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ano nono volume segundo os meninos milionários fôlha de arte e crítica / coimbra, abril, 1935

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ano nono volume segundo

os meninos milionários

fôlha de arte e crítica / coimbra, abril, 1935

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A escola fechou a porta e as janelas, os livros ficaram fechados sôbre as carteiras, no salão, a ganhar pó; no dia seguinte, a escola cheirará de novo a bafio.

Mas, agora, as horas da escola são horas mortas, esquecidas. Vão soar outras horas, vivas e livres...

A flor negra da noite vai abrir, derramando sombras sôbre a terra, e as ruas e as casas preparam-se para adormecer.

Tinha agonizado a tarde na luz azul das margens; o cais

despovoara-se e tinha emudecido; o crepúsculo expirava, serêno como a agonia de uma ave, sôbre o rio.Os meninos tinham ido tomar banho, junto dos navios. Tinham nadado a tarde inteira e, ao regressar, traziam os cílios e os cabelos todos molhados e a epiderme guardava e saboreava ainda beijos líquidos. A caminho de casa, os meninos começam então a sentir-se trémulos perante a noite que vai descendo e regressam silenciosos, pela estrada, dominados pelo mistério que os invade, com as bandeiras das fraldas sujas à vista.

Tinham tomado banho completamente nús. Se os polícias os apanhassem, levá-los-iam para a esquadra e bater-lhe-iam com os chanfalhos de aço, muito bem poido. Quem dera assim um terçado aos meninos! Se fôssem presos, talvez pudessem roubar um. Mas se os policias viessem, os meninos prefeririam antes fugir. Logo que os avistassem, amarrariam a roupa em trouxa, no cume da cabeça, e cortariam as águas nadando até à outra margem, até aos navios. Os policias, então, torceriam os bigodes, despeitados, e afastar-se-iam a insultá-los e a olhar, de vez em quando, para trás. E quando o mêdo passasse, os meninos rir-se-iam com prazer por ter ludibriado a autoriadade.

Os polícias, porém, não tinham surgido.Viera só o pânico, que a noite iria aumentar, e omêdo

dos polícias era apenas um princípio de incêndio.

A terra em sombra é maior. Veio o lampianista e fez luz nos candeeiros, das esquinas da rua; as estrê-las acenderam.

-Quem acende as estrêlas?-pregunta um menino.- Foi o lampianista - diz outro.E à luz dos candeeiros, sentados no limiar de umacasa,

os meninos de rosto côr de cera, pálidos, começam a cantar.

Ó! o bailado agónico do dia com os meninos a cantar! As suas bôcas lembram bocas paradas de esculturas, abertas como bocas de fontes a rezar!

As palavras das canções sobem como azas, e pairam.Cada sílaba é então uma aza palpitando, imponclerãvel,

no abismo do silêncio e da noite, que já desceu sobre os telhados, e entrou pelos olhos espantados dos cantores.

Os morcegos veem voar em volta dos candeeiros, as sombras crescem, e os meninos sentem-se cansados de cantar. Quando as azas das canções caiem desfalecidas no seio do silêncio e expiram, a vida transfigura-se em misterioso e pleno sentido de pavor. Os meninos encontram-se sós, abandonados, no meio da floresta da noite ameaçadora. O corpo treme e enco-lhe-se. A noite é grande e terrivel. Olham-se uns aos outros, e as suas caras de oiro, à luz do gaz, parecem

caras desconhecidas, imóveis e cerradas pelo espanto.Dir-se-ia que se vêem num primeiro encontro de

corpos surgidos repentinamente das sombras, de longe, de outros mundos.” E os meninos transfigurados, batidos pelo panico, sentem a alegria do encontro.

Desconhecendo-se, julgavam-se perdidos, como peregrinos que tivessem vindo não se sabe de onde; quando cantavam os meninos tinham perdido a memória da vida como aves que fossem erguer o seu côro no espaço longínquo.

Agora, o pânico nas almas, como fugir ?

-Jôgo dos polícias e dos ladrões!-Jôgo dos polícias e dos ladrões- gritam e repetem os meninos.Abandonam os seus lugares, onde tinham estado

sentados, e vão colocar-se junto ao muro da rua. Vão correr as ruas tortas, os labirintos escuros, fugir. . .

Colados a parede, como silhuetas, cercam-nos os murosda rua onde o céu estrelado poisa, como uma tampa.

O coração dos meninos bate, e alguns têm as pernas trémulas e a voz prêsa na garganta ressequida.

Acordaram os seres fantásticos que habitam a noite, os portais e os cantos das esquinas, e que, de repente,

podem vir com seus braços longos e invisíveis arrebatar os meninos; acordaram já as bruxas e os demónios, e as almas dos que morreram nas casas velhas da rua -e vieram todos demónios e fantasmas esconder-se como inimigos nos portais e nas esquinas, à espera dos meninos...

Correr, fugir. . . O élan da fuga percorre-lhes então as pernas trémulas, mas em vão; as pernas não descolam. Sentemse presos ao muro, em fila, como se fôssem de pedra, os meninos.

No fundo da rua ouvem-se ruídos de tamancos batendo a pedra e vozes de mulheres. Presenças que serenam

-Polícial.-Ladrão! -Tu és policia! Tu és ladrão!Os polícias vão para a direita, tristes, e os meninos que

o sorteio fez ladrões retiram-se para o outro lado, prontos a fugir, à voz do capitão.

-Sou ladrão! Que bom!E os ladrões já vêem as mãos dos policias estenderem-

se, para os prender, as pistolas apontadas, e uma voz dizer:-Está prêso, seu ladrão!O menino que quis fugir para a Inglaterra diz a chorar:-Eu não quero ser policia! Quero ser ladrão!

Os meninos aproximam-se uns dos outros e vão dizendo, repetindo as mesmas palavras,abrindo assim fugas aos mêdos:

-Tu és polícia.-Tu que és? Eu sou ladrão.Mas as palavras não afugentam os fantasmas que vieram

povoar as suas almas e a rua. Jogo dos polícias e dos ladrões! E os ladrões que a sua imaginação cria e vê são figuras estranhas e negras, que se vão metamorfoseando de visão para visão.

-Tu és polícia! Eu sou ladrão!

Os meninos acreditam na voz daquele destino, que os faz polícias e ladrões. Uns julgam já que são policias e os outros

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ladrões. Crêem que o mundo está dividido em duas classes e que na vida não terão outros destinos: ser polícias ou ser ladrões.

A imaginação dos ladrões trabalha, rápida e fecunda.

Nas figuras dos ladrões, dos outros ladrões, os meninos vêem rabos e cornos, o diabo. Os ladrões são diabos.

A ideia de que o jôgo os fez e o destino os fara ladrõe sé uma ideia grata, entre a agitação que revolve os seus espíritos, alívio no pavor. Mas se os ladrões são diabos êles terão também que ser diabos.

Diabos e ladrões os meninos têm mêdo do diabo porque o amam.

Os policias não serão diabos, não terão dinheiro,nem joias, nem roubarão igrejas, nem palácios; nem serão invisíveis e misteriosos, nem andarão mal vestidos com dois buracos rotos nas calças. Nem passarão fome, quando não houver que comer; nem terão as barbas crescidas, cheias de piolhos, nem encontrarão libras nas montureiras. Que boa é a aventura de ser ladrão!

Sofrerão as maiores angústias, como as que sofrem quando os pesadelos os faz sonhar que são ladrões, e até já sentem dó de tantas dores que vão passar!

Dormir ao relento, debaixo das geadas! Comer a geada, como agora comem as pérolas da saraiva, quando há trovoadas.

E os meninos vão sonhando a alegria de ser ladrão, de ser livre. . .

Felizes os que são ladrões porque dêles é o mundo!

-Pensam os meninos.

Os ladrões são os primeiros a largar. Começampor afastar-se lentamente, colados à sombra das paredes; parecem caminhar calmos, procurando iludir os polícias que hão-de persegui-los. Quando passam debaixo dos candeeiros os seus vultos tomam-se gigantescos, longos e disformes. Os policias, de olhos atentos, prescrutam os seus movimentos na sombra.

Paira o silêncio na rua. De repente, uma voz aguda ergue-se nesse silêncio, ao longe:

-Larga! Larga!A voz reboa pelas vielas, pelo bairro,

atravessa o rio, e na outra margem o eco repete:-Larga! Larga!E subitamente começa então a

corrida veloz atravez dos labirintos das ruas adormecidas à luz do gaz. Os polícias debandaram, perseguindo os fugitivos ao acaso, orientando-se por gritos que de vez

em quando se erguem não se sabe bem onde. Guia-os o instinto da perseguição, que os faz meter por esta viela, por aquele beco, espreitar a um canto, meter a cabeça nesta e naquela porta aberta e escura. Vultos que não reconhecem passam a correr, ouvindo-se a sua respiração ofegante, e as sombras alongadas projetam-se nas paredes, até cima, correndo rápidas também. As vezes surge uma cara, à luz do candeeiro, pálida, cor de cera. As pernas dos corpos e das sombras movem-se em ângulos obtusos e os braços agitam-se como pêndulas.

Os vultos desaparecem finalmente e fica outra vez o silêncio, cortado, de vez em quando, por um grito.

No silêncio da noite, os meninos correm, os seus vultos pequenos passam, os pés nus estalam como chicotes nas lages das ruas sombrias. Aparecem no limiar das portas mulheres velhas, acordadas pelos gritos dos policias e dos ladrões, e os gatos, de olhares luminosos, encolhem-se nos cantos das vielas, ou fogem, espavoridos, por entre as pernas dos meninos. Os meninos passam velozes enquanto velhas gritam:

-Insurrectos! Passam. A sombra dos vultos ora caminha a sua frente, ora atrás, umas vezes muito pequena, outras desmesurada como a de um gigante. A respiração sufoca-os. E o mêdo da noite, do silêncio e das sombras, habitadas pela nocturna fauna dos fantasmas começa a invadir de novo a imaginação dos meninos agora mais violento, mais obsecante. Agora, a noite, as coisas e as figuras antropomorfosearam-se em seres de pavor, duendes, bruxas ou mafarricos.

-Onde estão os outros?- gritam dentro deles as ‘vozes do panico, em desejo de solidárias presenças. . .

E a corrida desenfreada prossegue, o mêdo cresce cada vez mais de modo que os meninos já não fogem aos policias mas correm sim, cada vez mais, dentro da noite, para fugir aos seus fantasmas e pavores.

Os meninos - ladrões e poetas-teem mêdo do diabo. Quando forem maiores e mais fortes, não terão mêdo de nada, nem dos policias, nem das igreias nem dos cemitérios. Há tanto oiro e tanta prata nos altares! E nos jazigos, nos iazigos que parecem palácios, de marmore, para onde vão os condes? Os meninos amam os diabo e o roubo e tanto a ideia do demónio como aí do oiro das. igrejas e dos sepulcros os seduz epersegue.

Porque os persegue assim o diabo? Amam-no e têm-lhe mêdo. Para êles a noite é uma grande floresta de braços e-de cornos, de diabos de cara vermelha e de olhos incendiados. E roubam as almas! Que bom deixar roubar a alma! Melhor seria vendê-la por todas as riquezas do mundo (pela alegria do pecado).

As senhoras, vestidas de negro, que lhes ensinam a catequese, contaram a história de um homem que vendeu a alma ao diabo-e foi para o inferno, e ficou a arder para sempre como se o seu corpo fosse uma tocha. Mas o infemo não existe, tinha dito, com autoridade, um polícia que mora na rua. Ah! se o diabo quisesse comprar as almas dos meninos !

Certamente, quando forem velhos perderão todo o valor-e o diabo já não as comprará.

Pode muito bem suceder que o diabo lhes vá aparecer, em alguma viela mais estreita e escura, por onde passam a correr.

- Quanto pedes P E o diabo mostrar-lhes ha muito oiro e os meninos ficarão deslumbrados. Os seus olhos brilharão de ambição.

-Tanto oiro! Onde o roubaria o diabo?Os meninos não têm coragem para

olhar os cornos, a cara, do diabo. Mas vêem-no e sentem-no presente, ouvem~lhe os passos, perseguindo-os na sombra da viela. Ai! que oq diabo vai arrebata-los. . .

-Está prêso-diz um menino polícia.Depois que todos os meninos foram

presos, e vieram sob prisão, entre os policias, para o local de onde haviam partido, novamente se sentaram no limiar de uma casa velha, cansados e perplexos.

A noite ia alta e a luz do lampião flambava, entre as sombras que calam sôbre a rua. As casas pareciam, agora, adormecidas por fora, mais velhas, mais escuras. Dentro, renasciam agora, certamente, Os ruldos das figuras invisíveis que a noite cria, os espiritos maus, vigilantes a entrada das portas, debaixo das camas, ou escondidos dentro dos casacos e das calças que se dependuram nos pregos das paredes e nos cabides. De dentro, pelas frestas abertas nas janelas e nas portas, pontos luminosos espreitavam para a rua.

E os meninos pensavam que êsses pontos eram os olhos dos seres irreais que se escondem, a noite, nos fatos dependurados sobre portas e nas paredes.

De vez em quando, os cãis ladram na outra margem, e os ralos com os seus assobios curtos, enchem o silêncio.

Quem sabe se os cais também vêem os fantasmas que perseguem os meninos!

As mãis, em altos gritos, chamam os meninos para a cama. Mas êles não têm coragem para entrar nos portais nem meterse na cama e as vozes das mãis fazem calar os cãis e erguem-se cada vez mais coléricas, em altos brados.

Os meninos sentem as pernas trémulas e exaustas, a cara ardente. A fogueira do mêdo extinguiu-se e apagava-se. Uma calma suave banhava os seus espiritos e imaginavam-se, agora, peregrinos que tivessem deixado as suas casas, o seu mundo, para correr outros mundos longinquos. Sonhavarn que tinham andado perdidos sentindo-se abandonados na noite imensa. Os gritos das mãis agora eram como que laços a puxa-los para o lar que iulgaram longe, perdido. Agora, na quietação do regresso, renascia a calma, as recordações que os prendiam às coisas conhecidas. Regressavam a si mesmos, os meninos.

Os pais, a escola, tudo estava agora perto. E os meninos sentiam-se tristes, com pêna de si. Que iriam fazer os pais aos insurrectos, que tinham andado pela noite fora, a fugir ao diabo, e que não queriam ir para casa com mêdo das bruxas, que iriam certamente deitar-se com eles, na mesma cama, e povoar de novo a sua noite de sonhos e de pavores.

E então, enquanto as rnãis gritam e a noite sobe, os meninos dão inicio aos seus diálogos filosóficos.

Rodrigues de Freitas

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Não repares que só hoje te escreva, nem interpretes como menos amiga o que de facto é apenas a minha phobia da escripta- phobia esta que faz de mim, como rabiscador, um authentico forçado, só escrevendo por gravidez mental, por desabafo, quando mais não pode estar calado. Lembro-me sempre. muito e muito, de ti; e se aqui te não faço confissões de amizade (que tu sabes sincerissima) é para evitar que algum Theophilo Braga do futuro, venha a calunniar-nos, interpretando à grega a nossa intimidade. Nem tu calculas, meu querido Ramiro. o bem que me fizeste mandando-me o estudo iconográfico dos tumulos. 0 texto pouco me diz; que eu não soubesse, mas as ilustrações interessaram-me prodigiosamente. Sob etudo a estátua tumular do meu Pedro- essa cabeça pathetica, que me diga mais do meu heroe do que as ehronicas, do que tudo, e que. como era logico no uosso doce Portugal, tanta gente olhou e ninguém viu. . . Nem mesmo o autor do livro, que com uma miuucia tio simpathiea, desereue os pormenores de cada edicula, alludru ligeiramente a ella! E eu furo-te, por o meu instiucto d’arte, que ésse canteiro d’Alcobapa tiulla geuio, e que essa mascara religiosa de certeza, se em ue; de estar na crfpta de Alcobaga, estiuesse num museu ou numa egreja em qualquer terra da Italia ou de Franca, seria uma obra-prima admira a, mais do que o melhor dos Donatello, e eu a teria aqui n’uma moldagem. Nao te quero falar agora d’elta. porque enclaeria paginas e paginas a analysar-the a expressdo, a extasiar-me. Pepa-te sd que a olhes muito tempo. Foi ella, com os uersos de Pedro que o Vasco me mandou (mas sobretudo ella) a conjirmacdo de que é bem fusta a phase /inal do meu drama - que é essa cabega em palauras. . . Vés agora como t’a agradeco. Daqui or um meg. espero ter prompto o meu drama. Estou a escrever o ultima acto. Conheces decerto o que o Garrett di; sobre a dificuldade d’este assumplo no prefacio e notas do « Fr. Luiz de Sousa.» Refere-se, é clara, a uma iuterpretado de simplicidade trdgica, que (elle mesmo o dig) uinguem lhe deu. Calcula agora ue a minha maneira de o sentir triplicou, como uerds, a dificuldade, redugindo

o assumpto destlgeuda grandega de uma . Parece-me, as ueges, que ji; qualquer coisa de fdtldd : outras, duuido horriuelmente. que te digo aqui baixinho, e’ que o tenho viuido até A ullucinaqiio; que teuho _passado pr’ escreuer, n’este clima de degredo, noites de insomnia; mas que tambem teuho gogado, gogado de o viuer ate d vertagem, como uenhuma mulher, diuiuamente. . . 0 que te tenho ainda a pedir d`in/’ormac6es, uou escreue-lo u’uma folha dparte. Tu e o Vasco sdo os meus Qyre-neus. E’ ter paeieneia-qqze jd pouco falla! E tudo isto, meniuo, para que o A. . . (de F. . ., de F. .., de F.. . 1) seja glorificada, e eu, ai! De mim!

Achado um imbecil pelas comissões parochiaes da Liueratura nacional!

Falemos agora da edição do livro que te mandarei em janeiro (porque se então poderei ter incluido no drama os pormenores que te pedirei na folha qiparte. e as qucja u’esta carta me prometes ). F ago o que tu me acouselhas, seutindo apenas, meu Ramiro, a horrivel estopada que vou dar-te. Con leccs a colleegtio Les aitres de l’Arl? E edztada pela Librairie de l’Art ancien et moderne.Couheces, com certega. 0 exemplar que aqui teuho é o de ¢-Phidiasn. Pois é esse o modelo do formato. Gostas? Tambem gosto. do pnpel que é grosso e born, d’um amarellado marfm uelho. Poder-se~ha eonseguir papel egual, ou, se possiuel, outro que, com a’ mesma espessura, sqfa ainda mais cor de mar/im velho? O papel extremamente ranco é parvenu, é tapageur- mio ac as?

Como disposicdo typographica, hei-de mandar-te um modelo, ou, melhor ainda, mando-te o drama algo impresso-tal é o- terror do mais pequeuo engano. O tipo do dialogo sera esse mesmo, ou o mais aproximado possiuel, dos ¢ Maitres de l’Art».Depois te iudicarei tambem o das rubracas e o das uotas (no fim, depois do drama, llauerd deg ou doge pigirras de notas ).Aqui tens, em esboco, a edigdo. Depozs da tua resposta qqormenorisarei. Inutil diger-te que se esta ilhota de febre, eureeebesse exenuvlares do drama com gralhas, uma so que fossel ca ia para sempre, come cadde um cuerpo muorto (Dante. ou, tradugindo em portugue;

Mas eu conjio em ti mais do que em mim. E teuho raqdo -udo e uerdade? Tambem gostaua, se ado for earo e for possivel, de algumas uinhetas (ua comepo e /im dos actos) feitas de motiuos dos tumulos (que eu indicaria) estylisados. Tu que dqes? Quem poderia fa er isto?

A Para as letras da capa (sobre cuja cdr e papel mio estou /ixado) tu arranjas. meu pobre Ramiro, (1:50 gemas !) que as disponha o Raul Lino.A peqa tem 3 actos ( o segundo com dois quadros). Calculo- osseiramente-que com zo-ou I2 de uotas, o uumero de~ paginas serd de 140 a 145 -o maxima. Com o papet que eu te duke, ga um volume decente.Sobre este assumpto, tudo se decidird depois da tua resposta. .Outro couplet. Muito e muito obrigado por teres escripto ao X. . . Nao lhe disseste o meu nome, mas eom certeqa (bTque nada importa) elle o sabera por o A. . ., que e’ intimo, se antes mesmo recordaudo o que eu the disse uma tarde, em Lisboa (o été-creatura terriuel! - esta sempre a iuterromper-me) o ndo tiuesse adiuiuhado. Elle perguntou-me em que é que eu trabalhaua, e eu respondi-lhe, pouco mais ou menos: :Ando a chocar uma peqa sobre a Igne; de Castros. Record¢:!pe‘7`eitamente a conuersa que tivemos-tio #agraute era o eontraste das nossas palavras: elle contou-me que Iguez /Bra degola a epois de morta (deeollata fuig), fallou do pztoresco da folganqa, de coisas de uma theatraluiade facil, exterior e rithante-emquanto eu ia pensando n’outra cozsa. _e _digeudo ainda outra. O X. . ., que eu muila e muita re; feri, trata-me com a lisonja e polzdef, que sd nos merecem os nossos uumn os.. . . gas basta. E’ a ltora do correio que, via Siberia, i as tercas e sextas. A carta que breue te escreverei sera a suite.

Quando se estd tanto tempo ealado, sufoca~se sob mout6es de assumptos e todos instantes. Na seguinte carta te fallarei da minha_:ada aqua e das possibilidades de arranyar um outro posto. Ouft 4 Alice e o Toto mandam-te cumprimeutos muito armkos, como para tua Ex.” Esposa, minha senhora.

E tu, Ramiro, abraqa-me n’um grande Xi cheio de saudades Antonio.

DIRIGIDA DE CANTÃO, ONDE POETA FOI CONSUL

António Patrício

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Que a tua carne sofra ou goze,Há sempre, nos teus olhos, a miragemDa sêde que sucede ao acordarDuma longa narcose.No quente aroma que o teu corpo exala,(Róseo berço de núvem que me embala),Há tantos trechos de paisagemDo campo e beira-mar!Quem disse que a carne é vil?- Bemdito o ‹ sex-appeal ›Que assim me deixa viajar!

O cheiro do jardim era uma luzNa escura noite que eu puzNo beijo que te dei.(Virgem?- Não sei).Que discreto e pesado anoitecer!Disseste : - Quero morrer . . .E foi por isso que te amei.(Virgem? - Não sei).

A fina brisa que te ondula a saia,O sol que queima a tua pele!Canto o sabor a melDos teus ingénuos beijos de petiza;O instintivo gesto de comporA alça da camisa,E o jõgo que é para mimAdivinhar-lhe a côr.- Fim.

A estrêla que rasgou o firmamento …Poste tu que passaste,Nua, no meu pensamento;A rosa-rosa que arranquei da haste …Foste tu que sorriste,Nua, no meu pensamento;A carta que não me escreveste . . .Foste tu que vieste,Nua, no meu pensamento;A núvem que deixou o céu tão triste . . .Foste tu que partiste,Meu amargo prazer, doce tormento!

Neste breve poema quero pôr,Com delicada, feminina arte, .Esta lembrança quási estranha,Que me acompanha jPor tôda a parte,Como o teimoso aroma duma flor:-No teu sorriso sobrenatural,A pequenina dúvida banalQue anima o nosso amor...

Doutro modo não sei. Há tantos dedosNo gesto que me pedes para ter!(Se tu soubesses como é bom saberGuardar segredos) . . .Um conto para adormecer?- ‹ Era uma vez um reino, cujo reila morrer. O rei ia morrer . . . »Quem máu-olhou a cítara que eu tanjo?!Doutro modo não sei.Não nasci para anjo,E a tua bõca sabe a amanhecer!

Podes dormir. Podes dormir, serêna,Como dormias em pequena,Depois da benção maternal.Não rezaste?- Não rezes, não faz mal!Há um condão em ti,Há um halo divino, que eu bem viNa tua fronte, a iluminar-te o berço,Á flor das ondas, nesse mar ue existe,(Não digas que nunca o viste!)Suspenso no Universo!

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Carlos Queiros

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E’ boie um facto estabelecido que a fogueira do futurismo, acesa pelo famoso manifesto de Marinetti no Figaro, em tgog, e sobretudo pela primeira Antologia ƒiuurista de capa vermelho-incêndio, acordou a poesia italiana, entorpecida sob o gugo da imitação d’annunziana e pascoliana ou gemendo nos angores ‹ crepuscnlares › (Corazzini, Gozzano, Moretti), dando a todos os poetas, mesmo aqueles que não se solidarizavam com Marinetti, um sentido novo dos problemas líricos e tecnicos que se impunham.

Mas outros grupos se formavam aidpor IQI4, entre os quais o da revista La Voce (A Voz) e Florença e o de a Diana de Nápoles (vanguardismo), que continham já um elemento de reflexão, uma volta ao equilibrio, no meio da algazarra das palavras em liberdade preconizados pelo chefe do futurismo. Ninguem recusava s sua admiração, nem o seu respeito. aos melhores poetas que formaram a primeira equipe - Buzzi, Govoni, Palazzeschi, Foäore, D’Alba, Mazza -, nem mesmo ao próprio Marinetti. ntre alguns dêstes futuristas e os escritores de La Voce, a saber Papini, Sofiici, Onofri, Ungaretti, Jahier, Sbarbaro, assim como entre os vanguardistas de La Diana-como o signatário destas linhas, Moscardelli, Pitta Rosa, Cervi. Venditti, Villaroel, Ravegani, Valeri, Baganzani, Jenco, Giusso-e certos predecessores renovados ao contacto da nova poesia - tais como Bontempelli, Borgese, Lipparini, Novato, Mastri, Ada Negri, Aleramo -existiram relações cordiais, e mesmo verdadeiras alianças, das quais La Diana de Marone foi o traço de união e a Antologia de La Diana ( t9i8) a cúpula.

Pode pois dizer-se que a vanguarda, sob as suas diversas formas e modalidades, estava

senhora absoluta do campo. Não foi senão quando terminou a guerra que um novo grupo se formou em Roma, em redor duma revista: La Ronda que pregava a cruzada implacável contra qualquer tentativa vanguardista e o dever dum regresso a grande tradição italiana, em especial a Léopardi. Os escritores de La Ronda, os Cardarelli, os Bacchelli, os Montano, os Baldini, os Cecchi, eram bons teóricos, mais prosadores do que poetas, como mais tarde o revelaram. A sua influência foi todavia considerável, e poetas como Soüci, que tinham chegado as maiores audacias das palavras em liberdade, repentinamente, tomando demasiado à letra esta predicação, renegaram todo o seu passado revolucionário, para se dedicarem a mais formal imitação de Leopardi e até de Foscolo.

Após casos destes. falou-se insistentemente dum regresso a tradição, especie de Canossa a qual teria vindo, arreändida, a cabeça coberta de cinzas, tôda a poesia italiana. as e necessario não generalizar. Na realida e, a posição da poesia actual e bastante diferente. Houve, sem dúvida, poetas dignos de respeito, como Gerace, Orsini, Ballsamo Crivelli. Longo, que nunca se afastaram da tradição e tomam ainda como modelos, seia os mestres do século xtx, seia os da Renascença, ou ate - Giuseppe Longo - os Gregos antigos. Outros, sob a influencia do sscismo, entenderam o regresso a tradição como uma concentração étnica, mais sôbre a raça do que sôbre os mestres, e tentaram .vivificsr a poesia por uma atitude francamente popular que não deixa de ser sedutora: pense-se em Malaparte e nas suas vigorosas Cantata; do Arqui-ilaIiano. em Maccari, em Buratti, em Berta Ricci e, em certo sentido, também em Betocchi, em Ugo¬Betti e nas suas encantadoras Cançonelas.

Mas no polo oposto, o futurismo, o já velho futurismo, não desarmou completamente, Marinetti não cessando, mesmo eleito pelo fascismo para a Academia, de se divertir, de lançar manifestos tonitruantes e de recrutar adeptos inflamados. A segunda Antologia Fulurista (1925) que, apesar de muita mixórdia, contem alguns nomes notáveis-Fillia, por exemplo -, as revistas intransigentemente futuristas que recolhem, com os bons elementos do futurismo de ha pouco (Carli, Setimelli, Corra, Vasari), as novas svedetasu (Masnata, d’Albisola, etc. ), os ruidosos concursos organizados pelo infatigavel chefe de fila Marinetti (aéropoesia, casco de aluminio substituindo os louros ‹passeistass, o melhor poema sôbre o trafico do pôrto de Genova): tudo isso mostra que ha sempre, em Italia, iovens orgulhosos de prestar juramento sôbre o evangelho das palavras em liberdade e das fórmulas mais extravagantes.

Abstraindo o destes grupos, que constituem apenas minorias, a massa mais numerosa os poetas italianos avançou neste sentido que tende a uma renovação interior, substancial. Mesmo aqueles que se reclamam de Leopardi, fazem-no com um espirito moderno, que, se quere aprender, no cantor de O In/inito, os dados eternos da poesia, a saber como se pode atingir a profundidade lírica, a linha sóbria e pura, não renega de modo algum o útil enriquecimento pelas experiências que sofreram. Pode um Ungaretti clamar a sua devoção por Leopardi ou até por Petrarca, que nem por isso ele esquece ter vindo da vanguarda, comprazendo-se em hermetismos que o aparentam mais a Valery do que ao muito claro poeta de Silvia.

A verdade é que cada um de nós

Lionello Fiumi

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trazia ia no intimo do seu coração o culto de Léopardi (veja-se a entrevista comigo, do grande critico Borgese, em tgst, reproduzida no seu livro : Tempo di edi/icare), muito antes que La Ronda o repusesse em voga, e que cada um tirasse ou procurasse tirar proveito da sua lição segundo o próprio temperamento. assim, sob o signo deste grande nome, se encontram os poetas mais diversos, e se Um erto Saba parece ser um dê es, Grande e Pavolini parecem ser outros, penetrados por vezes de leoärdismo, ate no movimento rltmico dos seus poemas. tes, por sua vez, avisinham com poetas mais libertos, mas não menos dedicados a poesia pura, de linha descamada, de condensações essenciais, tais como Montale, Quasimodo, Capssso, Jenco.

Os nomes de Grande e de Capasso levam-nos a falar de dois centros que reteem neste momento a atenção dos amadores de poesia pura. Grande dirig a revista: Circoli (Clrculosi, que começou a aparecer em enovs e agora se publica em Roma, e âue reuniu muitos dos nomes ue acabamos de citar, itlem e Barile, Bianchi, Natoli. šolmi, Valentini, Vigolo e Laurano que foi distinguido em Veneza, com Meano e ernieri, pelo Premio da Bienal. Aldo Capasso, o autor do Passo do Cisne e de O Pais sem Tempo, que consideramos um dos mais notáveis dos novos poetas contemporâneos e um dos mais ricos de futuro, fundou em Gênova uma outra revista: Lírica. Esta, dando um largo espaço aos iovens ãpoeli nuovío-repita-se a maioria dos nomes acima cita-os-tem o singular mérito de acolher dignamente também os svelhosa de valor indiscutível, como um Angiolo Silvio Novaro da Academia de Italia, ou uma Ada Negri. Lírica oferece, além disso, em cada número, uma larga colecção de poetas estranieiros, tanto europeus como americanos, o que constitui uma muito interessante tentativa para inserir a poesia italiana de hoie na corrente da poesia mundial.

Singular mérito, assim defini o da revista de Capasso. Em Itália, com efeito, pais de recente unidade politica, até há pouco dividida em compartimentos rigidamente estanques, herdeiros dum secular es irito de facção, as diferentes «cape-las literárias» erguem infllizmente entre si muralhas de priviléšios e ódios tais como-assim o creio-não existem em nen um outro pais. Sem éstes convenliculos, cada um dos quais irritadamente exclui os outros, e que podem fazer crer na

existência de divergências poéticas su stanciais, quem nos impediria de iuntar a outros, isolados ou agrupados sob outras bandeiras, os poetas que acabamos c citar? Haverá barreiras -aparte éste interêsse de clientela -espiritualmente tão insuperaveis entre os ‹novos›› e certos poetas do vanguardismo de ontem, mas libertos a pouco e pouco de tudo o que era superabundância e bagptelas desculpáveis nos momentos de transição, chegados oie a uma depuração absolutamente digna de respeito? Poetas como aqueles a que acabo de aludir-um Govoni, um Buzzi, um d’Alba,-não renunciam a cantar, naturalmente, pelo simples facto de um ou outro director de revista, não tendo sequer o pudor do reconhecimento para quem lhe deu o primeiro leite, lhes trancaram hoie ferozmente tôdas as portas.

Igualmente, tampouco renunciam a cantar os grupos combativos contra os quais rangem os dentes como cães de fila’ aqueles de que atras falamos. Temos aqui poetas que perseguem a sua busca da poesia com uma te muito louvável e que têm direito a fazer-se ouvir. Os poetas de Palermo, por exemplo, reunidos em tõrno da revista La Tradiçíone de Mignosi, devem reter a atenção, mesmo se sofrem a excomunhão de Roma ou de Florença. inclinados para a religião, e mesmo para o catolicismo, não são por isso menos modernos quanto a concepção e a forma : Bonavia, Novelli, Pignato, Agueci, Josia, o próprio Mignosi, têm as simpatias de todo o critico honesto e imparcial. Esta vaga de espirito católico, na qual fizeram sensação os casos de Papini e de Giuliotti, estendeu-se pela poesia italiana. Umas vezes são isolados, como o delicado autor do Pequeno Orfeu, Angiolo Silvio Novaro, como Alessandrini, Binaghi, Pezzani, Umani, Drago, Cristina, outras vezes grupos, como O nosso 900 de Fallacara, ou os neo-místicos e lorentino Manacorda, rematando ambos, hoje, na revista Froulespízío de Piero Bargellini.

Tem esta poesia de espirito religioso o contraste numa poesia de espirito proletário? Há uma poesia de extrema esquerda, ou mesmo simplesmente de esquerda? Pensais no fascismo, e respondeis imediatamente que não. Contudo, é preciso não acreditar que isso dependa do fascismo. Antes que Mussolini estivesse no poder, quando o bolchevismo corria livremente as ruas, ai por tgzo, a Itália não tinha encontrado o menor cantor das ideas moscovttas. Mesmo quando houve, entre

1890 e tgoo. uma vaga de poesia social e socializante (Ada Negri em Fatalídade ), não houve senão oesia literalmente detestável, não-poesia. A Italia é por tfhmais profundamente mediterrânea, romana, católica, para que das suas camadas profundas saiam vozes lirícas em desacôrdo com os seus caracteres étnicos. Existirá, em compensação, uma poesia fascista? Como não podemos chamar poesia a orgias de retórica-que, bem entendido, não faltaram - é necessário reconhecer que. ate aqui, apenas a figura de Mussolini, do próprio Duce. inspirou alguns poemas de autêntizo valor lírico: e nomes de autores ia citados, Govoni, Jenco, Ungaretti, Capasso, sobressaem neste capitulo.

Se é inútil procurar na poesia italiana uma esquerda politica, não menos ocioso seria procurar uma esquerda literária, aparte o futurismo. Dadaismo, superrea ismo, não encontraram em Itália qualquer ressonância digna de nota. Para nos resumirmos: a poesia tem, la, duas alas constituidas pelos seguidores de Marinetti e pelos seguidores dos velhos mestres, mas a sua maioria está num plano moderno: modernidade mais de substância do que de forma, modernidade que pode falar de regresso a tradição mas que na realidade o entende como aspiração aos valores eternos da poesia. E’ porisso que ela pode aproximar-se. nos seus melhores casos, dos poetas mundiais que algures passam pro estar nas linhas mais avançadas. Se a lingua italiana fôsse mais conhecida, é fora de duvida que os nomes de alguns dos seus poetas de hoje seriam moeda corrente entre os amadores de poesia, do mundo inteiro. E’ preciso contentar-se, para os espalhar, duma lingua universal como intermediário, tal a francesa. Publiquei, em tgz8, nos Ecrívains Réunís de Paris, uma Anlhologie de Ia Poésíe ítalierme coulemporaiue, que, em 400 páginas, apresentava um número considerável de poetas, de Corazzini a Govoni, de Un aretti a Montale. Reservo-me para alargar essa escolha. Entretanto, traduzi para várias revistas, e traduzo regularmente para a revista Dante que dirijo em Paris, desde há quatro anos, uma grande quantidade de poemas, fora de qualquer preconceito, com um ecletismo ao qual devo muitas inimtzades, mas que já me permitiu erguer, no coniunto das colecções de Danle. um verdadeiro panorama da poesia italiana de hoje.

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Mi porti il nero vino della colpa.Come si beve un sorso impuro e denso,Con un piaeere mistoD’orrore, quando la sete ci daCruenti occhi d’antiea ñera, taleGodo un amore che non amo. ln teNon so amare l’amore, anche se t’amo.E tu mi muti in un selvaggio essereChe per dirti il suo amore, tace e morde,Nel buio d’un covo da me accecato.Ah! non voglio guardarti,Quando coi denti io ti bacio, quandoRsntoli, e in un momento,Tu che della mia vita sei ruins,Hai paura di me, delle furentiBranche. Il buio m’è complice ed amico,-Ch’io non vegga il sorriso d’agonia,Bianco di denti nudi,Onde attendi l’improvvisa viltaPer cui ancora un giorno io rinuncioAd ucciderti, dona senz’amore.

Deste-me o negro vinho da culpa.Tal como se bebe um gole impuro e denso,Com um misto de prazerE de horror, quando a sede nos daOlhos cruéis de antiga fera, assimEu sem amor gozo o amor. Em riNão sei amar o amor, embora amando-te.E tornas-me um sêr selvagemsue para dizer-te o seu amor, cala e morde,a sombra dum covil por mim feito profundo.Ah, não quem olhar-te,Quando os meus dentes te beijam, quandoEm estertor, e de regente,Tu que da minha vi a es a rulna,Tens medo de mim, e das furiosasGarras. O escuro 6-me cúmplice e amigo, -Que eu não veia o sorriso de agonia,Branco dos dentes nus,Onde espera a imprevista vilaniaPela qual mais um dia renuncioA matar-te, amante sem amor.

Scende la sera sopra le case SttcttcL’una all’altra, povere timorose;Scende la sera sopra il mio cuore stancoDi suoi pensieri solitari e di gloriaDi donna che ritrova la sua voce di vergine,Distrugge tutte le case, la raccoltaPoverta del mio borgo, - mi richiamaNel remoto paese dei sogni dgiovenili,Tanto piu umani dei sogni ell’uomo;ln praterie impossibili la dove l’uomo è forteE la donna e fedele. come è maschioIl grande appello del vento sui pianiAperti. . . Bel paese del sogno, ebbi vergognaDi te; non confessai a nessuno (oh, nemmenoAlla donna pia amata, io non seppi che amareCon difiidenza, con la maschera in voltoCon solitudine, con occulta paura. . .)D’averti in me portato nei miei anni felici,D’averti vagheggiato nel mio botàgo selvaggio,D’avere amato in te la bellezza i vivere.Suanto ti rinnegail E ora, come ritorni!na voce di donna che pensa anni lontani,Tenera sul ricordo delle illusioni spenteEppur forse non vane, ti riconduce al cuoreSuperbo di colui che sempre fuTroppo solo; ritrovo nel canto dolce e mestoDi una opolana,-che attende torni tl suoUomo ci:tll’oflicina,-il sapore ineñabileD’una lacrima e forse im aro a im ietosireNon solo di me stesso, ma del cuore dell`u‹;mo.

Cai a tarde sôbre as casas amontoadasUmas sôbre as outras, pobres receosas;Cai a tarde sôbre o meu coração fatigadoDe seus solitários pensamentos e de glóriaSonhada. E eis que um canto quási gracilDe mulher que redescobre a sua voz de virgem,Anula tõdas as casas e a recolhidaPobresa do meu burgo,-e me chamaAo remoto mundo dos sonhos iuvenis,Pelos sonhos do homem tornado mais humano;Em planícies impossiveis Ia onde o homem é forteE a mulher fiel, como é músculoO grande apêlo do vento nos plainosAbertos. . . Belo pais do sonho, tive vergonhaDe ti; a ninguém confessei (oh, nem sequerA mulher mais amada, eu não sei amarCom solidão, com oculto receio. . .)Que foste em mim presente nos meus anos felizes,Que me foste companhia no meu burgo selvagemQue amei em ti a alegria de viver.Quanto te reneguei! E agora, como tu voltas!Uma voz de mulher evocando os tempos idos,Terna ao recordar as ilusões vividasMas não vãs, porventura, te reconduz ao altivoCoração daquele que foi semprePor demais solitário; descubro no canto triste e dôceDuma mulher do povo-que espera volte do trabalhoO seu homem --o sabor inefávelDuma lágrima, e aprendo talvez a ter piedadeNão só de mim próprio, mas do coração do homem.

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Se, dum modo geral, é pouco e mal conhecida entre nós a literatura clássica italiana, muito pior e menos ainda o é a contemporânea, em especial a poesia. A muitos factores isso é devido, desde a restricção do nosso interêsse à literatura francesa, até á falta de popularidade da língua italiana entre nós.Para não falarmos senão da poesia italiana de hoje,diremos que esta vale bem um esfôrço para alargarmos a nossa zona de interesses. Mostra-o, ainda que num golpe de vista demasiado apressado - mais tarde, outros artigos e ensaios desenvolverão o que nêle fica indicado a largos traços - o Panorama que publicamos, e que presença deve a um dos mais notáveis poetas italianos de hoje – Lionello Fiumi. Chefe de escola - se é que a palavra escola não é aqui imprópria - Fiumi é o iniciador, o criador do movimento literário que mais contribuiu para a libertação da poesia italiana de hoje: - o chamado vanguardismo. Pondo de parte o papel por assim dizer histórico dêste poeta, isto é, o seu lugar de chefe, de iniciador duma tendência, considere-mo-lo apenas sob o ponto de vista individual, encaremos apenas a sua obra de poeta.

A posição dos vanguardistas não é uma simples oposição ao tradicionalismo; eles encontravam-se também ante uma tendência de - pelo menos nominalmente – extrema esquerda poética: o futurismo de Marinetti e seus discípulos. A direita, encarnavam-na principalmente as figuras de Pascoli, D`Annunzio e Carducci, se não

directamente, pelo menos nos imitadores que tinham suscitado. A geração a que pertence Fiumi não se encontrava pois ante a pura necessidade de oposição, mas sim aspirava a um equilíbrio no qual fugisse a êsses dois extremos. A verdade é que ambas as extremas correntes que dominavam a poesia italiana de então - ai por 1910 - se equivaliam para estes jovens inquietos, pois tanto a uma como a outra era estranho o sentido intimista da poesia - a vibração simples, humaníssima, do coração de poeta que sente a vida na magia quotidiana, na humildade das coisas e dos gestos mais naturais. E é assim que esta revolução consistia na busca, não exactamente dum meio termo mas dum equilibrio que se situava a igual distância de qualquer das correntes imperantes. Revolução parece pois, neste caso, um qualificativo paradoxal. Mas, como diz o critico francês Eugéne Bestaux- ‹ il y avaít là plus d`audace qu’íI n’apparaít peut être. Pour précher le bon sens, il faut plus de courage souvent que pour s’en alter aux extremes.»

Com efeito, Pôlline, o primeiro livro de versos de Fiumi, nada tem de ousado - ainda que contendo muita novidade.

Desta, o que se me afigura mais importante é a simplicidade, o abandôno de todo o artifício. Em Pòlline, não obstante, Fiumi apenas se ensaia; com efeito, nestes poemas que são rosários de anotações impressionistas, films de imagens predominantemente visuais, o poeta não passa dum contemplador agido

por sensações, e, por belo que seja, esse impressionismo não nos dá um contacto intimo com o poeta. O grande sucesso do livro, não é devido tanto ao talento do poeta como a novidade de objecto da poesia: porque nesta, as coisas revelavam-se susceptíveis de ser apreendidas pelo poeta numa directa familiaridade, por assim dizer sem toilette de parada, e na simples e viva nudez com que se oferecem ao homem.

É porém em Mússole que o poeta faz esquecer - ou, pelo menos, remete para o segundo plano - os dons do homem apto a ver. É certo que Pólline revelara também as suas qualidades de expressão; mas de ambas não resultava para o leitor a intimidade com o poeta - e é nela que nós vemos o sinal distintivo do verdadeiro artista. Não se esvai em Mússole o impressionismo; a paisagem - ou melhor, o ambiente - tem um lugar capital (Fiumi está muito longe da poesia abstracta, rarefeita, dum Ungaretti), mas eis que o ser emotivo se revela, e cada poema nos traz a melancolia crepuscular, os amores românticos, os anseios de amores diversos, mas sempre e principalmente a melanconia, palavra que ressalta a cada passo. E um intimo desgôsto nesta confissão:

O ƒorse statutta la voluttànel desíderio.Mas eis que um novo livro- Tatto

Cuore - nos vem trazer outra mensagem: aos amores frágeis, á oscilação sentimental,

um mais puro timbre, uma mais comovida e amarga experiência se sucede: e as lavas da paixão, os cânticos a única elevam, depuram, erguem a poesia de Fiumi para lá do sorriso e do encanto passageiros.

Canto del cigno:il poeta volubile e morto. _Vedrete che no ƒarà piú delfíronta,Ed oggi povero poeta egli ama,ama davvero.A anedota, a paisagem empalidecem,

para dar lugar ao canto ora luminoso de gratidão pelo divino fogo do amor compartilhado, ora trágico de abandôno e solidao. A voz do poeta tornou-se grave, os ritmos, as palavras ganharam em discreção, tôda a poesia se depurou, por essa intima fôrça que lhe transmitiu a sua vibração tão humana. Ali todo o coração do poeta se entregou a vida impetuosa; e,como em tôdas as fecundas experiências, no poeta o homem se descobriu e revelou a si próprio, e nessa descoberta teve também a iluminação do seu lugar no universo; e é significativo que este livro de paixão acabe na descoberta de quanto é pequeno, imponderavel o maior amor nos largos ritmos da vida universal:

Amore che volesti crederti ímmortale, confessa che set grama, infinitesimale, nel ritmo incalcolabile dell’universo, gramo gabbiano sull’oceano un instante emerso, subito sperso.

O último livro do poeta: Sopravvivenze (931), vem dar-nos a depuração na síntese da

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todos os elementos já revelados, depuração feita por um elemento porventura já perceptível anteriormente, mas que só aqui toma inteira amplitude êsse elemento é devido ao erguer-se do poeta a uma universalização na qual o quotidiano devém eternidade, e é por assim dizer o sentido da harmonia do homem com todo o Universo. Em Sopravvivenze - livro do qual

publicaremos, no próximo numero, algumas traduções - Fiumi manifesta a nostalgia humana, perante as coisas e os seres que passam e morrem, e muitos poemas como que aio hipoteses do poeta sobre as formas da sobrevivência - gritos da solidão querendo integrar-se numa plenitude de permanência. Esse anseio veio e par com a inquieta saudade pelas vidas não vividas, por tudo o que é belo e

digno de ser vivido e esta irremediavelmente longe, já que o poeta não é ubíquo senão pela imaginação. Nada disto teria porém tão alta significação, se não fosse êsse quid indefinível que é a ressonância puramente poética, independente de temas.

Simples, luminosa, directa, esta poesia, na qual as imagens nascem como flores naturais e inevitáveis, é um dos mais

belos testemunhos a apresentar como resposta aos que ainda julgam ver, na poesia liberta, a morte da poesia.

Como se pode ver no Panorama de Lionello Fiumi, que neste número publicamos, Aldo Capasso, pertencendo a novíssima geração de poetas italianos (o seu primeiro livro de versos, Il passo del Cigno, é de 1931) é contudo, já, um valor marcante. As razões para tal são fáceis de descobrir: a poesia de Capasso é das que se revelam, desde o início, em tôda a sua plenitude; a juventude do homem nada tem com a maturidade do artista. Há poetas que, começando a publicar muito cedo, nos dão o espectáculo da sua evolução para a maturidade; outros, ou porque só tarde comecem a escrever, ou por não publicarem o que escrevem, surgem já formados, libertos das mais directas influências, das incertezas de quem começa e ainda não sabe ao certo quem é. Pertença a uma ou a outra destas ultimas categorias, o certo é encontrarmos em Capasso todas as características do artista já formado. Poesia trágica, de homem vivendo sob os signos conjugados do Amor e da Morte,

ora dôce ora angustiada, entrecortada de descidas ao magma dos instintos, mistura de clarões luminosos e de serpear de lavas, tôda em oscilações de alma inquieta - a poesia de Capasso é a dum homem que não se reconciliou com as feridas que a vida lhe fez.

0 homem submetido ao tempo, encadeado á carne, o desejo de libertar-se das forças instintivas, eis algumas das artérias desta poesia. Bem ao contrário da calma, do tom directo, da harmonia de Fiumi, a poesia de Capasso tem como características essenciais o contraste de imagens contraditórias, a sonoridade nocturna, e qualquer coisa de flagelação no ardor com que o poeta se dobra sôbre o seu pôço e se dilacera. E a natureza, aqui, não é senão uma intérprete do poeta, que nas suas formas exprime as fases da sua luta interior.

Na poesia de Capasso temos um belo exemplo de quanto é falsa a idéa que anda por ai ia quasi lugar comum, segundo a qual liberdade ritmica e anarquia sernam uma e a mesma

coisa. Veia-se o que diz Valery Larbaud, no belo prefácio que escreveu para a tradução francesa do livro de Capasso, A’ la Nuit: «Moderne aussi, nouvelle et personelle, est la métrique des Poémes de Aldo Capasso: c’ est le vers libre, sans autre loi que celle de se conformer au sentiment qu’il exprime. Mais il n’en est pas moins «savants» et charge de tradition. Peut-étre qu’un jour les historiens de la Littérature - au moins ceux des littératures de nos domaines linguistiques occidentaux,- prendront pour ligne de démarcation entre le Romantisme et le Symbolisme, l’époque ou le vers-libre est apparu, fruit du long travail qui avait amené les metres codifiés a une perfection, a une souplesse, au-dela desquelles la pensée poétique, la voix lyrique, devaient, pour se deployer, s’affranchir non seulement de la rime mais dês rythmes dits «réguliers» et, tout en les suggérant, en les sous-entendant, se donner a elles-mêmes des limites et des contraintes plus subtiles,- et plus difficiles

a observer.» Eis afirmações luminosas que oferecemos aos que fazem precisamente cavalo de batalha, contra a poesia de ritmos pessoais, da afirmação gratuita de que não tem dificuldade, e que portanto é fácil fingir-se quemquer poeta. Sempre o equívoco das aparências. Capasso, de quem publicamos alguns poemas inéditos, sendo dos poetas modernos mais ligados, por certas características da sua linguagem, por exemplo, ao passado (Dante, Petrarca, Léopargi), é daquelas personalidades que melhor podem ajudar a compreender, por êsse contraste, que a poesia chamada vanguardista, ou modernista, etc., é, essencialmente, Poesia, e que nas grandes altitudes usar ou não ritmos regulares é o que menos importa, pois que a poesia é mais alguma coisa do que os caminhos de que se serve para se tomar visível aos olhos humanos.

Aldo Capasso

Adolfo Casais Monteiro

João BensaúdeNa noite daquele dia,

ai! não havia lua.Preguntava com mágua a água, aonde

A Iua nua se vai mirar:« Onde está ela, a tôda bela?Porque não vem pentear?»

E a lua nua que o nevoeiro escondeChorava e preguntava :

«Onde me cairia o meu espelho velho?»O nevoeiro, é claro, era o culpado;

E engrossava, calado.

Uma dúzia de versos

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CALAICalai os versos abstractos e a mansidão dos olhos que têm os bois pacatos.Calai tanto, tanto espírito na terra e a cristianíssima paz que nos faz guerra.

Calai, promessas d’anjo, o céu sublime, _quando as mãos, cheias de oiro, trazem máscaras de crime.

Calai. Iôas d’amor, às crianças maltrapilhasque esses farrapos d’alma não lhes cobrem as virilhas.

Calai as lágrimas à beira dos enfermos :prefiro a solidão que é soluço nos ermos.

Calai, palhinhas de Jesus, que sois ai de quem ama : paz na Terra e no Céu: ao cristão, ao ¡udeu, e à gentilica moirama.

Calai-vos, bêbedos aos bordos nas estradas:para matar tristezas, N.ª S.ª das Dores com suas sete espadas.

CANTO DA PÁSCOAMeu bom Jesus ideal,nascido nos Evangelhos, crescido através dos séculos,existe, suplico-te, existe realmente,- e sê o meu Amigo!

Só tu, só tu Podes matar a minha ardente sêde, de companhia - de perfeita e amiga companhia; só tu, só tu podes pacificar a minha alma, no seu turbado enseio de humilde exaltamento. Sem ti, como viver ? És o verdadeiro Deus feito homem, pois só a ti os homens desejam, só compreendem um Deus-Jesus, nosso Amigo - nosso Pai!

E, se Jesus não é Deus - então Deus é, com a Vida, impenetrável Mistério. E todavia, Deus é a lógica mais forte

Pode a razão conceber um Universo filho do Acaso ou nivelando, estéreis, a Dor e a Alegria, o Mal e o Bem?

- Parecem contos de crianças tôdas as

pobres, ambiciosas ideologias humanas;mas renegaremos a razão em nome - da mesma razão?

Ó meu Jesus ideal, nascido nos Evangelhos, crescido através dos séculos, Jesus de infinita bondade, Jesus de infinita compreensão,Existe, suplico-te, existe realmente, e sê o Amigo - de nós todos !

Sê tu o Abraço de Amor das Criaturas do Universo, o infinito Abraço de Amor redimindo das realidades cruéis - crueis, mas bem mais absurdas do que a ausência de Deus - as pobres Criaturas do Universo álgido.

Sê tu, sê tu o nosso Amigo, o nosso Amigo ideal,- mas bem real!- e o teu Coração -a nossa Casa: onde o infinitamente grande se concentre e cada infinitamente pequeno- abranja o Todo!

ABRIL, 1935LUIZ CARDIM

Coimbra, 1935AFONSO DUARTE

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Rodrigues Migueis é um homem que duplamente estimo: como artista, e como batalhador. De aí vem que leio com sincero interesse o que escreve, quando me chega às mãos. A sua interessante e pessoalíssima resposta ao inquérito aberto pelo Suplemento Literário do Diário de Lisboa - mereceria um comentário bem mais desenvolvido do que êste.

Quer-me parecer que as opiniões de Rodrigues Migueis sôbre a nossa literatura sofrem de certo constrangimento que lhes impõem as suas (dêle) tendências politicas. Ora reduzir-se-ia o caso a um caso pessoal, se não se manifestassem idênticas limitações em vários homens cujas tendências politicas julgo afins às de Rodrigues Migueis. Assim de limitações pessoais (que todos temos) passam as suas limitações a ser uma limitação colectiva; um caso geral, e de interesse público. Não sendo êste o longo comentário que deveria ser feito à resposta de Rodrigues Migueis, limito-me a encarar . . ., -como direi? -limito-me a encarar a sua não aceitação do papel capital que tem o individuo, como índividuo, na criação artística. Do que seja o individuo a dentro de certos sistemas político-sociais, não trato agora. Mas justamente, - parece-me que o reduzido papel do indivíduo a dentro de tais sistemas, bem como a negação lançada por tais sistemas a certas preocupações, disposições, inclinações (ou como quer que se lhes chame) de natureza individual ou colectiva, é que determinam demasiado Rodrigues Migueis quando fala da literatura dos nossos dias. Assim grande arte -talvez a mais representativa e resistente -da literatura dos nossos dias lhe não arranca senão juízos parciais e pessimistas. O caso não é novo, nem raro. Sempre, através das mais diversas doutrinas e dos mais adversos doutrinários, a literatura sofreu da confusão entre literatura e politica. Hoje, tôda a obra de sensibilidade livre e pensamento especulativa sufoca tanto na Rússia como na Alemanha. Mas os séculos rolam, as épocas voam, as doutrinas dão a vez a outras doutrinas, uns homens morrem e nascem outros, tout casse, tout passe, tout lasse, - só o espírito permanece inatingível através das suas verdadeiras obras.

Ora ouçamos Rodrigues Migueis«Uma literatura que não responde às interrogações da sua

época - pelo menos – está condenada ao esquecimento. Não vá supor

que eu quero literatura acorrentada aos sistemas ... . Não. Mas a própria literatura desinteressada, sem parti-prís, convícta de neutralidade, tem de mergulhar raíses na realidade social e moral do seu tempo e abrir as asas no espaço livre!»

Propositadamente escolho um trecho que, em parte, parece desmentir qualquer acusação de dogmatismo doutrinário contra Rodrigues Migueis. Mas antes de mais, há a notar: Duas cousas dificultam qualquer crítica à resposta de Rodrigues Migueis: Uma é a contradição mal disfarçada entre várias das suas asserções. Dir-se-ia que, felizmente, o critico literário ou o artista ainda lutam nêle com o doutrinário político. Outra é o sentido dúbio, ou dúplice, ou duvidoso, de algumas das suas frases. Dir-se-ia que, em várias passagens, Rodrigues Migueis não quis, ou não pôde, tornar claro o seu pensamento. Sei que numa resposta forçosamente breve, e em que se tocam muitos pontos, não é possível o esclarecimento desejável. Mas . . . a mim próprio pregunto como acharia Rodrigues Migueis acôrdo entre alguns dos seus pontos de vista, em os desenvolvendo um pouco. É claro que isto lhes não nega interêsse. Sómente, -um admirador de Rodrigues Migueis poderá querer saber, quando o vê fazer fôgo para a direita e para a esquerda, o que é que em verdade pretende.

Pôsto isto, reportemo-nos à nossa citação.Pregunta-se: Será finalidade essencial da literatura responder .Pregunta-se: Será finalidade essencial da literatura responder

seja ao que fôr?» A que responderá a criação da Madona do Campo Santo, de Fialho? a da joaninha, de Garrett? a do Malhadinhas, de Aquilino? ou a do Hamlet, ou a do Idiota? ‘Quer-me parecer que a literatura antes põe (e quando as põe) interrogações, do que lhes responde. Como arte, qualquer obra de arte não responde senão a um problema de ordem estética; e a resposta é a própria obra realizada..-»Mas. . ., ¿mas não é o próprio Rodrigues Migueis quem logo de comêço nos diz que «a função primordíal da literatura de ficção é a de recreio, de prazer»? É claro que a afirmação também é discutível; como tôdas as de Rodrigues Migueis ou minhas. Aceitando-a, porém, pois Rodrigues Migueis parece dar às palavras recreio e prazer o seu mais amplo sentido, pregunto: ¿Não

COMENTÁRIO RODRIGUES MIGUIES

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poderá admitir-se que uma literatura dê prazer e recreie sem responder a interrogações? Portanto: Rodrigues Migueis ora encara a literatura como actividade meramente lúdica, ora a submete a um conceito pragmatista. Fixemo-nos um instante nesta sua segunda atitude, que me parece mais própria sua; embora seja ousado, a respeito dum escritor cujas atitudes se declaram ainda incertamente, (a de mero espectador azêdo, Rodrigues Migueis, não lhe fica bem) supor mais própria sua qualquer atitude.

Penso eu que a literatura pode responder a interrogações, pode tentar responder-lhes, pode simplesmente pô-las, e pode nem sequer pô-las. Há a contar com a variedade dos temperamentos literários. Cousa difícil, sei-o por experiência própria, embora deva estar na base de qualquer atitude critica. Aceitemos, porém, que tôda grande literatura põe interrogações, e lhes procura resposta. Pregunto: ¿Não poderá admitir-se que seja antes às interrogações eternas do homem eterno que a literatura busca responder? ¿ Não envelhecerá uma obra de arte precisamente na medida em que só responde às inquietações de uma época?¿E não perdurará na medida em que, através, ou não, de respostas provisórias a interrogações provisórias, sugere uma resposta eterna a interrogações eternas, exprime inquietações eternas embora de forma pessoal?

Entendamo-nos: Há quem, no homem, antes considere o homem eterno, e quem antes considere o homem temporal. O leitor compreende que chamo homem eterno ao que, no homem, permanece através da diversidade das épocas, dos meios, das circunstâncias históricas, das modalidades individuais; e que chamo homem temporal ao que nêle depende destas cousas. Evidentemente, o homem que através da literatura se nos revela é, ao mesmo tempo, um e outro: o temporal e o eterno. Mas a questão é esta: ¿Será antes pelo que nos revela do homem temporal que uma obra dura por humana, - ou antes pelo que nos revela do homem eterno?¿Duram as tragédias de Shakespeare, ou as comédias de Molière, antes pelo que nos mostram do homem do tempo de Shakespeare e Molière, ou antes pelo que nos mostram do homemde sempre?

Diz Rodrigues Migueis: «Uma literatura que não responde às interrogações da sua época -pelo menos - está condenada ao esquecimento» Ora aquêle importante

pelo menos ao mesmo tempo salva e embrulha tudo nesta frase dúbia. Tal como está expresso, o pensamento de Rodrigues Migueis é o seguinte: Uma literatura, para viver, deve responder às interrogações que o homem se põe. Em primeiro lugar (parece) às eternas interrogações do homem de sempre; pois em não respondendo a estas, deverá responder, pelo menos, às da sua época. Se o pensamento de Rodrigues Migueis é éste, -não haverá a discutir senão o pragmatismo do seu conceito de literatura. Preguntarei, então, se a Madona do Campo Santo de Fialho ou a Menina dos Olhos Verdes de Garrett (criações literárias que me não parece responderem a interrogações) já ganharam rugas ou deixaram murchar a graça.

Mas ou eu leio muito mal nas entrelinhas de Rodrigues Migueis,- ou o que sobretudo o interessa na literatura actual não é literatura: são antes as respostas dos literatos (e umas certas) a interrogações actuais. E o pessimismo de Rodrigues Migueis nasce, principalmente, da irritação de sentir grande parte da nossa literatura actual quási indiferente às questões que a êle o preocupam pessoalmente; também . . ., (e aqui vai um cigalho dessa psicologia que enfurece tanta gente) também do descontentamento de ainda não ter êle próprio, Rodrigues Migueis, achado solução a tais questões. Parte do nosso pessimismo a respeito dos outros -gera-se num pessimismo a respeito de nós próprios. Eterna confusão de arte com sociologia e politica! Eterna tentativa de submeter a essência libérrima daquela à temporalidade destas! Se alguma hora, porém, os artistas e os puros críticos de arte se viram tolhidos de todos os lados (o que os não impedirá de existir, Deus louvado)-é agora.

Peço desculpa a Rodrigues Migueis, se esta minha interpretação da sua atitude não é justa. Tanto melhor, se o não é. Mas vejamos ainda alguns passos do seu depoimento, pelos quais cheguei a semelhante interpretação da sua atitude.

Diz ainda Rodrigues Migueis:«Mas a própria literatura

desinteressada, sem «parti-pris», convicta de neutralidade, tem de mergulhar raízes na realidade social e moral do seu tempo e abrir as asas no espaço livre!»

Ora de duas uma: Ou a literatura, pelo determinismo de sua própria natureza, não poda esquivar-se a mergulhar raíses na realidade social e moral do seu tempo, - ou pode esquivar-se. No primeiro caso, tôda a

literatura infalivelmente mergulha raíses na realidade social e moral do seu tempo. Bem supérfluo se toma, então, aquêle imperativo tem de mergulhar. No segundo caso, porém, ainda se toma mais supérfluo; porque a literatura é o que é, não o que cada um de nós quereria que exclusivamente fôsse. Ah, não fora a literatura senão como a quisera Rodrigues Migueis (ou eu)-e provavelmente não seria senão como conviesse melhor às suas, dêle, possibilidades de realização (ou minhas). Que triunfo, sim, para as qualidades que Rodrigues Migueis, ou eu, temos em mais alto grau . . ., - e que desastre para os que antes teem as que nos faltam! Mas a literatura é o que é;-e não há remédio senão aceitarmos a infinita variedade dos temperamentos literários.

Relacionemos, agora, com isto as seguintes queixas de Rodrigues Migueis:

. . . «Onde está o romance das nossas lutas politicas? Que deu de si a guerra? E os problemas morais e sociais -a subversão dos valores?»

Evidentemente, seria bom que as nossas lutas politicas, a guerra, e aquela subversão dos valores que não sei bem o que seja-inspirassem, entre nós, boa literatura. Mas Rodrigues Migueis é artista. Poderá compor novelas e romances sôbre êsses motivos que o interessam. Oxalá o faça. Todos nós o leremos. Nenhum artista, porém, o ouvirá, - se Rodrigues Migueis tiver a pretensão de indicar temas aos outros… Cada artista tem os seus temas; quero dizer: tem uns certos temas preferidos, que se lhe impõem de dentro. E ao puro critico de arte, o que mais importa não é que as nossas pequeninas lutas políticas ou as grandes catástrofes da guerra hajam inspirado, ou não, a literatura. O que mais importa ao critico literário, - é simplesmente que se produza boa literatura. Ou eu continuo a ler muito mal nas entrelinhas de Rodrigues Migueis, ou o valor critico suas observações sôbre matéria literária continua limitado pelas suas tendências politico-sociais.

Prosseguindo: Diz noutro passo Rodrigues Migueis:

«O homem, em nós, mata o escritor . . . A fantasia parece-nos um crime - diante da espantosa realidade.»

‘ Ah, que não! Nunca o homem mata o escritor, num verdadeiro escritor. Muito embora me pareça que o homem, em Rodrigues Migueis, não matou o escritor, julgo que a observação de Rodrigues Migueis tem carácter introspectivo: julgo que êle fala de si próprio. Porque se pretende falar de

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todos nós, escritores, o que diz nessas linhas não é verdadeiro . . ., e é ainda tendencioso. ‘.Só ao artista demasiado preocupado com a solução dos problemas politicos e sociais do seu tempo pode a pena cair das mãos ante a realidade social e politica; ou pode não cair, mas erguer-se para redigir criticas sob cujo aspecto de interêsse literário se afirmam sobretudo interêsses politico-sociais. Entendamo-nos bem: De modo nenhum pretendo desvalorizar aqui os homens preocupados com achar soluções aos problemas instantes da época. Mas retendo discriminar a sua missão da do artista. Nunca ao artista de vocação a fantasia poética parece um crime perante seja que realidade (palavra cheia de alçapões . . .) por essa fantasia ser, para êle, tão real (ou mais) como qualquer outra realidade. ¿Ora que remédio propõe Rodrigues Migueis a essa inibição em que, segundo êle, a consideração da « espantosa realidade» (que é a social e politica, suponho) deixa a literatura? «Recuperar o sentido do humano.» Plenamente de acôrdo: Recuperar o sentido do humano - é remédio aconselhável a tôdas as literaturas decadentes. Mas quando Rodrigues Migueis fala em «recuperar o sentido do humano », ou em «correr ao encontro da inquietação que tortura a maioria dos humanos », ou continuo eu lendo muito mal nas suas entrelinhas ou é só dum certo humano que fala, e só a uma certa humanidade que se refere. Lá não posso deixar de sentir o mesmo espírito profundamente tendencioso na sua critica em vários pontos justa. Não posso deixar de sentir a mesma confusão entre sociologia e literatura nas suas acusações e panaceias. Se o artista Rodrigues Migueis se sente inibido de criar artisticamente ante a visão de certas realidades sociais e politicas, - acho bem, muito bem!, que rompa essa inibição mergulhando a sua arte nas próprias realidades que o preocupam. Por algumas amostras, penso que Rodrigues Migueis é hoje, em Portugal, um dos que podem criar belas cousas nesse sentido. Mas também podem outros artistas pensar que a humanidade ainda é mais vasta, mais diversa, mais complexa, do que a humanidade de Rodrigues Migueis. Podem outros pensar e sentir ideas, sentimentos, emoções, sensações ou problemas que a maioria não reconhece seus (quando reconhece) senão depois de expressos por uma certa minoria. E outros ainda podem pensa que só numa certa minoria são verdadeiramente urgentes estes problemas,

- mas que êstes são os mais importantes. Sim, exactamente: os tais problemas de ordem meramente psicológica, estética, metafísica, ética, ou religiosa, que tão incomodativos, enjoativos, antipâticos ou supérfluos se tomam a certos doutrinários . . . Problemas que o ser humano põe ante si próprio e o seu destino; ante um outro ser ou outros seres; ante o absoluto, a eternidade, o universo . . . - Sim, exactamente: os tais problemas, suponho, que Rodrigues Migueis classifica de «imaginários». Suponho, e antes suponha mal. Porque suponho que, para Rodrigues Migueis, são «imaginários» aqueles problemas cuja natureza é diferente da dos que o preocupam a êle.

E basta. Convido o leitor a reler o depoimento de Rodrigues Migueis no Suplemento Literário do Diário de Lisboa (22 de Março de 1935). Há sempre o risco de se deformar o pensamento dum autor, ao separar pequenas frases do texto a que pertencem. E assim o leitor corrigirá qualquer involuntária deformação minha ao texto de Rodrigues Migueis. Isto, - por um lado. Que, por outro lado, as minhas transcrições são insuficientes; e só a leitura completa do texto de Rodrigues Migueis fará ver ao leitor se tenho razão descobrindo sob uma aparência de critico literário um doutrinário politico.

Ao mais que há na resposta de Rodrigues Migueis, - não quero referir-me. Diz-nos êle que não pode haver critica onde não houver «pontos de vista seguros, reflexão rigorosa sôbre os problemas, experiência, cultura vasta». Exacto. Quando os pontos de vista de Rodrigues Migueis forem ainda mais seguros (e, conseqüentemente, mais claramente expressos) ser-nos-á mais fácil estar de acôrdo, ou em desacôrdo, com êle. E talvez uma reflexão ainda mais rigorosa sôbre os problemas, juntamente com uma experiência ainda mais larga e mais funda, juntamente com uma cultura ainda mais vasta, (há sempre possibilidade destas cousas ainda serem mais!) corrijam alguns anti-críticos excessos do seu pessimismo.

Nós, os portugueses, filhos de um país pequeno, temos a obsessão do grande. Vemos, sentimos, julgamos tudo e todos em grande. E é já grande a lista das coisas grandes nacionais: grandes hotéis, grandes casinos, grandes jornais, grandes jornalistas, grandes generais, grandes estadistas, grandes músicos, grandes orquestras, grandes romancistas, grandes sábios, grandes dramaturgos, grandes cineastas, grandes «estrelas», etc., etc.Agora inventámos também um grande bailarino: Francis.Era só o que nos faltava.Todos nós conhecemos Francis; todos lhe admiramos, mais ou menos, os dons artísticos. Mas o que é preciso dizer é que Francis não é um grande bailarino, porque Francis nem sequer bailarino é. Francis o que é um bom dansarino de género.Onde está a diferença? - Em pouco, que é, afinal tudo:

na técnica. O bailarino possui uma técnica especial ginéstica e ritmica, um vocabulirio especiiico de gestos, um jogo sui generis de movimentos, cuja acquisigao reqnere uma lonfa aprendizagem, até it consecucio de uma maneira, um esii o, mais ou menos inlringiveis consoante o talento do bailarino, mas cujo fundo é, em todo o caso, permanente.0 dansarino re uere a enas um czerto dom de plasticizagio, uma certa faciiidade tlle movimentos, uma certa intuicio ritmica, que nio clxegam, na mor parte dos casos, a oonstitulr uma técnica.Ora, é este dom de plasticizacio, esta facilidade de movimentos, esta intuicio ritmica, possuidos por Francis num grau ja nada vulgar entre nos, que, aliadoa a um vivo sentido do pitoresco, fazem déle um étimo dansarino de género. 0 pouco de técnica de bailarino, tardiamente adquirido, gre,por vezes, exibe, nada acrescenta as suas faculdades de sarino, c creio’ mesmo que, por deficente, s6 o prejudica. E esta deficiéncia acusa-se sobrentaneira quando se tern for partenaire uma bailarina auténtica-pois que Ruth Wal en, a graciosa companheira de Francis, é, na verdade, uma bailarina ¢proiissional», isto é: possuidora da técnica da sua arte (a funclo ou ligeiramente, nio importa ao caso ). Assentetnos, pois, em que Francis é um excelente dansarino de género-o que ji nio 6 pouco. De facto, é como tal que nos o apreciamos e é através o prisma da danga on da oomposicio plastics de género que fazemos aqui esta referéncia ao espectéculo que éle den no Teatro Avenida, onde apresentou algumas das estilizacoes de motivos portuguéses, que, diz-se, tanto sueesso lhe valeram em Paris.

FRANCIS

Fernando Lopes Graça

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CRÍTICASOLUÇÕES CRÍTICAS

Eis um livro no qual a boa vontade e bem maior do que as qualidades reais do autor. Manuel Anselmo sofrc, a meu ver, de varios defeitos, que, pelo menus por enquanto, aniquilam a sua sincera ambi- qio de fazer obra que valha. E’, na verdade, lécil descortinar que Este autor possui certos dons cle critico, entre éles a capacidade de compreensio c de adesio indispensavel para se poder criticar obras literérias. Mas... ou juventude, ou falta de auto-critica, ou pressa, o certo e que Este livro, se deixa pressentir essas qualidades, nio as manifests em ac¢:¢i’o. sto ez Manuel Anselmo da-nos, por exemplo falando da arte em geral, do romantismo dos realistas, da poesia de Antonio Botto, da poesia contcmporanea, a impressio de que v6 com ccrta clarividéncia os problemas de que se ocupa; mas por outro lado, e tio atabalhoado na expressio dos seus pontos de vista, faz tais confusoes de personalidades e de ideas, cita tio pouco a proposito, que a boa impressio quasi se desvanece. Exemplos de afirmacoes Ievianas. Sem ir mais longe: E Antero? E Leopardi? Isto para citar a afirfnagio

citada. Mas quantos poetas nio podoriamos citar, esde o romantismo, cuia obra muito deve, tanto as sqlgestoes cla natureza como as inquietaqoes losolicasil Outro exemplo, mas de mais grave confusio, pois revela que o autor cita nomes de escritores que nio len: e Os romancislas, apds Dostoievshlfy, procuram. como Cheslov e’o prd rio gyce. . . ». Chestov romancista!! és on e leva a seduqao da facil cnumeracao, para fazer vista aos olhos do leitor-que, inqenuo, o criuco n5o imagine menos incu to do que éle propriol Outro exemplo, para acabar, de caso idéntico: ¢ Dai, os aulorcs cou- temponineos dispensarem personagens, acgio, tuda o que seja licticio, para sim- plcsmenle reiatarem o scu drama,” a sua acptfo interior, (vejam Proust em A’ Ia recherche du temps perdu e o prdprio Ulisses de James Joyce). . . » Ora

o mais superficial golpe de vista lanqado a qual- quer destas obras nos revels a existéncia e personaqsrns. Dnssesse Manuel Anselmo que oust e Joyce relatavam de pre/eréncia a acqio interior, o desenrolar do lilme da autoconsciéncia em cada uma das personagens, e estaria certo. Mas nest a existéncia dessas persona- gens! ada urn destes exemplos é um sintoma grave, dum mal que nic é ape- nas déste autor, e que encontramos com frequéncia em alguns criticos recentes. Excesso de velocidade, sempre prejudicial, mas pnncipalmente quando se exerce a critics sobre o que outros escreveram, o que exige a inicial obrigacio de conhecer os autores estudados. Manuel Anselmo sofre ainda dum menus grave, mas visivel defeito (defeito, alias, proveniente do mesrno atabalhoamento, da mesma pressa em passar adiante); citarei apenas este caso, alias o mais lamentavel de todos os que encontrei no seu livro: ‹ Freud, o delicioso médico e professor de Viena» Santos e santas da côrte do céu! Valei-nos! Que imaginação delirante poderia supor que Freud seria por alguém qualificado de delicioso!! Manuel Anselmo tem assim, pelo seu livro fora, iguais inoportunidades na qualificação; é juventude? espero que sim, mas parece-me que um pouco de auto-critico evitaria tais deslises.

Com tôdas estas restricções, não quero senão acentuar o desencontro entre as reais qualidades de Manuel Anselmo e os não menos reais (mas evitáveis, a meu ver) destemperos. erros por incompleta informação, simplificações deformadoras por ambição de sintetizar -defeito, este último, inadmissível num critico que afirma o seu desejo de «apreender, dentro dos artistas, o seu ambiente emocional e intelectual».

O género ensaio sintético, a que pertence cada um dos ensaios de Artur Augusto, não é género fácil. Longe de ser um género pelo qual se comece (embora haja a tentação e se começar por êle) é antes

como que a flor e o fruto duma variada experiência, duma segura maturidade de espírito, duma profunda cultura, duma intuição longamente verificada ; sem o que, tôda a síntese se nos afigura inconsistente. Estas condições, não as revela ainda o livro de Artur Augusto. Bela e feliz desculpa o desculpa, - a sua juventude. Mas tais condições podem ser adiantadas, por aquela espécie de maturidade natural que concedem a certos criticos de vocação certos dons innatos. Estes, também ainda os não revela suficientemente o livro de Artur Augusto. E permita Artur Augusto que se lhe diga estas coisas de cá, da presença, - que eu já ouvi responsabilizar a presença pelo que na «Imagem» há de débil !: as sínteses precipitadas, feitas sôbre leituras incompletas ou mal digeridas; as amplificações caricaturais de certas ideias modernas; as afirmações categóricas, contraditórias, e insustentáveis a uma rápida análise; e as insuficiências de expressão que ora não chegam a explicitar o pensamento do autor, ora o atraiçoam.

Acabo de enumerar os defeitos capitais do livro de Artur Augusto. Exemplifiquemos um pouco:

« O circulo dentro do qual o moralista se move para a construção do seu sistema, é restricto; tão acanhado como um cérebro infantil.. (antonio botto e os problemas da moral, da sinceridade e da originalidade). ¿Artur Augusto Ieu algum dos grandes moralistas modernos ou antigos? e achou o seu circulo tão acanhado como um cérebro infantil?! É exigente. Mas que o leitor continue a ler este ensaio. . ., achará outros exemplos de confusão.

«O romance frio, realista, de análise calculada e objectiva, que ƒêz as delicias de nossos pais, ƒaliu, e ƒaliu estrondosamente. » (acêrca da literatura brasileira). ¿Falara Artur Augusto das obras-primas de Flaubert? das novelas de Maupassant? das inultrapassáveis paginas realistas de Tolstoi?

Então a gente d’O Diabo não tem

ninguém mais competente para

fazer crítica literária do que o

senhor Ferreira de Mira? Deus

nos valha! – já que o Diabo está

tanto por baixo. (por causa da

moda das iniciais irreconhecíveis

ou pseudónimos apocalípticos

a assinar ataques contra não se

sabe quem - aqui assino eu, José

Régio, esta pregunta contra o dito

Senhor Ferreira de Mira, a quem

não quer mal nenhum!

por: Manuel Anselmo

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das epopeias de Zola? da criação monumental da Comédia Humana? dos romances do nosso Eça? Não; não fala. Não façamos essa injúria a Artur Augusto. O que é, é que Artur Augusto caricaturiza certos ataques legítimos a dogmática realista.

«A atitude do crítico é absolutamente pessoal, demonstrativo só de um modo de ver.» (breve ensaio sôbre a crítica). Artur Augusto também leu, não é verdade?, varios críticos. ¿E achou que a sua atitude era assim como diz? Ora vejamos: Se eu, criticamente, disser que a sua afirmação resulta duma amplificação, levada até ao grotesco, de certa tendência moderna a encarar o subiectivismo do critico, - aposto dez contra cem que a minha observação não será tomada como absolutamente pessoal.

«Quanto a mim, sinto em Proust um realista que levou às maiores minúcias aquele processo analítico, de ƒotografia impressionada só pelo exterior das coisas.» (breve ensaio sobre a crítica). Continue o leitor a ler o que Artur Augusto escreve sôbre Proust. Sentira nascer no seu espírito esta pregunta que também me punge: ¿Quantas páginas teria Artur Augusto lido de Proust? Há, em Proust, várias paginas . . . que podem dar-lhe razão.

«Para mim Casais Monteiro é um dos melhores temperamentos críticos da minha geração, em Portufal. O seu espírito, de uma grande rebeldia, de um perene descontentamento, continuamente revoltado contra

tudo e contra todos, procurando sempre e através de tudo vincar a sua curiosíssima personalidade, e dos mais bem constituídos que jamais encontrei» (Casais Monteiro). ¿ Seria bem constituído o espírito dum homem «continuamente revoltado contra tudo e contra todos?» Julgo que nem o seu espírito, nem o seu figado, nem o seu estômago, nem o seu sexo. Artur Augusto está tão enganado com Casais Monteiro como com Proust. .

Mas não farei mais citações. Quando Artur Augusto fala na «meditação quieta e quási edílica (sic) dos românticos», quando alude a «ess’outra análise fria e disforme, por calculada que era, dos realistas o, quando parece tomar como sinónimo de clássico tudo o que é morto, chato, mesquinho, fechado, - evidentemente expõe vistas muito parciais, e muito depreciativas, sôbre clássicos, românticos e realistas, no intuito de vitoriosamente lhes opor os modernos. Ora a mim próprio pregunto se as suas vistas sôbre os modernos não serão igualmente incompletas, e até depreciativas. Vem-me esta dúvida da noção que tem Artur Augusto de critica moderna. ¿Pois quê?! então a critica moderna é essa licença desvairada, e essa petulante arbitrariedade, que Artur Augusto parece supor em vários passos do seu livro? ¿Então os críticos modernos mandaram passear tôda a cultura, voltaram costas a todo o esfôrço do critico para superar os seus gostos meramente pessoais, entronizaram a indisciplina e a revolta

contra tudo e contra todos, acharam legítimos, interessantes, e críticos, todos os pensamentos que lhes zigue-zaguearam no cérebro? Se assim fôsse, letras seriam tretas e todos os jovens de tretas críticos.

Que Artur Augusto saiba perdoar-me êstes reparos,- e outros que ficam por fazer. Mas Artur Augusto precisa reler não só os críticos modernos, como, em geral, tôdas as obras de que fala. E a reflexão, depois, lhe ensinará a aproveitar melhor os dons de simpatia, inteligência e coragem afirmativa malbaratados neste livro infeliz.

Coimbra. Imprensa da Universidade, 1934

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