como negros e mestiços. Branquear o recém--formado Estado brasileiro era fundamental. O imigrante ale-mão enquadrava-se nas necessidades de uma ação eugênica de um Estado europeizado e escravista.

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2 As expectativas diante da política imigratória

Diferentes expectativas apresentavam-se diante da colo-nização europeia durante o I Reinado (1824-1831). O impera-dor tinha como pretensão maior o recrutamento de soldados mercenários. A imperatriz, de forma idealista, buscava, por intermédio dos colonos, trazer para o Brasil a cultura euro-peia como forma de “civilizar” a recém-formada nação. José Bonifácio defendia a colonização como forma de pôr fim ao sistema escravista. Alguns intelectuais, como, por exemplo, Hypolito José da Costa, defendiam a colonização europeia enquanto possibilidade de qualificação cultural, povoamento, qualificação “física e moral”, bem como preparar o caminho da abolição (LEMOS, 1993, p.13).

No Correio Brasiliense, em 1810, Hypolito da Costa, ao discutir o Tratado de Comércio entre Brasil e Inglaterra, chamou atenção para o perigo de ruína do comércio externo brasileiro. Pensou como alternativa no aumento da população e do comér-cio interno (PETRONE, 1982, p. 18). A saída era a imigração.

Independente das posições não consensuais por parte dos representantes do Estado acerca da imigração, durante o I Reinado, foi assumido um projeto institucionalmente organi-zado que se voltava não só para questões militares, mas para a constituição da pequena propriedade rural.

O imigrante europeu alemão no Rio Grande do Sul, se-gundo o discurso oficial, deveria superar as deficiências da produção nacional para abastecer os núcleos urbanos. Nas regiões não ligadas diretamente à cultura de produtos para o mercado externo, os imigrantes utilizariam sua própria força de trabalho, e assim deveriam diminuir os efeitos da crise de mão de obra na produção de alimentos, povoando as áreas de-volutas. O projeto não incluía posseiros e indígenas presentes nas áreas coloniais.

Cabe ressaltar que os interesses de ocupação das terras devolutas no Nordeste do Rio Grande do Sul não ficaram res-

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tritos apenas à questão da produção e do abastecimento. Exis-tiu forte interesse em promover um processo de valorização fundiária decorrente do processo de povoamento de terras, que passaram a constituir-se como um elemento de grande importância nesse cenário. Esse processo de valorização fun-diária esteve diretamente ligado à Lei de Terras, de 1850, que, além de gerar uma diminuição da oferta de terras, contrastaria com o aumento da demanda decorrente da política migratória.

É possível encontrar estas práticas especulativas mesmo antes de 1850. No período da fundação de São Leopoldo, ob-jetivando o povoamento da área das antigas Missões, foi feita a transferência para São João das Missões. Além da questão do povoamento, foi buscada a valorização fundiária da área. O isolamento da região acabou inviabilizando o projeto (PE-TRONE, 1982, p. 17).

A política migratória trouxe para a então província a ex-pectativa do desenvolvimento de outros setores da economia, bem como a possibilidade de implementar serviços de infra-estrutura na região.

Por meio do agenciamento, o Governo Imperial recru-tou, em vários estados germânicos, simultaneamente, colonos e soldados, buscando definir, inclusive, questões de soberania nacional.

Pensar na criação de classes sociais intermediárias no Sul do País como forma de atenuar o poder das elites latifun-diárias e escravocratas era outra preocupação existente.

Enfim, a pequena propriedade, o mercado interno, a ocupação do território e a constituição de efetivos militares são algumas das razões que levaram a uma política coloniza-tória por parte do Império brasileiro.

3 O cenário europeu diante da política imigratória

A menor influência, se comparado com a Inglaterra e a França, diante do cenário brasileiro, não impediu que, no século XIX, o País recebesse uma quantidade significativa de

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imigrantes alemães. A imigração alemã deu início a uma polí-tica intencional do governo de atrair contingentes populacio-nais europeus não portugueses para o Brasil. A intensificação do contato se deu a partir do casamento da princesa Dona Leopoldina, da casa de Habsburgo, com o Imperador Pedro I.

Até o início do século XIX, a Alemanha manteve-se como uma região essencialmente agrária. Os 38 estados ale-mães integrantes da Confederação Germânica mantinham forte oposição à unificação. A hegemonia austríaca sobre esses estados só conseguiria ser mantida mediante a permanência da fragmentação do território. Nestas condições, o desenvol-vimento capitalista esteve travado.

A exceção a esse cenário é a região da renana. A influência da Prússia provocou uma relativa expansão industrial e co-mercial. A criação do Zollverein (união aduaneira dos esta-dos alemães), no ano de 1830, colaborou para esse processo. A Unificação da Alemanha, que só se consumou em 1871, foi influenciada por uma Europa em constante transformação. A Europa, nesse período, atravessou ondas revolucionárias das mais diversas ordens. Os movimentos liberais de 1830 e 1848, e a aceleração econômica decorrente das revoluções indus-triais mudaram a feição do continente. Trabalhadores agrí-colas e outros contingentes populacionais foram duramente atingidos por essas transformações.

Em um período de uma Alemanha ainda não unificada, a velocidade das transformações econômicas trouxe sequelas sociais que estimularam o processo migratório em suas dife-rentes fases. O desenvolvimento industrial, a partir de 1850, acelerou a passagem de uma sociedade rural para urbana e abriu caminho para grandes deslocamentos populacionais.

Junto com as transformações econômicas, cabe a lem-brança das ondas nacionalistas despertadas na Europa durante a era napoleônica. A derrota de Napoleão, a reação conserva-dora legitimada pelo Congresso de Viena (1815) e pela Santa Aliança, não foram suficientes para abrandar o ímpeto revolu-cionário. Este cenário mais amplo refletiu de maneira incisiva

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sobre a unificação da Alemanha. Tensões sociais, políticas e fortes mudanças econômicas constituíram um quadro favorá-vel para que representantes do governo brasileiro buscassem a mão de obra excedente no continente. Neste contexto, havia uma equação possível entre a carência de trabalhadores que existia no Brasil com a necessidade de espaço e trabalho das populações europeias.

4 Colonização alemã no Rio Grande do Sul (1824-1840)

Georg Schaeffer aportou no Rio de Janeiro no ano de 1818. Amparado pelo título de “navegador mundial” e dono de uma indiscutível cultura, aproximou-se da princesa Leopoldi-na. As portas da Corte lhes foram abertas em um curto espaço de tempo. As facilidades oferecidas na fase Joanina renderam dividendos ao major com o futuro imperador do Brasil, D. Pe-dro I. O militar embarcou em missão oficial e sigilosa para Europa em setembro de 1822 (LEMOS, 1993, p. 32-33).

O embarque para a Europa, em 1822, do agenciador Ma-jor Schaeffer, pouco antes da independência, deixaram claras as intenções da Corte em obter a aprovação dos governos da Santa Aliança para a causa brasileira, assim como de atrair mercenários para a guerra iminente contra Portugal.

Além da questão portuguesa, as constantes tensões no Prata, no período pós-independência, criavam necessidades do aumento do contingente militar na região. No ano de 1825, lideranças separatistas da Cisplatina, sob o comando de Laval-leja e cientes da adesão de Frutuoso Rivera, proclamaram a in-dependência da província em relação ao Brasil. A declaração de guerra do Brasil foi imediata. O conflito durou até 1828. A intervenção diplomática da Inglaterra fez com que o Brasil aceitasse o Uruguai como um estado independente.

Os encaminhamentos feitos na Europa para os recruta-mentos em questão descreditaram o projeto do governo de D. Pedro I diante das elites brasileiras e de grande parte dos go-vernos europeus (CUNHA, 2010, p. 282).

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O objetivo maior de recrutamento militar para formar os batalhões estrangeiros denunciados por jornais contribuiu muito para o descrédito da missão. Era evidente a existência de uma lógica geopolítica presente nas intenções do estado brasileiro durante o I Reinado.

Cabe ressaltar que o processo de ocupação das terras de-volutas não trouxe consigo qualquer princípio de respeito com as populações autóctones das regiões distribuídas aos colonos. Os conflitos gerados entre colonos e índios levaram a um pro-cesso acentuado de extermínio étnico. A figura dos bugreiros ganhou importância nas áreas coloniais para dirimir conflitos entre o colonizador europeu e os índios.

Quanto à tentativa de recrutamento na Europa, o resul-tado não foi o esperado. As críticas foram duras, pois desa-gradou muito o fato de o governo ter confiado tão importante missão a alguém que não estaria à altura de tal empreitada (LANDO; BARROS, 1981, p. 35).

Entre 1824 e 1828, conseguiram embarcar para o Brasil cerca de 4.500 imigrantes, entre soldados e colonos em 21 expe-dições. Se considerado o período de 1824 a 1830, tem-se o nú-mero aproximado de 5.350 imigrantes. Na Ilustração 1, tem-se a reprodução de um bilhete de viagem utilizado por um dos milha-res de imigrantes alemães que vieram para o Brasil no período.

Ilustração 1 – Passagem de imigrante para o Brasil: século XIX

Fonte: Disponível em <http://aepan.blogspot.com>. Acesso em: 31 jul 2011.

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Como não se fala, neste período, de um Estado unifi-cado, os imigrantes alemães que para cá vieram integravam grupos étnicos distintos e com dialetos próprios. Os primeiros colonos vieram de Hunsrück, Saxônia, Württeerg, Saxônia--Coburg. Diante da nova realidade, confrontados com uma cultura estranha, desenvolveram entre eles um sentimento de pertencimento étnico.

As promessas do governo brasileiro foram muitas. Dispu-nha-se a pagar as passagens e os custos da viagem para os que quisessem vir como colonos. Os que se dispusessem a vir como soldados receberiam, a partir do embarque, um soldo em di-nheiro. Ao chegar ao Brasil, o colono teria o direito de escolher a função a desempenhar (soldado, colono, artesão, etc.). Para os colonos, ficaria garantido um lote gratuito, com a infraestrutura adequada para sua manutenção e a da sua família. É sabido que as promessas feitas foram cumpridas de forma parcial.

A primeira fase caracterizou-se como um período de intensas dificuldades. Os colonos enfrentaram um forte isola-mento, agravado pela ausência de infraestrutura. A Ilustração 2, abaixo, retrata as precárias condições de vida dos primeiros colonos, bem como sua situação de isolamento.

Ilustração 2 – Imigrantes alemães instalando-se em São Leopoldo/RS: século XIX

Fonte: Disponível em: <http://cc25dejulho.blogspot.com>. Acesso em: 31 jul 2011.

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As ameaças “naturais” levavam a epidemias. Os enfren-tamentos com índios foram constantes nessa fase. A demarca-ção de linhas e lotes nas colônias era feita pelo imigrante, bem como a construção de pontes e estradas, a edificação de alo-jamentos públicos, etc. Havia demora na obtenção dos títulos definitivos de propriedade.

O isolamento a que os colonos foram submetidos re-forçou a criação de um sentimento étnico, cultural e religioso próprio. O reforço desse sentimento está vinculado à ausência de direitos políticos por parte dos colonos que aqui chegaram durante o século XIX. Essa situação de isolamento era mais agravada entre colonos luteranos do que entre católicos.

O Estado mostrava-se ausente nas áreas coloniais. A carência de políticas públicas para a região denunciava uma mentalidade que se estendia aos demais setores da sociedade brasileira. A governabilidade do Império não se dava pela sua relação com os mais diversos segmentos sociais. O que impor-tava era que se estivesse atento às demandas das elites agrárias. Logo, desenvolver políticas públicas em áreas coloniais não fa-zia nenhum sentido. O resultado foi a produção de “quistos étnicos” que, em parte, dissociavam a realidade colonial do restante da província, forjando uma aproximação identitária que se sobrepôs às diferenças entre os grupos germânicos que colonizaram a região.

Escola, igreja e família se configuraram como institui-ções que passaram a exercer um papel determinante na afir-mação da identidade coletiva entre os alemães. As escolas, nas colônias, ganharam contornos étnicos, sendo orientadas por princípios germânicos, que reforçavam a consciência étnica dos filhos dos imigrantes. Essa identidade também seria forta-lecida por outros elementos, como existência de uma impren-sa local de língua alemã, bem como de produções literárias, entre outras publicações que circulavam junto às comunida-des. Os primeiros jornais voltados para a comunidade alemã, escritos em alemão, surgiram, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, em 1852 e 1853, respectivamente.

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A síntese desse processo relacionado à constituição de uma identidade étnica foi a composição de um campesinato com características próprias, apesar da diversidade existente entre os grupos que vieram para o Brasil. Afirmar o reforço do sentimento étnico do grupo não significa desconsiderar a diversidade daqueles que para cá vieram.

Essa diversidade se encontra em decorrência das regiões de origem dos imigrantes, como bem apresenta o Quadro 1, a seguir.

Quadro 1 – Procedência de alguns grupos alemães para o Sul do Brasil

Localidade Fundação Origem

São Leopoldo/RS 1824 Hunsrück, Saxônia, Württeerg, Saxônia-Coburg

Sta. Cruz/RS 1849 Renânia, Pomerânia, Silésia

Sto. Angelo/RS 1857 Renânia, Saxônia, Pomerânia

Nova Petrópolis/RS 1859 Pomerânia, Saxônia, Boêmia

Teutônia/RS 1868 Westfália

São Lourenço/RS 1857 Pomerânia, Renânia

Blumenau/SC 1850 Pomerânia, Holstein, Hannover, Braunschweig, Saxônia

Busque/SC 1860 Bade, Oldenburgo, Renânia, Pomerânia, Schleswig-Holstein, Braunschweig

Joinville/SC 1851 Prússia, Oldenburgo, Schleswig-Holstein, Hannover, Suíça

Curitiba/PR 1878 Teutos do Volga

Sta. Isabel/ES 1847 Hunsrück, Pomerânia, Renânia, Prússia, Saxônia

Sta. Leopoldina/ES 1857 Pomerânia, Renânia, Prússia, Saxônia

Fonte: WILLEMS, 1980, p.38-39.

A diversidade também se manifestou em torno de inte-resses divergentes que se configuraram na dinâmica econômi-ca do mundo colonial. Essas diferenças são manifestas tam-bém em decorrência da orientação religiosa.

Os primeiros colonos chegaram ao Rio Grande do Sul no ano de 1824. O Presidente da Província, José Feliciano Fer-

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nandes Pinheiro, encaminhou os imigrantes para a Feitoria do Linho Cânhamo. A partir de abril de 1824, a feitoria passou a se chamar “Colônia Alemã de São Leopoldo”. O município de São Leopoldo foi o berço da colonização alemã no sul do Bra-sil, juntamente com Três Forquilhas (RS, alemães protestantes) e São Pedro de Alcântara das Torres (RS, alemães católicos).

São Leopoldo se constituiu como o primeiro empre-endimento de sucesso. Tal sucesso foi atribuído à fertilidade das terras e à privilegiada posição geográfica do município. A Ilustração 3, a seguir, retrata a abrangência do recém-criado município de São Leopoldo.

Ilustração 3 – Carta da Colônia de São Leopoldo

Fonte: Disponível em: <www.rootsweb.ancestry.com>. Acesso em: 30 jul 2011.

Esgotadas as terras da região do Vale dos Sinos, dadas aos primeiros imigrantes, os próximos colonos passaram a re-ceber terras mais distantes, próximas a outros rios, como os do Vale do Caí, os do Vale do Rio Taquari e os do Vale do Jacuí.

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Todas essas regiões receberam grande influência germânica na construção da sua cultura. No Vale dos Sinos, surgiram as co-lônias de Campo Bom, em 1825; Dois Irmãos, em 1824; e Ivoti, em 1828.

Inúmeras são as defesas feitas em torno do sucesso do empreendimento colonizador em decorrência do fator étni-co como essencial ao sucesso colonial. Maestri (2010, p. 129) contradiz essa tese ao afirmar que

[...] colônias de Três Forquilhas e de São Pedro ve-getaram na pobreza, em razão da baixa qualidade das terras e, principalmente da distância dos mer-cados consumidores provinciais. Isolados e esque-cidos, os colonos germânicos terminaram semiaca-boclados, quase se confundindo com as populações brasileiras que ali viviam.

Os alemães do Rio Grande do Sul buscavam a posse de terras. A partir de 1824, constituiu-se um sistema de coloniza-ção fundamentado na pequena propriedade familiar.

Além da agricultura, que ocupou espaços significativos na dinâmica econômica das colônias alemãs no Rio Grande do Sul, merece destaque que, na fase inicial da colonização ainda voltada para a subsistência, o artesanato doméstico de-senvolveu um papel fundamental. Eram produzidos tecidos de linho e algodão. A produção artesanal disseminou-se em vários ofícios como o de alfaiate, sapateiro, etc. A importân-cia de produzir artigos para a vida local era grande. Com o desenvolvimento dos transportes e com o surgimento do co-merciante no mundo colonial, a atividade artesanal tendeu a desaparecer (MOURE, 1992, p. 97-98).

A imigração no Rio Grande do Sul foi interrompida entre 1830 e 1844 em parte em decorrência do movimento Farroupi-lha (1835-1845). O Estado brasileiro, a partir da abdicação de D. Pedro I, teve sua instabilidade política agravada. Além do movimento Farroupilha, outras rebeliões se espalharam pelo

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País. O governo acabou por cortar recursos destinados à imi-gração, e só retomou a partir de 1846. Nesse período, a repre-sentação diplomática brasileira em Berlim deixava clara a in-tenção do governo brasileiro em investir na colonização alemã.

Possíveis relações que possam ser feitas entre imigração, colonização e leis restritivas ao tráfico negreiro devem conside-rar que o fato de a imigração ser percebida como alternativa à diminuição de mão de obra escrava não se dá em decorrência de pensar o escravismo como uma instituição imoral. O siste-ma é percebido como arcaico. Nestes termos, a África não é co-gitada como continente que pudesse servir como base imigra-tória, mas percebida como um continente bárbaro; os negros, como inaptos para o trabalho. Trazê-los em outra situação, que não a de escravos, terminantemente desqualificaria uma socie-dade em formação como a brasileira. Logo, não se rompe com uma percepção “naturalizada” no Brasil do século XIX sobre a inferioridade do negro diante do imigrante europeu (SEYFER-TH, 2002, p.202).

Apesar de os colonos terem sido fixados em áreas que não interessavam ao latifúndio, a forte oposição dos grandes proprietários rurais à política de colonização também reforçou o corte de recursos na Lei do Orçamento, aprovada em dezem-bro de 1830. A luta dos grandes proprietários rurais era em torno da manutenção do sistema escravista. O trabalho escra-vo no Brasil praticamente deixou homens livres fora do siste-ma produtivo. No Brasil do século XIX, o trabalho manual era considerado coisa de escravo, visto como propriedade do fa-zendeiro. As pressões inglesas e a distribuição gratuita de terra aos colonos (77 ha em 1824) não eram vistas como compatí-veis com os interesses da grande lavoura. O descaso com uma política oficial de imigração entre 1830 e 1850 demonstrou, de forma clara, a força política dos grandes proprietários rurais.

Neste quadro apresentado pode-se pensar o espaço rio--grandense como diferenciado. Cabe questionar se, compa-rativamente a São Paulo, os colonos alemães no Rio Grande do Sul apresentavam uma ameaça maior aos grandes pro-

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prietários rurais quanto à quebra da hegemonia latifundiária. Acredita-se que não, na medida em que estavam distantes das áreas de grande propriedade, e sua produção econômica era diversa do latifúndio. Além do mais, as terras designadas para colonização no Rio Grande do Sul não eram de interesse dos grandes proprietários rurais. Vale lembrar que o latifúndio no Rio Grande do Sul configurou-se economicamente por inter-médio da pecuária destinada ao mercado interno. Por conta disso, a demanda de mão de obra, se comparada com a de São Paulo, não era tão grande. Consequentemente, o imigrante não seria visto com o mesmo peso para a resolução de proble-mas ligados à crise da mão de obra. Vale lembrar que as elites gaúchas apresentaram-se fortemente apegadas ao sistema es-cravista praticamente durante todo o Império.

Logo, os conflitos de interesses encontravam-se diluídos em duas realidades que permaneceram como paralelas duran-te o período do Império.

5 Colonização alemã no Rio Grande do Sul (1840-1870)

A política de imigração nas mãos das províncias não prosperou. Ainda que, no ano de 1848, o Governo Geral, por meio da Lei Geral nº 514, tenha cedido, a cada uma de suas pro-víncias, 36 léguas quadradas de terras devolutas para coloniza-ção. O Governo Imperial, ainda no período do Primeiro Reina-do, já havia extinto o regime de sesmarias, dotando as áreas de colonização com dimensões menores. No ano de 1848, os lotes, que antes eram de 77 hectares, foram reduzidos para 48.

O setor privado, ao fazer investimentos nos contratos de parceria na região de São Paulo, não conseguiu encontrar o equilíbrio entre a utilização de mão de obra livre e uma eco-nomia amparada no latifúndio escravista. Uma das primeiras experiências privadas com o sistema de parceria ocorreu por intermédio do Senador Nicolau Vergueiro, proprietário da Fa-zenda Ibicaba, que trouxe imigrantes para trabalhar no Brasil,

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na fazenda de sua propriedade. O imigrante tinha o valor do transporte adiantado, e o colono devolveria o valor em parcelas.

A empreitada foi malsucedida, na medida em que os ga-nhos finais dos imigrantes mal davam para pagar as despesas com alimentação, ocasionando dívidas impagáveis. Além disso, os fazendeiros não faziam distinção clara entre os limites do tra-balho livre, para o escravo, o que dificultava o relacionamento com os colonos. Os contratos também não eram respeitados.

Tal cenário só iria modificar-se de forma mais incisiva a par-tir de 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, e com a ampliação da produção de café, fazendo com que o Brasil recebesse maior fluxo migratório. Fatores externos ligados à crise econômica e à política na Europa também vão contribuir para alterar esse quadro.

Observem-se os dados da Tabela 1, abaixo:

Tabela 1 – Imigração alemã no Brasil

Fonte: MAUCH e VASCONCELOS, 1994, p. 165.

Essa tabela confirma os efeitos da expansão cafeeira e da Lei Eusébio de Queiroz sobre a entrada de imigrantes no Brasil. Tal cenário acabou atingindo a vinda de alemães. No período de 1848-1872, a imigração alemã atingiu índices muitos mais elevados do que no período de 1824-1847. As razões já eviden-ciadas passaram a ser a garantia de um processo irreversível de transição da mão de obra de escrava para livre no Brasil.

Período Total1824-47 8.1761848-72 19.5231872-79 14.3251880-89 18.9011890-99 17.084

1900-090 13.8481910-19 25.9021920-29 75.8011930-39 27.4971940-49 6.8071950-59 16.6431960-69 5.659

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Mesmo com a necessidade de braços livres ampliada, o sistema de parceria não conseguiu pôr fim a uma mentalidade escravista fortemente presente. Denúncias de abusos por parte de grandes produtores rurais fizeram com que países europeus restringissem o envio de colonos para o Brasil. Este cenário levou o Governo Imperial a reassumir o controle do proces-so de colonização, mesmo que de forma lenta e com políticas oficiais duvidosas diante da perspectiva futura dos colonos no País. Ainda em 1870 podem ser encontradas inúmeras dificul-dades diante do quadro colonizatório.

A imigração foi retomada no Rio Grande do Sul a partir de 1845, atingindo a região do Vale do Taquari e do Rio Pardo. O governo provincial, a partir de quatro de dezembro de 1851, por meio da Lei nº 229, assumiu a incumbência de instituir agentes para atuar na Europa com a finalidade de promover a imigração alemã para o Rio Grande do Sul. Nesse período de colonização provincial, vale destacar a fundação de Santa Cruz (1849), Santo Ângelo (1857), Nova Petrópolis (1858) e Monte Alverne (1859).

Santa Cruz foi a primeira colônia provincial. Foi fun-dada em terras devolutas por intermédio da Lei nº 514, de 28 de outubro de 1848. A primeira Lei Provincial remete à Lei nº 229, já citada. Essa lei autorizava a Província a medir, demar-car, designar valor em terras de colônias existentes ou por se-rem estabelecidas. No entanto, o início efetivo da colonização provincial se fez por intermédio da Lei nº 304, de 1854, que se constituiu como uma adaptação do Rio Grande do Sul à Lei de Terras (IOTTI, 2001, p. 30-31).

Cabe lembrar que todas as colônias alemãs que alcan-çaram destaque, com exceção da colônia de São Leopoldo, fo-ram fundadas na segunda metade do século XIX.

Ao contrário do que ocorreu na fase inicial do processo colonizatório (1824) − quando a busca por mercenários orien-tava as ações do governo brasileiro na Europa −, no ano de 1850, a prioridade foi a busca por agricultores e artesãos.

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O Decreto nº 537 dizia que, para os colonos desembar-carem no Brasil, deveriam ter na bagagem instrumentos de ofício, sementes e outros utensílios destinados ao trabalho agrícola. É curiosa a preferência existente pelo colono ale-mão por parte das elites e do Estado brasileiro. Experiências anteriores eram utilizadas como exemplo do sucesso empre-endedor trazido pela colonização germânica (SEYFERTH, 2002, p.122).

O interesse manifesto do governo provincial pelas terras da região para o estabelecimento de colônias no Vale do Ta-quari não foi suficiente para sua participação efetiva. Esse pro-cesso, a partir de 1850, foi desenvolvido por empresas particu-lares que tiveram empreendimentos maiores que os do Estado. Apesar da participação de empresas particulares, o Estado não abriu mão de buscar o controle sobre o processo de imigração. Nesses empreendimentos, se havia uma participação reduzida por parte do Império, menor seria ainda a da Província, que fi-cava em torno de 1% dos empreendimentos entre 1850 e 1889.

Apesar dessa pouca participação da Província, existia uma previsão legal quanto às condições de chegada dos co-lonos: alojamento, sustento e deslocamento dos imigrantes do desembarque ao destino final. Centros como Rio Grande, Porto Alegre e Rio Pardo eram importantes locais de desem-barque. A concentração geográfica do processo colonizatório no período em questão fez-se nos vales dos Rios Jacuí, Taquari e em seu entorno (KARAM, 1992, p. 43).

Esta etapa caracterizou-se por um processo em expan-são (1845-1870) decorrente da produção de excedentes agrí-colas. Os colonos praticavam a policultura e criavam animais. A essas atividades estava associada a produção artesanal de derivados. Dependiam de relações comerciais com os estabe-lecimentos existentes na região (Ilustração 4).

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Ilustração 4 – Casa de comércio na região de São Leopoldo

Fonte: Disponível em: <http://imigracaoalemanosuldobrasil.blogspot.com>. Acesso em: 29 jul. 2011.

As trocas comerciais decorrentes desse processo deram origem ao comerciante alemão que acumularia capitais ad-vindos da produção colonial. O isolamento das colônias criou condições adequadas para que um grupo de comerciantes pu-desse deslocar os excedentes para a capital da Província, tiran-do proveito da situação por possuírem meios adequados de transporte (KUHN, 2002, p. 91).

Os lucros obtidos pelos comerciantes eram grandes. Também obtinham lucros no transporte de mercadorias e em empréstimos. Com os ganhos, obtinham o capital de giro ne-cessário para novos investimentos, que se ampliaram para a indústria, as empresas de navegação, os bancos, etc. (PESA-VENTO, 1985, p. 49).

A ideia de comerciantes alemães explorando colonos coloca em xeque a tão apregoada “solidariedade” étnica na região. O fato de São Leopoldo estar às margens do Rio dos Sinos criou condições favoráveis para o fluxo comercial com Porto Alegre.

Esse fluxo comercial, ao intensificar-se, trouxe consigo o crescimento populacional de São Leopoldo. Entre 1852 e 1854, quando houve o implemento de embarcações a vapor, deu-se o favorecimento da posição de entreposto e interme-

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diário da região. Essa situação se estendeu até o ano de 1874, quando se estabeleceu a via férrea, ligando Porto Alegre a São Leopoldo e criando novos e diferentes vínculos de comércio (ROCHE, 1969, p. 429-430).

Com a expansão do capital comercial, os comerciantes alemães dominaram não só o comércio de suas colônias. No período pós-1875, com a chegada dos italianos, eles iriam do-minar comercialmente também essas colônias.

A progressiva hegemonia do capital comercial em São Leopoldo criou um fluxo econômico que, se por um lado acentuou as desigualdades sociais na região, por outro criou condições para que ocorresse um crescimento populacional que impulsionasse a ocupação de novas áreas. Mesmo sen-do percebido nessa segunda fase um empreendedorismo que ampliava os espaços econômicos dos imigrantes para a esfera comercial, e a partir de 1870, para a industrial, os problemas não cessaram. Havia precários recursos para a promoção de serviços públicos. Assistência médica, educação e segurança pública passavam longe das áreas coloniais. As demarcações de terras eram imprecisas; os transportes, precários; e as vias de comunicação, mesmo com alguns avanços, ainda deixavam muito a desejar.

6 Conclusão

O Rio Grande do Sul passou, durante o século XIX, pelo processo de imigração e colonização, com a consequente for-mação de pequenas e médias propriedades voltadas para o mercado interno. Viu-se que tal experiência propiciou a for-mação de uma produção destinada ao mercado interno, opor-tunizando uma diversidade produtiva não encontrada no lati-fúndio pecuarista. As diferentes etapas da colonização alemã manifestaram distintos interesses que envolveram o processo colonizatório ao longo do século XIX. Enquanto no Primei-ro Reinado constataram-se interesses na arregimentação de mercenários na Europa, no Segundo Reinado, por conta da proibição do tráfico negreiro, a vinda do imigrante progressi-

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vamente passou a cumprir a função na substituição de braços na lavoura. Viu-se também que, no contexto econômico rio--grandense dominado pelo latifúndio pecuarista, tal impacto não se fez sentir de forma tão rápida, e que o conflito entre la-tifúndio e imigração foi menos intenso por ocuparem espaços e interesses distintos.

A questão da branquidade foi outro elemento importan-te destacado. Ao se colocar em evidência esse ponto, obser-va-se que ele perpassou a questão colonizatória ao longo de todo o século XIX, evidenciando o caráter racista das elites brasileiras. Quando foi abordado o isolamento a que foram submetidas as colônias alemãs, foi chamada atenção para a formação de um “quisto étnico” que forjou uma identidade teuto-brasileira, apesar das diferenças internas existentes nos grupos de imigrantes que vieram para o Brasil.

A ocupação de terras devolutas por colonos e artesãos, a formação de quadros militares, a dinamização de mercado in-terno e outras dinâmicas envolvidas no processo colonizatório alemão no Rio Grande do Sul trouxeram para o estado novas dinâmicas econômicas relacionadas à agricultura, ao comér-cio e à indústria, que romperam com uma cultura latifundiá-ria no estado, mas que não foram suficientes para dirimir as mazelas decorrentes do processo de transição da mão de obra escrava para a livre tanto em nível nacional como regional.

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CAUDILHOS E FRONTEIRIÇOS: A REVOLUÇÃO FARROUPILHA E SEUS

VÍNCULOS RIO-PLATENSES

* Arthur Lima de Avila

A cada 20 de setembro, os sul-rio-grandenses testemu-nham inúmeros desfiles e homenagens aos vultos da Revo-lução Farroupilha. Nas loas ao chamado “decênio heroico”, costuma-se lembrar de como o Rio Grande do Sul, explorado por um Império autoritário e insensível às suas demandas, levantou-se em armas contra a tirania opressora. Neste épico, repetido todo ano de forma relativamente invariável, a luta dos farrapos adquire contornos dramáticos e a sua derrota diante das forças legalistas é o prenúncio de uma dependên-cia indesejada e de um pertencimento forçado ao corpo da nação brasileira.

Em outras palavras, a cada 20 de setembro, os gaúchos lembram de suas diferenças em relação ao resto do País e re-afirmam sua identidade regional, sempre antagônica à sua pertença ao Brasil. Dos escombros de uma derrota honrada em uma ímpia e injusta guerra, surgiu o Rio Grande do Sul, sempre guerreiro, sempre lutador.

Uma das características fundamentais dos mitos não é sua inerente falsidade, mas a sua simplicidade. Um mito, em sua leitura de determinado evento, o reduz às suas partes mais simples, reafirmando dicotomias e transformando algo com-plexo em uma história capaz de ser apreendida rapidamente por aqueles que a recebem. É sob a forma de um mito moder-no, portanto, que os sul-rio-grandenses consomem a história da Revolução Farroupilha.

* Doutor em História pela UFRGS. Professor Adjunto de História da América na FAPA.

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Uma das maneiras de se resgatar a historicidade da maior revolta da História regional é tentar recuperar sua complexida-de e o seu contexto mais amplo, fugindo tanto de dicotomias que celebram acriticamente os feitos dos farrapos quanto de leituras que, em suas próprias tentativas de reestabelecer uma perspectiva crítica sobre a Revolução, acabam elas próprias ali-mentando dicotomias e reducionismos que pouco contribuem para um entendimento mais amplo da Guerra dos Farrapos.1 Por isso, a intenção deste capítulo é inserir a insurreição far-roupilha no contexto mais amplo das guerras civis do Rio da Prata do começo do século XIX, almejando recuperar, assim, os intricados emaranhados que ligavam sul-rio-grandenses, orientales e argentinos em um quadro político mais amplo. Não se trata, entretanto, de recuperar a velha polêmica entre as vertentes “lusitana” e “platina” do debate historiográfico so-bre a Revolução Farroupilha (GUTFREIND, 1992), ele pró-prio reducionista, mas sim de resgatar uma parte da história da Guerra, isto é, sua vinculação com os conflitos platinos, que não é necessariamente explorada de forma mais atenta. Este conflito esteve tanto inserido nas lutas do Brasil do Pe-ríodo Regencial, dizendo respeito à conturbada formação do próprio Estado Nacional brasileiro, mas também às lutas fede-ralistas e às peleias civis do Rio da Prata. Minimizar um des-tes elementos em prol do outro é, assim, minimizar a própria história da Revolução.

O capítulo está, assim, dividido em quatro partes, além da presente introdução e da conclusão. Na primeira, estão de-finidos o conceito de “caudilhismo” e o papel dos caudilhos na formação dos estados nacionais da região do Rio da Pra-ta. Na seguinte, faz-se uma breve recapitulação do atribulado processo de independência do Vice-Reinado do Rio da Prata. No terceiro ponto, foca-se o contexto imediatamente anterior

1 Para o primeiro caso, ver Gutfreind, 1992. Para uma perspectiva crítica bastante reducionista, ver o mais recente trabalho de Juremir Machado da Silva (2010), Uma história regional da infâmia.

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à eclosão da Guerra dos Farrapos. Por fim, a quarta parte está centrada na evolução da Guerra e na relação entre os farrapos e os caudilhos do Prata.

1 Caudilhos e caudilhismos: algumas definições

O contexto platino da primeira metade do século XIX é extremamente atribulado, dadas, principalmente, as extre-mas dificuldades de construção do Estado Nacional pós-inde-pendência nos antigos territórios do Vice-Reinado do Rio da Prata e da escolha de um determinado projeto político para nortear essa mesma construção.

O mote maior destes conflitos foi a luta entre projetos unitários, representados pelos interesses de Buenos Aires e Montevidéu, e federalistas, advogados pelas províncias do in-terior. Em geral, os unitários defendiam a subordinação das províncias a um governo central forte, enquanto que os fe-deralistas, por sua vez, pregavam a ampla autonomia provin-cial e a formação de uma federação fundamentada no modelo norte-americano. Em termos econômicos, os unitários eram favoráveis ao livre-comércio e aos interesses comerciais de Buenos Aires e Montevidéu, enquanto que os federalistas pe-leavam em prol da proteção ao artesanato e às propriedades voltadas ao abastecimento do mercado interno. Não se pode, contudo, simplificar a questão a um mero embate entre “libe-rais” e “conservadores”; tanto no seio dos unitários quanto no dos federales2 existiam tendências radicais e reacionárias.

De qualquer forma, Agustín Cueva (1983, p. 44-45), em seu clássico estudo sobre o desenvolvimento do capitalismo na América Latina, definiu esta clivagem nestes termos:

A oposição entre “interior” e “litoral” não faz mais do que remeter a molduras espaciais em que se assentam ou vão se configurando modos de pro-

2 No texto, usa-se “federales” e “federalistas” como sinônimos.

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dução distintos, cujo desenvolvimento conflitivo se expressa, embora com inúmeras sinuosidades e reviravoltas na encarniçada luta política de “uni-tários” e “federais”.

Esses conflitos também deram origem a um fenômeno tipicamente latino-americano, o chamado “caudilhismo”, que, de acordo com Ariel de La Fuente (2007, p. 19), foi a forma mais significativa de liderança política na América Latina, principalmente na região do Rio da Prata. Tal fenômeno social já foi amplamente investigado pela historiografia rio-platense, desde, pelo menos, a clássica análise de Domingos Sarmien-to em seu “Facundo”. Publicada originalmente em 1845, tal obra era muito mais um manifesto político do que uma análise desinteressada de uma determinada realidade social, no qual Sarmiento atacava os caudilhos platinos como representando a mais profunda “barbárie” e “selvageria” dos “mestiços” latino--americanos (SARMIENTO, 1996).3

Mais recentemente, outros autores tentaram explicar o caudilhismo como sendo um sistema social no qual gru-pos usavam a violência para competir por poder e riquezas (WOLF; HANSEN, 1967). Outros historiadores, ainda, argu-mentaram que os caudilhos representavam uma reação tradi-cionalista contra o avanço da modernidade capitalista e em prol da manutenção de formas de vida tradicionais e da heran-ça hispânica da maior parte das populações rurais, ameaçadas pela intensa imigração europeia à Argentina do século XIX (BURNS, 1980).4

3 A obra de Sarmiento deve ser compreendida como uma intervenção do autor nos embates políticos de seu tempo, na medida em que este destacado intelectual argentino era uma das principais lideranças do Partido Unitário. Neste caso, “Facundo” é um manifesto antirossista e antifederal.4 Os debates historiográficos sobre o caudilhismo tomaram uma dimensão política bem-acentuada na Argentina e no Uruguai das décadas de 1950 e 1960. Para os chamados “revisionistas”, os caudilhos repre-sentavam as grandes primeiras manifestações da “nação” contra as tendências “europeizantes” das elites ur-banas de Montevidéo e Buenos Aires. Sob este ponto de vista, os caudilhos representariam os verdadeiros sentimentos nacionais e populares, enquanto que o liberalismo das elites urbanas era entendido como uma “venda” da pátria aos interesses estrangeiros, especialmente os britânicos. Tal interpretação, levada a cabo por toda uma sorte de intelectuais nacionalistas, tanto à direita, quanto à esquerda do espectro político, vi-sava, evidentemente, dar sustentação às políticas nacionalistas daquele presente – em especial, àquelas de-fendidas pelo peronismo argentino. Ver CATTARUZZA; EUJANIAN, 2003 e DEVOTO; PAGANO, 2004.

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Finalmente, John Lynch (1992) considerou os caudilhos como sendo representantes de setores antagônicos da elite rio--platense, com a principal função de distribuir os despojos de guerra entre essa mesma elite.

O historiador argentino Tulio Halperin Donghi (1972) oferece uma explicação bastante persuasiva para o fenômeno do caudilhismo. Segundo ele, os caudilhos emergiram no ce-nário platino a partir do vácuo político causado pela desinte-gração do antigo Império Espanhol e da dificuldade dos novos Estados nacionais de se consolidar. Nesta condição de ano-mia, a política ruralizou-se e líderes carismáticos conseguiram arregimentar tropas de seguidores, as chamadas montoneras, para servirem aos seus próprios interesses. Isto, segundo o historiador, teria sido a causa fundamental das guerras civis rio-platenses da primeira metade do século XIX. Embora bem plausível, a análise do historiador argentino deve ser matizada com outras mais recentes.

Ariel de la Fuente (2007, p. 20-21), em análise recente, concorda com Halperin Donghi quanto à anomia que permi-tiu a emergência dos caudilhos, mas contesta a ideia de que seus seguidores formavam uma massa ignara e passiva ou a de que os caudilhos eram movidos única e exclusivamente por seus interesses pessoais. Segundo ele, os motivos que levavam os gauchos do interior a seguirem um caudilho eram variados, abarcando desde seu compromisso com as formas cotidianas e tradicionais das relações patrão-cliente, que incluíam a troca de assistência e proteção por lealdade política, até a expectativa de ganhos materiais imediatos. No entanto, como lembra o his-toriador, essas motivações não operavam em um vazio cultural ou político, muito pelo contrário: as relações entre os caudi-lhos e seus seguidores se estabeleceram à luz das lutas políticas em que se desenvolveram as identidades partidárias e políticas mais amplas. Em outras palavras, “las relaciones caudillo-segui-dor generaron asi un espacio para la consciencia política de los

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seguidores y, eventualmente, para la identificación política entre lideres e liderados” (DE LA FUENTE, 2007, p. 21).

Assim como a relação entre os caudilhos e seus segui-dores não pode ser reduzida ao mero efeito de um carisma hipnótico, as relações entre os próprios caudilhos também não devem ser reduzidas a uma simples troca de favores en-tre membros da elite. Como se verá mais adiante, as relações dos caudilhos argentinos e orientais com os caudilhos sul--rio-grandenses também é bastante complexa, operando para além de ideologias políticas e dentro do quadro das estraté-gias necessárias à afirmação do poder regional desses caudi-lhos. Sendo assim, estas vinculações obedeciam tanto às ló-gicas político-ideológicas mais amplas, quanto aos contextos sociais e políticos mais imediatos dos conflitos rio-platenses e sul-rio-grandenses.

2 Unitários X Federalistas: uma definição de rumos

A origem do conflito entre unitários e federales está no próprio tumultuado processo de emancipação do Vice-Reinado do Rio da Prata. Já em princípios do Movimento de Maio, de 1810, que declarou a independência de fato da antiga colônia espanhola, ocorreu um embate entre posições centralizadoras e outras que se opunham a esta tendência, formando um con-texto político virulento que não tardou em se transformar em conflito aberto.

Enquanto que Buenos Aires e, em menor escala, Montevi-déu tentavam, cada uma a seu modo, liderar e subjugar o interior aos seus próprios interesses, os federalistas resistiam arduamen-te às tendências centralizadoras, defendendo arranjos políticos que permitissem ampla autonomia às províncias internas.

Um dos maiores representantes, se não o maior, do fe-deralismo foi o caudilho uruguaio José Gervasio Artigas. Ao contrário de outras lideranças do movimento independentis-ta, Artigas não tivera uma formação intelectual apurada, tam-

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pouco pertencia à elite local. Durante sua juventude, fora peão de estância e contrabandista na fronteira com o Continente de São Pedro. Graças a esta experiência fronteiriça, ele acaba-ria, paradoxalmente, sendo alçado ao cargo de chefe do Cor-po de Blandengues, milícia que se destinava à repressão do contrabando e à perseguição dos “vagos” da campanha. Ten-do resistido às invasões inglesas de 1806, Artigas juntou-se às lutas pela independência do Vice-Reinado em 1811, lideran-do as tropas da Banda Oriental e tornando-se, assim, um dos principais personagens na luta contra os espanhóis. Contudo, para além de seu valor militar, Artigas terá uma importância ideológica e política bastante pronunciada durante as lutas no Prata, na medida em que se tornará arquiteto e porta-voz do federalismo local, sempre em oposição aos impulsos centralis-tas de Buenos Aires e Montevidéu.

A gênese do conflito entre Artigas e os unitários está, em parte, relacionada ao turbulento processo de organização política do novo Estado, representado pela recusa dos cons-tituintes unitários de 1812 em aceitar os representantes de Artigas durante o processo de elaboração de uma Carta Mag-na que pudesse ordenar as tumultuadas Províncias Unidas. Como colocou Sala de Touron (1978, p. 58), esta manobra era uma tentativa de impor a ditadura do capital comercial e dos terratenentes bonaerenses e, assim, garantir a acumulação pri-vilegiada dos setores políticos dominantes.

Isto refletiu em seu papel na criação da Liga dos Povos Livres, em 1814. Esta Liga compreendia os territórios federa-dos do chamado “Litoral” argentino (Entre Ríos, Corrientes e Misiones) e a Banda Oriental. Em 1815, durante o Congresso dos Povos Livres, Artigas e seus aliados do interior estabelece-ram não só a federação como forma de governo da Liga, com as províncias mantendo ampla autonomia, mas também apro-varam os planos artiguistas de uma ampla reforma agrária na região. Assim, o federalismo de Artigas tinha uma coloração radical, especialmente se comparado com as tendências con-servadoras emanadas por portenhos e montevideanos.

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Os planos reformistas de Artigas, especialmente os agrários, causaram um formidável temor não só no conser-vador Diretório geral das Províncias Unidas, sediado em Bue-nos Aires, e que respondia, ou tentava responder, pelo poder executivo das Províncias Unidas, mas também entre os es-tancieiros do Continente de São Pedro, temerosos de que as ideias “subversivas” de Artigas pudessem encontrar respaldo entre a população desfavorecida local. De acordo com o pla-no de Artigas, as enormes propriedades locais deveriam ser parceladas em pequenos lotes e divididas entre índios, negros libertos e brancos pobres, com o intuito de se criarem peque-nas propriedades diversificadas e produtivamente superiores aos imensos latifúndios locais. Além disso, Artigas também buscava fortalecer o mercado interno, limitando a ação de co-merciantes estrangeiros aos portos e proibindo sua atuação no interior (GUAZZELLI, 2003, p. 162). Desta forma,

(...) o programa agrário de Artigas, (...), provocou tremores em Buenos Aires e no Rio Grande, áreas vizinhas de economia pecuária baseada na grande estância, nos comerciantes de Montevidéu, muitos dos quais proprietários e já sujeitos a contribuições forçadas, e terminaria por afastar de suas hostes diversos “terratenientes” que o tinham seguido para evitar a dominação dos unitários portenhos. (GUAZZELLI, 2003, p. 163)

Como Artigas possuía o apoio da maior parte dos pobres do campo, simbolizado no formidável episódio do “Êxodo do Povo Oriental”,5 existia o temor de que as reformas almejadas por ele pudessem ser de fato efetivadas. Por outro lado, não só os abastados de Buenos Aires temiam Artigas: o governo por-tuguês temia que o federalismo republicano radical de Artigas

5 O “Êxodo” foi a emigração coletiva dos Orientais em 1811. A grande maioria da população da campanha, liderada por Artigas, fugiu para a Província de Entre Ríos, na Argentina. É considerado o nascedouro do sentimento nacionalista uruguaio.

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pudesse se espalhar pelo Continente de São Pedro e estimular uma rebelião cujas consequências poderiam ser inimaginá-veis. Deste modo, como uma reação à “anarquia” defendida pelos artiguistas, 4 mil soldados luso-brasileiros invadiram a Banda Oriental primeiramente em 1811, intervindo contra as hostes artiguistas. Isto se repetiria em 1816, com o implícito apoio de Buenos Aires e sob o júbilo da elite montevideana, quando a região acabou sendo incorporada ao Império Portu-guês sob o nome de “Província Cisplatina”.

Como colocou Guazzelli (2003, p. 163), “os rio-gran-denses com suas milícias irregulares penetravam pela campa-nha, forçando os artiguistas a uma guerra defensiva”. É a partir deste momento histórico que o Rio Grande do Sul entra no conturbado cenário das lutas rio-platenses – o que, como se verá, ajudaria na eclosão da Guerra dos Farrapos.

O governo português tinha razão em temer o avanço dos ideais artiguistas federalistas pelo Continente. Da primeira in-tervenção luso-brasileira na Banda Oriental, fez parte o futuro chefe farrapo Bento Gonçalves, que anos antes havia se esta-belecido em Cerro Largo, onde adquiriu terras e exerceu fun-ções administrativas. Segundo Guazzelli (2004, p. 91), existem evidências suficientes de que o jovem Bento teria aderido às forças artiguistas, simpatizando com suas ideias federalistas, só abandonando-as depois da conquista luso-brasileira.

Além de Bento, outras futuras lideranças farrapas tam-bém teriam participado da intervenção ou militado pela causa de los federales: “mesmo sem influências mais radicalizadas, a presença de Bento Gonçalves e de outros tantos chefes da fronteira em território oriental permitiu-lhes o convívio com as propostas federalistas que circulavam amplamente pelo Pra-ta” (GUAZZELLI, 2004, p. 92). Aqui, é preciso lembrar-se da tumultuada relação que historicamente os sul-rio-grandenses tinham com o poder central. Se por um lado, o governo cen-tral necessitava da sua força militar para manter a fronteira em

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paz, por outro, lhe custava extremamente cara a manutenção da fidelidade dos “senhores da guerra” fronteiriços, na medida em que certos comportamentos e práticas, como o contraban-do, por exemplo, minavam esta mesma autoridade central.

Segundo Guazzelli (2004, p. 93), o contato com as ideias federalistas do Prata resultou em uma sustentação ideológica para as diversas reclamações dos fronteiriços contra o Rio de Ja-neiro e, de forma mais extrema, forneceu-lhes com um exemplo prático de luta contra uma pretendida centralização política.

No entanto, a tomada da Banda Oriental inicialmente representou uma situação de conjugação dos interesses tanto dos estancieiros do Sul quanto do poder central:

A política bragantina, por um lado, ampliava as possessões portuguesas na América, ao mesmo tempo em que refreava os ímpetos republicanos que vinham do Prata; os rio-grandenses, por outro, viam a possibilidade de ampliarem suas estâncias e rebanhos. (GUAZZELLI, 2004, p. 93)

Ademais, espantavam-se os temores das reformas ar-tiguistas e tranquilizavam-se os estancieiros orientais.6 O governador Lecor restabeleceu os direitos de propriedade daqueles que haviam sido expropriados e anulou as doações compulsórias de terras, revertendo, assim, o projeto artiguis-ta e sedimentando o poder daqueles que se opuseram a Ar-tigas e suas montoneras. Não é de se espantar, portanto, que os luso-brasileiros tenham sido recebidos com júbilos pelos habitantes de Montevidéu, e que, nas novas circunstâncias, antigos aliados de Artigas, como Fructuoso Rivera, acabaram aliando-se às forças invasoras – muitas vezes com o intuito de fazer valer seus próprios projetos pessoais.

6 Artigas foi definitivamente derrotado pelas forças luso-brasileiras em 1820. Mais tarde, o “general dos simples” e, segundo Eduardo Galeano (2004, p. 174), “o homem que não queria que a independência das Américas fosse uma emboscada contra seus filhos mais pobres”, partiu para o exílio no Paraguai, não retornando jamais à sua terra natal. Com a derrota de Artigas, fracassou o único projeto emancipacionista realmente progressista na região platina.

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A principal consequência da anexação da Cisplatina foi, segundo Fábio Kühn (2002, p. 79), o benefício econômi-co da elite sul-rio-grandense. Ocorreu progressiva ocupação dos campos do norte da Banda Oriental por parte dos luso--brasileiros (o que desagradou significativamente parte dos estancieiros orientais) e os comerciantes do Rio Grande do Sul se instalaram em Montevidéu, ajudando, assim, no estí-mulo às charqueadas sul-rio-grandenses, que se beneficiavam do fluxo de gado vindo dos campos da Cisplatina.

3 Rumo à Guerra

A presença luso-brasileira na Banda Oriental também serviu para sedimentar os laços entre os diversos caudilhos fronteiriços, com o estabelecimento de alianças políticas e vín-culos pessoais. Bento Gonçalves e o antigo líder artiguista Juan Antonio Lavalleja, e futuro líder da sublevação que declararia a independência unilateral da Banda Oriental em 1825, pos-suíam uma forte ligação pessoal, assim como Bento Manoel Ribeiro e Fructuoso Rivera, o inconteste caudilho oriental das décadas de 1830 e 1840. Essas alianças seriam fundamentais durante a condução da Guerra dos Farrapos.

Por outro lado, a presença massiva dos estancieiros luso-brasileiros no norte da Cisplatina gerou uma enorme insatisfação entre os terratenentes orientais. Estima-se que cerca de 15 milhões de reses foram levadas da Cisplatina ao Rio Grande do Sul, causando um esvaziamento dos campos e prejudicando a recuperação econômica da província, já bas-tante desgastada pelos anos de guerra. Além disso, Montevi-déu progressivamente passou a perder importância para Rio Grande, como o principal porto de escoamento da produção pecuária local.

Lentamente, os mesmos que apoiaram a intervenção brasileira passaram a questioná-la, na medida em que passa-ram a considerar os brasileiros como parceiros indesejáveis.

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Igualmente, os porteños, que nunca desistiram da total incor-poração da Banda Oriental às Províncias Unidas, passaram a reivindicar a saída das tropas invasoras, sob o argumento de que existia uma “comunhão histórica” entre as partes do anti-go Vice-Reinado do Rio da Prata (GUAZZELLI, 2003, p. 94).

Estas tensões foram acumulando-se até 1825, quando estourou a Guerra da Cisplatina, que envolveu o Brasil recém--independente, a Confederação Argentina e as tropas rebeldes Orientais. Essa guerra, extremamente penosa para os estan-cieiros sul-rio-grandenses, culminou com a independência da Banda Oriental em 1828, sob o nome de República Oriental do Uruguai, mesmo que os limites entre o Império e o novo Estado ainda não estivessem bem-estabelecidos.

Ao mesmo tempo em que o conflito armado estourava em suas fronteiras meridionais, o Império Brasileiro passava por um período de intensa turbulência política. Isto era con-sequência, principalmente, do antagonismo entre os setores políticos que defendiam uma centralização política e aqueles que peleavam em prol de um sistema federativo de governo.

Em 1824, Dom Pedro I havia outorgado uma Constitui-ção excessivamente centralizadora ao jovem País. Entre outras coisas, o documento previa a nomeação dos presidentes das províncias – o que desagradava bastante as elites locais, espe-cialmente no Rio Grande do Sul.

A relação entre o poder central e as elites sul-rio-grandenses tornou-se ainda pior, na medida em que os estancieiros do sul perderam seus campos no Uruguai e não haviam sido com-pensados pelas suas perdas materiais. Em outras palavras, o Império não só retirava dos terratenentes a possibilidade de expansão de seus campos e da atividade pecuária, como tam-bém se recusava a pagar por suas perdas e, para completar o quadro de tensões, diminuía consideravelmente sua autono-mia política. Apesar da abdicação de Dom Pedro I e o cha-mado “Avanço Liberal” do princípio da década de 1830, esta situação não melhoraria.

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Entre outras coisas, as medidas do chamado “Avanço Li-beral” incluíam a criação da Guarda Nacional (1831), braço armado das elites locais; a aprovação do Código de Processo Criminal (1832), que criava o cargo de Juiz de Paz eleito lo-calmente; e o Ato Adicional (1834), que criava as Assembleias Legislativas estaduais com representantes localmente eleitos. Todas essas medidas previam uma descentralização do poder, nas suas diferentes esferas, conferindo às elites certa autono-mia e o controle dos poderes policial, judicial e legislativo. O que deu errado, então? Por que os sul-rio-grandenses, apesar dos avanços liberais, mantiveram-se em estado beligerante contra o governo central, agitando a bandeira do federalismo? O que, enfim, levou à eclosão da Guerra dos Farrapos?

É neste ponto que os contextos platino e brasileiro con-vergem. Como colocou Guazzelli (2004, p. 94-95), a invasão da Banda Oriental possibilitou um grande incremento no estoque de terras de qualidade superior aos campos do Rio Grande, o que justificou a pronta adesão dos estancieiros ao projeto expansionista, mesmo entre aqueles que simpatizaram com a causa artiguista. As terras ao norte do Rio Negro atraí-ram uma grande quantidade de sul-rio-grandenses, mas tam-bém geraram intensos conflitos com os orientais – o que não interessava ao poder central. Continua Guazzelli (2004, p. 95):

Se a produção de charque, subsidiária da econo-mia escravista do centro, fosse viabilizada por orientais ou rio-grandenses, isso tinha menor im-portância, mas não podiam ser admitidos trans-tornos à reorganização produtiva e atritos com no-vos súditos, e foi justamente isto que promoveram os rio-grandenses.

A criação do Estado uruguaio e o combate ao contra-bando de gado promovido por ambos os governos limitava a possibilidade de expansão dos campos dos estancieiros sul--rio-grandenses, privando-os daquilo que um dia fora uma

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rica aquisição econômica. Ademais, outros dois elementos desagradavam profundamente os senhores da guerra do Sul: em primeiro lugar, a derrota militar de 1828 era atribuída à inépcia das lideranças militares enviadas pelo poder central. Na visão dos fronteiriços, o Império não só havia causado a derrota, mas se recusava a pagar por ela. Em segundo lugar, esta mesma elite estava perfeitamente consciente de seu papel subalterno dentro do esquema político e econômico do Impé-rio. Sua importância dependia de seu papel de guardiões da fronteira meridional, na medida em que sua produção econô-mica era apenas subsidiária do centro do País – o mesmo cen-tro que também causava problemas na definição dos limites com o Uruguai. Isto potencializou a dissidência com o Impé-rio, independente das medidas liberais tomadas após a abdi-cação de Dom Pedro I. De acordo com Guazzelli (2004, p. 96),

Derrotados econômica e militarmente, desconside-rados em relação aos assuntos fronteiriços, os che-fes do Rio Grande não podiam pensar-se integrados a uma grande e poderosa unidade política. Por ou-tro lado, assistiam a uma província vizinha, (...), constituir-se num Estado.

Para completar a situação desfavorável, a recupera-ção econômica da Banda Oriental causava uma indesejável competição com o Rio Grande, na medida em que o poder central recusava-se a proteger a pecuária sul-rio-grandense. Mas a perda da Cisplatina não atingiu todos os grupos de forma igualitária: os produtores, muito mais do que os char-queadores, foram os reais prejudicados pela política econô-mica do Império.

Os criadores sofreram com a proibição do trânsito de reses do Rio Grande para o Estado Oriental e com a criação de postos aduaneiros para a coleta das taxas de exportação. Considerando que os impostos de importação eram muito mais baixos, os produtores eram prejudicados, enquanto que

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os charqueadores tinham garantido seu abastecimento. Além disso, os charqueadores eram sócios minoritários de grandes atacadistas do Rio de Janeiro, em sua maioria portugueses, o que levava os fronteiriços a acusarem o Império de favorecer o partido português e seus “interesses estrangeiros”. Assim, o li-beralismo do Império privilegiava os exportadores do centro, que preferiam o charque uruguaio, mais barato do que o do Rio Grande, enquanto que os criadores do Sul demandavam a proteção de seus produtos.

A política imperial era justificada, em parte, pela ne-cessidade de se manter uma Banda Oriental economicamen-te viável e impedir, assim, sua incorporação à vizinha Con-federação Argentina. Tais medos eram justificáveis, uma vez que tanto unitários quanto federalistas tinham a pretensão de reincorporar o Uruguai à Confederação – o que gerava in-tervenções constantes na política interior do fragilizado país. Aliás, a perda da Banda Oriental não havia sido aceita pelos unitários portenhos, que, liderados por Juan de Lavalle, pro-moveram uma insurreição que acabou com a morte do Pre-sidente da Confederação, Manoel Dorrego, em 1829. Foi esta rebelião unitária, fracassada, que possibilitou a ascensão de Juan Manoel de Rosas, que, por quase três décadas, governaria como o líder de fato da Confederação Argentina e cuja políti-ca externa teria reflexos profundos na sul da América. Como coloca Guazzelli (2004, p. 98), “a partir de então, Rosas lutaria pela reconstituição do antigo Vice-Reinado, tentando reincor-porar o Estado Oriental”.

A política interna do Uruguai também tinha reflexos imediatos no Rio Grande: Dom Fructuoso Rivera havia ascen-dido ao cargo de presidente do recém-criado país, eleito pela Assembleia de 1830. No entanto, a ascensão de Rivera deixava em segundo plano outro importante caudilho uruguaio, Juan Antonio Lavalleja, antigo militante artiguista e um dos 33 uru-guaios que declararam a independência unilateral de 1825. La-valleja, como se viu, era próximo de Bento Gonçalves, então

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comandante das tropas da fronteira, e não tardou a buscar uma articulação com o líder sul-rio-grandense. Por sua vez, os se-nhores da guerra do Rio Grande também desgostavam tanto do Império, quanto de Rivera – este último estava se engajan-do no combate ao contrabando e recusava-se, assim como o Império, a ressarcir os produtores brasileiros por suas perdas. Desta forma, Lavalleja buscou auxílio e refúgio no Rio Grande, gerando intermináveis dores de cabeça para a diplomacia de ambos os países.

Tanto os representantes do Estado Oriental quanto os do Império brasileiro vigiavam atentamente os movimentos dos caudilhos Lavalleja e Gonçalves. A proteção dada por este àquele era motivo de inúmeras reclamações por parte dos uru-guaios, que acusavam Bento Gonçalves de estar dando guarida a um anarquista e de estar envolvido em um plano para der-rubar Rivera e, do mesmo modo, para separar o Rio Grande do Império. Temerosa de que uma insurreição aberta pudesse se degenerar em uma nova guerra na Banda Oriental, a Cor-te exigiu providências do Presidente da Província, Antonio Rodrigues Fernandes Braga, contra Bento Gonçalves e outros senhores da guerra que agiam por conta própria e em contra-riedade da política imperial de “neutralidade” em relação ao Prata. Quando Fernandes Braga propôs trocar os comandantes da fronteira, a reação foi a sua deposição no dia 20 de setembro de 1835. Iniciava a Revolução (GUAZZELLI, 2004, p. 104-105).

4 Farrapos e caudilhos

A principal bandeira dos farrapos era, para além de suas questões pessoais e de seus interesses materiais, a do velho fe-deralismo platino, sem, contudo, os contornos mais radicais da vertente artiguista. Em seus primeiros momentos, este fe-deralismo ainda não tinha os contornos separatistas que ad-quiriria mais tarde. As próprias justificativas de Bento Gon-çalves para a rebelião demonstram isto:

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Conheça o Brasil que o dia vinte de setembro de 1835 foi a consequência inevitável de uma má e odiosa administração; e que não tivemos outro objeto, e não nos propusemos a outro fim que res-taurar o império da lei, afastando de nós um ad-ministrador inepto e faccioso sustentando o trono constitucional do nosso jovem monarca e a inte-gridade do Império. (ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL, 1985, p. 268)

Nos documentos seguintes, Bento Gonçalves sempre afirmava que a rebelião era, acima de tudo, um ato “patriótico”, destinado a substituir um governo “inepto” e “antinacional” por um “ilustrado” e “liberal”, que respeitasse as autonomias provinciais (ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL, 1985, p. 274-275). Por que, então, houve a separação e a proclamação da República Rio-grandense? Mais uma vez, tem-se de trazer à tona os vínculos com a região do Prata.

Em 1835, Manoel Oribe, antigo aliado de Lavalleja e pró-ximo de Rosas, havia ascendido à Presidência da República do Uruguai. O recém-empossado presidente era inimigo de Rive-ra e uma das primeiras medidas de seu governo foi justamente nomear uma comissão para investigar as contas da administra-ção de seu antecessor. Rivera, que ainda mantinha o cargo de Comandante da Campanha, rebelou-se contra Oribe em julho de 1836.7 Rivera, derrotado, buscou refúgio no Rio Grande; isto, segundo Guazzelli (2004, p. 106), teria deixado Oribe em uma situação complicada e este teria condicionado seu apoio aos rebeldes brasileiros à sua separação definitiva do Império.

Em 11 de setembro de 1836, após a estrondosa vitória contra as tropas legalistas no Seival, Antonio de Souza Netto declarou a independência da República Rio-grandense.

7 Os conflitos entre Oribe e Rivera foram a gênese do surgimento dos dois tradicionais partidos uruguaios: o partido Colorado, fundado por Rivera e, durante o século XIX, defensor do liberalismo econômico e próximo dos unitários portenhos, e o partido Nacional (blanco), fundado pelos oribistas, que defendia o protecionismo e estava vinculado à produção primária e aos federalistas argentinos.

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À medida em que se vinculavam ao apoio de Oribe, os republicanos do Rio Grande logo estabeleceram relações com os blancos uruguaios e os federalistas argentinos. Oribe per-mitiu o livre trânsito de reses, cavalos, homens e munição pela fronteira e, ainda, o acesso ao porto de Montevidéu aos re-voltosos (Rio Grande estava em mãos legalistas). Da mesma forma, os representantes diplomáticos da República buscaram obter apoio material de Rosas. Este, por sua vez, condicionou seu apoio ao empenho dos chefes farroupilhas em capturar Rivera, inimigo dos rosistas e aliado aos unitários. Isto esta-va, evidentemente, fora da capacidade militar e material dos farrapos. Ademais, tanto Rosas quanto Oribe temiam fornecer um apoio explícito aos insurretos, o que poderia ser entendido como um ato de guerra contra o Império.

Isto causou uma mudança de rumos na diplomacia republicana, afastando-a dos federalistas e blancos e aproxi-mando-a dos colorados e unitários. Com o retorno de Bento Manuel Ribeiro às tropas farroupilhas veio o apoio de Rivera. O caudilho uruguaio citava, entre outras coisas, o seu esforço comum contra “governos tirânicos” e, antevendo seu retorno ao cargo máximo de seu país, se dispunha a fornecer arma-mentos e cavalos para os farrapos. Disponibilizava-se, tam-bém, a devolver os escravos fugidos à Banda Oriental aos seus legítimos donos e a perseguir legalistas refugiados no Uruguai (GUAZZELLI, 2004, p. 109).

As relações com Rivera, que voltaria à presidência uru-guaia em 1839, se mantiveram em boas condições, culminan-do com o Tratado de San Fructuoso, de dezembro de 1841, que simbolizava o apoio efetivo de Rivera e dos unitários argenti-nos da província de Corrientes aos republicanos. Isto acabou significando o afastamento definitivo dos farrapos em relação a blancos e a rosistas, mesmo que, na prática, seu federalismo estivesse muito mais próximo destes do que do liberalismo centralizador de unitários e colorados.

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No entanto, a derrota de Rivera contra as forças combi-nadas de federales e blancos, em dezembro de 1842,8 reduziu as possibilidades de apoio material efetivo do caudilho uruguaio à República, já combalida por sucessivas derrotas militares e pela perda constante de territórios. Além disso, Bento Manuel, o fiel da balança do conflito, havia uma vez mais voltado a lutar pelo Império. Finalmente, dentro da Assembleia Farrou-pilha, os conflitos entre a maioria, aliada de Bento Gonçalves, e a minoria, oposicionista, tomava contornos extremamente virulentos, culminando com a renúncia de Bento Gonçalves, presidente da República Rio-grandense, em agosto de 1843.

Na Banda Oriental, o domínio que os blancos impuse-ram à campanha, isolando Montevidéu (bastião Colorado), também impediu que os farrapos pudessem escoar sua pro-dução e comercializar com outras praças. Como Rio Grande continuava em mãos legalistas, era uma questão de tempo para que a enfraquecida república se tornasse inviável economica-mente. A paz tornava, assim, uma condição possível, já que o Império também desejava a pacificação da fronteira, temeroso de que um Rio Grande fragilizado pudesse servir de ponta de lança para uma invasão argentina.

Em março de 1845, enfim, foi assinado o Tratado de Ponche Verde, que encerrava a guerra em condições honro-sas para os farrapos. Como demonstra Fábio Kühn (2002, p. 85-86), foram inúmeras as concessões feitas pelo Império aos farrapos: foi permitida, aos sul-rio-grandenses, a escolha do novo presidente da província; os oficiais militares farroupi-lhas foram anistiados e reincorporados ao Exército imperial; as dívidas farroupilhas foram assumidas pelo governo impe-rial; e, finalmente, decretou-se um imposto de 25% sobre o charque platino.

8 Isto daria início a mais um ciclo de guerras civis no Prata, a chamada “Guerra Grande”, que só se encer-raria em 1851.

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A “paz sem vencedores nem vencidos”, preconizada em Ponche Verde, se explica por uma série de fatores. Em primei-ro lugar, os farrapos pertenciam à elite local e sua revolta não significava uma ameaça à ordem social do Império. Em se-gundo, o governo imperial necessitava da experiência militar dos sul-rio-grandenses enquanto guardiões da fronteira me-ridional. Por fim, avizinhava-se mais uma guerra no Prata, já que Rosas intervia cada vez mais na política interna uruguaia, ameaçando os interesses estratégicos brasileiros na região. Um Rio Grande do Sul forte era, deste modo, uma condição essen-cial para luta contra as forças rosistas.

5 Conclusão

Este capítulo se propôs a explicar o contexto “platino”, por assim dizer, da Revolução Farroupilha, seguidamente ne-gligenciado pela mitificação dos heróis do “decênio heroico”. Isto não significa, entretanto, minimizar o papel da insurreição na formação do Estado Nacional brasileiro e sua vinculação com diversas outras rebeliões contra o poder central ocorridas no mesmo período – algumas, aliás, com um corte muito mais radical do que a dos farrapos. Significa, apenas, complexificar a narrativa sobre a Guerra, tornando-a algo muito mais com-plicado do que uma simples revolta dos sul-rio-grandenses contra um Império tirânico e cruel, aquela “ímpia e injusta” guerra mencionada no hino rio-grandense. Ao recuperar as peças deste quebra-cabeça, pode-se ajudar na reconstrução de um passado novo e desmistificado para o Rio Grande, sem os excessos ideológicos que parecem pulular à simples menção do termo “Revolução Farroupilha”.

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DA COLÔNIA AO IMPÉRIO: UMA ANÁLISE DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

* Ana Regina Falkembach Simão

1 O Brasil colonial e a política externa lusa

Refletir sobre a história da política externa significa ob-servar as questões que envolvem diretamente a condução e a relação que o governo de determinado estado tem para com outros governos e estados.1 Essa relação entre governos/esta-dos se dá em distintas áreas: geossociais, geoculturais, geopo-líticas e geoeconômicas. Desta forma, os contenciosos, as pos-sibilidades de cooperação, assim como os distintos processos de inserção ocorrem dentro de um sistema que é internacional. Portanto, é no sistema internacional que se configura o locos da política internacional que, em última instância, acolhe a com-posição das distintas políticas externas.

Especificamente no que diz respeito à história da políti-ca externa do Brasil, se observa que, durante o período colo-nial, não houve nenhum traço de inflexão em relação à políti-ca externa lusa. Os valores e os interesses da Coroa portuguesa estiveram presentes e conduziram a política externa da colô-nia por mais de dois séculos. Dentre os interesses de Portugal, a região do Prata e as questões políticas e econômicas com o Reino de Espanha sempre tiveram destaque. Portanto, em virtude da importância que a região platina exerceu na agenda lusa, sobretudo durante os séculos XVII, XVIII e XIX, o Rio Grande do Sul se tornou o cenário e o protagonista de muitos tratados promovidos pelas duas Coroas.

* Doutora em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de Relações Interna-cionais, na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Sul) e na Universidade Luterana do Brasil.1 Embora a política externa expresse interesses de estado, a sua formulação conta com a participação de atores não estatais, a exemplo de empresários, acadêmicos, partidos políticos.

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Para a análise da relação conflituosa entre portugueses e espanhóis na Região Platina, torna-se importante considerar alguns aspectos significativos da história dessa região. Primei-ramente, observa-se que a defesa e a demarcação das fronteiras do Brasil meridional em nenhum momento foram movidas por nacionalismos. A ideia de Estado, de pátria e da própria importância de defesa do território nacional não fazia parte do desiderato luso e espanhol. Os interesses eram absoluta-mente localizados e regionalizados, e não envolviam a ideia de nação. Em segundo lugar e como consequência direta do as-pecto anteriormente citado, os representantes das distintas co-roas, assim como os proprietários de terras e os comerciantes, que inclusive se envolviam pessoalmente nestes conflitos, não foram motivados por sentimentos nacionalistas. Diante desta percepção, a ocupação da região Sul do Brasil e os conturba-dos tratados que Portugal e Espanha firmaram entre o século XVI e a primeira metade do século XIX não foram frutos de heroísmos, capazes de inspirar cenas dignas de filmes épicos, mas sim resultados da dinâmica política e econômica própria da época, na qual o Brasil, mesmo considerando os significati-vos momentos de autonomia, se inseriu de forma dependente ao capitalismo norte-atlântico-mediterrâneo.

2 O Rio Grande do Sul no contexto colonial

A ocupação luso-brasileira do Rio Grande do Sul foi um processo histórico complexo e profundamente condi-cionado pelas necessidades e pela realidade política e social da época. De fato, no processo de exploração colonial, o Rio Grande do Sul não se enquadrava exatamente em nenhum dos dois modelos clássicos de produção da época: exploração de riquezas naturais e produção agrícola.2 É crível que esta região não participara do projeto plantacionista, que marcou

2 Sobre o modelo de colonização brasileira fundamentado na “plantation”, cabe a análise da obra de Caio Prado Júnior, A Formação do Brasil Contemporâneo.

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a produção do açúcar, e nem da exploração do ouro.3 Nes-te contexto, portanto, o Rio Grande do Sul integrou-se tar-diamente ao restante do Brasil colonial. Somente no século XVII, quando a economia açucareira do Nordeste começara a entrar em crise e Portugal perdera parte de suas possessões no Extremo Oriente, a Coroa portuguesa resolveu estender seus negócios para a região do Prata. Uma importante contri-buição para o aumento do interesse na região foi a fundação de Buenos Aires, em 1580.

De fato, com a fundação de Buenos Aires, os comercian-tes lusos se lançaram no mercado colonial espanhol, alterando a dinâmica do comércio do platino. Estes pioneiros introdu-ziram “os produtos ingleses na cidade, furando, deste modo, o exclusivo comércio colonial espanhol e captando para si a prata peruana” (KÜHN, 2004, p.30). Outro motivo que impul-sionou a entrada dos comerciantes lusos no mercado espanhol na Região Platina foi o longo período de “União Ibérica”, na qual Portugal ficou sob dominação espanhola, durante os anos de 1580 a 1640.4 Por vários anos, os comerciantes iriam soli-citar inutilmente à Coroa portuguesa a fundação de um posto de domínio português na região do Prata. Mas isso só aconte-ceria após a chegada dos Bragança ao trono de Portugal, colo-cando fim à União Ibérica, e com a expulsão dos comerciantes portugueses de Buenos Aires. Nascia, assim, o primeiro posto luso na região, denominado Colônia de Sacramento.

Comandada por Manuel Lobo, governador do Rio de Ja-neiro, a expedição que fundou a Colônia de Sacramento, em 1680, em terras espanholas, trouxe consigo além do ethos do

3 Cabe ressaltar que, segundo alguns historiadores, como Francisco Carlos Teixeira da Silva e Ciro Flama-rion Cardoso, esse modelo fundamentado no “plantation” é reducionista, na medida em que aponta fun-damentalmente para a existência os dois polos da estrutura social – senhores e escravos – e não observa a importância do pequeno proprietário rural, assim como não considera a própria complexidade da realida-de econômica-social da Colônia e da relevância das áreas periféricas do Brasil no processo de colonização.4 Após a crise da Coroa portuguesa dos anos de 1578 a 1580, e com a morte do cardeal D. Henrique, não apenas o trono de Portugal ficou vago como a Coroa lusa passou para as mãos de Felipe II, Rei de Espanha, dando início ao período denominado de União Ibérica.

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expansionismo luso da época, a possibilidade de ampliação do comércio e do contrabando de escravos e de gado (SIMÃO, 2002, p. 33). Portanto, o golfão do Prata se constituía em uma região estrategicamente importante por várias razões: tanto pela quantidade de gado vacum selvagem existente nas pro-ximidades, como pelo “gigantesco mercado de mão de obra servil. Buenos Aires, Colônia de Sacramento e Montevidéu, mercê de sua situação geográfica, tanto recebiam facilmente a carga dos navios negreiros como a distribuíram pela região” (CESAR, 1978, p.19).

Para além destes aspectos econômicos, a fundação da Colônia de Sacramento pelos portugueses, na margem norte do Rio da Prata, em frente a Buenos Aires, marcou também um novo momento na história dos contenciosos protagoni-zados pelas duas Coroas europeias. Portugal perderia a posse da Colônia de Sacramento por duas vezes: a primeira, já em 1680, logo após sua fundação; e novamente em 1705, ambas as vezes pela força e pelas armas de Espanha. Em 1715, por meio do Tratado de Utrecht, a Colônia de Sacramento retor-naria para Portugal. Como observa Fábio Kühn (2004, p.33), “aquilo que Portugal perdia no campo de batalha, conseguia reaver pela atuação bem conduzida de sua diplomacia”. Com a refundação da Colônia de Sacramento, em 1716, um período de aquecimento econômico se inicia na região. No entanto, mesmo com a consolidação do poder luso em Sacramento, a Coroa espanhola buscaria preservar o controle sobre a área, fundando Montevidéu, em 1726.

Com Montevidéu de um lado e Buenos Aires de outro da margem do Prata, a coroa espanhola comandava o comércio na região e, sobretudo, as possíveis pretensões expansionistas portuguesas. Diante do frágil e pouco estável controle sobre a região de Sacramento, Portugal se empenharia em “tomar ofi-cialmente posse da terra compreendida entre Laguna e o Pra-ta”, enviando “[...] a expedição de Brigadeiro José Maria Pais,

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que, em 1737, fundou a fortaleza-presídio de Jesus-José-Maria em Rio Grande” (PESAVENTO, 1990, p.20). Desta forma, o Rio Grande do Sul surge definitivamente no contexto colonial brasileiro, configurando-se em um posto militar importante na manutenção do domínio luso na região.

Evidentemente não desconsiderando a relevância eco-nômica da região, em especial no que tange à expressiva im-portância no comércio de gado, o Rio Grande do Sul passaria a ter forte expressão militar durante a segunda metade do pe-ríodo colonial. Ao assumir um projeto de concretizar no Sul do Brasil um espaço de defesa militar, a Coroa lusa criou, em 1738, a Comandância Militar do Rio Grande de São Pedro, com sede em Santa Catarina. A partir dessa Comandância, foi estabelecido um regimento de Dragões que teria como missão a defesa da região. Conforme observado pelos historiadores, a partir de Rio Grande, o processo de distribuição das sesmarias teve continuidade, incrementando o povoamento regional. Para garantir a defesa da terra e, sobretudo, o avanço castelha-no, foram destacadas guardas avançadas no Taim e no Chuí.

Os desentendimentos entre as duas monarquias ibéricas prosseguiam. Com o Tratado de Madrid,5 em 1750, as Coroas Portuguesa e Espanhola estabeleceram um primeiro passo no sentido de buscar uma solução para as disputas que se trava-vam na região. Assim, decidiu-se que Sacramento ficaria com a Espanha; em troca, Portugal ficaria com as Missões. Embora este Tratado possa ser considerado um dos mais importantes acordos ultramarinos realizados entre as duas Coroas, desde Tordesilhas (1494), a complexidade desta região, que pressu-punha acordos entre três atores – lusos, castelhanos e índios – acabou fazendo com que a demarcação estabelecida pelo Tratado de Madrid fosse interrompida. Seguiram-se inúmeros

5 Conforme observa Paulo Roberto Almeida, o Tratado de Madri, em que pese a sua não efetivação, “deu a Portugal a soberania sobre vastas áreas (cerca da metade) da América do Sul e ao Brasil a conformação que em larga medida ele manteve até a atualidade” (ALMEIDA, 1998, p. 119).

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acordos afinal não concretizados. A anulação do Tratado de Madrid (1750) ocorreu através do Tratado de El Pardo (1761), que poucos anos depois seria substituído pelo Tratado de San-to Ildefonso (1777), no qual Portugal perde Sacramento e as Missões, recuperando, em troca, Santa Catarina.

Cabe, aqui, um breve detalhamento sobre esses Trata-dos: o Tratado de Madrid postulava acerca do princípio da posse; ou seja, as terras pertenceriam a quem as ocupasse. Diante deste Tratado, a Coroa portuguesa acabou ganhando, ainda que renunciasse à Colônia de Sacramento em troca das Sete Missões. No entanto, mesmo com o acordo aparentemen-te bem-construído, as controvérsias na região não foram de-beladas. Seguiu-se o Tratado de Santo Ildefonso, implacável com Portugal, pois, por meio do mesmo, a Coroa de Espa-nha retomaria o território das Sete Missões. Mas, em que pese as perdas diplomáticas e os sucessivos conflitos entre as duas Coroas, Portugal nunca desistiria da Colônia de Sacramento, pois esta se configurava em uma região estratégica para o con-trabando de prata da Bolívia e do Peru através do Rio Paraná.

Portanto, na esteira destes conflitos, a região do Prata se constituiu na mais importante entre todas as questões inter-nacionais que ocuparam a política do período colonial. Com efeito, desde a fundação de Colônia de Sacramento, em 1680, até a política externa orquestrada por D. João e a infanta D. Carlota Joaquina, em meados do século XIX, a Região Platina se configurou em um centro nevrálgico e de disputas entre as Coroas lusa e espanhola.

A importância da região fez com que o Rio Grande do Sul fosse um espaço singular e adequado para o investimento militar por parte da Coroa portuguesa. Conforme assinala o historiador Guilhermino Cesar (1993, p.13):

O sistema militar defensivo, traçado por Silva Pais, compreendia o estabelecimento de guardas, nos passos, na Angustura de Castilhos, no porto de

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Viamão, nas cercanias do Porto de Rio Grande. A subseqüente construção de fortins de campanha, associados as fortalezas do litoral e de Rio pardo, na confluência do Jacuí, impôs respeito aos platinos e evitou a infiltração de tropas espanholas, espe-cialmente de índios missioneiros, que, se pudessem, teriam barrado a lenta penetração portuguesa em direção ao Rio Uruguai.

A obra clássica de Fernando Henrique Cardoso, Capi-talismo e Escravidão no Brasil Meridional, em que pesem os vários aspectos superados pela historiografia que se dedicou profundamente ao estudo da escravidão no Rio Grande do Sul, já trazia para o debate acadêmico dois pontos importantes sobre a militarização da região meridional do Brasil. Segundo o sociólogo, a influência militar naquele território e um co-tidiano marcado pela beligerância, própria de uma região de fronteira, contribuiria para a formação de lideranças fortes, dotadas de “coragem e audácia pessoal”. Tais fatores, somados à ausência de uma ordem militar burocratizada, possibilita-ram a centralização do poder em “caudilhos fortes e persona-lísticos”. Outra característica que marcaria a região e que seria resultado da inexistência de uma administração burocrática no Brasil colonial foi a “privatização das atividades militares”. Como se sabe, vários caudilhos tinham suas próprias tropas e as usavam para ataques com fins absolutamente privados.

A vocação militarista que caracterizou o Brasil Meri-dional influenciou o próprio desenvolvimento da região. A economia das estâncias, dedicada à criação de gado, e a opu-lenta indústria charqueadora, que se desenvolveu fundamen-talmente pela mão de obra escrava, teve influência direta desta militarização. Conforme aborda Guilhermino Cesar, a

[...] distribuição de terra a antigos militares, leais à coroa, ou a colonos descendentes ou protegidos do pessoal integrante do estamento régio, foi em cer-to momento, em especial no período de ocupação

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espanhola do Rio Grande (1763-1776), a medida de que se serviram os vice-reis para formar uma fronteira viva no Brasil Meridional. De fato as ses-marias, doadas a pessoas de posses ou prestígio, serviam de base à implantação de estâncias, em cujos campos o gado, sob o custeio antes ignorado, prosperou grandemente (1993, p. 13).

Desta forma, a participação do Rio Grande do Sul no período colonial constituiu-se fundamentalmente em uma du-pla missão: dar à Coroa o suporte militar e o esteio político, mesmo que para isso tais elites tenham lançado mão das práti-cas clientelistas e patrimonialistas herdadas do próprio Estado português. Sobre este aspecto em particular, Simon Schwart-zman, na brilhante obra As Bases do Autoritarismo Brasileiro, auxilia a refletir acerca da realidade do Rio Grande do Sul neste momento de ocupação da região meridional. Segundo o autor:

À medida que cresce o domínio patrimonial, tam-bém cresce a necessidade de se delegar poderes e autoridade, ao mesmo tempo que se reduz a fac-tibilidade do controle central. Além disso, os man-tenedores da delegação patrimonial tendem a rece-ber seus postos como prebendas políticas e a usá-los como propriedade particular. Quando o estado patrimonial se baseia na conquista e na ocupação militares, tal padrão leva ao desenvolvimento de corporações militares particulares ou pretorianas, as quais guardam mais lealdade aos seus próprios capitães do que ao governante. Quando o estado patrimonial se baseia na agricultura, ocorre uma automatização regional, como o surgimento de sá-trapas semi-autônomas (SCHWARTZMAN, 1988, p. 65).

De fato, o papel das elites estancieiras, dos produtores de charque, dos comerciantes, entre outros atores políticos e sociais – que à luz da narrativa tradicional do Rio Grande do

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Sul foram intitulados os responsáveis pelo desenvolvimento e por guardar corajosamente a região e as fronteiras do Brasil – não resiste à crítica histórica. Tais personagens são fruto da conjuntura política, econômica e social da época, e, portanto, contribuíram de forma indelével para a edificação da estrutura patrimonialista e corporativista que caracterizou e ainda carac-teriza o Estado brasileiro.6 Há que se notar que uma das carac-terísticas funestas deste modelo de Estado é a formação de uma sociedade “civil frágil, pouco articulada” e, sobretudo, onde “os ricos geralmente dependeram dos favores do Estado e os po-bres, de sua magnanimidade” (SCHWARTZMAN, 1988, p.14).

Na esteira destas questões, cabe ainda observar que os li-mites das terras lusas na América, registrados e definidos pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494, representavam apenas um quinto do território brasileiro atual. Portanto, os quatro quin-tos anexados ao primeiro mapa foram resultados da expan-são lusa, que se deu por meio de conquistas, de apropriações, da ocupação econômica e também de processos diplomáticos na qual os interesses da Coroa portuguesa se materializavam através desta complexa relação entre Estado português e so-ciedade colonial brasileira.

3 O Império e a política externa brasileira

Para alguns analistas, a política externa do Império brasileiro pode ser compreendida em duas dimensões: uma relacionada propriamente ao sistema internacional e outra ao subsistema regional.7 No que diz respeito ao subsistema

6 Segundo Max Weber, o termo “patrimonialismo” refere-se a formas de dominação política, na qual não existem divisões nítidas entre as esferas de atividade pública e privada. A partir das reflexões weberianas, Simon Schwartzman aponta que “este patrimonialismo moderno, ou neopatrimonialismo, não é simples-mente uma forma de sobrevivência de estruturas tradicionais em sociedades contemporâneas”, mas uma forma bastante atual de dominação política por um “estrato social sem propriedades que não tem honra social por mérito próprio, ou seja: pela burocracia e a chamada classe política” (1986, p. 59-61).7 Aconselha-se ver as obras de Celso Lafer (1967) e de Henrique Altemani de Oliveira (2005) para refletir acerca das duas dimensões da política externa do período imperial.

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regional, a região da Bacia do Prata ganha expressão signifi-cava, pois é nessa região que a barganha de poder e a disputa pelas terras, sobretudo para evitar a supremacia Argentina, se tornam vetores da política externa brasileira durante o século XIX. Do ponto de vista internacional, considerando a conjuntura política e o sistema de poder daquela época, o Brasil inseriu-se de forma dependente das grandes potências, mesmo que tenha buscado, ao longo do século XIX, a prática do isolacionismo, no sentido de minimizar a influência eu-ropeia, que priorizava a conquista de áreas de influências em toda a América (OLIVEIRA, 2004, p.30-31).

Conforme observou Amado Cervo (1992, p.24), a polí-tica internacional no período da independência “foi um ins-trumento com que o Brasil e as potências ocidentais forjaram uma integração condicionante, aceitando, cada uma das par-tes, sua função própria na divisão internacional do trabalho”, o que produziu uma situação de dominação e dependência. No entanto, o autor não se filia às interpretações advindas da Teo-ria da Dependência, a qual observa a existência de dois atores – o produtor primário (países na condição de ex-colônia) e o produtor industrial (no caso, a metrópole inglesa) – que se agregam por interesses mútuos, por meio de acordos não es-critos. Para Amado Cervo, tais interpretações ignoram o papel da “decisão política”.

O caso brasileiro demonstra que o compromis-so não foi tácito, mas sim explícito e escrito, ne-gociado e arduamente consentido por decisão de vontade. Vale dizer que os destinos do Brasil, da América Latina e de outras unidades agregadas dependentes estiveram sempre, como estão, sob a responsabilidade de seus homens de Estado. É inútil historicamente toda teoria que se reduz à psicanálise da opressão, sem detectar as condições

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de superá-la, mesmo no quadro da evolução capi-talista, em que foram desastradamente inseridas as áreas periféricas.8 (CERVO, 1992, p.24)

Com a constituição da Monarquia no Brasil, um novo momento nas políticas interna e externa começaria a ser cunha-do. A obra de José Luiz Werneck da Silva (1990) contribuiu fortemente para este debate, ao observar que a política externa do período monárquico deve ser compreendida como sendo “duas faces da mesma moeda”. Ou seja: a face da dependência, submetendo-se, sobretudo, à Inglaterra e a face da posição he-gemônica, que o Brasil adotara perante as questões do Prata. Se-gundo o autor, estas duas faces são absolutamente integradas, e, portanto, a análise da política externa do período imperial para a Região Platina necessita obrigatoriamente da observância da relação do Brasil com as metrópoles europeias, sobretudo com a Inglaterra. Ressalta-se que, em vários episódios históricos da época, as políticas externas do Brasil e da Inglaterra foram unís-sonas, a exemplo da Guerra do Paraguai.9 No entanto, em ou-tros momentos, as duas nações ocuparam posturas divergentes, como no caso da Questão Christie (1862-1865).

Veja-se como se institui esse movimento pendular entre dependência/submissão e a posição hegemônica do Brasil nes-tes dois eventos marcos. Como bem notaria Boris Fausto (2000, p. 212), o Governo Imperial do início da década de 1860, longe de agir como “um instrumento dos interesses ingleses”, envol-

8 Fundamentando-se na premissa do equilíbrio possível entre determinações causais e finalidades políticas, Cervo defende a existência de três fases para compreender o “enquadramento” brasileiro no sistema capita-lista realizado à época da independência: a portuguesa, a inglesa e a ocidental. Na primeira, “criaram-se as precondições, com o rompimento da independência, a conquista interna da soberania política, o fracasso das tentativas portuguesas em promover o retorno à situação colonial e a escolha bilateral da Grã-Bretanha como potência mediadora”. A segunda fase é marcada “pela natureza das relações de dependência resultan-tes das negociações entre Brasil e Grã-Bretanha” e a terceira, finalmente, será caracterizada “pela extensão desse sistema de relações às outras nações capitalistas emergentes e ao universo” (CERVO, 1992, p. 25).9 Note-se que uma das consequências da Guerra do Paraguai foi o aprofundamento da dívida do Brasil com a Inglaterra, “com a qual tinha restaurado as relações diplomáticas, no início das hostilidades” (FAUSTO, 2000, p. 216).

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veu-se em uma série de incidentes com a metrópole hegemôni-ca, conhecidos como “Questão Christie”, nome do embaixador britânico no País.

Após a apreensão de navios mercantes brasileiros pela Marinha britânica estacionada no Rio de Ja-neiro, o Brasil rompeu relações diplomáticas com a Inglaterra no início de 1863. Criou-se no país um clima de exaltação patriótica, incentivado também pelas notícias de que cidadãos brasileiros estavam sofrendo violências no Uruguai, onde os blancos10 se encontravam no poder. O governo do Império invadiu o Uruguai, em setembro de 1864, com o objetivo de ajudar a colocar os colorados no poder. (FAUSTO, 2000, p. 212)

Enquanto as relações diplomáticas anglo-brasileiras estavam rompidas, entretanto, Francisco Solano López – El Supremo –, tomaria a iniciativa para barrar o expansionis-mo argentino e brasileiro que ameaçava sufocar o Paraguai, lançando uma ofensiva contra o Mato Grosso, em dezembro de 1864. Contrariando os conselhos de seu pai, Carlos López, de usar a “pena” e não a “espada” contra o Império brasileiro, Solano investe na ideia política da busca por um “Paraguai maior”, rompendo com um isolamento que vinha especial-mente de empecilhos orquestrados por Buenos Aires e que não lhe deixavam usar regularmente o Rio Paraná, fato que servia, diga-se de passagem, aos interesses brasileiros, como bem lembrou Werneck da Silva (2009).

O Paraguai sairia arrasado do conflito contra a Tríplice Aliança, formada em 1865 por Brasil, Argentina e Uruguai. Metade de sua população foi dizimada: de 406 mil habitantes em 1864 para 232 mil em 1872, tendo entre os sobreviventes

10 Nesta época, lembra o historiador, o líder paraguaio Francisco Solano López, buscando romper o isola-mento do Paraguai, estava aliado aos blancos, então no poder no Uruguai (FAUSTO, 2000, p. 211).

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uma maioria de mulheres, crianças e idosos (FAUSTO, 2000). Como observou Werneck da Silva, neste momento a relação entre Brasil e Inglaterra se recompõe já que a “pacata” e a libra tinham agora um objetivo comum. Ocorre que a Inglaterra não poderia “deixar que o Império brasileiro usufruísse sozi-nho dos eventuais benefícios econômicos da guerra grande”, enquanto o Brasil não tinha como dispensar os empréstimos ingleses para bancar “os esgotantes encargos das campanhas terrestre e fluvial, e para ajudar o esforço da guerra dos por-tenhos da Argentina e do Uruguai, seus aliados necessários” (SILVA, 2009, p.57).

Para além da “dupla face da mesma moeda”, outro aspecto significativo considerado por Werneck da Silva é a periodização da política externa imperial. Em que pese o Brasil ter se in-dependizado em 1822, isso não significou que tenha havido, desde então, uma política externa efetivamente brasileira. Se-gundo o historiador, ela continuaria pertencendo à “História de Portugal e não à História do Brasil, pois esteve ligada aos interesses fundamentalmente dos Bragança e dos segmentos sociais a eles acoplados” (SILVA, 2009, p. 40).

Somente após a crise de 07 de abril de 1831, que resultou na abdicação de D. Pedro I e a aclamação de D. Pedro II – um príncipe nascido e educado no País –, a política externa do Bra-sil passou a ter um caráter brasileiro, pois até então não passara de um reflexo dos interesses da Coroa portuguesa. No entanto, mesmo que se registre o fim do reinado de D. Pedro I como o início da política externa brasileira, são exatamente os inte-resses do passado bragantino, ironicamente, que irão nortear sua condução ao longo do segundo Império. Ou seja: como no período de sua proto-história, a incipiente política externa bra-sileira continuaria pautada pela situação de “dependência em relação à Inglaterra [...], e uma posição de força, sempre à bei-ra do expansionismo, nos problemas platinos” (SILVA, 2009, p. 41). Esta herança é perfeitamente compreensível quando

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se observa que a independência do Brasil não resultou de um conflito com a Metrópole, tampouco representou uma ruptu-ra na relação Metrópole-Colônia; ao contrário, se deu por um grande “acordo pelo alto”,11 algo, aliás, bastante comum na his-tória política brasileira.

É importante que se diga, entretanto, que não existe um consenso sobre as fases do período Imperial no Brasil e sua relação com a Política Externa. Neste debate, cabe ressaltar as obras de Werneck da Silva (1990) e Amado Cervo (1992). Segundo Werneck, o período Imperial pode ser compreendi-do a partir de sua divisão em duas grandes fases. A primeira refere-se ao período de Acomodação (1822-1844), na qual a política externa brasileira estaria debruçada sobre questões relativas ao Sistema Internacional, sobretudo no que diz res-peito à atenção aos tratados internacionais e a própria política liberal da época. Este direcionamento da política externa terá consequências na própria política doméstica do Brasil, cau-sando um momento de inflexão na mesma, na medida em que é instaurado o abandono da submissão aos moldes coloniais para uma dependência nos moldes capitalistas do século XIX.

A segunda fase (1844-1870) marcaria o início da auto-nomia e da reação do Império brasileiro frente às potências he-gemônicas europeias. Embora mantivesse os traços marcantes da estrutura de dependência próprias dos países periféricos do século XIX, o Brasil se opunha aos Tratados internacionais entendidos como prejudiciais aos interesses nacionais. Na es-teira desta reação, a política externa brasileira fez uma inflexão e o subsistema regional começou a ganhar ênfase na agenda política do Império. Fizeram parte desta fase questões como a reconstituição do vice-reinado do Prata e a própria Guerra do Paraguai. De maneira geral, tal fase marca um Brasil que não

11 Conforme observa Werneck da Silva, foi um acordo entre os “Bragança do Paço português de Queluz e os Bragança do Paço brasileiro de São Cristóvão, acordo este com aval inglês sem o que não haveria independência do Brasil numa conjuntura recolonizadora como a do Congresso de Verona” (2004, p. 42).

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está preocupado sobremaneira com as questões internas, mas sim com as dinâmicas regionais, na qual as questões platinas ganham destaque.

Por sua vez, Amado Cervo, na obra História da Política Externa do Brasil, observa que os anos de 1822 a 1889 carac-terizaram um longo período de conquista e exercício da so-berania. Neste momento, o controle do Prata se constitui em um importante capítulo da história do período Imperial bra-sileiro. Como disse o autor textualmente: “O Prata foi a área em que correu solta a política de potência do Estado-Império Brasileiro, ensaiada internacionalmente a partir de 1844, com a resistência à hegemonia interna da Inglaterra”, para além das pretensões norte-americanas relativas ao Amazonas (CERVO & BUENO, 1992, p. 97). O certo é que, considerando as dis-tintas abordagens e os marcos temporais, existe um consenso entre as análises; as questões que envolvem a região do Prata foram em grande parte responsáveis por algumas inflexões da política externa do Brasil, além de estarem diretamente rela-cionadas à própria formação e consolidação da parte meridio-nal do Brasil.

4 As Questões Platinas

Como já assinalado, as questões platinas fizeram parte de praticamente toda a História do Brasil colonial e imperial. E, neste contexto, o Império brasileiro não apenas herdou a agenda política da Coroa lusa, como também optou por man-ter o seu status quo. Uma das formas que o Império brasileiro usou para tratar das questões relativas ao Prata foi a clássica prática do império inglês “dividir para dominar”. Em conso-nância com esta máxima, para o Brasil, a melhor das políticas obedeceria à seguinte estratégia:

Uruguai tem que ser Uruguai. Argentina tem que ser Argentina. Paraguai tem que ser Paraguai. O

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Império não aceitou nenhuma federação ou in-tegração de territórios dessas repúblicas platinas, porque sabia muito bem que no dia em que hou-vesse federação ou integração territorial, ou mesmo uma política comum que as aproximasse por meio de acordos, tratados de aliança ou amizade, tudo isto poderia reverter inevitavelmente contra um Império cuja hegemonia “natural”, pela sua posição e extensão geográfica naquela área, não era aceito pelos países hispano-platinos. (SILVA, 2004, p.50)

Segundo Amado Cervo, a política brasileira para os paí-ses do Prata, entre os anos 1822 e 1889, obedeceu a sete distin-tas fases que incluem a tentativa de entendimento e a coope-ração para a defesa das independências (1822-1824); a Guerra da Cisplatina (1825-1828); a chamada Política de Neutralida-de (1828-1843); a passagem da neutralidade para a interven-ção (1844-1852); a presença brasileira ativa (1851-1864); o retorno à política intervencionista (1864-1876); e, finalmente, o retraimento vigilante (1877-1889). Essas distintas fases ilus-tram, entre outros aspectos, os objetivos da política externa lusa para com a região, que se definiu, sobretudo, durante a segunda metade do século XIX, em “função de necessidades internas do Brasil, às quais foram acoplados objetivos concre-tos de seu interesse” (CERVO & BUENO, 1992, p. 104). Outro aspecto que Cervo observa são as motivações que delinearam a movimentação do Brasil no Prata. Tais finalidades foram de ordem econômica, estratégica, segurança e política. No que tange aos motivos econômicos, Cervo (1992, p. 104) assinala a conveniência para o Brasil em manter um comércio regu-lar, no qual se destacava a necessidade brasileira em relação à importação do charque, para além de interesses no domí-nio das finanças,12 mediante empréstimos feitos aos governos

12 “Secundavam essa ação os empreendimentos bancários, os empréstimos particulares e as iniciativas mo-dernizadoras de Mauá no Uruguai e na Confederação. Era condição para o desempenho dessas atividades econômicas a livre navegação dos rios interioranos, e nesse ponto o interesse brasileiro coincidia com os das potências capitalistas, Estados Unidos, França e Inglaterra” (CERVO & BUENO, 1992, p. 104-105).

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da Confederação Argentina e da República Argentina, além do Uruguai, “com finalidades eminentemente políticas”. Já no âmbito dos fins estratégicos e de segurança, teria destaque es-pecialmente a “defesa intransigente das independências locais, condição favorável ao exercício de sua hegemonia”, o acesso a Mato Grosso via estuário, a segurança e definição jurídica das fronteiras e a liberdade de trabalho para brasileiros residentes em terras uruguaias (CERVO; BUENO, 1992, p. 105).

Quanto aos aspectos políticos, o historiador sustenta que ao Brasil interessava “o funcionamento normal de insti-tuições liberais, condição para a manutenção de relações du-radouras e construtivas e para o incremento do liberalismo econômico” (CERVO; BUENO, 1992, p. 105). Aqui, econo-mia e política caminharam juntas e, ao Brasil, era interessan-te que os vizinhos prosperassem em ambos os terrenos. No entanto, a diplomacia brasileira não conseguiu administrar com imparcialidade alguns antagonismos entre facções uru-guaias (blancos e colorados) e argentinas, uma vez que os interesses brasileiros estiveram inevitavelmente vinculados à determinadas lideranças. Como resume Amado Cervo (1992, p. 105), “no balanço geopolítico dos fatores, tinha o Uruguai maior importância econômica, a Argentina maior importân-cia política, permanecendo o Paraguai na tradicional função de trunfo estratégico”.

5 Conclusão

Uma análise sobre os três séculos de política externa brasileira aponta, com clareza, para algumas questões centrais que podem ser consideradas como marcos na periodização dos momentos históricos, em que pesem a complexidade e, sobretudo, a quantidade de eventos registrados ao longo deste período. O primeiro ponto a ser retomado é que o Brasil co-lônia não desenvolve uma política externa autônoma, pois sua condução permanece, ao fim e ao cabo, atrelada aos desígnios da Coroa portuguesa, cuja agenda determina, por mais de dois

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séculos, a política externa brasileira. À colônia brasileira, por-tanto, cabe tentar acompanhar os desdobramentos da própria política externa lusa, que tem como foco principal as relações com o reino de Espanha.

Neste contexto, a região do Prata já se constitui tema de destaque e motivo de contenciosos acordos e tratados que te-rão papel de destaque na agenda lusa. É a partir desta realida-de que o Rio Grande do Sul ganha visibilidade e torna-se um dos cenários da relação entre as duas Coroas europeias, ainda que não tenha uma importância econômica para Portugal. As fronteiras e demarcações das terras brasileiras, portanto, não serão motivadas por ideias de Nação ou Estado – leia-se, “por nenhum arroubo de nacionalismo” –, uma vez que os interes-ses em jogo, nesse momento, são pontuais e regionalizados.

De fato, entre todas as questões internacionais que mar-caram o período colonial – e sua política externa –, o Prata se tornaria um ponto nevrálgico de disputas. Essa situação de proeminência não sofrerá alteração no período monárquico. Para além da discussão entre a efetiva data de instauração de uma política externa efetivamente brasileira (1822 ou a partir de 1831, com a aclamação de D. Pedro II), os interesses do Império serão, paradoxal e ironicamente, marcados pelo pas-sado luso e, especificamente, bragantino. Se, neste momento, torna-se clara uma dependência em relação à Inglaterra, os problemas com a região do Prata seguem pautando as toma-das de decisões da política brasileira. O Rio Grande do Sul, já incorporado a este contexto, cresce em relevância, ao ganhar destaque em questões de ordem econômica e política.

Mas ao longo da história, o Brasil não deixará de de-senvolver, sobretudo no período Imperial, uma consciência mais clara de sua posição hegemônica. Se os analistas diferem em suas periodizações sobre a política externa brasileira, um consenso é aceito: as temáticas relacionadas à região do Prata pautaram importantes inflexões da política externa brasileira, da colônia ao Império.

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ASPECTOS DA REVOLUÇÃO FEDERALISTA NO CONTEXTO POLÍTICO DE

JÚLIO DE CASTILHOS

* Sérgio Roberto Rocha da Silva

No Brasil Imperial, era tradição o isolamento entre as suas regiões, refletindo na sociedade uma desunião, he-rança do período colonial com as suas capitanias, sendo o mais comum a comunicação entre as principais regiões do Brasil diretamente com Portugal (SODRÉ, 1998, p.39). Por não ser o País da coesão, mas sim da fragmentação, tal situa-ção deixava-se transparecer na política, economia e cultura, comprometendo a sociedade brasileira. Desse modo, não se vislumbrava uma visão de nação ou de identidade nacional. A principal defesa dos republicanos era de que a moderni-zação1 teria de estar associada à ordem e ao progresso, di-ferentemente do que estava acontecendo, julgavam que “a monarquia era responsável pelo atraso e conservadorismo” (NEVES; MACHADO, 1999, p. 473).

Portanto, o grande trunfo dos republicanos foi mapear as fraquezas do Império, os quais, a partir de então, puderam criar estratégias que apareceriam no discurso “modernida-de contra estagnação e atraso”. Não quer dizer, com isso, que, com a Proclamação da República, as transformações ocorre-ram de imediato, pois:

Nenhum regime ou sistema, nem econômico – como o de trabalho – nem político – como o de go-verno – se deixa substituir de todo por outro, da noite para o dia; e na vida das instituições, essa

* Doutor em História e Professor do Curso de História da FAPA.1 O conceito de “modernização” aqui presente é fundamentado nas transformações que os centros urbanos passaram a partir de sua industrialização e urbanização, e que interferiram nas práticas e costumes da sociedade, entendendo-as, segundo Marschall Berman, como o: “[...] conjunto dos processos sociais que alimentam o ‘turbilhão da vida moderna’” (1986, p.16).

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transição dura às vezes tanto, em suas contempo-rizações de natureza sociológica, que as datas de registro do fim deste regime ou de começo daque-le sistema, não significam, em sua pureza ou ri-gidez cronológica, senão mudanças de superfície (FREYRE, 2000, p.561).

A Proclamação da República no Brasil pode ser perce-bida mais como um momento de queda da Monarquia do que realmente uma conquista da nova ordem política que se ins-taurava. Hoje, para muitos historiadores, o episódio da Procla-mação, em 1889, não passou de uma concentração de militares que se reuniram para anunciar o novo regime político. Com isso, toda mobilização serviu mais como marco simbólico do que representação de uma conquista do povo brasileiro. A Re-pública se iniciava de forma tímida aos olhos da população, já que esta não participou de forma maciça e tampouco conse-guiu alcançar a compreensão do que ocorria naquele instante.

O discurso dos republicanos estava sustentado em dois pilares principais: a modernização e a formação de uma iden-tidade nacional. De fato, a modernização foi algo perceptível no Brasil, porém não de imediato. Por outro lado, a tão busca-da coesão do povo brasileiro e de uma maior união das regiões do País, formando uma nação, ficou mais no discurso do que na prática. Por isso, hoje, tem-se várias identidades regionais, seja pela diversidade cultural como também econômica.

O Rio Grande do Sul, no final do século XIX, ainda pos-suía uma economia basicamente sustentada na agropecuária. As principais cidades, como Pelotas, já viviam os ares da Belle Époque, enquanto Porto Alegre entrava na tão esperada mo-dernidade2 presente nos discursos dos republicanos. A socie-

2 O sentido de “modernidade” utilizado aqui será aquele almejado pelos republicanos, não reduzido à ideia de progresso industrial. Seu significado é permeado pelo ideário de transformações no modo de agir e pensar na sociedade. Novos hábitos e costumes deixariam para trás tradições demarcadas e vivenciadas pela monarquia. Tais transformações dariam uma nova percepção de civilização para o Brasil, pois - con-forme Touraine - essa ideia estava mais ligada a uma antitradição, com a “derrubada das convenções, dos costumes e das crenças” (TOURAINE, 1995, p. 216).

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dade começava a se delinear com a burguesia no centro das decisões políticas e econômicas; uma classe média atuante e uma grande parcela da população, de excluídos. Em 1893, a República ainda buscava a sua consolidação e, para isso, qual-quer tipo de ameaça a sua estabilidade política era combatida com muita severidade e violência.

O objetivo aqui será, portanto, analisar a Revolução Fe-deralista como um ato de repúdio ao governo de Júlio de Cas-tilhos (Ilustração 1) e ao cenário político e econômico estabe-lecido pós-Império. Outra questão importante está na relação do conflito com a sociedade gaúcha: a violência extrema fez deste período um momento a ser esquecido. Cabem ser evi-denciados, aqui, os principais fatos ocorridos na Revolução, para que seja possível entender o quanto eles foram marcantes para a História do Rio Grande do Sul.

Ilustração 1 - Castilhos e seu pai, 1868

Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

O Sul do Brasil, inserido nas mudanças ocorridas com a queda do Império e a instalação da República, apresentou algu-

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mas especificidades em relação a outros estados. Uma delas foi a política desenvolvida pelo Partido Republicano Rio-grandense (PRR), fundamentada no Positivismo adaptado de Auguste Comte e na figura central de seu líder, Júlio de Castilhos.

O governo do PRR e das práticas autoritárias de Cas-tilhos contou com o apoio do Exército para implantar suas ações políticas e de reestruturação econômica do estado. Não satisfeitos com a Força Armada ao seu lado, os republicanos criaram a Brigada Militar, que ampliou o poder de coerção e o combate aos “inimigos” da República.

Figura polêmica, Castilhos ainda hoje desperta duplo sentimento, sendo considerado um dos principais heróis gaú-chos, ao mesmo tempo em que é tido como um verdadeiro “tirano”, que governou o estado.

É perceptível, na literatura rio-grandense pós-morte do patriarca, uma vertente que aponta o líder do PRR como um verdadeiro herói. O autor positivista Othelo Rosa traçou um delineamento de Castilhos bem diferenciado daquele imagi-nado por muitos dos opositores e das pessoas que conviveram à sua época. Para Rosa, Júlio de Castilhos era portador de uma moral incontestável, seguida de uma grandeza, que o vestia de coragem e honra, bem como de patriotismo e dignidade (ROSA, 1930, p.315). O autor segue vestindo Castilhos com uma roupagem de homem singular, em quem batia um cora-ção “heroico”, fazendo surgir, a partir do político, um gran-de filósofo, cuja maior qualidade estava na virtude de ser um pensador (ROSA, 1930, p.317).

Se, por um lado, havia homens que consideravam Júlio de Castilhos um político que marcou a vertente heroica do gaúcho, também existiam os que o consideravam um vilão na história do estado. No olhar dos viajantes que visitaram Porto Alegre, entre o final do século XIX e início do XX, um outro Castilhos foi descrito, sem traços de heroísmo.

O viajante Stanislaw Klobukowski esteve em Porto Ale-gre no final do século XIX. Dirigiu duras críticas ao governo

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de Castilhos, chegando a anunciar que grande parte da popu-lação não o queria à frente do governo do Rio Grande do Sul. O que não impediu Castilhos, através de meios não considera-dos característicos de um governo republicano – a força – de se eleger (FRANCO; NOEL FILHO, 2004, p.42). No relato de suas impressões acerca de Castilhos, Klobukowski expôs que foi muito bem recebido pelo governante, mas que, mesmo as-sim, Júlio teria deixado “a impressão de um sanguinário, não de um herói” (FRANCO; NOEL FILHO, 2004, p.43), decla-rando que tinha chegado a essa conclusão por ter ouvido mui-to das crueldades praticadas a mando do líder republicano.

Nos primeiros anos de República no Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, por meio do PRR, já era criticado pelos seus atos, fundamentados na busca pela hegemonia de seu partido e por princípios que transcendiam a falta de tolerân-cia e de liberdade àqueles que discordavam de sua ideologia. Conforme Flores:

Júlio de Castilhos adotou a doutrina positivista que tinha como princípio a ordem social para chegar ao progresso de uma sociedade industrial. Tal idéia gerou a chamada ditadura científica positivista for-mando um estado policial, onde toda questão so-cial se transformou num caso de polícia. (FLORES, 1993, p.13-14 – grifo do autor)

Castilhos, para poder chegar ao governo gaúcho, contou com o auxílio importante das páginas do jornal A Federação. Era mais que um veículo jornalístico, pois assumia a função de divulgar seus ideais políticos para o doutrinamento da so-ciedade (CAMPOS, 1903, p.2). Castilhos não media esforços para alcançar seus propósitos, e para isto atacava seus adversá-rios com “golpes rudes e precisos” (ROSA, 1930, p.27). Acre-ditava na força que o jornal exercia na sociedade e no universo político. Ele fez de seus artigos no A Federação uma de suas maiores armas. Por ter plena consciência disso, instituiu aos jornais adversários a lei do silêncio. Como afirma Rossini:

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O antigo opositor, A Reforma, foi constantemente empastelado e, durante a Revolução Federalista, esteve por um longo tempo impedido de editar suas folhas, fechando definitivamente em 1910 (ROSSI-NI, 2005, p.236).

Ary Veiga Sanhudo proferiu um discurso em 23 de ou-tubro de 1953, na Câmara Municipal de Porto Alegre, cujo tema era uma homenagem a Júlio de Castilhos. Sanhudo con-siderava Castilhos um herói da República do Brasil e grande patriarca do Rio Grande do Sul, pois “Júlio de Castilhos, sem dúvida alguma, foi o maior cérebro político que até hoje nas-ceu nas plagas do nosso estado” (SANHUDO, 1953, p.3).

Na concepção do vereador, Castilhos deveria ser lem-brado pelo ato heroico, ocasião em que, em 1892, entregou seu governo para evitar derramamento de sangue, já que a opo-sição percorria o caminho da ambição e do proveito próprio (SANHUDO, 1953, p.7). Júlio de Castilhos sabia que, ao en-tregar seu governo, teria mais chances de retornar – e não era pelo povo que teria feito essa renúncia, configurava-se, sim, em uma manobra política para atender seus próprios propósi-tos. Conforme Reckziegel:

Por seu turno, o líder do PRR, Castilhos, era uma personalidade complexa, cujo caráter autoritário converteria qualquer dissidente de seu credo em inimigo potencial digno de um só tratamento: per-seguição e destruição (RECKZIEGEL, 2005, p.48).

Com a Proclamação da República, mudanças ocorreram na política e no modo de administrar o País. No entanto, nem todos ficaram satisfeitos com a queda da Monarquia, pois, nos primeiros anos após a República, começaram a ocorrer contestações e revoltas no intuito de evitar a consolidação do novo regime.

A Revolução Federalista, ocorrida no Sul do Brasil en-tre 1893 e 1895, teve como uma das principais característi-

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cas a não celebração e glorificação dos principais personagens envolvidos diretamente neste evento. Diferente da Revolução Farroupilha, que produziu um panteão de heróis e solidificou o mito do gaúcho, como Bento Gonçalves, os maragatos3 e pica--paus não tiveram o mesmo destino. Como evento de grande importância para a História gaúcha, ainda hoje o episódio de extrema violência é um tabu na sociedade e na historiografia.

Segundo Arnoldo Doberstein, o exemplo mais próxi-mo dessa aversão do tema são os monumentos públicos, que, diferentemente daqueles existentes hoje, não retratam seus “heróis” e tampouco os episódios da Revolução Federalista. Segundo o autor:

[...] isso foi devido ao legado de rancor e ressenti-mento que essa guerra civil deixou entre as elites gaúchas. Seria com um esquecimento compactuado, para não provocar, através de monumentos, o re-nascimento de ódio não dissipado (DOBERSTEIN, 1993, p.85).

Os monumentos, além do valor artístico, são portado-res de um imaginário e servem de instrumento de glorificação dos heróis. Dessa forma: “[...] toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as idéias e aspirações às necessidades e às esperanças de uma situação histórica particular” (FISCHER, 1973, p.17). No caso específico, a Revolução Federalista não produziu heróis que suprissem as necessidades da sociedade, então de que adian-taria admirar homens que foram personagens reais de um mo-mento na História gaúcha que deveria ser esquecido?

3 A explicação mais provável encontrada nas fontes disponíveis sobre a denominação dada aos federa-listas, está sustentada na seguinte interpretação: maragatos, no Uruguai, são designados aqueles descen-dentes dos primeiros espanhóis chegados na região, cuja procedência era da Maragateria, província de León (REVERBEL, 1985, p.5). Conforme Moacyr Flores: “Com os invasores brasileiros vinham gauchos uruguaios, de um departamento que fora povoado por espanhóis oriundos de Maragateria. [...] Os ma-ragatos adotaram o lenço vermelho como símbolo de sua facção política. Os republicanos ou pica-paus usavam lenço branco como distintivo” (1996, p. 158).

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Como expõe Le Goff, os “arquivos de pedra” são dota-dos de um poder de durabilidade que despertou nos regimes políticos o princípio de perpetuação dos ideais ali depositados (1994, p.432). O poder político, muitas vezes, determina o que deve ou não ser lembrado pela sociedade, elegendo aconteci-mentos para serem tornados presentes em monumentos pú-blicos, agindo diretamente na formação da memória coletiva. Segundo Peter Burke:

Historiadores dos séculos XIX e XX, (...), vêm dedi-cando um interesse cada vez maior aos monumen-tos públicos nos últimos anos (...) esses monumen-tos ao mesmo tempo expressavam e formavam a memória nacional (BURKE, 2000, p.74).

Portanto, não foi coincidência a ausência de monumen-tos que retratassem aqueles que lutaram na revolução e que se destacaram em ambos os lados do conflito. Não há o “monu-mento intencional” que, segundo Alöis Riegl, tem por princí-pio a rememoração dos feitos do herói representado/materia-lizado, conservando lembranças para as futuras gerações.

A literatura escrita sobre a Revolução, principalmente nas primeiras décadas que se seguiram ao conflito, também não deixou de expressar uma tomada de posição frente aos lados envolvidos. Conforme Carlos Reverbel:

Muito se escreveu sobre 93, durante o conflito, como nos anos seguintes. A luta armada havia terminado, com a derrota dos federalistas, mas os espíritos continuavam em estado de beligerância. E tudo quanto se escrevia vinha saturado de ódio, porejava a mais incruenta animosidade, salva ra-ríssimas exceções (REVERBEL, 1985, p.15).

A guerra narrada nos livros, segundo o autor, tinha a característica de um relato de algo que ainda estava aconte-cendo, ou seja, como se a Revolução não estivesse chegado ao seu fim.

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Além disso, acredita-se que estivessem envolvidas tam-bém motivações de ordem cultural, ou seja, foi um momento no Rio Grande do Sul que, para muitos, não deveria ser lega-do a futuras gerações. A ausência de detalhes daquele período reforça a concepção da existência de um tabu na sociedade rio-grandense. A questão do imaginário da morte na socie-dade é algo que ainda permeia os dias de hoje, pois não se consegue discutir a finitude de forma explícita. Por isso, foi escamoteada sua presença, transformando-a em tabu (SILVA, 2008b, p.4). Torna-se extremamente difícil glorificar heróis as-sociados à lembrança das crueldades praticadas no campo de batalha, bem como ao modo que ambas as partes envolvidas na Revolução matavam a maioria de seus inimigos: utilizando a degola. Conforme Sandra Pesavento, a:

[...] maneira mais usual em matar a vítima tal como se procedia com os carneiros: o indivíduo era coagido a, de mão atadas nas costas, ajoelhar-se. Seu executor, puxando sua cabeça para trás, pelos cabelos, rasgava sua garganta, de orelha a orelha, seccionando as carótidas, com um rápido golpe de faca (1983, p.89).

O episódio mais terrível da Revolução Federalista foi, sem dúvida, Rio Negro e Boi Preto. Na região de Bagé, os pica-paus foram derrotados pelos maragatos, tendo como líder o General João da Silva Tavares, conhecido como “Joca Tavares”.

Tavares ordenou que cerca de 300 homens fossem degolados e seus corpos descartados no rio próxi-mo. Por outro lado, como vingança, Firmino de Paula devolveu na mesma moeda, isto é, mandou degolar quase o mesmo número de federalistas na batalha do Boi Preto. Após a morte de Gumercin-do, Firmino externando frieza, ordenou que se desenterrasse seu corpo a fim de realizar a degola (PESAVENTO, 1983, p.90-91).

Este tipo de conduta talvez sirva para esclarecer a quase inexistência de cultos a heróis da Revolução Federalista.

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Toda cultura tem o seu herói, seja nas sociedades primi-tivas como na contemporânea, todavia seu sentido se diferen-cia de acordo com o período e o contexto histórico. O que se altera na concepção e função do herói serão os valores culturais atribuídos a ele e a finalidade do seu surgimento (DRUCKER; CATHCART, 1994, p.82). Segundo Carvalho “[...] por ser par-te real, parte construído, por ser fruto de um processo de ela-boração coletiva, o herói nos diz menos sobre si mesmo do que sobre a sociedade que o produz” (CARVALHO, 1990, p.14).

O herói evidenciado na Primeira República Rio--grandense será o que Sidney Hook denomina de “um pro-duto sintético”. Não será aquele que se torna herói na traje-tória em vida, mas, sim, após sua morte. O principal meio de fabricação será via propaganda e discurso, mesmo que o eleito nunca tenha se destacado na sociedade em que viveu (HOOK, 1962, p.17). Ele nada mais é que um instrumento de vontade de um grupo, que desenvolve as intenções de outros indivíduos que o criaram por puro interesse (HOOK, 1962, p.140). Frente ao exposto, viu-se o grupo que permaneceu no poder, os republicanos positivistas, eleger Júlio de Castilhos como herói, não pelo episódio da Revolução Federalista, mas pela sua trajetória e como símbolo maior do PRR.

O herói, na sociedade, sempre foi concebido como uma figura lendária que possuísse atributos de um ser que demons-trasse vigor, poderes sobrenaturais, bravura e magia, sendo ad-mirado pelos seus atos. Narrativas acerca de seus predicativos têm sido reproduzidas de geração a geração, e o herói, na mor-te mais do que em vida, vem sendo exaltado no decorrer da história (DRUCKER; CATHCART, 1994, p.221). Isso explica a falta de culto aos participantes da Revolução, pois causaria estranhamento ver alguém cultuar quem matou sem piedade ou que não teve o mínimo de humanidade para com o inimigo.

A Revolução Federalista foi, sem dúvida, o maior exem-plo de discordância de ideias e de prática política. Entre 1893 e 1895, a estabilidade da República no Sul do Brasil foi contesta-da não apenas via discursos e artigos de jornais, mas, da mes-

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ma forma, pela luta armada. A “Revolução da Degola” traduz de forma denotativa a violência praticada pelos dois grupos envolvidos. De um lado, os seguidores de Júlio de Castilhos e de sua República positivista e, de outro, os liberais e dissi-dentes, que foram afastados do centro das decisões políticas do Rio Grande do Sul, e líderes, como Gaspar Silveira Martins (Ilustração 2) que tiveram de buscar o exílio.

Ilustração 2 – Gaspar Silveira Martins à esquerda

Fonte: Museu Municipal de Itajaí.

Júlio de Castilhos foi eleito em 1893 com o auxílio de fraude eleitoral, fazendo com que seus inimigos se refugias-sem no Uruguai. A fuga da oposição não pode ser vista como um mero ato de covardia, mas de estratégia. Poucos meses após a eleição de Castilhos, os federalistas retornaram ao Rio Grande do Sul para impedir a permanência dos republicanos positivistas do PRR no poder.

Com isso, a disputa política na última década do século XIX se acirra. A alternância de governos provisórios, forma-dos por dissidentes da política de Júlio de Castilhos foram os que implantaram o “governicho”, tendo como principais nomes

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Barros Cassal e Assis Brasil. Sem base política sustentável e maiores articulações, os dissidentes não suportaram a pressão dos aliados de Castilhos, não conseguindo evitar que o líder do PRR retornasse ao governo:

É bem verdade que, quando os castilhistas subiram ao poder, “varreram” os liberais dos seus cargos e os perseguiram; por sua vez, quando do “governicho”, foi a vez de os republicanos serem perseguidos, re-gistrando-se assassinatos em revide aos crimes pra-ticados pelo PRR. Com o retorno dos republicanos ao poder, abriu-se um novo período de violências e perseguições, que mais fizeram recrudescer a radi-calização política (PESAVENTO, 1983, p.85).

Em 1892, Gaspar Silveira Martins retornou do exílio e logo articulou com os antigos liberais a criação, em Bagé, do Partido Federalista Brasileiro (PFB). Nomeado líder do parti-do, Martins recebeu apoio de:

[...] ex-liberais e alguns ex-conservadores, como o clã dos Tavares, naturais de Bagé. Socialmente, era formado majoritariamente pelos pecuaristas da região da Campanha, ligados ao comércio e contrabando na zona da fronteira (PESAVENTO, 1983, p.81).

Para o PFB, a República deveria ser parlamentar e o go-verno federal deveria centralizar mais sua força política, dife-rentemente do que desejava Júlio de Castilhos, que buscava um fortalecimento maior do poder político gaúcho em relação ao governo federal.

A discórdia política não se manteve apenas no campo das ideias, a disputa ultrapassou a fronteira entre a civilida-de e a “barbárie” (Ilustração 3). Não foi somente entre 1893 e 1895 que as atrocidades foram realizadas, pois, de acordo com Moacyr Flores:

[...] entre o golpe de Castilhos, em junho de 1892 e o início da Revolução Federalista foram degola-

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das 193 pessoas, de ambas as facções. Os jornais de cada partido relatavam com detalhes os crimes po-líticos, exagerando as atrocidades, aumentando os sentimentos de vingança. (FLORES, 1996, p.157)

Ilustração 3 – Foto de Desconhecido encenando ou praticando a degola na Revolução Federalista

Fonte: Casa de Memória de Curitiba.

Se, por um lado, os republicanos tinham Júlio de Casti-lho como líder, por outro, os federalistas contavam com Joca Tavares e Gaspar Silveira Martins. Conforme Sandra Pesavento,

[...] tiveram ainda nas suas hostes o destacado general maragato Gumercindo Saraiva [...]. Do lado dos ‘pica--paus’, destacavam-se os generais Pinheiro Machado, Manoel Nascimento, Firmino de Paula e João Francis-co Pereira de Souza (PESAVENTO, 1983, p.89).

Gaspar Silveira Martins,4 ao chegar no Rio Grande do Sul, tentou, sem sucesso, convencer Floriano Peixoto da vali-dade de seus planos para uma pacificação na política do esta-do. Evidente que o foco de sua conversa deve ter sido o mesmo que teve com Júlio de Castilhos. O parlamentarismo, concebi-do por Martins, estava fora de questão para Castilhos, mesmo porque, para o líder republicano, deveria haver somente um único partido na administração política – neste caso, o PRR.

4 Gaspar Silveira Martins resistiu em conceber a deflagração da Revolução Federalista.

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A Revolução iniciou pela região de Aceguá, em 05 de fe-vereiro de 1893 com Gumercindo Saraiva comandando cerca de 400 homens. Simultaneamente, o Rio Grande do Sul fora invadido pelos federalistas,5 tendo, no comando, Juca Tigre e Ulisses Revervel, que traziam centenas de homens sob o co-mando de João da Silva Tavares.

Após dois meses do início da ocupação das tropas fede-ralistas, na região de Alegrete, se deu uma das maiores bata-lhas que perdurou por horas. Ao leito do Rio Inhanduí, cerca de 10 mil homens entraram em confronto. Os pica-paus esta-vam bem mais preparados em termos de armamentos; por ou-tro lado, os maragatos, mesmo achando que tinham a melhor posição estratégica, se retiraram na madrugada do campo de batalho por ordem de Joca Tavares, que temia não ter poder bélico para sustentar uma nova investida do inimigo.

O movimento Federalista, no primeiro ano, obteve vitó-rias significativas, ampliando sua ocupação geográfica. Porém, com a reação dos governos estadual e federal, a sustentabi-lidade da ação não conseguiu se manter. Como bem analisa Francisco das Neves Alves:

A forte reação castilhista/florianista somada aos problemas no seio das forças revolucionárias fize-ram com que estes recuassem de diversos pontos anteriormente conquistados. A virada de 1893 para 1894 representou um momento decisivo para o rumo da revolução (2002, p.37).

Certo momento, os federalistas acreditaram que, ao se unirem com lideranças da Revolta da Armada, em Santa Ca-tarina e Paraná, e criarem um Governo Provisório, o combate aos republicanos e a vitória seria uma questão de tempo. Fato que não ocorreu:

5 Os federalistas eram denominados como aqueles que estavam ligados ao Partido Federal, mas deve-se salientar que republicanos que não estavam de acordo com as ideias de Júlio de Castilhos e monarquistas, prejudicados com a política republicana, do mesmo modo, faziam parte desse grupo.

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O ponto de confluência da Revolução Federalista com a Revolta da Armada, juntamente com ele-mentos rebeldes catarinenses e paranaenses deu-se na cidade de Desterro, onde chegou a formar-se um Governo Provisório Revolucionário o qual deveria ser a representação da aliança entre as diversas forças rebeldes contra os mandatários da República [...] (ALVES, 2002, p.35).

Não se pode esquecer que os republicanos contavam com a força do Exército Nacional e com a Brigada Militar re-cém-criada. Mesmo que os federalistas tenham tentado a es-tratégia de enfraquecer o governo do PRR, ao acreditarem que podiam fragmentar os castilhistas, esqueceram de planejar uma sustentação material e um maior envolvimento da causa por parte dos homens que lutavam não somente por um ideal, mas para atender os interesses dos fazendeiros e dos políti-cos excluídos e contra a República, que se configurou no Rio Grande do Sul:

De um lado, os federalistas que, estrategicamente, procuravam desgastar o governo do PRR com a finalidade de provocar uma intervenção federal no estado, utilizando-se da tática de guerrilha, tendo a cavalaria como principal arma de guerra, caracterizavam-se como grupamentos de homens despossuídos de disciplina militar, mal armados, intrépidos e inconstantes, em outras palavras, era peão-guerreiro que lutava de acordo com os inte-resses do estancieiro. De outro lado, os castilhis-tas, com apoio do Exército Nacional [...] Brigada Militar e os Corpos Provisórios [...] (MORAIS, 2007, p.275).

Como bem escreveu Morais, a falta de um preparo por parte dos federalistas, na organização de seus homens e no aparato bélico, propiciou a perda dos territórios já conquista-dos e a retomada destes pelos republicanos.

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Foi no governo do presidente de Prudente de Moraes que se deu a pacificação entre federalistas e pica-paus. Sem dúvida, foi um ato mais diplomático do que realmente um atendimento das principais causas da revolta. Em 1894, com o fim da administração de Floriano Peixoto e o início do go-verno civil de Prudente de Morais, o Brasil começou a buscar a coesão e a paz tão fragmentada nos anos interiores com os militares. A melhor forma de concretizar a ideia de uma pátria era por fim às revoluções:

[...] em 23.8.1895, o gen. Galvão de Queiroz e o gen. João da Silva Tavares assinaram a convenção de paz em Pelotas, aceitando a anistia decretada pelo Prudente de Morais. Júlio de Castilhos não as-sinou a convenção, apenas aceitou a submissão dos rebeldes (FLORES, 1996, p.168).

Um exemplo disso foi a Constituição de 1891, que ficou intocável, no tratado de paz assinado em agosto de 1895: “O confronto militar representou o ápice da bipolarização político-partidário que domina o cenário gaúcho desde a Proclamação da República” (ALVES, 2002, p.33). Sabe-se que a “paz” esca-moteou e manteve os ânimos dos contrariados em relação à hegemonia do PRR e dos seguidores de Júlio de Castilhos. Em 1923, outra revolução foi feita para acabar com as inúmeras re-eleições de Borges de Medeiros e finalmente modificar a cons-tituição de 1891.

Não foi somente a assinatura do Tratado de Paz que en-cerrou a Revolução Federalista, mas vários fatores foram deci-sivos para o acordo, como o grande números de combatentes mortos (Ilustração 4), já que: “A revolução terminou à exaus-tão dos guerrilheiros e por morte dos principais chefes” (FLO-RES, 1996, p.168). O resultado desta guerra civil foi de grande impacto para o Rio Grande do Sul, pois, além de baixas entre 10 e 12 mil homens, o conflito “[...] gerou o ódio entre famílias e oligarquias políticas, fortalecendo a centralização do poder em mãos do Partido Republicano[...]” (FLORES, 1996, p.168).

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Ilustração 4 – Trincheira da Panela do Candal, em Bagé

Fonte: FLORES, 2006, p. 141.

A memória coletiva6 do gaúcho não resguardou por muito tempo o ocorrido entre 1893 e 1895. Diferente da Re-volução Farroupilha, que ainda hoje é comemorada no dia 20 de setembro, a Revolução Federalista teve mais importân-cia no rumo da política rio-grandense, em comparação da-quela ocorrida em 1835. O fato é que os farroupilhas foram elevados pela literatura romanceada ao panteão dos grandes heróis guerreiros, enquanto que na Federalista, os principais líderes foram esquecidos ou morreram no próprio conflito. O único que foi devidamente perpetuado de forma destaca-da é Júlio de Castilhos.

O que chama a atenção é que um dos principais moti-vos para o início do conflito foi justamente as práticas autori-tárias do chefe político do PRR. Sem ceder em nada em suas ideologias, Castilhos assistiu, fora do campo de batalha, todo o desenrolar da revolução. Mesmo assim, Porto Alegre abriga

6 Entende-se por memória coletiva “[...] aquela formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes e que são guardados como memória oficial da sociedade. Ela geralmente se expressa naquilo que chamamos de lugares da memória que são os monumentos, hinos oficiais, quadros e obras literárias e artísticas que expressam a versão consolidada de um passado coletivo de uma dada sociedade” (SIMSON, 2000, p.63, grifo da autora).

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sua memória em um monumento que narra a vida de Júlio de Castilhos de forma ideológica e a partir de sua glorificação.

Isso se deve principalmente pela iniciativa dos repu-blicanos do PRR que, com propagandas, discursos, homena-gens e monumentos construíram um Júlio de Castilhos bem diferente daquele quando vivo. Após sua morte, os atos de-preciativos de Castilhos foram aos poucos sendo apagados da lembrança da sociedade, restando apenas aquilo que era para ser lembrado, mesmo que seja uma lembrança forjada para atender os interesses de um grupo restrito.

Para a História do Rio Grande do Sul, a Revolução Fe-deralista trouxe mudanças significativas para a sociedade. Os ideais do PRR iriam pendurar até 1930, principalmente por meio das inúmeras reeleições de Borges de Medeiros no go-verno do estado. Mesmo assim, serão germinadas as primeiras sementes da bipolarização partidária e a cultura de se apoiar esta ou aquela ideologia.

Para os gaúchos, o “acerto de contas” entre maragatos e pica-paus foi visto mais com repúdio do que realmente com admiração. O que permanece sobre o episódio, ainda é aquela visão de discórdia entre “irmãos”, pois houve uma luta entre iguais por uma causa política, na qual a valentia, tão exaltada na figura do gaúcho, desta vez não foi exaltada de forma mitológica. Pelo contrário, existe um tabu em rela-ção ao acontecido.

Desta vez, o gaúcho imortalizado pelas “peleias” não foi o personagem principal a ser lembrado, mas sim a violência extrema e suas consequências para o rumo do Rio Grande do Sul. Neste caso, de heróis, os envolvidos na Revolução passa-ram a ser lembrados pelos dois lados como os vilões da histó-ria e estão longe de serem personificados como aquele “mito [...] associado a um cavaleiro indomável, viril, hábil no ma-nejo das armas, guerreiro valente, capaz de suportar grandes sacrifícios e reveses” (KAISER, 1999, p.37).

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COLONIZAÇÃO – SEGUNDA FASE

* René E. Gertz*

1 A imigração

Até os indígenas que habitavam o território que veio a constituir o Rio Grande do Sul provinham de um processo de migração. Isto significa que, a rigor, neste estado, ninguém é “autóctone”. Por esta razão, neste texto, não será feito qualquer esforço para distinguir, de forma criteriosa, entre “imigração”, “migração” e “colonização”. Estas palavras, obviamente, não são sinônimas, mas, de fato, se tratará, aqui, do processo de colonização resultante da migração de pessoas vindas de outros continentes, a partir do século XIX, processo, normalmente, chamado de imigração. Esse processo fez com que determina-das regiões do estado apresentassem características socioeco-nômicas, políticas, culturais, religiosas específicas.

Em um segundo momento, populações descendentes desse processo deram origem a migrações internas e à coloni-zação de novas áreas, muitas vezes, sem que daí resultasse uma configuração social, política, cultural, religiosa totalmente di-ferente daquela que a originou. Isto fez com que aquelas três citadas palavras, muitas vezes, sejam utilizadas como sinôni-mos, na linguagem cotidiana. Para dar um exemplo concreto – cidadãos que se referem a Cerro Largo costumam chamá-lo de município de “imigração alemã” ou de “colonização alemã”, ainda que ele tenha resultado, basicamente, de um processo de migração interna, de forma que poucos dos seus colonizado-res eram, efetivamente, alemães.

Pretende-se fazer, aqui, alguns comentários muito bre-ves e gerais a respeito dos processos de imigração, migração e

* Doutor em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim. Professor nos Departamentos de História da PUCRS e da UFRGS.

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colonização, desde o início do último quartel do século XIX, com o início da vinda de imigrantes italianos e poloneses, mais a continuidade da vinda de novos contingentes de alemães. E, no século XX, tem-se, ainda, a vinda de judeus, de japoneses e de vários outros grupos numericamente menores.

Os três primeiros grupos são, porém, aqueles que mais fortemente marcaram a paisagem humana, socioeconômica, política e cultural do estado, e são alguns aspectos desta pai-sagem, em sua configuração até a atualidade, que se tentará abordar. Evitou-se uma tediosa enumeração de nomes e datas de fundação de núcleos coloniais através do tempo. O objeti-vo é tecer algumas considerações que não apenas apresentem informações sobre o passado, mas também ajudem a entender aspectos do presente.

Por ter sido abordada em capítulo específico, não se fará referência aos resultados da imigração açoriana. Também não se fará nenhuma referência ao ingresso de pessoas vindas dos países vizinhos, tampouco ao desdobramento da presen-ça portuguesa ou da introdução forçada de negros, trazidos como escravos.

Na década de 1870 iniciou uma nova fase no processo de imigração e colonização, com a chegada de grupos significati-vos da península italiana e da Polônia. Grosso modo, essa fase se estendeu até a Primeira Guerra Mundial (1914). Não que antes dessa data representantes desses dois grupos estivessem totalmente ausentes – basta lembrar Garibaldi ou Zambecari, personagens importantes da Revolução Farroupilha, mas tam-bém Gudowski ou Stepanowski, menos conhecidos da mesma Revolução ou das guerras no Prata, no início da década de 1850. Mas, no último quartel do século XIX, o modelo de co-lonização iniciado 50 anos antes, com alemães, foi continuado, em outros territórios e com imigrantes de outras origens.

Naquilo que tange aos imigrantes vindos da penínsu-la italiana, fundaram-se três colônias na encosta superior

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do Nordeste do estado: Conde d’Eu (mais tarde, Garibaldi), Dona Isabel (mais tarde, Bento Gonçalves) e Caxias. Uma “quarta colônia” foi fundada, mais ou menos na mesma épo-ca, na região central do estado, próximo a Santa Maria, tendo como centro Silveira Martins. Com isso, foram colocadas, no mapa gaúcho, duas “manchas” relativamente grandes, que vi-riam a simbolizar a presença italiana, de forma que, até hoje, a opinião pública associa “colonização italiana”, basicamente, com a região serrana e com a “Quarta Colônia”, ainda que elas, entrementes, se tenham espraiado, abrangendo grande quantidade de municípios das circunvizinhanças, e muitas outras regiões do estado.

Ao contrário da colonização com italianos, que teve, nos seus inícios, essas duas áreas centrais relativamente compac-tas, a colonização com poloneses foi mais dispersa. Seu assen-tamento inicial foi, predominantemente, em áreas de coloni-zação nas quais outros grupos constituíam a maioria – com destaque para os citados núcleos de colonização italiana. Em períodos posteriores e em momentos diferentes, foram, po-rém, feitos assentamentos mais concentrados também com poloneses em, no mínimo, mais seis locais espalhados por di-versas regiões. Assim, dois foram localizados ao Sul de Porto Alegre (as colônias de Dom Feliciano e Mariana Pimentel), um em Guarani das Missões, outros em Ijuí, em Erechim e em São Marcos.

Além das colônias de tradição mais antiga com alemães, e das posteriores, com italianos e poloneses, em 1904, foi es-tabelecida a colônia Philippson, próximo a Santa Maria, com imigrantes judeus vindos do Leste europeu; oito anos depois, foi estabelecido outro núcleo ao Norte do Estado, na região de Erechim, a colônia Quatro Irmãos. Ainda que os dados nu-méricos sobre os judeus sejam divergentes, apontam para 100 a 350 pessoas que teriam vindo para o primeiro e cerca de 450 para o segundo desses núcleos (WAINBERG, 2004, p. 72;

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GRITTI, 1997, p. 92). Afora aqueles vindos para esses núcleos, naturalmente também aconteceu o ingresso de avulsos, vin-dos antes e depois dessas datas.

Diferente daquilo que aconteceu com alemães, italianos, poloneses e seus respectivos descendentes, que, em gerações sucessivas, migraram tanto para o interior, estabelecendo no-vos núcleos coloniais do respectivo grupo, quanto para centros urbanos, os colonizadores judeus, em sua quase totalidade, abandonaram seus lugares de assentamento agrícola original e migraram para centros urbanos, de forma que os núcleos originais praticamente deixaram de existir ou, então, foram ocupados por populações de outra origem.

Finalmente, merece referência a imigração japonesa. Para o Brasil, como um todo, ela começou em 1908, destinan-do-se, em especial, para o Sudeste do País. Por isso, no censo demográfico de 1940, registraram-se apenas 199 japoneses no Rio Grande do Sul, com pequenos núcleos não consolidados em Horizontina e em São Sebastião do Caí. A partir da segun-da metade do século XX, essa imigração, porém, foi retomada, de forma que, além de famílias isoladas espalhadas por dife-rentes localidades, estabeleceram-se novos grupos em Ivoti, Santa Maria, Viamão, Itati e outros lugares.

2 Quantos são e onde estão os colonizadores?

A Primeira Guerra Mundial e, depois, a Revolução de 1930 constituem dois importantes divisores de água na ques-tão da imigração. A Guerra criou dificuldades físicas para a própria vinda de novos contingentes, e a Revolução repre-sentou uma mudança definitiva de rumo na forma de pensar das autoridades brasileiras da época sobre a colonização por meio de imigrantes, com preocupações sobre eventuais efeitos negativos da diversidade da população para a constituição da nacionalidade, motivo pelo qual começaram a ocorrer restri-

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ções a determinados grupos, no início, até que o projeto de imigração, como um todo, fosse colocado sob suspeita.

Evidentemente, o Rio Grande do Sul recebe imigrantes até hoje, mas não são mais contingentes comparáveis aos do período áureo de que se trata aqui. O ano de 1930 também sinaliza a sensação de saturação do espaço gaúcho para novos projetos colonizadores, dentro da própria sociedade – mes-mo que nem todo o território estivesse ocupado, começava-se a sentir a necessidade de buscar novos espaços para além da fronteira estadual. Simbolicamente, essa sensação está repre-sentada na fundação das colônias “rio-grandenses” de Porto Novo (hoje, Itapiranga) e Porto Feliz (hoje, Mondaí), no ex-tremo Oeste catarinense, na década de 1920. Na sequência, iniciou um duradouro fluxo colonizador de gaúchos, que, en-trementes, atingiu as fronteiras mais distantes do País, e até ingressou em países vizinhos.

Isso significa que, em torno de 1930, existia um qua-dro mais ou menos definido sobre a influência da imigração e da colonização sobre a ocupação do espaço gaúcho e sobre a composição étnico-cultural da população, o qual, nas décadas seguintes, registrou o desdobramento natural desse processo. Mesmo que todos os dados estatísticos a esse respeito devam ser vistos com muita cautela, e os números, com certeza, care-cem de precisão absoluta, pois até as cifras dos censos demo-gráficos apresentam discrepâncias, pode-se desenhar o qua-dro de uma tendência geral.

Em função da crise política que desembocou na Revolu-ção, não ocorreu o censo demográfico de 1930. Mas como se tem números ao menos aproximados sobre o total de habitan-tes do Rio Grande do Sul levantados pelos censos de 1920 e de 1940, pode-se pressupor, por meio de um cálculo da média, que em 1930 eram cerca de 2.600.000 habitantes. Um relató-rio apresentado pela Secretaria de Obras Públicas, no ano de 1930, indicava que os imigrantes de que este capítulo trata,

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mais seus descendentes, eram calculados em, aproximada-mente, 850.000. Isso representaria 32% da população total do estado (GRITTI, 2004, p. 79).

Estudos específicos sobre os diferentes grupos, porém, apontam para percentuais maiores. Jean Roche, ao referir-se a alemães e descendentes, apresenta autores e conjecturas pró-prias que sugerem números superiores aos 400.000 admitidos pela fonte citada, chegando a trabalhar com a hipótese de que, 20 anos depois, em 1950, 21% da população gaúcha eram de origem alemã (ROCHE, 1969, p. 169-170). Loraine Slomp Giron e Vania Herédia (2007, p. 25) calculam que, já em 1920, o conjunto da “população colonial” teria representado 41,5% do total. E Isabel Gritti considera sub-representados nas estatísticas os números de nascimentos de filhos de poloneses, com que também pleiteia para esse grupo um número maior que o indicado na fonte governamental (GRITTI, 2004, p. 80).1

Por tudo isso, mesmo que as deficiências estatísticas não permitam afirmações categóricas sobre o montante da popu-lação originária do processo de imigração e colonização aqui abordado, é plausível dizer que, a partir de 1930, cerca de 40% da população estadual passou a ser constituída por aqueles que, até hoje, muitas vezes, são chamados de “imigrantes”, ainda que a quase totalidade deles já tenha nascido brasileira.

Uma parte da opinião pública gaúcha possui uma visão correta sobre a localização desses “imigrantes”. Mesmo assim, convém apontar para algumas peculiaridades. Quem viajar pelo interior do município de Bagé – um dos mais típicos da campanha gaúcha – poderá deparar-se com a Colônia Nova, um núcleo de gente com características físicas tipicamente norte-europeias, que em parte se comunica por meio de uma língua que não é a portuguesa, e que frequenta uma igreja cuja denominação não é corriqueira – Menonita.

1 Uma discussão sobre as diferentes fontes estatísticas em torno da população de origem alemã encontra-se em Schäffer (1994).

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O mesmo viajante poderá encontrar, não muito distante de Bagé, um município (Hulha Negra) no qual verá inscrições do tipo “Açougue Becker”, mas quando se dirigir ao proprie-tário na língua alemã não será compreendido, de forma al-guma. E situações semelhantes são encontráveis por todo o estado, denotando que os imigrantes e descendentes deixaram suas marcas, ainda que essas marcas possam ter características muito diferentes de lugar para lugar.

Mas não há dúvida de que aquilo que caracteriza o esta-do são as grandes “manchas” geográficas decorrentes do pro-cesso de colonização em pauta. Algumas dessas “manchas” são mais visíveis e citadas por qualquer cidadão gaúcho, ou até brasileiro, consultado por um destes institutos que pro-curam estabelecer hierarquias de “marcas mais lembradas”. Mas há outras “manchas” quase ignoradas por completo, pela opinião pública.

Neste sentido, cabe, justamente, chamar a atenção para a extensa área de colonização localizada ao Sul de Porto Alegre, em uma área que, grosso modo, compõe um triângulo imagi-nário, com vértices na Capital, em Pelotas e em Canguçu – área que, mais próximo de Porto Alegre, abriga os citados núcleos de colonização polonesa (Dom Feliciano e Mariana Pimentel), mas também Sertão Santana, de colonização alemã.

O estabelecimento dos imigrantes e de seus descenden-tes nesta região deu-se de uma forma um tanto diferente da usual, pois não aconteceu em áreas de florestas, mas sim em áreas já ocupadas por populações tradicionais do estado, de origem portuguesa, açoriana, incluindo negros de origem es-crava, índios, e indivíduos resultantes da miscigenação desses vários grupos. Ainda que localmente ocorram casos em que os “imigrantes” foram e continuam sendo maioria (em algumas partes dos antigos municípios de São Lourenço do Sul e de Pelotas), foram minoria no conjunto daquela região, tendo-se “infiltrado” entre a população majoritária.

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Simbolicamente, essa realidade pode ser ilustrada pelo município de Canguçu, incluindo a própria sede, uma comuna de ocupação “tradicional”, na qual se imiscuíram imigrantes que acabaram de conferir-lhe uma situação socioeconômica e humana que é típica das mais tradicionais áreas de imigração – o município se apresenta como aquele que possui o maior número de minifúndios de todo o Brasil.

Talvez por ser menos visível – isto é, menos lembrada – como região de colonização centro-europeia, a história e a configuração atual dessa área do sul ainda foram pouco estu-dadas. Mas não há dúvida de que esse espaço geográfico apre-senta algumas características peculiares, em uma comparação com outras regiões típicas de colonização. Mesmo que se sin-tam mudanças em tempos mais recentes, as colônias daquela região nunca tiveram um desenvolvimento econômico com-parável à boa parte das outras regiões. Possivelmente pela sua localização em meio a populações de outras origens, também a paisagem cultural é sui generis – por um lado, o cultivo da língua original se perdeu em larga medida, mas, por outro, se mantiveram traços “originários” muito interessantes.

Como esses “imigrantes” são, em grande parte, de ori-gem alemã, muitos deles são luteranos e, justamente sob essa perspectiva, conservam uma originalidade que não existe em nenhuma outra região de colonização alemã – muitas comu-nidades religiosas nunca se filiaram a instituições eclesiásticas, isto é, a igrejas nacionais, mantendo-se como comunidades “livres” ou “independentes”, que se autoadministram e con-tratam, de forma totalmente autônoma, pastores. Inversamen-te, chegaram a exercer, em determinado momento, influência cultural-religiosa sobre populações pré-estabelecidas, a ponto de ter-se constituído uma comunidade luterana composta de negros, em Manoel do Rego, no interior de Canguçu.

É evidente que, sob outros aspectos, essa região de co-lonização apresenta características usualmente consideradas

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típicas, como a citada divisão da propriedade em minifún-dios, o aspecto físico das pessoas, a diversidade religiosa, a vida associativa.

Mas não há dúvida de que a região mais claramente identificada com o processo de imigração e de colonização, pela maioria da opinião pública gaúcha e brasileira, localiza--se na metade Norte do estado – abstraindo de algumas áreas do Nordeste os assim chamados “campos de cima da serra”, o restante desta parte teve algum grau de influência imigrantis-ta. Esse fato levou a um rearranjo gradativo tanto da demo-grafia quanto da economia e da própria política estadual. Em pesquisa realizada aproximadamente 20 anos atrás, foi possí-vel constatar que, ao estabelecer-se uma linha imaginária que partisse da fronteira Norte do Município de São Borja e ter-minasse na fronteira Sul do Município de Osório, ter-se-iam duas “metades”, em uma correlação que foi se modificando, no decorrer do tempo.

Em termos de superfície, a “metade” Sul é cerca de 20% maior que a “metade” Norte, mas, em 1920, o número de ha-bitantes das duas partes era mais ou menos igual. Já pelo censo demográfico de 1940, o Norte apresentou uma população 50% superior à do Sul, mostrando o intenso crescimento, duran-te um período relativamente curto de 20 anos.2 O Sul ainda apresentava uma densidade maior de pessoas com curso su-perior (2.695 graduados contra 2.138), mas, do ponto de vista econômico, a produção agrícola apontava para uma relação favorável ao Norte, em um percentual de 65% contra 35%; na-quilo que tange ao capital industrial investido, essa relação era de 53% versus 47%; quanto à renda interna municipal de 52% versus 48% – dados que indicam que o estado se encontrava em um claro processo de deslocamento de seu peso demográ-fico, mas, também, econômico para a “metade” Norte.

2 Tal dado torna mais plausível a hipótese de que, no mínimo, 40% da população gaúcha da época tenham tido origem “imigrantista”.

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Tal desenvolvimento material era mais difícil de ser con-trolado pela vontade do que outros campos da atividade hu-mana. Provavelmente, o fato de que a política pode ser mais facilmente controlada e dirigida pelos atores dominantes fez com que, desde o início da República, o número de deputa-dos estaduais de sobrenome alemão e italiano não conseguisse ultrapassar os 15%, mas, após a Segunda Guerra Mundial, os sobrenomes desses dois grupos, juntos, atingiram 41%, nas eleições de 1947, e 35%, nas de 1950. Isso indica que também se registra uma ascensão política definitiva do mundo “colo-nial”, a partir daquele momento (GERTZ, 1991, p. 74-76).

Com isso, a resposta à pergunta sobre o número e a lo-calização dos imigrantes e de seus descendentes pode ser dada com algum grau de segurança: desde aproximadamente 1930, pode-se pressupor que, no mínimo, 40% da população gaúcha são descendentes de alemães, italianos, poloneses, judeus e ja-poneses, e eles se concentram, sobretudo, na metade Norte do Rio Grande do Sul, apesar de que, evidentemente, nem todos os habitantes dessa área são “imigrantes”.

3 Elogio da diferença

Alguns anos atrás, foi escrito um pequeno texto jorna-lístico com o subtítulo deste item, no qual se tentou mostrar que uma parte muito significativa da opinião pública gaúcha e brasileira pensa que todos os “imigrantes” e todas as “colô-nias” são iguais – iguais entre si, mas também iguais em sua diferença em relação àquilo que é considerado tipicamente gaúcho ou brasileiro.3

Inicia-se por este último ponto, que é utilizado tanto por aqueles que se mostram simpáticos em relação ao projeto de imigração e colonização, quanto por aqueles que o criticam.

3 Ver Gertz (2004).

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Aqueles que simpatizam com os resultados da imigração des-tacam aspectos diferenciais considerados positivos em relação àquilo que se imagina como sendo a realidade brasileira típi-ca – os imigrantes colonizadores teriam trazido muitas coisas boas, como a modernização econômica para um estado con-siderado tradicional, o ethos do trabalho e a disposição para a ordem, na vida cotidiana.

Os críticos negativos apontam para a importação de tra-dições culturais que são consideradas diferentes daquilo que se costuma ver como cultura “típica” do estado; os imigrantes alemães – em grande parte protestantes – teriam rompido a unidade religiosa; mas, sobretudo, em uma decisão político--administrativa errada, alemães, italianos e poloneses teriam sido estabelecidos em núcleos coloniais etnicamente homo-gêneos, cuja consequência teria sido a preservação das carac-terísticas étnicas, culturais e religiosas, a não miscigenação e o consequente desenvolvimento de “quistos étnicos” (deve-se destacar que, na linguagem médica da época em que essa ex-pressão surgiu, a palavra “quisto” estava intimamente associa-da ao câncer).

As avaliações favoráveis e desfavoráveis serão retomadas logo adiante. Antes disso, porém, se pretende falar de outro tipo de diferença. Mesmo no período imperial, havia projetos de colonização “oficiais” e “particulares”, mas, para a atualida-de (entenda-se: depois de 1875), essa distinção adquire im-portância maior, pois o resultado – ao menos em alguns casos – será bastante diferente. Os republicanos gaúchos justamente se preocuparam em evitar colônias homogêneas do ponto de vista étnico e religioso. E duas colônias fundadas no início da República simbolizam essa política: Ijuí e Guarani.

Ijuí é suficientemente conhecido para um público mini-mamente informado. De Guarani, porém, deve-se dizer que o território não é idêntico ao atual município de Guarani das Missões. A velha colônia Guarani abrangia um espaço geográ-

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fico mais amplo, que, grosso modo, se estendia da atual cidade de Guarani das Missões até Santa Rosa.

Tanto Ijuí quanto Guarani se caracterizaram pela tenta-tiva de estabelecimento de colonizadores das mais diferentes origens étnicas e religiosas – incluindo aqueles que, na lin-guagem da época, eram denominados “nacionais”, isto é, pes-soas que não eram descendentes de nenhuma das principais correntes imigratórias centro-europeias. No citado pequeno texto intitulado Elogio da diferença, arrolou-se uma série de nomes de colonizadores pioneiros extraídos de um livro edi-tado por Frei Rovílio Costa (2004) sobre a colônia Guarani: Gaudêncio da Silva, Johann Johansson Knckta, Saveli Bujaj, Adolpho Capeletti, Gustav Schultz, Henri van Ecnov, Samsão Formine Doyko, Nikifor Frondrolnk, Alessander Juntaxna, Matts Mattsson Maaempão, Jacob Majer, Francisco Przjbsz.

Abstraindo do fato de que em alguns desses nomes foi tentado um “aportuguesamento” e de que outros devem estar escritos errados, essa nominata dá uma ideia da variedade de origem étnico-nacional dos primeiros colonizadores de Gua-rani. As diferenças religiosas, evidentemente, não são visíveis pelos nomes, mas fato é que a quase totalidade das confissões religiosas que um brasileiro mais ou menos informado pode-ria imaginar, até uns 30 ou 40 anos atrás, estiveram represen-tados nessa colônia.

Em Ijuí, aconteceu algo muito parecido. Em relação a esta colônia, basta referir a conhecida FENADI – Feira Nacio-nal das Etnias Diversificadas –, que é organizada com a parti-cipação de mais de dez grupos diferentes.

Naquilo que tange à colônia de Guarani, cabe, ainda, ressaltar que o centro urbano mais significativo de alguma forma vinculado a esse projeto é a cidade de Santa Rosa. Tanto por razões doutrinárias (o princípio positivista de separação rígida entre os poderes temporal e espiritual), quanto por ra-zões práticas decorrentes do número de confissões religiosas com representação percentualmente importante, Santa Rosa

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é, possivelmente, a única cidade desse porte, no Rio Grande do Sul, em que não há qualquer igreja no entorno – nem pró-ximo – da praça central.4 Todas as confissões religiosas, com número razoável de membros, receberam terrenos, em algum lugar da cidade, para construir sua igreja, incluindo os orto-doxos russos, que possuem um templo próximo à antiga esta-ção de trem.

A experiência da colônia Guarani transformou toda a região do Grande Santa Rosa na área mais ecumênica do es-tado – ali habitam os colonizadores das mais diferentes ori-gens étnicas e das mais diferentes origens religiosas. Este é, possivelmente, o motivo pelo qual a região também apresenta um grande ecumenismo político, palpável no fato de que os resultados eleitorais das últimas décadas mostram uma distri-buição muito equitativa ao longo do espectro político, isto é, os votos se distribuem de forma muito igual entre “direita” e “esquerda”, sem predominância de nenhum grupo.

Claro, nenhuma explicação sobre o funcionamento da sociedade é simples, motivo pelo qual cabe inserir, aqui, outro aspecto da diversidade entre as “colônias”, decorrente da sua expansão normal por meio das migrações internas. É prová-vel que aos efeitos da diversidade étnica e religiosa da região de Santa Rosa se alie outro fator para explicar o ecumenismo. Todas essas “colônias” localizam-se na fronteira noroeste do estado, portanto em uma área que representou o final da linha de expansão sucessiva decorrente da migração dos excedentes populacionais das assim chamadas “colônias velhas”, localiza-das mais a Leste.

Considerando esse fato, torna-se plausível outra hipótese sobre o caráter ecumênico-progressista da região noroeste – é claro, deve-se alertar que não se trata de um “progressismo”

4 Sobre essa questão de igrejas na praça central, o projeto de colonização foi responsável por alguns outros casos peculiares, no contexto gaúcho: em Candelária, na praça central, existe uma igreja luterana; em Ijuí, há uma igreja católica, de um lado, e uma luterana, na mesma posição, do outro.

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verbal, no sentido de que as populações costumassem dizer que são especialmente “democráticas”, “modernas”, “avançadas”. Elas próprias, pelo contrário, não têm qualquer consciência dis-so, pois essa realidade só é perceptível ao observador externo, com certo treinamento para fazer comparações, observando diferenças de comportamento efetivo. Não há como compro-var essa hipótese, ainda que ela pareça lógica.

Repetindo, além do ecumenismo étnico e religioso, é le-gítimo conjecturar que o comportamento progressista da po-pulação pode derivar, também, do longo processo de migra-ção sucessiva. A lógica é a seguinte: conforme disse o grande sociólogo Max Weber, por natureza, os homens gostariam de viver como e onde sempre viveram. Acontece que o aumento populacional e o esgotamento do solo pressionam as pessoas a procurarem novos lugares para se estabelecer. Só que, de duas pessoas que sofrem a mesma pressão social para sair do lugar em que sempre viveram, uma pode decidir-se a ir, para tentar melhorar de vida, e a outra permanecer, sem a preocupação ou a ânsia de melhorar. Por essa lógica, os mais progressistas teriam levantado acampamento para tentar melhorar de vida, os mais tradicionais e acomodados teriam ficado – um proces-so desses, repetindo-se por várias gerações, teria levado a uma “seleção”, da qual resultaria uma região mais dinâmica, mais progressista.

A necessária modéstia do historiador o obriga a admitir que nem a lógica do ecumenismo nem a lógica da seleção pro-gressiva pela migração explicam tudo. Isso fica claro quando se fala de outro tipo de colonização, a colonização particular. É que projetos de colonização também foram levados a efeito por iniciativa privada, seja por meio de empresários indivi-duais, seja por meio de empresas ou de organizações que não possuíam “dono”. Por mais que os positivistas republicanos de-saconselhassem esse tipo de colonização, pois tendia a consti-tuir colônias homogêneas, na prática, não tomaram qualquer

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medida incisiva para impedi-lo, de forma que se tem grandes empreendimentos coloniais com esta última característica. Dois exemplos, cujos inícios datam da virada do século XIX para o XX, ilustram essa situação. Um é Panambi, o outro Cer-ro Largo – ambos se localizam na região Noroeste do estado.

Panambi foi um projeto de empreendedor pessoal, que estabeleceu uma série de condições e de empecilhos que fi-zeram com que os compradores de lotes coloniais acabassem apresentando algumas características comuns, étnico-cultu-rais e religiosas. Isto conferiu certa uniformidade a essa co-lônia, criando uma mística comunitária, que, evidentemente, pode ter-se refletido tanto em uma mentalidade comum, mais ou menos uniforme, quanto no tipo e no ritmo do desenvolvi-mento socioeconômico.

Cerro Largo, por sua vez, não resultou da iniciativa de uma pessoa, mas de uma instituição. Planejada e iniciada pela associação de agricultores, uma entidade ecumênica do ponto de vista religioso, passou, pouco depois, ao controle da União Popular, uma organização católica, a qual exerceu forte con-trole sobre os candidatos à compra de lotes – coisa que prati-camente era impossível sem a apresentação de uma declaração do padre da comunidade de origem, atestando bom compor-tamento e militância religiosa. Certamente, não constitui exa-gero atribuir a esta prática a constatação de que essa colônia constitui um dos mais importantes “celeiros” de seminaristas católicos do Rio Grande do Sul.

Esses poucos exemplos pretenderam mostrar que se há alguns elementos que são praticamente universais em todas as “colônias”, como uma estrutura agrária de pequena proprieda-de, uma ascendência étnica centro-europeia de grande parte da população, com o cultivo de algum tipo de identidade, com a eventual preservação da língua dos antepassados, uma pre-sença marcante das igrejas, há, também, diferenças não despre-zíveis, decorrentes da história peculiar de cada colônia, da fase

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em que foram instaladas, da composição humana. Nem tudo é tão igual quanto o senso comum, muitas vezes, imagina.

4 As populações “tradicionais” e os “colonos”

É óbvio que uma parcela significativa da população que já se encontrava no estado viu com bons olhos a chegada de imigrantes, na expectativa de que viessem a dar uma contri-buição importante para o desenvolvimento econômico e hu-mano. E essa perspectiva continua presente até os dias de hoje. Mas é óbvio que elogios, simpatia, convivência harmônica não despertam tanto a atenção nem recebem tantas referências na opinião pública quanto eventuais antipatias, atritos ou até conflitos abertos. Por essa razão, se farão aqui algumas obser-vações sobre esta segunda forma de encarar as “colônias”.

Não há qualquer dúvida de que, em relação aos cinco grupos de colonizadores citados aqui (alemães, italianos, ja-poneses, judeus, poloneses), ocorreram, em algum momen-to da história brasileira, manifestações desabonadoras. Essas manifestações podem ter variado de intensidade, de grupo para grupo e de período para período, mas possuem uma tra-dição que não se restringe ao estado do Rio Grande do Sul. Tal fato, associado a eventuais circunstâncias agravantes, levou a alguns atritos e até a conflitos abertos.

E havia uma acusação comum a praticamente todos eles – a de terem formado os já citados “quistos étnicos”. To-dos os países que se constituíram a partir de processos de colonização cultivam algum grau de expectativa em relação a imigrantes no sentido de que, tão logo se estabeleçam, se desfaçam de suas características culturais específicas, e ado-tem aquelas características que são vistas como típicas do país que os acolheu. Mas o fato de que, no Rio Grande do Sul, tal prática não foi seguida à risca, por causa do estabe-lecimento da maioria das “colônias” em áreas em que havia

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relativamente poucos habitantes “tradicionais”, fez com que os processos que os sociólogos de determinada época cha-mavam de “assimilação” ou “aculturação” fossem mais lentos. Muitas vezes, preservou-se a língua, os casamentos se deram entre membros do mesmo grupo, até houve casos em que os já estabelecidos foram “assimilados” ou “aculturados” aos recém-chegados – o caso mais folclórico é o de negros que passaram a falar a língua dos imigrantes e até a identificar-se como pertencentes à respectiva etnia.

Claro, mais uma vez, essas constatações não são válidas, de forma linear, para todos os cinco grupos. Opiniões desabo-nadoras sobre os judeus, por exemplo, são milenares e estão difundidas em todo o Ocidente, não só no Brasil.

Naquilo que tange aos poloneses, a ênfase não recaía tanto sobre um suposto “enquistamento étnico”, mas, muito mais, sobre uma suposta má qualidade humana dos imigran-tes e de seus descendentes; eram vistos como preguiçosos, beberrões, relaxados, ladrões. Se os judeus podiam ser vistos como perigosos justamente pela sua astúcia em “apunhalar a nacionalidade pelas costas”, a imigração polonesa era encara-da como prejudicial, porque os imigrantes e seus descenden-tes eram vistos como pessoas de segunda categoria.

Os perigos apontados como decorrentes do suposto “en-quistamento” referiam-se, sobretudo, aos três outros grupos de imigrantes e descendentes – alemães, italianos e japoneses. Mesmo que em relação aos dois primeiros as prevenções te-nham vindo desde o século XIX, com uma primeira fase mais aguda durante a Primeira Guerra Mundial, a situação che-gou a um auge durante a Segunda Guerra Mundial, quando as acusações sobre as supostas dificuldades de constituir uma nação una e uniforme se juntaram às do perigo de invasão por parte de potências estrangeiras, com a possível ajuda dos seus “súditos” aqui estabelecidos, os quais funcionariam como “quinta-coluna” para preparar o caminho às tropas invasoras.

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Tal situação levou a confrontos físicos, no contexto da Segunda Guerra Mundial, os quais deram origem a um clima de estranhamento que perdurou por muitos anos – ao menos naquilo que tange a alemães e italianos, mais seus respectivos descendentes, já que esses eram os dois grupos numericamen-te mais presentes. Essa situação, a rigor, só mudou quando, em 1974/1975, o governo do estado promoveu o “biênio da imigração e colonização”, com homenagens oficiais pela pas-sagem dos 150 anos da imigração alemã e 100 anos da imigra-ção italiana.

Mesmo que as homenagens mais enfáticas fossem feitas em relação a esses dois grupos, o fato de que o próprio gover-no estava comemorando a presença dos “imigrantes” refletiu sobre o ânimo de praticamente todas as “etnias”, e, na sequên-cia, aconteceu algo que se poderia chamar de “re-etnização”. Como a interdição fora levantada pelo próprio poder público, o cultivo da identidade e a manifestação da autoestima pas-saram a ser vistos como plenamente liberados. Entre muitos outros reflexos dessa nova situação, a mais visível, certamente, são as festas populares.

Mais uma vez, há diferenças entre os grupos – as “co-lônias” alemã e polonesa festejam suas Oktoberfest e Polfest; as grandes festas da “colônia” italiana referem-se mais à vida econômica (Festa da Uva, do Vinho, do Queijo); mas também houve a retomada de manifestações populares tradicionais, como o “filó”. Além disso, aconteceu uma revalorização da arquitetura considerada representativa dos grupos imigrantes – nas regiões de colonização alemã, as casas de enxaimel; nas de colonização italiana, as de pedra. Tanto as festas quanto a arquitetura e outros elementos culturais foram aproveitados para promover o turismo nas respectivas regiões.

De uma maneira geral, nota-se que a população do es-tado, como um todo, não faz restrições a essas práticas étnico--culturais. Pelo contrário, faz turismo nas respectivas regiões e

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se diverte nas festas. Mas não há unanimidade a respeito. O fato de que, desde o final do regime militar, vem acontecendo alguns episódios classificados como “neonazistas” fez com que a lógica da antiga tese do “enquistamento” tenha, novamente, ganho al-guns adeptos na opinião pública.

Mesmo que não haja indícios concretos de que os des-cendentes dos imigrantes sejam os responsáveis pelos atos classificados de “neonazistas”, até autoridades atribuem, pu-blicamente, a responsabilidade aos “imigrantes”. Assim, um delegado de polícia que costuma ser apresentado como expert no combate a “neonazistas” disse, em abril de 2011, a uma repórter que o entrevistou a respeito do assunto: “A senhora lembra o seguinte: o sul do Brasil é basicamente originário de colonização alemã, italiana, polonesa” (BARROS, 2011).

Tal observação, feita por um agente do estado, obvia-mente, lançou uma grave suspeita sobre os três grupos. Isso sem falar de muitas outras observações, no mesmo sentido, espalhadas pelos meios de comunicação. Não há pesquisas sé-rias para aferir que percentual da população gaúcha compar-tilha desta última opinião em relação aos “imigrantes”. Mas o fato de que opiniões desse tipo circulam – até são divulgadas por autoridades – mostra que o projeto imigrantista e seus re-sultados ainda não estão totalmente assimilados.

5 Os “colonos” e o Rio Grande do Sul

Independente das opiniões de parte da opinião pública, as comunidades resultantes do projeto de imigração apresen-tam algumas características decorrentes, não tanto da origem da população, mas muito mais da estrutura social que ali se criou. Se é verdade que o desenvolvimento econômico acabou levando a uma grande diferenciação social, entre os mais ricos e os mais pobres, naquelas “colônias” que se transformaram em grandes centros industriais, também é verdade que duran-

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te muitos anos essas comunidades se caracterizaram por uma relativa igualdade social, a qual ainda sobrevive em muitas regiões que não experimentaram um processo acentuado de industrialização.

E essa igualdade relativa criou, nessas comunidades, tradições democráticas que sobrevivem até hoje. Nas listagens com os Índices de Desenvolvimento Humano dos municípios brasileiros, essas comunidades aparecem no topo. Da mesma forma, chama atenção um dado sobre a participação feminina na política dessas comunidades. Os dados numéricos sobre as mulheres-prefeitas que o Rio Grande do Sul teve, desde 1982, indicam uma clara predominância dos sobrenomes de origem alemã, italiana e polonesa, ou, ainda, de mulheres com outro sobrenome em municípios típicos de colonização com um dos três grupos.

Em um estudo sobre as vereadoras eleitas em 1992 e 1996, constatou-se que, na primeira data, 57% tinham sobre-nomes alemães e/ou italianos, e, na segunda, esse percentual era de 61%. Se somados os sobrenomes poloneses, certamente seriam mais de 70% de sobrenomes “imigrantes”. A explica-ção, mais uma vez, está na estrutura familiar relativamente de-mocrática, permitindo o envolvimento das mulheres.

Há vários anos, a Confederação Nacional dos Municí-pios realiza uma pesquisa na qual são calculados os níveis de atendimento proporcionado pelas administrações municipais brasileiras para seus cidadãos. A lista elaborada a partir dos resultados desse cálculo é encimada por aqueles municípios que atendem ao maior número possível de cidadãos, da forma mais equitativa possível, com os recursos existentes, isto é, os impostos arrecadados. E essa lista registra, no seu topo, exa-tamente uma grande quantidade de municípios “coloniais” do Rio Grande do Sul. Para exemplificar – São José do Hortêncio, no Vale do Rio Caí, sustentou o primeiro lugar durante quase toda a primeira década do século XXI.

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Entre as supostas mazelas apontadas pelos críticos do projeto imigrantista, também está o racismo da população – alegadamente em níveis muito superiores do que no conjunto da população gaúcha. Da mesma forma que a acusação refe-rente às origens do “neonazismo”, também esta está fundamen-tada em dados muito frágeis, ou, até inexistentes. No mínimo, naquilo que tange aos Índices de Desenvolvimento Humano da população negra nesses municípios, eles não apontam para nú-meros mais baixos que em outras regiões. Mesmo que esse tema ainda não esteja suficientemente investigado para permitir con-clusões definitivas, alguns estudos apontam para o fato de que os próprios negros não costumam sentir maiores níveis de pre-conceito e de desconforto que em outros lugares do estado.

Para concluir, o projeto de colonização com imigrantes alemães, iniciado em 1824, e ampliado, a partir da década de 1870, com imigrantes de outras nacionalidades, trouxe trans-formações significativas para as Geografias Física e Humana do Rio Grande do Sul. Os resultados ainda são controversos. Mas é certo que nenhum grupo pensa em abandonar o esta-do, motivo pelo qual essa geografia humana não sofrerá mu-danças radicais nas próximas gerações. E não há motivo para acreditar que a convivência harmoniosa – apenas perturbada por pequenos incidentes causados por irresponsáveis – não possa melhorar ainda mais, no futuro, por meio de um melhor conhecimento recíproco.

Referências

BARROS, Ana Claudia. Os neonazistas são bem mais que meia dúzia, afirma delegado. In: Terra Magazine. 11 de abril de 2011. Disponível em: <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5070131-EI6594,00-Os+neonazistas+sao+bem+mais+que+meia+duzia+afirma+delegado.html>. Acesso em 30 jul. 2011.

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O COMEÇO DO TRADICIONALISMO GAÚCHO

* Paulo Roberto de Fraga Cirne

Século dezenove e, no Rio Grande do Sul, o gaúcho já sentia forte atração que sua querência exercia sobre ele. Este sentimento de apego ao seu torrão natal, este telurismo con-gênito, vinha certamente de uma série de fatores. Eram alguns desses fatores: a participação nas constantes lutas mantidas para a demarcação e manutenção de suas fronteiras, diante de ameaça de interesses alienígenas de além-mar; a sistemá-tica de ocupação do território da então “terra de ninguém”, esforço que mais tarde seria reconhecido, solucionando os li-mites fronteiriços; a liberdade de que gozavam os habitantes deste extremo Sul, com os seus horizontes infindos e campos imensos, onde patrão e peão esmeravam-se em suas lides do dia-a-dia, procurando um exceder o outro, mas que culmi-nava sempre na confraternização por meio da roda de mate, grande elo afetivo e real de amizade e compreensão mútuas (MARIANTE, 1976, p. 5-6).

1 Antecedentes

Importante para o surgimento do Tradicionalismo gaú-cho foi o papel de entidades que valorizaram este amor à que-rência e que, portanto, começou a tomar forma na metade do século XIX, no Rio Grande do Sul.

1.1 Sociedade Sul-rio-grandense

Em 1851, no Rio de Janeiro, o porto-alegrense, professor e historiador Antônio Álvares Pereira Coruja fundou a “Socie-

* Graduado em História. Pós-graduado em História Contemporânea. Pós-graduando em Metodologia de Ensino de História. Integrante do Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG.

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dade Sul-rio-grandense” para reunir a gauchada saudosa da querência. Esta entidade fazia reviver, na capital do Império, os costumes típicos do Rio Grande (SAVARIS, 2008, p. 177).

1.2 Sociedade Partenon Literário

No Rio Grande do Sul, a grande arrancada foi em Porto Alegre, com a fundação da Sociedade Partenon Literário em junho de 1868, por um grupo de intelectuais liderados pelo abolicionista e republicano Apolinário Porto Alegre. Por meio de sua revista, conferências, artigos em jornais e livros, seus associados proclamavam telurismo e amor a esta terra que, apesar de tão nova, era muito sofrida. O regionalismo come-çava a tomar formas, a adquirir personalidade e a se agigantar.

As primeiras obras literárias versando sobre assuntos regionais partiram do trabalho dos integrantes desta pioneira agremiação e precursora das origens do Tradicionalismo. O trabalho dos membros dessa sociedade literária foi tão impor-tante, que ganhou a simpatia até de quem vivia nas cidades, e que não tinham raízes campeiras (MARIANTE, 1976, p.6).

1.3 Grêmio Gaúcho

João Cezimbra Jacques, major do exército nacional e nascido em Santa Maria em novembro de 1849, juntamente com outros importantes nomes da época, fundou, em Porto Alegre, a 22 de maio de 1898, o Grêmio Gaúcho. Esta enti-dade, voltada às coisas da tradição sul-rio-grandense, marcou sua atuação por meio de festas memoráveis, desfiles de cava-larianos à gaúcha, conferências, palestras e outras promoções do gênero.

Sob a liderança de Cezimbra Jacques, juntaram-se ho-mens de todas as condições sociais, aflorando, através de ter-túlias de afetividades pelas coisas da terra, momentos de exal-tação cívico-patriótica e imenso amor à terra. Pode-se dizer

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que essa arrancada do culto das tradições gaúchas, na épo-ca reconhecida e prestigiada por altas autoridades do estado, foi a pedra fundamental do que mais tarde seria identificado como “Tradicionalismo gaúcho” (MARIANTE, 1976, p. 8-9).

1.4 Outros clubes

Além do Grêmio Gaúcho, antecederam a fundação do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) pioneiro as seguintes entidades: “União Gaúcha (10.09.1899, em Pelotas), Centro Gaúcho (16.09.1899, em Bagé), Grêmio Gaúcho (12.10.1901, em Santa Maria), Sociedade Gaúcha Lomba-grandense (31.01.1938, em Novo Hamburgo1) e Clube Farroupilha (19.10.1943, em Ijuí)” (MARIANTE, 1976, p. 23). Atualmente, sabe-se que mais entidades existiam além das citadas.

2 Início do Movimento Tradicionalista organizado

No final da década de 1940, a sobrevivência da cultura rio-grandense estava ameaçada pelo modismo ditado pelos es-trangeirismos. Vestir-se como campeiro e andar na cidade era motivo de gozação. Os veículos de comunicação de massa sa-turavam-se de tanto estrangeirismo. Quase ninguém pensava em tradições rio-grandenses, pois “velharia” não tinha valor.

Poucos registros de fatos do Instituto Histórico; lembran-ças dos hábitos campestres levantados por Cezimbra Jacques; referências aos “Clubes Gaúchos” do passado e poucos escrito-res regionalistas. Mais nada. Fora isto tudo, juntava-se apenas a Brigada Militar, instituição que reverenciava a figura de Bento Gonçalves junto ao Monumento no dia 20 de setembro. Em resumo: naquela época, parece que o próprio povo gaúcho ig-norava o seu patrimônio histórico cultural.

1 Lomba Grande, então distrito de São Leopoldo.

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2.1 Colégio Júlio de Castilhos

No mês de agosto de 1947, alguns estudantes do Colé-gio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, liderados por João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, fundaram o Departamento de Tradições Gaúchas, junto ao Grêmio Estudantil. O Departa-mento destinava-se a

estimular o desenvolvimento, por meio de reuniões culturais, sociais e recreativas, da belíssima tra-dição de nossos heróis do passado, incentivando a nossa juventude a que eleve sempre, e cada vez mais alto, a chama do amor à Pátria.

2.1.1 Departamento de Tradições Gaúchas

O Departamento de Tradições Gaúchas era um movi-mento estudantil de diversas camadas sociais e seguimentos étnicos, que se levantava em favor das tradições. O objetivo era achar uma trilha diante da perda da fisionomia regional; combater a descaracterização; “reagauchar” o Rio Grande. Em suma: procurava a identidade da terra gaúcha.

Aprovada a ideia, o Grêmio Estudantil do “Julinho” en-viou, à Imprensa da Capital, um comunicado, cujo primeiro parágrafo dizia:

O Grêmio Estudantil Júlio de Castilhos, sentindo a necessidade da perpetuação das tradições gaúchas, fundou aliando aos seus já numerosos departa-mentos o das Tradições Gaúchas, procurando assim preservar este legado imenso dos nossos antepassa-dos, constituído do amor à liberdade, grandeza de convicções representadas pelo sentimento de igual-dade e humanidade (CÔRTES, 1994, p. 43).

2.1.2 Ronda Gaúcha

No Departamento de Tradições Gaúchas, decidiram realizar a “1ª Ronda Gaúcha”, que logo passaria a ser chamada

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de “Ronda Crioula”. Uma programação que iniciaria no dia 07 de setembro, estendendo-se até o dia 20. O programa previa o acendimento de um candeeiro crioulo, o primeiro baile gau-chesco com concursos de danças e trajes, palestras, concurso literário e uma série de momentos equestres.

O baile foi um sucesso, realizado no Teresópolis Tênis Clube no dia 20 de setembro, com muita gente trajando à gaú-cha, inclusive os componentes da banda que animou a festa.

A Ronda Crioula foi, na verdade, a precursora da Sema-na Farroupilha, oficializada somente 17 anos mais tarde, por meio da Lei Estadual nº 4.850, de 11 de dezembro de 1964.

Paixão Côrtes (1994, p. 53), que dirigia o Departamento de Tradições Gaúchas, relata o pedido que fez ao Major Vignoli, no que foi de pronto autorizado:

E foi assim, na Capital Gaúcha, diante do Major de Exército Darcy Vignoli, Presidente da Liga de De-fesa Nacional do Rio Grande do Sul, que dissemos, de viva voz, do desejo de retirar, ao final do dia sete, uma centelha do fogo simbólico e transportá--la até o Colégio Júlio de Castilhos, onde seria colo-cada num “candieiro” crioulo típico, a representar um altar-cívico.

Isto seria parte das comemorações da Ronda Gaúcha. Toda essa programação, em 1947, foi a semente que culmina-ria, no ano seguinte, na criação do “35” CTG.

2.1.3 Restos Mortais de David Canabarro

Naquele ano de 1947, a Liga de Defesa Nacional, presi-dida pelo Major Darcy Vignoli, incluiu, na programação alu-siva à Semana da Pátria, a trasladação dos restos mortais do General David Canabarro, de Sant’Ana do Livramento para o Panteão da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre.

Para um acontecimento tão importante, entendeu o Ma-jor Vignoli que era do maior significado cívico se a guarda

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de honra, para fazer as alas em homenagem ao grande herói, fosse composta por uma representação gaúcha, que traduzisse a alma da terra, a essência farroupilha. Pessoas que “lembras-sem os tempos gloriosos dos nossos estancieiros e suas peona-das, que enfrentaram durante 10 anos todo o Império”.

Diante da inexistência de uma representação com tais qualidades, o presidente da Liga então solicitou ao Departa-mento de Tradições do Julinho um piquete de gaúchos para montar guarda à urna com os restos mortais do grande herói farrapo.

2.1.4 Grupo dos Oito

Paixão Côrtes prontamente atendeu ao Presidente da Liga, aceitando o desafio. Ligeirito conseguiu, por empréstimo, encilha completa para 14 cavaleiros. Os cavalos foram cedidos pelo Exército, no Regimento Osório. A grande dificuldade foi conseguir, no Colégio Júlio de Castilhos, adeptos para esta empreitada, uma vez que ninguém queria passar o “vexame” de aparecer a cavalo na cidade. Apenas três alunos aceitaram participar e, com muito custo, fora do colégio foi conseguido mais cinco pessoas, totalizando oito componentes.

Estava formado o Piquete da Tradição, grupo que pas-saria para a história no 1º Congresso realizado em julho de 1954 em Santa Maria/RS, quando foi batizado como o “Gru-po dos Oito”, assim formado: João Carlos D’Ávila Paixão Côr-tes, Antônio João Sá de Siqueira, Cilço Campos, Cyro Dias da Costa, Cyro Dutra Ferreira, Fernando Machado Vieira, João Machado Vieira e Orlando Jorge Degrazia.

No dia 05 de setembro pela manhã, um jipe do Exército conduziu os restos mortais de David Canabarro do aeroporto até a Praça da Alfândega, no Centro de Porto Alegre. O gru-po de cavaleiros acompanhou a viatura do Exército da Rua da Conceição, esquina com a Avenida Farrapos, até a Praça da

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Alfândega, junto ao Monumento ao General Osório, onde foi realizada uma cerimônia. Da praça, seguiu até o Panteão da Santa Casa, onde foi encerrada a solenidade (CÔRTES, 1994, p. 58-60).

2.1.5 O Nascimento da Chama Crioula

Próximo da meia-noite do dia 07 de setembro de 1947, os jovens João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, Cyro Dutra Fer-reira e Fernando Machado Vieira, devidamente montados, aguardavam junto à Pira. Naquela época, a Pira da Pátria fica-va no Parque da Redenção, nas imediações da Av. João Pessoa, esquina com a Rua Luiz Afonso, e o Colégio Júlio de Castilhos localizava-se onde hoje é a Faculdade de Economia da URGS, na Av. João Pessoa, quase esquina com a Rua André da Rocha.

Chegando o momento da extinção do Fogo da Pátria, foram chamados para a retirada da centelha, conforme ha-viam acordado. Paixão Côrtes sobe ao topo da Pira com um archote improvisado, feito de estopa embebida em querosene presa à ponta de um cabo de vassoura e solenemente acende aquela que seria a primeira Chama Crioula. Dali, os três cava-leiros conduziram a galopito até o “Julinho”, onde acenderam o Candeeiro Crioulo (CÔRTES, 1994, p. 84-85).

2.2 O “35” Centro de Tradições Gaúchas

Após o acompanhamento aos restos mortais de David Canabarro, pelo Grupo dos Oito, os integrantes almoçaram juntos em uma das poucas churrascarias que existia à época, na Capital. Combinaram, então, de reunirem-se novamente em um sábado à tarde, na casa de Paixão Côrtes. Assim reali-zaram várias reuniões.

O entrosamento do grupo ganhou força com a partici-pação de Luiz Carlos Barbosa Lessa, na época também aluno do Colégio Júlio de Castilhos. Lessa começou a angariar assi-

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naturas dos interessados na fundação do que chamava “Clube de Tradição Gaúcha”.

Outro importante agregado ao grupo foi Glaucus Sarai-va da Fonseca, que, juntamente com Barbosa Lessa, articulava reuniões para a unificação de ideias, que tinham a finalidade de defender as tradições. Foram chegando outros companhei-ros e o local ficou pequeno.

Em dezembro de 1947, as reuniões passaram para a casa dos pais de José Laerte Vieira Simch, na Rua Duque de Caxias, nº 707, centro de Porto Alegre. Ganhava força a ideia de criar uma entidade em que se pudesse cultivar e preservar as tradi-ções gaúchas. Todos mantinham o propósito de levar adiante a iniciativa (CÔRTES, 1994, p. 131).

2.2.1 A fundação prévia

A Ata nº 1, de 03 de janeiro de 1948, da reunião rea-lizada no galpão da Associação Rio-grandense de Imprensa, teve como condutor dos trabalhos Hélio José Moro, auxiliado pelos secretários João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes e João Ma-chado Vieira. Nessa reunião, ficou definida a denominação da entidade: “35 - Centro de Tradições Gaúchas”, autoria de Luiz Carlos Barbosa Lessa com pequena modificação sugerida por Luiz Osório Aguilar Chagas.

2.2.2 A fundação do CTG

Passaram-se apenas sete meses da realização da Ronda Gaúcha e este grupo de pioneiros (só homens, pois mulher não participava) finalmente funda, a 24 de abril de 1948, o “35” Centro de Tradições Gaúchas, no porão da casa da famí-lia Simch. A predominância dos fundadores era de gaúchos campeiros, daí a organização da entidade, partir da ideia de uma estância rural (CÔRTES, 1994, p. 134-135).

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2.2.3 Os fundadores

Segundo Ferreira (1987, p. 37), assinaram a Ata de Fun-dação, na seguinte ordem:

l - Glaucus Saraiva da Fonseca, 2 - Luiz Carlos Barbosa Lessa, 3 - Antônio Cândido da Silva Neto, 4 - Francisco Gomes de Oliveira, 5 - Luiz Osório Aguilar Chagas, 6 - Carlos Raphael Godinho Cor-rêa, 7 - Dirceu Tito Lopes, 8 - Waldomiro de Almei-da Sousa, 9 - Hélio José Moro, 10 - Luiz Carlos Cor-rêa da Silva, 11 - Hélio Gomes Leal, 12 - José Laerte Vieira Simch, 13 - Ney Ortiz Borges, 14 - Guilher-me Flores da Cunha Corrêa, 15 - Wilmar Winck de Souza, 16 - Paulo Emílio G. Corrêa, 17 - Paulo Caminha, 18 - Robes Pinto da Silva, 19 - Venerando Vargas da Silveira, 20 - Flávio Silveira Damm, 21 - João Emílio Marroni Dutra, 22 - Valdez Corrêa e 23 - Flávio Ramos.

Posteriormente, por terem participado das reuniões que antecederam a fundação, mais 39 integrantes foram conside-rados, totalizando 62 fundadores.

3 A expansão do Tradicionalismo

Com a proliferação das entidades tradicionalistas por diversas localidades do Rio Grande do Sul,2 na cidade de Pelo-tas, Fernando Augusto Brockstedt, Ubirajara Timm e Oswal-do Lessa da Rosa convocaram uma Assembleia Tradicionalis-ta, que se realizou em dezembro de 1952, com a presença de representantes de sete Centros de Tradições Gaúchas. Ficou, então, aprovada a ideia de realização de um Congresso e da criação de uma federação de entidades tradicionalistas do Rio Grande do Sul.

2 Erechim, Bagé, Cachoeira do Sul, Piratini, Soledade, São Lourenço do Sul, Farroupilha, Rio Grande, Pi-nheiro Machado, Porto Alegre, Quaraí, Cacequi, Júlio de Castilhos, Rio Pardo, Esteio, São Gabriel, Canela, São Francisco de Assis, Lagoa Vermelha, Canoas, Santo Ângelo e Caxias do Sul.

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3.1 O primeiro Congresso

Fernando Augusto Brockstedt começou a trabalhar na elaboração do anteprojeto de Estatuto dessa Federação e dis-tribuiu cópias aos CTGs que participaram da assembleia, para análise, em março de 1953. Era o passo inicial para o lº Con-gresso, bem como da criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), que se concretizaria somente 14 anos depois.

Rapidamente espalhou-se, através da imprensa para todo o estado, a realização do pretendido Congresso. O jor-nalista Sady Scalante, da União Gaúcha, transferindo-se de Pelotas para Porto Alegre, passou a liderar os preparativos. Foi programada para novembro de 1953, em Rio Pardo, uma segunda Assembleia Tradicionalista, realizada no CTG Fogão Gaúcho Rio-pardense.

Nessa assembleia, ficou decidido que seria em Santa Ma-ria, no Ponche Verde CTG, com o apoio do CTG Mate Amar-go (de Rio Grande), CTG Sepé Tiaraju (de São Lourenço do Sul) e CTG Lalau Miranda (de Passo Fundo). Como organiza-dor, a União Gaúcha de Pelotas.

No início de 1954, ficou assim definida a comissão: Ma-noelito de Ornellas e Walter Spalding (“35” CTG), Sady Sca-lante e Luiz Alberto Ibarra (União Gaúcha) e Emílio Rodrigues (Ponche Verde CTG). De imediato, marcaram a data do Con-gresso para o período de 02 a 04 de julho (CIRNE, 2006, p.33).

3.2 A ideia da Federação

Em 1954, já no 1º Congresso Tradicionalista (Santa Ma-ria/RS), Fernando Augusto Brockstedt, da União Gaúcha (Pe-lotas/RS), apresentou proposta de criação da “Federação das Entidades Tradicionalistas do RS”, denominada FENTRA.

No 2º Congresso em 1955 (Rio Grande/RS), duas propos-tas de criação de Federação foram apreciadas: uma de Learsi

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Corrêa da Silva, do CTG Mate Amargo, entidade anfitriã, e a outra de Fernando Augusto Brockstedt, da União Gaúcha (Pe-lotas/RS), que reapresentava a proposta do 1º Congresso.

Os relatores acharam complicada a ideia, mas ficou aprovada a formação de uma comissão de estudo da matéria para o próximo Congresso.

3.3 Criação do Conselho Coordenador

Sugerida, pelo então Deputado Getúlio Marcantonio, a criação de um órgão coordenador, na 1ª Sessão Plenária do 6º Congresso. Dia 18 de dezembro de 1959, foi nomeada a seguinte Comissão para tratar do assunto: Getúlio Marcantonio, Delcy Dornelles, Carlos Galvão Krebs, Apparício Silva Rillo, Vasco Mello Leiria, Jorge Moojen de Queiroz e Fernando Augusto Brockstedt. Em seu parecer, a Comissão julgou indispensável e propôs a criação do Conselho do Movimento Tradicionalista, para funcionamento experimental. O parecer sugeriu, ainda, a divisão do estado em 12 zonas fisiogeográficas, denominadas Zonas Tradicionalistas (atualmente, Regiões Tradicionalistas). Era a institucionalização do Movimento Tradicionalista, mas a Federação ainda ficaria para depois.

Na segunda reunião do Conselho, realizada dia 28 de ja-neiro de 1960, em uma sugestão por escrito do Secretário José Paim Brittes, foi aprovado o nome Conselho Coordenador do Movimento Tradicionalista.

Como o Conselho era em caráter experimental, no 7º Congresso, realizado em outubro de 1960 em Santo Ângelo/RS, Getúlio Marcantonio apresentou Moção de torná-lo defi-nitivo e sugeriu que uma comissão analisasse o Estatuto. Foi nomeada a seguinte Comissão: Vasco Mello Leiria (Relator), Wladimir Cunha, Jayme Caetano Braun, Waldomiro de Mou-ra Leiria e Getúlio Marcantonio. Na 5ª Sessão Plenária, o con-selho foi totalmente aprovado (CIRNE, 2006, p. 53).

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3.4 Fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho

Finalmente, no 12º Congresso Tradicionalista, realizado em 1966, em Tramandaí, no dia 28 de outubro, foi fundado o MTG, como entidade federativa com personalidade jurídica.

3.5 Fundação Cultural Gaúcha

No 25º Congresso Tradicionalista Gaúcho, realizado na cidade de São Luiz Gonzaga, de 10 a 13 de janeiro de 1980, Rodi Pedro Borghetti, na época Presidente do MTG, findan-do seu primeiro mandato, apresentou proposta de criação de uma Fundação.

Essa Fundação teria como finalidade específica a de su-prir as demandas econômico-financeiras. Seria o braço execu-tivo do MTG, dando-lhe respaldo e possibilitando atuar nas várias faixas de atividades ligadas ao Tradicionalismo, à cul-tura e às artes nativas; responsável pela realização prática dos eventos. A proposta foi aprovada por unanimidade na Tercei-ra Sessão Plenária, dia 12 de janeiro.

3.6 Fundação da Confederação Brasileira da Tradição Gaúcha

Com a expansão do Tradicionalismo e o surgimento de Centros de Tradições Gaúchas em diversos estados do Brasil, líderes tradicionalistas sentiram a necessidade de unirem-se e formar um bloco uníssono, respeitadas as peculiaridades de cada estado.

Assim, a 24 de maio de 1987, reuniram-se tradicionalis-tas do Paraná, do Rio Grande do Sul e de São Paulo, na cidade paranaense de Ponta Grossa, e fundaram a Confederação Bra-sileira da Tradição Gaúcha (CBTG). Tendo, entre os objetivos, reunir as Federações já formadas e auxiliar os CTGs existentes em grande número nos demais estados para que se organizem

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em Federações e, posteriormente, integrem essa Confedera-ção. A 1ª gestão da CBTG (1987/1989) foi presidida pelo sau-doso Jacob Momm Filho (CALDERAN, 2010, p.70- 74).

3.7 Teses mais importantes

Nestes 57 anos, contados a partir da realização do 1º Con-gresso, trabalhos importantíssimos foram aprovados, ditando a filosofia do movimento e direcionando os caminhos para o culto às tradições gaúchas, dos quais se destacam: O Sentido e o Valor do Tradicionalismo, tese de autoria de Luiz Carlos Barbosa Lessa, aprovada no primeiro Congresso; Carta de Princípios, redigida por Glaucus Saraiva da Fonseca, um dos autores do texto e que obteve aprovação em 1961, no 8º Con-gresso (Taquara/RS), e que hoje é cláusula pétrea do Estatuto do MTG; Plano Vaqueano, de promoção da cultura regional e de reativação da vida social dos CTGs, autoria de Hugo Ra-mírez e aprovado em 1969, no 14º Congresso (São Francisco de Paula); Plano de Ação Social do Movimento Tradicionalista Gaúcho, de Onésimo Carneiro Duarte, elaborado em 1983; e O Sentido e o Alcance Social do Tradicionalismo, tese constitu-ída de quatro partes e uma conclusão, autoria de Jarbas Lima e aprovada em cinco Congressos, respectivamente nos anos de 1995 (Dom Pedrito/RS), 1996 (São Lourenço do Sul/RS), 1997 (Santo Augusto/RS), 1998 (Santa Cruz do Sul/RS) e 2004 (Bagé/RS) (CIRNE, 2004, p. 56-77).

4 Principais Eventos do Movimento Tradicionalista Gaúcho

A partir da fundação dos primeiros CTGs, começaram a surgir os eventos de importância para o Tradicionalismo, desde os administrativos, caso do Congresso e da Convenção. Posteriormente, surgiram eventos nas áreas cultural, artística, campeira e esportiva.

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4.1 Congressos

O Tradicionalismo organizado realizou, de 1952 a 2011, 59 congressos, sendo três extraordinários. Em 2004, foi realizado o 50º congresso (extraordinário), comemorativo aos 50 anos da realização do primeiro, ambos na cidade de Santa Maria. Poste-riormente, ocorreram mais dois extraordinários (2007 e 2008), para alteração do Estatuto do MTG. O primeiro congresso foi realizado de 02 a 04 de julho de 1954, na cidade de Santa Maria. O segundo, considerado um dos mais expressivos e marcantes em termos de organização, foi realizado na cidade de Rio Gran-de, de 18 a 20 de novembro de 1955. Não foram realizados con-gressos nos anos de 1962 e 1968.

4.2 Convenções

O MTG já realizou 44 Convenções Ordinárias desde 1968 e mais 38 Extraordinárias, totalizando 82 edições deste órgão que trata de todos os Regulamentos do MTG. A pri-meira Convenção foi realizada de 19 a 21 de julho de 1968, na cidade de Jaguari (CIRNE, 2006, p. 120-121, 135-137).

4.3 Concurso de prendas

Intitulado “Mais Linda Prenda do RS”, inicialmente o concurso era promovido pela Rádio Gaúcha, Jornal Última Hora e VARIG. A primeira edição foi realizada em Porto Ale-gre, no CTG Sinuelo da Tradição, um Departamento do Clu-be São José. O resultado foi no dia 20 de setembro, em baile na SOGIPA e, entre as 31 concorrentes, a escolhida foi Marly Guimarães Zwestch. Desde o início do concurso, os tradicio-nalistas não viam com bons olhos esse evento, pela maneira como era feita a escolha. Este descontentamento veio parar no Conselho Coordenador, que, aos poucos, passou a participar através da Comissão Avaliadora.

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4.3.1 Primeira Prenda do RS

Em 1968 ocorre o Concurso de “1ª Prenda do RS”. Em 1969, o Conselho decide realizar o evento durante o Congres-so (14º), que foi na cidade de São Francisco de Paula, no mês de janeiro. No 15º Congresso em Santiago/RS, de 08 a 11 de janeiro de 1970, novamente foi realizado e neste conclave foi instituído o Concurso. Oficialmente, a 1ª edição do Concur-so de Primeira Prenda do estado, somente categoria adulta, aconteceu em janeiro de 1971, na cidade de Quaraí, quando foi eleita Maria Ivanoska Alves Nunes, representante do CTG Rodeio dos Palmares (Santa Vitória do Palmar/RS).

A partir de 1982, foi incluída a categoria mirim; em 1985, a juvenil. No ano de 1985, o concurso desvinculou-se dos Congressos, passando a ser realizado no mês de maio, na cidade da 1ª Prenda.

4.4 Encontro de Artes e Tradição Gaúcha

Na década de 1970, o Movimento empenhava-se em combater o alto nível de analfabetismo no País. No Rio Gran-de do Sul, além de alfabetizar, também almejava divulgar a cultura como forma de elevar a autoestima da população e oportunizar o surgimento de novos valores artísticos. O pro-fessor e advogado Praxedes da Silva Machado, responsável cultural pelo Mobral na época, buscou a parceria do MTG e, com a participação do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), criaram o Festival Estadual de Arte Popular e Folclo-re, que se popularizou como Festival Estadual do Mobral. O evento foi idealizado para ser itinerante, (isto é, a cada ano, em uma cidade diferente).

A 1ª edição desse festival foi no ano de 1977, cuja fase fi-nal foi realizada na cidade de Bento Gonçalves. A 2ª, em 1978, em Porto Alegre; a 3ª, em 1979, em Lajeado; a 4ª, em 1980,

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em Cachoeira do Sul; a 5ª, em 1981, em Lagoa Vermelha; a 6ª, em 1982, em Canguçu; a 7ª, em 1983, em Soledade; e a 8ª, em 1984, na cidade de Farroupilha. Em 1985, a 9ª edição seria em Rio Pardo, mas, como as autoridades do Município desistiram, Farroupilha sediou novamente o evento. Decidiu--se, então, não mais alternar o local, uma vez que a cidade de Farroupilha se propunha em continuar realizando anualmen-te a final.

A partir de 1986, o evento passa a ser promovido pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho e muda de nome: Festival Gaúcho de Arte e Tradição (FEGART), sempre no último final de semana de outubro, permanecendo em Farroupilha da 1ª à 11ª edições, portanto até o ano de 1996. Tendo em vista o cres-cimento do festival, em 1997 (12ª edição) transferiu-se para Santa Cruz do Sul e por questões judiciais, muda de nome em 1999: Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (ENART), que neste ano de 2011 será realizada a 26ª edição e 35ª edição des-de o festival originário (CIRNE, 2006, p.140-158).

4.5 Festa Campeira do Rio Grande do Sul

A ideia partiu de Frontelmo Alves Machado, atual Con-selheiro Benemérito do MTG, que sonhava em “ver o Rio Grande campeiro todo reunido numa grande festa anual”. A iniciativa, segundo seu idealizador, teria como objetivos: “Unir os gaúchos campeiros em um evento, nas diversas mo-dalidades, para confraternizar e apurar seus campeões com representação dentro e fora do estado, para competições des-ta natureza.” No dia 11 de dezembro de 1987, na Convenção Extraordinária do MTG, realizada na cidade de Júlio de Cas-tilhos, foi aprovado o anteprojeto com o nome “Festa Crioula do RGS”, a seguir modificado para “Festa Campeira do Rio Grande do Sul (FECARS)” e marcada a primeira edição para março de 1989, na cidade de Passo Fundo.

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4.6 Concurso de Peões

No 33º Congresso realizado em janeiro de 1988, na ci-dade de Veranópolis, foram apresentadas duas propostas de criação do Concurso: uma de autoria de Rosangela Antoniazzi de Moraes, 1ª Prenda do RS/1984, e César Vieira, e a segunda, de Sergei Renan Lopes e Vicente Leomar Mileski. Na 27ª Con-venção Tradicionalista, realizada em julho de 1988, em Caxias do Sul/RS, foi aprovado o concurso com o título de “Concurso Troféu Farroupilha”, com as três fases para o ano seguinte.

Inicialmente, o evento era realizado com o Concurso Estadual de Prendas; posteriormente, na FECARS; e, na atua-lidade, isolado na cidade do Peão.

A primeira edição foi em maio de 1989, em Cachoeira do Sul/RS, quando foi eleito o representante do PL Esteios de Japeju, de Uruguaiana/RS, Agnaldo Reis.

Em julho de 1995, na 40ª Convenção Tradicionalista (Canguçu/RS), a equipe de Peões do estado aprovou proposta de criação da categoria Juvenil, denominada Guri Farroupi-lha. A primeira edição foi realizada em 1996, na cidade de Bento Gonçalves, tendo sido eleito o representante do CTG Sinuelo (Canguçu/RS), Roger Borges Jacondino (CIRNE, 2006, p. 148-154).

5 Conclusão

O Tradicionalismo gaúcho, hoje, está presente em todos os estados do Brasil e até em outros países, totalizando mais de 3.000 entidades, reunindo filhos do Rio Grande do Sul e também pessoas que aqui nunca estiveram.

O culto à tradição organizada é sadio, cultural, cívico, social e forma uma grande família, pois reúne desde o avô ao neto, com muita harmonia, alegria e satisfação, para desfruta-rem dos usos e costumes legados pelos antepassados, os quais

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escreveram uma história bonita, que enche o povo gaúcho de orgulho ao lembrá-los e que, assim o fazendo, continua a es-crever esta história, para a grandeza da amada querência.

Referências

CALDERAN, Loiva. CBTG História, in: CIRNE, Paulo Roberto de Fraga; MACHADO, Mauro Magno (Orgs.). 15º Congresso Brasileiro da Tradição Gaúcha e 8ª Convenção Brasileira da Tradição Gaúcha. Brasília, DF. Anais. Porto Alegre: Calábria, 2010.

CIRNE, Paulo Roberto de Fraga (Org.). Meio século de congressos (1954 – 2004): documentos basilares do tradicionalismo gaúcho. Porto Alegre: [s.n.], 2004.

CIRNE, Paulo Roberto de Fraga. MTG 40 Anos: raiz, tradição e futuro 1966-2006. Porto Alegre: Maredi, 2006.

CÔRTES, J. C. Paixão. Origem da Semana Farroupilha: primórdios do Movimento Tradicionalista. Porto Alegre: Evangraf, 1994.

FERREIRA, Cyro Dutra. 35 C.T.G.: o pioneiro do Movimento Tradiciona-lista Gaúcho – MTG. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987.

MARIANTE, Hélio Moro. História do tradicionalismo sul-rio-grandense. Porto Alegre: Smith, 1976.

SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul: história e identidade. Por-to Alegre: [s.n.], 2008.