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Diálogos com Márcia Regina da Costa 21 O presente artigo é uma adaptação de um capítulo da dissertação de mestrado “Alice no País do espelho: realida- de virtual baseada em texto e imaginação” 1 . O texto versa sobre um jogo baseado em texto chamado MUD. A partir de uma pesquisa de levantamento, constatou-se que esse jogo era freqüentado por jovens que permaneciam muito tempo on line 2 , conectados a ele, chegando a permanecer jogando cerca de 8 horas contínuas. Pesquisou-se por que esses jovens participavam tão ativamente desse jogo, e quais seriam os en- cantos e seduções de um ambiente virtual textual. Verificou-se que os jovens se interessavam pelo jogo prin- cipalmente por três motivos: (i) por ser um Jogo, e, ao mes- mo tempo, (ii) por ser uma realidade virtual, e (iii) porque lhes proporciona um ambiente de sociabilidade. Concluiu-se que esses eram os motivos mais comuns que levavam os jogado- res a permanecer tanto tempo conectados ao MUD. JOGOS DE RPG NA INTERNET: Socialidades e Sociabilidades on line e off line Ivelise Fortim * *Psicóloga pela PUC-SP, mestre em Ciências Sociais, ênfase em Antropologia, também pela PUC-SP. É especialista em Orientação Profissional pelo Sedes Sapientiae, e em Abordagem Junguiana pela COGEAE- PUC-SP. Atualmente é professora da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, onde leciona no curso de Jogos Digitais e é pesquisadora do NPPI - Núcleo de Pesquisa de Psicologia em Informática da PUC-SP. 1 Defendida no Programa de Ciências Sociais, Antropologia, na PUC-SP em 2004. A dissertação foi publicada no livro “Level up! A aventura numa comunidade virtual de RPG”, Giz Editorial, 2007. 2 Como os termos relacionados à informática já estão sendo incorporados pela língua portuguesa, optei por mantê-los no texto sem o destaque de itálicos.

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O presente artigo é uma adaptação de um capítulo dadissertação de mestrado “Alice no País do espelho: realida-de virtual baseada em texto e imaginação”1. O texto versasobre um jogo baseado em texto chamado MUD. A partir deuma pesquisa de levantamento, constatou-se que esse jogoera freqüentado por jovens que permaneciam muito tempoon line2, conectados a ele, chegando a permanecer jogandocerca de 8 horas contínuas. Pesquisou-se por que esses jovensparticipavam tão ativamente desse jogo, e quais seriam os en-cantos e seduções de um ambiente virtual textual.

Verificou-se que os jovens se interessavam pelo jogo prin-cipalmente por três motivos: (i) por ser um Jogo, e, ao mes-mo tempo, (ii) por ser uma realidade virtual, e (iii) porque lhesproporciona um ambiente de sociabilidade. Concluiu-se queesses eram os motivos mais comuns que levavam os jogado-res a permanecer tanto tempo conectados ao MUD.

JOGOS DE RPG NA INTERNET:

Socialidades e Sociabilidades on line e off line

Ivelise Fortim*

*Psicóloga pela PUC-SP, mestre em Ciências Sociais, ênfase em Antropologia, tambémpela PUC-SP. É especialista em Orientação Profissional pelo Sedes Sapientiae, e emAbordagem Junguiana pela COGEAE- PUC-SP. Atualmente é professora da Faculdadede Psicologia da PUC-SP, onde leciona no curso de Jogos Digitais e é pesquisadora doNPPI - Núcleo de Pesquisa de Psicologia em Informática da PUC-SP.

1 Defendida no Programa de Ciências Sociais, Antropologia, na PUC-SP em2004. A dissertação foi publicada no livro “Level up! A aventura numacomunidade virtual de RPG”, Giz Editorial, 2007.

2 Como os termos relacionados à informática já estão sendo incorporados pelalíngua portuguesa, optei por mantê-los no texto sem o destaque de itálicos.

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O que são MUDs?

A palavra MUD, de origem inglesa, é a abreviação de“Multi-user dungeons and dragons3”, e se refere a um am-biente virtual – um jogo de aventura, em que o usuário ex-plora mundos em busca de monstros e tesouros. Foi criadoem 1979, por estudantes da Universidade de Essex, Ingla-terra. Desde então, o jogo se popularizou e, apesar de anti-go, ainda atrai inúmeros jovens. Os MUDs são mundosvirtuais baseados em textos, nos quais os usuários podemcriar personagens num espaço interativo e compartilhado.Nesses ambientes virtuais, a interface e as interações entreo usuário e o ambiente são realizadas unicamente por meioda linguagem escrita. Os MUDS são considerados os ances-trais de todos os jogos eletrônicos de RPG (role playinggame4), como os atuais jogos Ragnarok e World of Warcraft.

O MUD original é baseado no mundo mágico doDungeons and Dragons (AD&D), um jogo de temática me-dieval e mágica, com magos, guerreiros, elfos, anões eduendes. As aventuras incluíam lutas com dragões, mons-tros, expedições a castelos, em busca de tesouros ou em bus-ca de equipamentos para melhorar o desempenho dopersonagem.

O acesso a esses mundos virtuais não é feito pela Web, esim pela porta Telnet do microcomputador. Neste artigo, serádescrito um MUD brasileiro, “O Mundo de Vitália5”, um RPGsituado num mundo medieval. Esse MUD contava com cercade 2000 jogadores, à época da pesquisa (realizada em 2002), efoi o maior MUD em língua portuguesa existente no Brasil.

A pesquisa demonstrou que o público usuário desse MUDera composto, em sua maioria, por homens com idade entre 17-20 anos, solteiros e de nível socioeconômico de classe média ou

3 Uma tradução literal seria “Domínio multi-usuário: Calabouços eDragões”.

4 RPG- Jogos de Interpretação de papéis.5 Também conhecido como “Vitália MUD” ou apenas “Vitália”.

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superior. Eram estudantes, em especial do final do Ensino Mé-dio ou dos primeiros anos da graduação. A região do Brasil quemais concentrava jogadores era a sudeste. Esse MUD foi estu-dado porque muitos jovens se diziam “viciados”, “fanáticos”,pois passavam muitas horas on line nesse mundo virtual.

Toda a interface de um MUD é textual, ou seja, não exis-tem figuras, nem gráficos, ou qualquer coisa semelhante, nainteração como usuário. O usuário pode mover-se entre os di-ferentes espaços do ambiente virtual utilizando comandosdigitados no teclado. Os lugares são descrições textuais, queevocam tanto sentimentos como estímulos sensoriais, procu-rando estimular a imaginação do visitante. As descrições doslugares apresentam os objetos e as pessoas presentes neles. Essapercepção permite ao usuário interagir com objetos existentese com outros usuários; as interações são consideradas ações.O número de ações de um usuário dentro de um MUD é limi-tado. As ações dependem do ambiente e dos objetos nele exis-tentes. A interação entre pessoas pode se dar de duas formas:pelos canais de comunicação e pela manipulação de objetos-por exemplo, um jogador pode entregar um objeto para outrosegurar (SOUZA NETO, 2001). O jogo é multi-usuário, ou seja,diversos jogadores podem jogá-lo simultaneamente.

Para entrar em Vitália, era necessário criar um persona-gem, que poderia ser homem ou mulher, e devia pertencer auma das seis classes: Mago, Guerreiro, Druida, Bardo, Cléri-go ou Ladrão. Cada uma dessas categorias tinha habilidadese dons específicos, necessários para sobreviver no mundomedieval. Além disso, poderia ser incluída uma descrição desuas características físicas ou sua história.

Quando se entra em um MUD, o que aparece no monitoré um texto descritivo sobre o ambiente onde apresentado,os objetos existentes, os monstros para se matar e as pessoasque nesse local, bem como as ações de outros personagens.Abaixo, o exemplo da sala principal de muitos MUDs:

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O Templo de Midgaard: Você está a sul do hall do Templo de Midgaard.O templo foi construído com blocos gigantes de mármore, com apa-rência eterna, e muitas paredes eram cobertas por velhas pinturas deDeuses, Gigantes e camponeses. Grandes degraus descem logo apóso portal do templo, descendo o enorme monte sobre o qual o temploestá construído e termina na Praça do Templo logo abaixo. Para oes-te você pode ver a Sala de Leitura. A Sala de Doações é uma pequenasala para o leste. [Saídas: n e s w d ]

Para se locomover nesses ambientes, é necessário dar co-mandos no teclado, como N (norte), S (sul), etc. Para pegarcoisas, comer, beber água, é necessário digitar a ação quevocê quer executar (ex. Drink água, Get espada; kill mons-tro; open porta etc.).

O objetivo da maioria dos MUDs , como Vitália, é tor-nar-se imortal, e para isso é preciso jogar até o nível 100 comcada classe de personagem. Esses níveis eram conseguidosmediante lutas com “monstros virtuais” que o programafornece. Cada monstro morto é um ganho de experiência, eé isso que permite as mudanças dos níveis. A cada mudan-ça, são adquiridas novas habilidades para o personagem,que passa a ser mais poderoso e matar monstros maiores.

O Vitália MUD era regido por uma classe especial dejogadores, chamados “Deuses”, que eram os programado-res desse ambiente virtual. Além de programadores, elestinham por função regulamentar tudo o que ocorria noambiente, como brigas entre jogadores, problemas nas in-teligências artificiais etc.

À primeira vista, o MUD é um jogo eletrônico, comomuitos. Mas um MUD é muito mais que um jogo: ele é con-siderado por diversos autores, como Bruckman (1992), comouma mistura de Jogo, Realidade Virtual baseada em texto e Co-munidade Virtual.

O MUD é considerado um jogo pelo fato de o usuáriopoder matar monstros e adquirir pontos de experiência, pro-curando equipamentos e procurando melhorar seu persona-

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gem para torná-lo mais forte, em um ambiente de diversão edesafio que entretém o jogador. Os jogadores se interessampela ludicidade que é dada por este esse tipo aventura que ojogo proporciona (matar monstros e ganhar tesouros).

Segundo Bruckman (1992), um MUD também é uma re-alidade virtual baseada em texto, multiparticipante. O termo“Realidade virtual” refere-se à simulação computadorizadade um ambiente que possui vários graus de interatividade.Os MUDs dão ao usuário a sensação de estar dentro de umambiente compartilhado, por meio de suas descrições textu-ais. Para Turkle (1997), os MUDs são um tipo de realidadevirtual, mas com ênfase na interação social.

Esses autores usam o conceito de realidade virtual por-que os jogadores costumam manter uma vida paralela den-tro dos MUDs – pois ali não apenas se joga, mas se vive:existem casas, os personagens passam por necessidades“biológicas” (como comer, beber água, apesar de não pre-cisar ir ao banheiro); existem amigos, namoradas, clãs (agru-pamentos de jogadores amigos), famílias, e há toda umavida social, com regras sociais próprias ao contexto do jogo,códigos de conduta e honra.

Apesar de o MUD ser considerado um jogo eletrônico,ele não é apenas um videogame: além da interação entrehomem e máquina, existe a interação entre humanos medi-ada por um computador. Essa interação se dá por meio dosdiversos canais de comunicação disponíveis no jogo. É jus-tamente essa interação mediada pelo computador que per-mite que se estabeleçam grandes amizades entre osjogadores. No levantamento realizado, a maior razão apon-tada pelos jogadores para se estar no jogo era a sociabilida-de que era proporcionada por ele.

O jogo permitia que os jogadores fizessem grandes amiza-des, porque o contato iniciado pelo jogo podia ser estendidopara a vida presencial. Dentro do MUD havia vários canais decomunicação: públicos, privados, sincrônicos (em tempo real)e assincrônicos (a mensagem podia ser deixada e lida posteri-

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ormente). Um dos atrativos da vida social on line é a possibi-lidade de participar simultaneamente em mais de uma linhade conversação. . Estando no MUD, podia haver muitas con-versas simultâneas em vários canais, públicos ou privados.

Além dessa comunicação dentro do jogo, os recursosextra-MUD também eram bastante utilizados. O recursoprincipal era o comunicador instantâneo ICQ (depois subs-tituído pelo MSN). Constantemente ligado quando os joga-dores estavam conectados ao jogo, era usado quando osjogadores adquiriam contato mais íntimo, e partilhavam deoutros aspectos de sua vida que não apenas ligados ao jogo.Outros recursos utilizados eram os sistemas de Fóruns dediscussão. Havia o fórum “Amigos de Vitália”, destinadoa discussões sobre o jogo, e, além disso, cada grupo de jo-gadores ( clã) mantinha separadamente seu site, fórum oulista de discussão, para tratar de assuntos internos.

Todos esses canais de comunicação permitiam que osjogadores se agrupassem e se conhecessem e, com certeza,era um dos principais diferenciais do MUD em relação aosoutros jogos eletrônicos da época.

A sociabilidade e a socialidade on line

O MUD permitia que as pessoas pudessem se relacio-nar e formar amizades. Para Oliveira (2004), um espaço desociabilidade pode ser caracterizado como uma atividadede troca ou compartilhamento de representações que indi-víduos de uma coletividade têm em comum, mediante asdiversas formas de aprendizado recíproco nas interações,isto é, dentro de uma mesma cultura. Para haver sociabili-dade, não é necessário que os indivíduos sejam estritamenteda mesma cultura, mas sim que possam compartilhar dealgum mínimo de códigos em comum. A sociabilidade de-senvolve-se a partir das necessidades que têm os indivídu-os de participar de um todo (socializar-se, não estar isolado,encontrar sentido nas ações que têm de realizar).

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É claro que o ciberespaço traz uma sociabilidade com ca-racterísticas específicas. No MUD, a mediação pelo computa-dor proporcionava uma interação principalmente via texto e,eventualmente, com câmeras ou presencialmente. Uma dasprincipais características da sociabilidade no ciberespaço é uma“inversão” que se dá na forma de conhecimento das pessoas.

Palacios (1996, p. 93) descreve esse fato, dizendo que:

Nos processos sociais da vida real (IRL), estamos acostumados a en-contrar fisicamente as pessoas, conhecê-las pouco a pouco, e, à medi-da que aprofundamos tal conhecimento, vamos, cada vez mais,intercambiando informações, identificando áreas de interesse comume interagindo em função delas, e, nesse processo, conhecendo-as. Nascomunidades virtuais, o processo parece inverter-se: interagimos ini-cialmente, de maneira muitas vezes profunda, em função de interes-ses comuns previamente determinados, conhecemos as pessoas e, sóentão, quando possível, encontramos fisicamente tais pessoas.

A mediação da tela, característica do ciberespaço, faz tam-bém com que, num primeiro momento, as imagens dos parti-cipantes não sejam automaticamente discerníveis: oestabelecimento das relações, a princípio, não mostram o sexo,idade, raça e aspecto físico dos participantes. Esses aspectosserão efetivamente conhecidos somente se o usuário assim odesejar; caso contrário ele se contenta com a imagem que ooutro constrói de si para mostrar aos outros, como diz Palacios.

Essas características não impedem que se construam rela-cionamentos duradouros dentro do ciberespaço. Segundo Ri-beiro (2000, p.140):

Dentro deste espaço de convivência, constata-se que as pessoasfreqüentemente iniciam relações, formam agrupamentos, criam liga-ções fortes em intensidade por vezes bastante significativas. A parti-cularidade deste espaço está centrada no fato de possibilitar aonavegante a exploração de novos fatos existenciais, cognitivos eexperienciais a partir de um ambiente desterritorializado.

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Assim, pode-se considerar que a elaboração e o aprimo-ramento das modalidades de comunicação pelo computa-dor fazem do ciberespaço um lugar de interação, ondenovas formas de sociabilidade são criadas e atualizadasconstantemente pelos usuários, como acredita Máximo(2002). Para ela, o ciberespaço agora se constitui mais comoum conjunto de processos que permitem interações sociaise possibilitam a emergência de grupos, do que um artefatotecnológico. Acredita, entretanto, que ao proporcionar a cri-ação e o aprimoramento constante de diferentes modalida-des de comunicação, a Internet se apresenta como apenasmais uma esfera de sociabilidade associada às demais di-mensões da prática social na contemporaneidade.

Era possível observar essas novas formas de sociabilida-de nos jovens jogadores, que estabeleciam laços sociais me-diados pelo computador, construindo amizades bastantesólidas. Era por meio desse forte vínculo que podiam criaro que se chama de comunidades virtuais.

Lemos (1999) aponta que os ambientes virtuais, como osMUDs, podem ser veículos do que ele chama deCibersocialidade. O autor parte do conceito de socialidadede Maffesoli (1990), que descreve o que marca a atmosferadas sociedades ocidentais contemporâneas, ou chamadaspós-modernas: a “socialidade”. Esse conceito é definido emoposição ao de “sociabilidade”, que o autor acredita queregeu a vida no período da modernidade. A “socialidade”seria, portanto, a marca dos agrupamentos urbanos contem-porâneos, diferenciando-se da “sociabilidade”. ParaMaffesoli, a socialidade se constitui num conjunto de práti-cas cotidianas que escapam ao controle social (hedonismo,tribalismo, presenteísmo) e que constituem o substrato detoda vida em sociedade, não só da sociedade contemporâ-nea, mas de toda sociedade.

A socialidade marcaria os agrupamentos urbanos con-temporâneos, colocando ênfase na tragédia do presente, noinstante vivido além de projeções futuristas ou morais, sen-

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do efêmera nas relações banais do cotidiano, nos momen-tos não institucionais, racionais ou finalistas da vida de tododia, e se diferenciaria da sociabilidade pelo fato de esta secaracterizar por relações institucionalizadas e formais deuma determinada sociedade.

Lemos (1999) acredita que a Internet pode servir de su-porte para o desenvolvimento de comunidades virtuais, queconstituem exemplos de como se podem constituir novostipos de socialidades: socialidades on line, que o autor cha-ma de Cibersocialidades. Para ele,

[o Ciberespaço] ... enquanto forma técnica é, ao mesmo tempo, limi-te e potência dessa estrutura social de conexões tácteis que são as co-munidades virtuais (Chats, MUDs e outras agregações eletrônicas).Em um mundo saturado de objetos técnicos, será nessa forma técni-ca que a vida social vai impor o seu vitalismo [a socialidade] ereestruturá-la.Lemos acredita que os pressupostos da socialidade podem ser vistosnessa nova cibersocialidade. Para ele, é possível ver essas caracterís-ticas se pensarmos na formação de uma sociedade de comunicaçãoestruturada na conectividade generalizada, utilizando redes plane-tárias de comunicação (ciberespaço, onde se verificaria o tribalismo),em tempo real (imediato, presenteísmo) e sem finalidade última, ape-nas se comunicando pelo gosto de se comunicar (hedonismo).

No entanto, alguns autores, como Máximo (2002) e Car-neiro (1997), discordam de Lemos quanto ao fato de ociberespaço propiciar apenas uma socialidade. Ambas con-cordam que a socialidade é uma relação efêmera, imediatae circunstancial – passível de acontecer no mundo virtual –, mas este não é o único tipo de relacionamento exibido pe-las comunidades. Maximo acredita que o modelo dasocialidade não deve ser generalizado para as formaçõessociais engendradas no ciberespaço, uma vez que tambémé possível verificar dimensões institucionalizadas, marcadaspela sociabilidade. A autora aponta que, apesar de alguns

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agrupamentos sociais virtuais serem caracterizadas pelodesejo de “être ensemble”, estar junto em detrimento dosconteúdos objetivos que levam à interação, a sociabilidadevisa à formação de uma unidade social.

As salas de webchat6, por exemplo, se apresentam maiscom características de socialidade, pois as interações tendema ser efêmeras, uma vez que não é necessário apresentar-sesempre com o mesmo apelido. Já os chats conhecidos comoIRC7 poderiam estar mais próximos do conceito de sociabili-dade, pois, como aponta Carneiro (1997), existe uma organi-zação e uma hierarquia de poder. No IRC também existe umaestabilidade de identidade (Fortim, 2001), ou seja, as pesso-as procuram entrar sempre com o mesmo apelido, para se-rem reconhecidas na sala. Como diz Carneiro,

O ponto que considero mais inadequado para tratar as comuni-dades de IRC é a idéia de “ausência de organização”. Assim comoas seitas não teriam necessidade de uma organização social visí-vel e um aparelho burocrático forte, as tribos escapariam a qual-quer espécie de centralidade e até de racionalidade. Penso que estanoção seja inadequada porque os canais, longe de sereminorganizados, são espaços bem estruturados, hierarquizados ecom regras definidas e conhecidas de todos. (s/p)

Carneiro (1997) diz também que a permanência é uma ca-racterística muito importante desses agrupamentos virtuais.Caso contrário, as relações entre as pessoas não poderiam seraprofundadas o suficiente para que constituíssem laços soci-ais mais fortes. Como exemplo, ela observa que seria impossí-vel que as relações pudessem aprofundar-se de modosuficiente para dar aos indivíduos um senso de pertinência, setodas as vezes em que o indivíduo voltasse ao ambiente desociabilidade virtual precisasse reiniciar a operação de travar

6 Salas de bate papo virtual disponíveis na Web, como as disponibilizadaspelos provedores Terra e UOL.

7 O IRC – Internet Relay Chat .

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relacionamentos com os demais indivíduos. Se as relaçõespudessem ser consideradas como efêmeras, teria que se admi-tir que, a cada desconexão, tudo aquilo que havia sidoconstruído seria imediatamente destruído. A permanência éo oposto da efemeridade, por isso a autora critica Lemos quan-to à aplicação do conceito de socialidade no ciberespaço.

Após essa breve discussão, como se pode caracterizar esteobjeto? É possível considerar que nos MUDs existe espaçopara a socialidade, relação efêmera, mas também para a so-ciabilidade, relação longa e estável. Além disso, tem-se quelevar em consideração que Vitália se apresentava como umagrupamento de jovens ordenado, em que existiam relacio-namentos formais e institucionais.

Assim, por meio da socialidade e da sociabilidade,pode-se considerar que os laços de amizade entre os joga-dores acabavam por formar um agrupamento social comnormas e características próprias. Esses agrupamentos so-ciais formados pela Internet recebem o nome de comuni-dades virtuais. Em Vitália, existia uma simulação, nãoapenas de uma interação social (como nas salas de chat),mas também de uma comunidade com normas, regras evalores inerentes a ela.

Comunidades virtuais

O conceito de comunidade foi identificado na Sociolo-gia por diversos autores, tais como Simmel, Wirth, Tonnies,Freyer, e mesmo Weber – autores escolhidos por FlorestanFernandes (1973), para discutir o assunto. Alguns dão ên-fase a aspectos como a coesão social, a base territorial, o con-flito e a colaboração para um fim comum. Outros elencamaspectos como o sentimento de pertencimento, aterritorialidade, a permanência, a ligação entre o sentimen-to de comunidade, o caráter corporativo e a emergência deum projeto comum, e a existência de formas próprias decomunicação, como bem resumiu Palacios (1998).

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Em geral, os autores consideram que a comunidade está li-gada por um sentimento de “pertença”, em que o indivíduo éparte do todo, coopera para uma finalidade comum com os de-mais membros (caráter corporativo, sentimento de comunidadee projeto comum). A territorialidade também é bastante aponta-da como uma característica da comunidade, pois permite a con-dição essencial para o estabelecimento das relações sociais.

Para Wirth (1956), o conceito de comunidade refere-seà vida grupal, que é composta por uma base territorial, dis-tribuição de homens, instituições e atividades no espaço,com uma vida conjunta fundada no parentesco e nainterdependência econômica, e baseada em uma mútua cor-respondência de interesses. Para o autor, o que faz com queuma comunidade exista é o fato de que a vida social huma-na invariavelmente envolve um grau de comunicação, e éisso que diferencia as comunidades humanas das dos ani-mais. Os homens vivem numa comunidade em virtude dascoisas que têm em comum, e a comunicação é a maneirapela qual passam a possuí-las em comum. Esse autor dáênfase aos aspectos de participação dos indivíduos em em-preendimentos em comum, que tenham as mesmas esperan-ças e idéias comuns, e nos mecanismos de comunicação ede interação social que existem na linguagem, nos símbo-los coletivos, nas leis e costumes.

Outros autores, como Beamish (apud RECUERO, 2002),explicam que o significado de comunidade gira em torno dedois sentidos mais comuns. O primeiro refere-se ao lugar fí-sico, geográfico, como a vizinhança, a cidade, o bairro. As-sim, as pessoas que vivem em um determinado lugargeralmente estabelecem relações entre si, devido à proximi-dade física, e vivem sob convenções comuns. O segundo sig-nificado refere-se ao grupo social, de qualquer tamanho, quedivide interesses comuns: religiosos, sociais, profissionais etc.

No entanto, houve modificações no contexto e nos concei-tos de comunidades. Manta e Sena (apud CARNEIRO, 1998)acreditam que o conceito de comunidade teria sofrido uma

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mudança, na passagem da modernidade para a pós-modernidade. O momento atual seria uma época de transiçãodos ideais modernos (racionalização, progresso, planejamen-to do futuro) para os ideais pós-modernos (imaginário, cultu-ra do sentimento, sensibilidade, solidariedade, religiosidade).O conceito clássico de comunidade, caracterizado pelo senti-mento de pertença, permanência, territorialidade, crença nasrelações genuínas e verdadeiras, o ideal do projeto comum ea existência de uma forma própria de comunicação entre seusmembros foi substituído na análise dessas novas comunida-des, pela noção de tribalismo, de Maffesoli (1990).

Para Carneiro (1997), entretanto, a noção de tribalismonão seria bem aplicada às comunidades virtuais, uma vezque Maffesoli considera terem as tribos uma forte relaçãocom a territorialidade geográfica. Só será possível entenderas comunidades virtuais como tribos se acreditarmos queo território no qual elas se inserem é simbólico, e não físico.

Assim, pode-se considerar que Vitália é uma comunida-de num espaço virtual, um espaço simbólico vivido e com-partilhado por seus jogadores. Ela não tem territóriopresencial, mas sim virtual. Lemos (1999), baseado nos con-ceitos de Maffesoli (1990), acredita que se pode consideraressas agregações sociais como comunidades que são forma-das da mesma forma que as tribos urbanas (ou seja, por la-ços emocionais, por uma vontade de estar junto, onde o queimporta é o compartilhamento de emoções em comum). São“comunidades sem proximidade”, formadas em torno deum território não físico, mas simbólico.

Segundo Balardini (2001), os espaços virtuais não têm aterritorialidade geográfica à qual os indivíduos se apegam,mas somente o agrupamento que ele propicia, à identida-de que está vinculada à sua pertinência e qualidade. Ou seja,mais que um território, essas comunidades estão baseadasnos laços afetivos que os usuários estabelecem entre si.

Uma comunidade virtual pode formar-se por meio dasvárias formas de comunicação mediada pelo computador.

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É construída sobre afinidades de interesses, conhecimentos,projetos mútuos, em um processo de cooperação e de tro-ca, independentemente das proximidades geográficas. Cadauma dessas comunidades tem formas, regras, e seus usuá-rios apresentam comportamentos específicos.

Para Rheingold (1993), uma comunidade virtual podeser definida como agregações que emergem da Internetquando várias pessoas entram em discussões públicas comuma carga de afeto suficiente para formar teias de relacio-namentos pessoais no ciberespaço. Para explicar o que éuma comunidade virtual, o autor diz: “Pessoas que usamcomputadores para comunicar-se, fazer amizades que àsvezes formam a base das comunidades, mas você deve tercuidado para não misturar a ferramenta com a tarefa e pen-sar que apenas escrever palavras numa tela é a mesma coi-sa que uma comunidade” (p. 1).

Mas como funcionam essas comunidades virtuais? Aoki(apud FOSTER, 1997) dividiu o estudo das comunidades vir-tuais em três grupos diferentes: 1) aqueles que se origina-ram de comunidades físicas; 2) aqueles que englobam emalgum grau comunidades reais; 3) aqueles totalmente sepa-rados das comunidades físicas.

Essas diferenças são fundamentais, quando se pensa noestudo das comunidades virtuais. No MUD, boa parte dacomunidade permanece virtual, mas uma grande parte en-globa, em algum grau, os encontros presenciais. Nesse jogo,a comunidade se conheceu no virtual e partiu para encon-tros presenciais.

Segundo Reid (1991), os usuários das comunidades vir-tuais levam o mundo virtual a sério, e têm um senso de res-ponsabilidade com seus companheiros, pois essa interaçãopropicia que as pessoas se abram com pessoas razoavelmen-te “desconhecidas”. A comunidade propicia aos participan-tes um grau de acolhimento e de confiança.

Os relacionamentos entre os jogadores podem ser esta-belecidos de diversas maneiras. Na rede há espaço para

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velocidade e mudança, mas também existe espaço para per-manência e sistematização entre os relacionamentos. As re-lações podem ser múltiplas e efêmeras, mas tambémprofundas e articuladas (BALARDINI, 2001).

As comunidades virtuais são fluidas: em Vitália constan-temente entravam e saiam usuários. Nos seus 8 anos de exis-tência, Vitália viu muitas gerações de jogadores. Existia umapopulação fixa, que eram os jogadores mais antigos do pro-grama, estando lá há três, quatro ou mais anos jogando, masexistiam muitos jogadores que faziam personagens, joga-vam um pouco e nunca mais retornavam.

Comunidade virtual - interações on line e off line

Que aspectos usualmente são analisados em uma comu-nidade? Para MacIver e Page (1955), as comunidades sãofeitas por teias de relações sociais, em que seres sociais secomportam em relação a outros de acordo com a maneiradeterminada pelo reconhecimento um do outro. Para o au-tor, as relações sociais estão vinculadas ao fato de os indi-víduos se sentirem, de certa forma, da mesma classe. Paraele, comunidade é o termo que se aplica a qualquer grupo,grande ou pequeno, que partilhe de uma vida em comum.Para esse autor, as comunidades têm diversos aspectos, quea caracterizam como uma organização social. Há vários pe-quenos agrupamentos, dentro do agrupamento social mai-or, denominado comunidade. As comunidades podem terassociações (grupos organizados com certo interesse co-mum). As famílias e o Estado podem ser consideradas as-sociações que fazem parte da vida da comunidade.

Essas formas de organização existiam na comunidadevitaliana. Uma comunidade forma-se por meio de relacio-namentos sociais, ligações de parentesco, relações de poder,regras sociais estabelecidas, por hábitos e costumes, e pe-los valores estabelecidos entre as pessoas. A comunidadevitaliana tinha todos esses aspectos. Havia, inclusive, um

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linguajar próprio, quase um dialeto. Essa sensação de simu-lação de uma comunidade “diferente”, fora da vida comum,mantinha a freqüência de muitos jogadores no MUD.

As teias de relações sociais – Interações on line

Seguindo o pensamento de MacIver e Page, as comuni-dades têm determinados tipos de organização, e elas se or-ganizam em torno de instituições, tais como associações. EmVitália, existiam associações formais, como os clãs, e asso-ciações informais, como a “elite” formada pelos vitalianosmais velhos (em tempo de jogo).

Os clãs podiam ser considerados associações formais.Filiar-se a um clã indicava o grau de comprometimento que ojogador tinha em relação ao jogo e à comunidade virtual queexistia nele. Praticamente, todos os jogadores ingressavam nosclãs quando tinham nível para isso (nível 10), sendo raros osjogadores que preferiam permanecer sozinhos. Cada clã pos-suía suas próprias regras e valores, que o membro devia res-peitar.

Uma família era um grupo de jogadores que começava aconstituir laços familiares entre si, adotando um sobrenomecomum. Por exemplo, um jogador podia casar-se e adotar fi-lhos, que, por sua vez, também se casavam e também adota-vam filhos. Os jogadores anunciavam seu parentesco nostítulos, formando assim as famílias. Pode-se considerar que asfamílias se formavam também como associações, uma vez quepartilhavam de um mesmo sobrenome e sentimento familiar

Na questão familiar, também é interessante notar o pa-pel da mulher dentro do jogo, pois, como as mulheres eramem número bem reduzido (em uma amostra de 149 questi-onários preenchidos, havia apenas 12 mulheres), elas eramextremamente valorizadas e muito disputadas em Vitália.Os jogadores homens as favoreciam em diversos aspectos,principalmente na exploração do jogo e quanto aos equipa-mentos, que eram oferecidos a elas como presentes. Isso

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tudo era feito porque havia a possibilidade de namoro ecasamento no MUD - e muitas vezes fora dele também.Muitos procuravam no MUD a namorada ou a companheiraque pudesse ser trazida para o mundo presencial.

Os Deuses, programadores do jogo, formavam uma clas-se diferenciada, que tinha controle e exercia o poder na co-munidade. Se fosse feito um paralelo com as comunidadespresenciais, os Deuses representariam o Estado, pois elestinham controle absoluto sobre tudo e todos, e não se mis-turavam com os demais jogadores. O estado, como apontaMacIver e Page, também pode ser considerado como umaassociação, com finalidades próprias, que, neste caso, sig-nificava gerenciar o jogo. Os deuses de nível mais alto eramextremamente “poderosos” dentro do jogo. Poder, em umMUD, era o poder de criar e destruir locais, objetos e, prin-cipalmente, personagens (REID, 1994). Os Deuses eram te-midos pelos jogadores, pois tinham o poder de destruirpersonagens ou de removê-los para determinadas áreas dojogo, a fim de que fossem impedidos de jogar.

Existia um conjunto de regras, chamado Policy (que eraa Política do Jogo), que devia ser respeitado pelos jogado-res e que seria o código pelo qual os deuses regiam o MUD(um paralelo adequado seria a Constituição). Entretanto,muitas vezes o MUD era regido de forma arbitrária, privi-legiando alguns jogadores em detrimento de outros. Issogerava muito descontentamento na comunidade, e levou osdeuses a instaurarem o que alguns jogadores chamavam de“Ditadura Vitália”. Jogadores descontentes ou que reclama-vam simplesmente eram punidos ou excluídos do jogo; osdeuses cediam às bajulações e eram rígidos com aquelescom os quais não simpatizavam.

Existia em Vitália a oposição entre os experientes e osnovatos. Quando um jogador entrava no jogo e estava noprimeiro nível da sua primeira encarnação, era chamado de“Newbie”, ou novato. Era considerado um jogador novatoaté que pudesse, sozinho, entender o funcionamento do

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jogo, sem a ajuda de outros jogadores. Os novatos eramdesvalorizados, pois não sabiam jogar e, principalmente,não conheciam as regras da comunidade. Em oposição aisso, os experientes formavam uma espécie de “elite” comgrande reconhecimento social. Considerava-se que essesjogadores (que freqüentavam o MUD há três anos ou mais)tinham visto Vitália crescer e se modificar, e já haviam in-corporado as normas e valores da comunidade. Assim, po-demos ver essa “Elite” dos mais velhos como umaassociação informal,

A comunidade vitaliana também tinha um sistema de valo-res próprios. Eram mantidas certas regras morais do mundopresencial (como casamentos heterossexuais e monogâmicos),mas também tinha como valores a solidariedade e a honra. Alémdisso, contava com valores específicos, como a importância daamizade e a utopia de uma comunidade perfeita.

Os jogadores mantinham o que eles chamavam de solidari-edade – um sistema de ajuda mútua, uma vez que para jogareles eram dependentes uns dos outros. Também era valoriza-do o conceito de honra- aqui, para os vitalianos, entendido comoa manutenção dos ideais do que eles acreditavam que fossemos da cavalaria medieval. Honra para a comunidade não signi-ficava apenas a definição dada pelo Aurélio, e sim todo e qual-quer sentimento que para eles fosse considerado “nobre”, comoaltruísmo, desprendimento e amizade.

Mas Vitália tinha um valor específico: a manutenção da co-munidade e os laços de amizades eram mais importantes do que sim-plesmente jogar. Não dito explicitamente em nenhum lugar, oprincipal valor de Vitália era que os laços afetivosdeveriamsempre ser mais importantes que o ganho de pon-tos de experiência e os equipamentos. Os jogadores que privi-legiavam a conquista de pontos e itens eram extremamentemalvistos pela comunidade.

Além disso, os jogadores mantinham a utopia de queVitália deveria ser um mundo melhor que o mundo real, li-vre da violência. Este era um dos principais valores da co-

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munidade, que prometia ser um lugar onde imperasse aaventura e o mal estivesse banido. Isso atraía muitos jovensdescontentes com sua vida cotidiana, sem aventuras mági-cas e cheia de incertezas, cercada de uma violência que defato atinge os corpos físicos, ao contrário do MUD, onde opersonagem pode sofrer qualquer dano sem que o jogadorrealmente seja afetado.

Os encontros presenciais – Interações Off line

Os encontros presenciais eram chamados de MUD encon-tros. Vitália era uma comunidade virtual, mas parcialmentepresencial. Nos “MUD encontros” realizados por este grupo,às vezes os jogadores viajavam longas distâncias para se co-nhecerem. Participar dos encontros era uma importante ati-vidade na manutenção da comunidade, e certamente era oque possibilitava que os jogadores interagissem em suas vi-das off-line. Muitos relacionamentos off-line, como amizades,namoros, e até casamentos, foram viabilizados na vidapresencial desses jogadores a partir dos encontros .

Pode-se considerar que os MUD encontros eram partedo ambiente de sociabilidade do grupo, pois propiciavatranspor as amizades virtuais para o mundo presencial,anulando assim divisões radicais entre o mundo presenciale o virtual. Ambos se interpenetram, e, assim como compor-tamentos no ambiente do jogo eram transpostos para o am-biente presencial, muitos comportamentos do grupoapresentados nos MUD encontros eram estendidos para avida virtual. De fato, a linha que separa o mundo virtual domundo presencial é bastante tênue. Havia comportamentosdos jogadores que só existiam no universo do jogo e com-portamentos que eram iguais no jogo e fora dele. Assim, oque ocorria no MUD poderia ser em outra esfera que não afísica, mas não era menos real por causa disso.

Mas os MUD encontros atestam que a separação entre osmundos virtuais e presenciais não é completa, pois todos se

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encontravam e tinham amizades estendidas para além doambiente de sociabilidade do jogo. Existia uma grande dis-cussão entre os jogadores, se vida de jogo é vida de jogo e nãose misturava com a presencial, ou se tudo fazia parte da mes-ma coisa. O discurso dos deuses, ora tendia para uma sepa-ração (MUD é uma vida separada da vida real), ora para ajunção dos dois mundos (se o jogador se comporta como umcanalha dentro do jogo, significa que também é assim foradele). Ou seja, não existem fronteiras entre o mundo virtuale o mundo presencial, pois, em primeiro lugar, tudo faz par-te do ambiente de sociabilidade grupal.

É com base na apresentação de todos esses comportamen-tos dos jogadores, on e off line, que se considera Vitália umacomunidade virtual, mantida, na maior parte do tempo vir-tualmente, mas que contava com encontros presenciais.

Esse MUD podia ser considerado como um ambiente desociabilidade dos jovens. Esse ambiente de sociabilidade virtu-al podia ser entendido como uma comunidade virtual que dis-punha de normas específicas. Essa comunidade contava comassociações formais (como os clãs e famílias), com associaçõesinformais (como a elite dos mais antigos e os novatos). Contavaainda com uma organização que podia ser caracterizada comoEstado, e contava com valores específicos, que podiam ser com-parados aos da cavalaria medieval (solidariedade, honra, uto-pia vitaliana e a valorização da amizade e da manutenção dacomunidade). Os encontros presenciais faziam parte do ambi-ente de sociabilidade do grupo, tornando assim mais rico o con-tato entre jogadores e fazendo com que a amizade fosseoprincipal motivo para os jogadores conectarem-se ao MUD.

Assim como o MUD, os jogos eletrônicos atualmenteconhecidos como MMORPGs (Massively ou MassiveMultiplayer Online Role-Playing Game8), são os novospropiciadores de comunidades virtuais. Essas comunidades

8 Jogos de interpretação de personagem online e em massa para múltiplosjogadores

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se assemelham muito à do Vitália MUD, pela estrutura dojogo e pelo comportamento desenvolvido pelos usuários.

Para finalizar, gostaria de comentar que o Vitália MUDfoi fechado em outubro de 2004, devido a desentendimentosentre seus mantenedores. Isso causou grande comoção nacomunidade, que procurou outros MUDs para jogar. Apósuma longa história de aberturas e fechamentos de MUDs quetentaram manter a comunidade, os jogadores foram sendoabsorvidos por outros jogos mais modernos do mesmo tema,especialmente os jogos Ragnarok e World of Warcraft.

Entretanto, até hoje (abril de 2008), mesmo com o MUDfechado há praticamente 3 anos, ainda são realizados MUDEncontros pelos jogadores que participaram da comunida-de, o que atesta que os laços de amizade formados por meiovirtual foram (e são!) muito fortes. Assim, creio que o estu-do das comunidades virtuais merece mais atenção dos pes-quisadores, pois, se podíamos ter todo esse material em umambiente de texto, com as inovações tecnológicas teremosum material tão ou mais interessante para estudar o modocomo se dão as sociabilidades e socialidades juvenis.

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